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Processo n.º 395/2021
(Autos de recurso contencioso)

Relator: Fong Man Chong
Data : 28 de Abril de 2022

Assuntos:

- Provas de separação de facto de casal e renovação do BIRM


SUMÁRIO:

I - A Administração, para justificar a sua actuação, bastou-se com a verificação o Recorrente e o seu cônjuge estiveram fisicamente separados por mais de 9 meses para concluir que entre eles não houve coabitação por esse mesmo período e que, por isso, o pressuposto da autorização de residência havia deixado de se verificar. A coabitação entre os cônjuges não é um conceito susceptível de apreensão puramente fáctica ou naturalística. Pelo contrário, é um conceito jurídico que reveste uma «grande plasticidade» e que, por isso, não dispensa uma análise casuística das concretas circunstâncias que em cada situação ocorram, de forma a procurar desvelar, não só a objectividade da falta de vida em comum, em regra em lugares separados, mas, também, o indispensável elemento subjectivo, qual seja, o propósito de ambos ou, ao menos de um dos cônjuges, de não restabelecer a vida em comum. Sem este elemento subjectivo não pode falar-se de quebra do dever de coabitação (cfr. n.º 1 do artigo 1638.º do Código Civil).
II - Se um dos cônjuges emigra para um outro país e está fisicamente ausente da casa de morada da família, e separado do outro cônjuge por largos períodos de tempo, como tantas vezes acontece, daí não resulta a quebra da comunhão de vida, nem do dever de coabitação, tanto mais que da norma do artigo 1534.º do Código Civil decorre, inequivocamente, que os cônjuges podem ter residências separadas.
III – Quando a Administração se limitou a verificar que, objectivamente, durante um período de aproximadamente 9 meses, o Recorrente viveu em Macau e o seu cônjuge permaneceu fora de Macau, concretamente no Canadá, mas não demonstra que a essa separação física correspondeu, juridicamente, a uma verdadeira separação de facto e, portanto, que tal período tenha correspondido a uma ausência de comunhão de vida, ou de uma coabitação em sentido juridicamente relevante, uma vez que, dos elementos colhidos no decurso do procedimento administrativo nada indicia que de um ou de ambos os cônjuges não houvesse o propósito de, assim que possível, voltarem a viver no mesmo lugar. Verificando-se um erro nos pressupostos de facto, o que é razão bastante para anular a decisão recorrida.


O Relator,

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Fong Man Chong




Processo n.º 395/2021
(Autos de recurso contencioso)

Data : 28/Abril/2022

Recorrente : A

Entidade Recorrida : Secretário para a Segurança

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    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
    
    I – RELATÓRIO
A, Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando do despacho do Secretário para a Segurança, datado de 11/03/2021, que indeferiu o seu pedido de renovação da autorização de residência na RAEM, veio, em 11/05/2021, interpor o presente recurso contencioso para este TSI, com os fundamentos constantes de fls. 4 a 41, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O recorrente mora em Macau há já perto de 11 anos, tendo uma firme e sólida ligação pessoal ao Território, que se não esgota no factor económico e laboral.
2. O recorrente começou a namorar em 2014 e em 2016 casou-se com B, tendo esta nascido em Macau em 1986 e tendo aqui sempre residido.
3. O recorrente trabalha com exclusividade para o C.
4. A esposa do recorrente trabalha na área do cinema e da indústria audiovisual, sendo proprietária da empresa D LIMITED, que está plenamente activa e opera no respectivo mercado audiovisual de Macau, interagindo com diversas entidades, designadamente para o efeito de requer os respectivos licenciamentos de filmagem em locais públicos.
5. Toda a vida da esposa do recorrente está centrada e focada na R.A.E.M., tanto no plano conjugal e familiar, lado a lado com o recorrente, mas também no plano profissional e pessoal, tendo nomeadamente contratado apólices de seguros, tendo contas bancárias, investimento financeiros, cartões de crédito, telemóveis, internet e fