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Processo nº 50/2020
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), propôs, no Tribunal Judicial de Base, acção ordinária – CV2-15-0102-CAO – contra, “I”, (“壬”), e “J”, (“癸”), (1ª e 2ª) RR., pedindo a sua condenação no pagamento solidário a seu favor de HKD$9.000.000,00 (MOP$9.270.000,00) e juros legais; (cfr., fls. 3 a 8 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, por sentença de 21.09.2017, foi a acção julgada improcedente; (cfr., fls. 335 a 338).

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Do assim decidido, recorreu o A., (A), para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 07.11.2019, (Proc. n.° 158/2018), concedeu provimento ao recurso, condenando as (1ª e 2ª) RR. (“I” e “J”) no pedido deduzido; (cfr., fls. 496 a 515-v).

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Vem agora as (1ª e 2ª) RR. recorrer.

Nas suas alegações, produz a (1ª) R. “I” as conclusões seguintes:

“1) O acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, foi concedido provimento ao recurso interposto pelo Autor e dado como provados os quesitos 2.°, 3.°, 5.° e 6.° da Base Instrutória e revogada a sentença recorrida e, em consequência, foram a 1.ª Ré e 2.ª Ré condenadas solidariamente.
2) Entendeu o tribunal a quo que, "reapreciada a prova testemunhal, é bom ver que as testemunhas do Autor têm conhecimento directo dos factos, sendo os seus depoimentos bastantes coerentes". Entendimento do qual a ora Recorrente não partilha.
3) No modesto entendimento da Recorrente, o tribunal a quo, lançou mão de determinados fundamentos que deveriam ter levado a uma consequência diferente, i.e., à não modificabilidade da matéria de facto da decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.
4) E, quando há uma contradição entre os fundamentos e a decisão, quando se verifica um vício, estamos perante a nulidade contida na alínea c) do artigo 571.° do Código de Processo Civil, neste sentido vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 2013, Processo n.° 660/1999.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
5) Salvo o devido respeito, determinados argumentos como esgrimidos pelo Tribunal a quo não poderiam conduzir à prova de depósito dos 9 milhões de dólares de Hong Kong, por parte do Recorrido "na conta da 1.ª Ré."
6) Antes de mais, cumpre esclarecer que os depósitos são realizados nas contas dos depositantes e, não, na "conta da 1.ª Ré" e, curiosamente, no caso em apreço, não há nenhuma informação atinente ao número de conta em que a quantia de HDK$9,000,000.00 (nove milhões de dólares de Hong Kong) foi depositada junto da Recorrente pelo Recorrido.
7) Posto isto, vários são os argumentos esgrimidos pelo tribunal a quo para alterar os quesitos conducentes a provar o depósito.
8) Começamos pelas testemunhas do Autor, uma delas procuradora, que teriam conhecimento directo sobre os factos, mas na óptica do tribunal a quo já não teriam que ter sobre o facto de um talão de depósito não ter lá o número de conta.
9) Tal não se concede, pois, nem numa instituição bancária tal se acontece!
10) Outro argumento é o talão que se encontra com o Autor, e, o facto de a supervisora C poder ter cedido tal aos clientes, mas facto é como o tinha um talão de depósito, tal razão mais que convincente do depósito.
11) O tribunal a quo fala abertamente sobre o facto de a supervisora da tesouraria da sala VIP da Recorrente ter "sumido", que até os talões de depósito poderiam ter cedidos ao ora Recorrido, mas, a final, tem que necessariamente concluir pelo depósito de uma quantia tão avultada, face a um talão de depósito sem número de conta.
12) Mais uma vez, não concedemos nem podemos conceder, porque a fundamentação do tribunal conduz a uma condenação da Recorrente, quando deveria ter levado à confirmação da sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.
13) Por último, entende o tribunal a quo que o facto de não existirem registos informáticos nem cópias do talão, que tal não pode desonerar a Recorrente.
14) Ora, o facto de não haver rasto das transacções ou dos talões de depósito deveria levar à confirmação da decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, e não à decisão, nos termos feitos pelo tribunal a quo.
15) Nos termos do acórdão supra melhor referido, isto não é uma situação em que há uma mera divergência entre os factos provados e a solução jurídica, mas uma situação falaciosa, em que dos fundamentos, ou dos factos em que o tribunal se apoiou, levou a que fosse proferida uma decisão contrária à expectável.
16) Constituindo, assim, uma situação de nulidade de sentença, nos termos e para os efeitos da alínea c) do artigo 571.° do Código de Processo Civil.
17) À cautela e sem prescindir, nos presentes autos está em crise a relação de depósito existente entre 1.ª Recorrente e Recorrido e a responsabilização da Recorrente, entendimento propugnado pelo Tribunal de Segunda Instância, contrariando o entendimento do Tribunal da Primeira Instância.
18) Ora, atentando ao documento que titula o alegado depósito realizado pelo Recorrido doc. 3 da p.i., verificamos que inexiste qualquer número de conta naquele documento. Sequer sabemos se o documento é original!
19) A isto acresce que inexistem quaisquer cópias ou mesmo registo no sistema informático da Recorrente desta transacção.
20) Face a estes elementos seria de não se entender por uma relação de depósito entre Recorrente e Recorrida, mas não foi isso que aconteceu!
21) Ora, a aceitar-se um depósito (que não se pode aceitar), facto é que a Recorrente encontra-se desonerada, na medida em que, por razões alheias à sua vontade, viu-se privada de inúmeros documentos e informações atinentes ao funcionamento enquanto sociedade promotora de jogos de fortuna e de azar.
22) Ora, se há uma obrigação de zelo por parte da Recorrente enquanto depositária, tal obrigação também é extensível ao Recorrido, depositante.
23) Entendemos, pois, não se sabendo que tipo de talão estamos perante, sequer em que conta (se) foi depositada a quantia em questão, e, por a Recorrente ter sido alvo de um desfalque na sua tesouraria, e terem desaparecido inúmeros documentos internos, tal constitui uma razão de desoneração da Recorrente perante o Recorrido.
24) Pelo que, entendemos que a decisão do douto acórdão ora recorrido deverá ser revogada, devendo a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância ser mantida na íntegra e a Recorrente ser absolvida”; (cfr., fls. 535 a 539).

Por sua vez, assim conclui a (2ª) R. “J”:

“(i) O Tribunal Judicial de Base condenou a I no pedido em sede de responsabilidade meramente contratual;
(ii) O Acórdão recorrido confirmou essa decisão sem reservas;
(iii) O Acórdão recorrido condenou a Recorrente com base no artigo 29.° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 por entender que (a) este enuncia um princípio de responsabilidade das concessionárias de jogo perante terceiros por actos dos promotores de jogo; (b) o depósito em numerário realizado pelo Recorrido junto da I subsumia-se no segmento da previsão normativa do artigo 29.° que se refere à actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, e (c) a omissão pela Recorrente do seu dever de fiscalização da actividade da I, consagrado no artigo 30.°, alínea 5), do dito Regulamento, é o factor que precipitou a sua responsabilização pelo incumprimento por banda da I do contrato de depósito que celebrara com o Recorrido;
(iv) O Regulamento Administrativo n.° 6/2002 é um regulamento complementar;
(v) O seu artigo 29.° regulamenta o n.° 3 do artigo 23.° da Lei n.° 16/2001 e consequentemente só trata da responsabilidade das concessionárias perante o Governo, por actos praticados por promotores de jogo com os quais tem relação;
(vi) A interpretação do referido artigo 29.° professada no Acórdão recorrido importa que as concessionárias respondam objectivamente perante terceiros por obrigações contratuais dos promotores de jogo, por estes contraídas no exercício da própria empresa, como se aquelas fossem suas fiadoras ope legis;
(vii) Isso representaria um risco extremo e injustificado, não explicado por qualquer circunstância especial da relação que se estabelece entre concessionárias e promotores;
(viii) Os promotores de jogo são entidades autónomas, actuam em concorrência virtual com as concessionárias e estão sujeitos a licenciamento, exames à escrita e auditorias do regulador, corporizado na Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos;
(ix) Por conseguinte, o artigo 29.° não responsabiliza as concessionárias perante terceiros por obrigações contratuais dos promotores, contraídas no exercício da própria empresa;
(x) Se o legislador tivesse querido instilar-lhe esse sentido, tê-lo-ia expressado em termos inequívocos;
(xi) O Acórdão recorrido violou e fez errada aplicação de lei substantiva ao interpretar o referido artigo 29.° e aplicá-lo na condenação da Recorrente, nos moldes supra descritos;
(xii) Não há relação de causa - efeito entre a fiscalização pela concessionária ou subconcessionária da actividade do promotor de jogo e o cumprimento por este das suas obrigações contratuais; pode haver fiscalização, seguida de incumprimento, como pode haver falta de fiscalização seguida de cumprimento;
(xiii) Daqui resulta que a omissão do dever da concessionária ou subconcessionária, estabelecido pelo artigo 30.°, alínea 5), do Regulamento, de fiscalizar o cumprimento das obrigações contratuais do seu promotor de jogo, não explica, justifica, legitima, confere fundamento ou precipita a responsabilização solidária da concessionária ou subconcessionária com o promotor pelo incumprimento das obrigações contratuais deste;
(xiv) Tendo decidido em contrário, o Acórdão recorrido violou e fez errada aplicação de lei substantiva, a saber, os referidos artigos 29.° e 30.°, alínea 5), do Regulamento Administrativo n.° 6/2002”; (cfr., fls. 542 a 560-v).

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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal Judicial de Base deu como provada a factualidade seguinte:

“Em 24 de Junho de 2006, a 2ª Ré J celebrou, na qualidade de concessionária, com o Governo da RAEM um contrato de concessão para a exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino na Região Administrativa Especial de Macau que foi publicado no “Boletim Oficial da RAEM” n.º 27 de 2002. (alínea A) dos factos assentes)
Posteriormente, com autorização e consentimento da 2ª Ré, a 1ª Ré passou a ser uma promotora de jogo no Casino J afecta à 2ª Ré. (alínea B) dos factos assentes)
Para o exercício da actividade de promoção de jogos, a 1ª Ré criou, com autorização e consentimento da 2ª Ré, uma sala de jogo denominada “I VIP Club” no Casino J. (alínea C) dos factos assentes)
Do mesmo modo, com autorização e consentimento da 2ª Ré, a 1ª Ré instituiu no “I VIP Club” uma tesouraria autónoma para oferecer aos seus membros serviços gratuitos de troca, depósito e levantamento de fichas de jogo e diversas facilidades. (alínea D) dos factos assentes)
Durante o mês de Maio de 2015 a 1ª Ré tinha um único sócio e um único membro do órgão de administração, o Senhor B (乙). (alínea E) dos factos assentes)
Em data não apurada mas anterior a Setembro de 2015, o Autor abriu uma conta na sala “I VIP Club” e passou a ser um membro da mesma. (resposta ao quesito 1°)
Segundo a prática habitual e as regras do sector do jogo, quando um membro depositar fichas de jogo numa sala de jogo de um promotor de jogo, incluindo na sala “I VIP Club”, o promotor de jogo responsabiliza-se pela sua guarda, e pela restituição imediata das fichas depositadas sempre que lhe for exigida. (resposta ao quesito 4º)
A 2ª Ré, concessionária de jogos, permitia que a 1ª Ré aceitasse depósito de fichas de jogo pelos membros da sala “I VIP Club” nesta sala localizada dentro do Casino J. (resposta ao quesito 7°)
De acordo com os estatutos da 1a Ré, esta só se vincula perante terceiros em documentos donde consta a assinatura do membro do órgão de administração, B (乙). (resposta ao quesito 8°)
C (丙) era a directora-supervisora da tesouraria do “Clube VIP I” da 1ª Ré. (resposta ao quesito 9°)”; (cfr., fls. 503-v a 504).

Do direito

3. Dois são os recursos trazidos a esta Instância.

Um, o primeiro, da (1ª) R. “I”, atacando a decisão do Tribunal de Segunda Instância no que toca à decisão de “alteração da decisão da matéria de facto” proferida pelo Tribunal Judicial de Base, e, o segundo, interposto pela (2ª) R. “J”, impugnando o “enquadramento jurídico” pelo Acórdão recorrido efectuado à matéria de facto que considerou estar provada.

–– Como se apresenta lógico, há que se começar pelo recurso da (1ª) R. “I”, (quanto à decisão da matéria de facto).

Pois bem, para a decisão a que chegou – de procedência do recurso do A. e consequente condenação das 1ª e 2ª RR., e, agora, em especial no que toca à impugnação da decisão da matéria de facto – assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância (na parte que agora interessa):

“(…)
O Autor ora recorrente vem impugnar a decisão sobre a matéria de facto provada nos quesitos 1º a 7º da base instrutória, com fundamento na suposta existência de erro na apreciação das provas, alegando, em síntese, que os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Autor permitem chegar à conclusão de que houve depósito da quantia de HKD9.000.000,00 na conta da 1ª Ré.
O Tribunal recorrido respondeu aos referidos quesitos da seguinte forma:
Quesito 1º - “Em Agosto de 2013, o Autor passou a ser um membro do “I VIP Club” com conta de fichas n.º XXXXXXXX?”, e a resposta foi: “Provado que em data não apurada mas anterior a Setembro de 2015, o Autor abriu uma conta na sala “I VIP Club” e passou a ser um membro da mesma.”
Quesito 2º - “Seguidamente, até Maio de 2015, no Casino J, o Autor depositou, por si e através de um seu amigo, a quantia total de nove milhões dólares de Hong Kong (HKD9.000.000,00) em fichas de jogo no “I VIP Club” da 1ª Ré?”, e a resposta foi: “Não provado.”
Quesito 3º - “Para servir de documento comprovativo, a 1ª Ré emitiu, em nome de “I VIP Club”, o recibo de depósito de fichas de jogo ao Autor com assinatura do empregado da 1ª Ré e carimbo para confirmação, cuja pública-forma se encontra junta a fls. 40?”, e a resposta foi: “Não provado.”
Quesito 4º - “Segunda a prática habitual e as regras do sector do jogo, quando um membro depositar fichas de jogo numa sala de jogo de promotor de jogo, incluindo “I VIP Club”, o promotor de jogo responsabiliza-se pela sua guarda, e pela restituição imediata das fichas depositadas sempre que lhe for exigida?”, e a resposta foi: “Provado que segundo a prática habitual e as regras do sector do jogo, quando um membro depositar fichas de jogo numa sala de jogo de um promotor de jogo, incluindo na sala “I VIP Club”, o promotor de jogo responsabiliza-se pela sua guarda, e pela restituição imediata das fichas depositadas sempre que lhe for exigida.”
Quesito 5º - “O Autor e o seu amigo deslocaram-se ao “I VIP Club” da 1ª Ré no dia 15 de Setembro de 2015 para pedir o levantamento das fichas de jogo ali depositadas, tendo o empregado da 1ª Ré recusou tal pedido dizendo ao Autor que, segundo as instruções da 1ª Ré, não lhe podia ser restituída qualquer ficha de jogo depositada?”, e a resposta foi: “Não provado.”
Quesito 6º - “E posteriormente, o Autor e seu mandatário/procurador deslocaram-se várias vezes ao “I VIP Club” para pedir o levantamento das fichas de jogo nele depositadas, tendo tal pedido continuado a ser recusado pelo empregado da 1ª Ré?”, e a resposta foi: “Não provado.”
Quesito 7º - “A 2ª Ré, enquanto concessionária de jogos, não fiscalizou nem supervisionou a actividade da 1ª Ré e do “I VIP Club” por ela criado, tendo deixado a 1ª Ré praticar, em nome de “I VIP Club”, actividades no Casino J, nomeadamente respeitantes ao depósito de fichas de jogo dos membros?”, e a resposta foi: “Provado que a 2ª Ré, concessionária de jogos, permitia que a 1ª Ré aceitasse depósito de fichas de jogo pelos membros da sala “I VIP Club” nesta sala localizada dentro do Casino J.”
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Ora bem, dispõe o artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
Estatui-se nos termos do artigo 558.º do CPC que:
“1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.”
Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012, no Processo n.º 551/2012: “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599.º, n.º 1 e 2 do CPC.”
Também se decidiu no Acórdão deste TSI, de 28.5.2015, no Processo n.° 332/2015 que: “A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629.º do CPC. E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
A questão fulcral tratada naqueles quesitos é saber se o Autor chegou a depositar nove milhões na conta da 1ª Ré.
Como acima se mencionou, o Tribunal a quo não deu como provada aquela factualidade.
Reapreciada a prova produzida, nomeadamente o depoimento das testemunhas inquiridas em audiência, bem como a prova documental junta aos autos, salvo o devido respeito, estamos convictos de que o Autor chegou a depositar aqueles nove milhões na conta da 1ª Ré.
Senão vejamos.
Reapreciada a prova testemunhal, é bom de ver que as testemunhas do Autor têm conhecimento directo dos factos, sendo os seus depoimentos bastante coerentes.
Em boa verdade, a 1ª testemunha D e a 4ª testemunha E manifestaram ter pleno conhecimento dos factos, sendo aquela amiga e procuradora do Autor e esta funcionária de tesouraria da sala VIP “[Sala VIP(2)]”. Segundo o depoimento da funcionária, lembrou-se de que nos inícios de 2014, o Autor levantou todo o dinheiro que estava depositado na sala VIP “[Sala VIP(2)]”. Conhecia o Autor por ser cliente frequente. Nessa altura, o mesmo estava acompanhado pela 1ª testemunha D. Confirmou a 4ª testemunha que foi ela quem ajudou o Autor a tratar do levantamento do dinheiro. Teve ainda algumas conversas com o Autor, tendo assim tomado conhecimento de que o Autor pretendeu levantar o dinheiro e depositá-lo na conta da sala VIP I, uma vez que ali havia mais quartos privados para jogo.
Em relação ao depoimento da 1ª testemunha D, disse que o Autor abriu uma conta na sala VIP I em finais de 2013, e no primeiro semestre de 2014 acompanhou o Autor para ir levantar nove milhões junto da sala VIP “[Sala VIP(2)]”, tendo esse dinheiro sido depositado depois na sala VIP I.
Confirmou ainda em audiência que a tesouraria da I emitiu um talão de depósito constante de fls. 40 dos autos.
Mais respondeu que é procuradora do Autor, durante o período compreendido entre 2013 e 2015, ela ajudou o Autor a proceder levantamentos e depósitos de dinheiro na tesouraria da sala VIP I, cerca de 20 vezes. Explicou aquela testemunha que cada vez que levantasse dinheiro, tinha que apresentar o respectivo talão. Se levantasse todo o dinheiro da conta, a tesouraria pedia a devolução do talão; se levantasse só parte do dinheiro, a tesouraria também pedia a devolução do talão mas emitia novo talão atendendo ao saldo remanescente existente na conta.
Mais disse que o talão foi elaborado pela tesouraria, ou melhor, por seus funcionários.
Ademais, também não podemos deixar de considerar o depoimento das duas testemunhas da 1ª Ré, F e G, na parte em que admitiram que o talão (papel) em si é verdadeiro, apenas negaram a veracidade do seu conteúdo.
De um modo geral, os clientes não tinham condições de saber quando é que um talão se considerava “válido” pela sala VIP. Em boa verdade, as formalidades de emissão do talão eram feitas pela tesouraria, se nele constava ou não o número da conta, se o montante era impresso ou escrito a mão, se tinha ou não carimbo ou se tinha que ser assinado por quem quer que fosse, não eram coisas que, segundo as regras de experiência comum, interessavam aos clientes dos casinos. Conforme dito pela 1ª testemunha D e 3ª testemunha H, fazia todo o sentido que os clientes, incluindo o aqui Autor ora recorrente, confirmassem apenas se constava do talão o nome e o montante depositado; quanto aos restantes elementos, os clientes não podiam saber se eram ou não verídicos.
Por outro lado, disseram as testemunhas da 1ª Ré que os livros de talões foram guardados por C, supervisora de tesouraria da sala VIP I. À medida que os talões dum livro foram arrancados e usados, haveria que pedir à supervisora para facultar um novo caderno.
Sendo assim, se o Autor não tivesse depositado dinheiro na I, como é que tinha na sua posse o talão de depósito daquela sala VIP. É verdade que se pode pensar que a supervisora, por quaisquer razões, ter cedido os talões a outros indivíduos, incluindo o aqui Autor, mas ponderando toda a prova produzida nos autos, acrescido ainda do facto (notório) de que a tal senhora abandonou o seu cargo e sumiu, entendemos que o depoimento das testemunhas do Autor merece credibilidade, pelo que estamos convictos de que houve efectivo depósito de dinheiro pelo Autor no montante discriminado no respectivo talão de depósito, na conta da sala VIP da I.
Como foi dito acima, as duas testemunhas da 1ª Ré não negaram a genuidade do talão, antes confirmando que foi a C quem se tinha encarregado de guardar os livros de talões. Admitiram ainda que a I não pagou ao Autor, bem assim a outros titulares dos respectivos talões, por que a sociedade não logrou encontrar a cópia dos talões nem o registo dos depósitos no sistema informático da tesouraria da I.
Sinceramente, o facto de a I não ter encontrado os registos não significa necessariamente que não houve lugar a depósito de dinheiro pelo Autor, sabendo que, conforme o depoimento das testemunhas da 1ª Ré, sendo C supervisora da tesouraria da sala VIP I, competia-lhe chefiar a tesouraria e decidir da forma de funcionamento que melhor entender.
Nestes termos, ponderada e valorada toda a prova, julgamos que os quesitos 2º, 3º, 5º e 6º da Base Instrutória devem merecer resposta afirmativa, nos seguintes termos:
Quesito 2º - Em 1.5.2015, no Casino J, o Autor depositou, por si e através de uma amiga, a quantia total de nove milhões dólares de Hong Kong (HKD9.000.000,00) em fichas de jogo na sala “I VIP Club”.
Quesito 3º - Para servir de documento comprovativo, funcionários da 1ª Ré emitiram, em nome da sala “I VIP Club”, o talão de depósito de fichas de jogo ao Autor, conforme a pública-forma constante de fls. 40 dos autos.
Quesito 5º - O Autor deslocou-se à sala “I VIP Club”, em dia não apurado do mês de Setembro de 2015, para pedir o levantamento das fichas de jogo ali depositadas, mas foi recusado por funcionários da sala “I VIP Club”.
Quesito 6º - Posteriormente, o Autor e sua procuradora deslocaram-se, por várias vezes, à sala “I VIP Club” para pedir o levantamento das fichas de jogo ali depositadas, mas foi sempre recusado por funcionários da sala “I VIP Club”.
No que toca à resposta aos 1º, 4º e 7º quesitos, não vemos necessidade de alteração, por não se vislumbrar qualquer erro manifesto.
(…)”; (cfr., fls. 506 a 510-v).

Em face do assim decidido, cabe dizer que manifesta é a improcedência do recurso da (1ª) R. “I”, ora em apreciação, muito não sendo necessário aqui expender para o demonstrar.

Com efeito, importa ter presente que na parte referente ao “Recurso para o Tribunal de Última Instância”, tratando de matéria do “Julgamento do recurso”, e sob a epígrafe “Âmbito do julgamento”, prescreve o art. 649° do C.P.C.M. que:

“1. Aos factos materiais que o tribunal recorrido considerou provados, o Tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime que julgue adequado em face do direito vigente.
2. A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”; (podendo-se, sobre a questão da “competência deste T.U.I. em sede de matéria de facto” ver também os Acs. de 29.11.2019, Proc. n.° 111/2019, de 19.02.2020, Proc. n.° 83/2018, de 03.04.2020, Proc. n.° 19/2019, de 10.06.2020, Proc. n.° 48/2020, e mais recentemente, de 10.11.2021, Proc. n.° 131/2021).

Nesta conformidade, e ponderando nas “razões” pelo Tribunal de Segunda Instância invocadas para a decisão – de alteração da matéria de facto – que proferiu, imperiosa é solução de improcedência do presente recurso da (1ª) R. “I”.

–– Passemos agora para o recurso da (2ª) R. “J”.

Pois bem, como se viu, a recorrente – apenas – põe em causa a sua “condenação solidária”, afirmando que se incorreu em “errada aplicação da lei substantiva”.

Porém, e sem prejuízo do muito respeito por diverso entendimento, outra é (também aqui) a nossa opinião.

Com efeito, em recente Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 19.11.2021, já transitado em julgado, (e proferido no Proc. n.° 45/2019), tivemos oportunidade de reflectir e emitir pronúncia sobre idêntica “questão”, (também pela ora recorrente aí igualmente suscitada).

Assim, mostrando-se-nos de considerar que o entendimento por nós assumido no referido Acórdão de 19.11.2021 se mantém válido, apresentando-se inteiramente adequado à situação dos presentes autos, mostra-se, pois, de aqui dar como integralmente reproduzido o que na dita decisão se deixou consignado, (e para a qual se remete), vista estando assim igualmente a solução para este recurso da (2ª) R. “J”.

Dest’arte, outra questão não havendo a apreciar, e constatando-se que censura não merece o Acórdão recorrido, resta decidir em conformidade.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento aos recursos interpostos.

Custas pelas recorrentes com a taxa de justiça individual que se fixa em 10 UCs.

Registe e notifique, (enviando-se cópia do Acórdão proferido nos Autos de Recurso n.° 45/2019).

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 12 de Janeiro de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

Proc. 50/2020 Pág. 22

Proc. 50/2020 Pág. 23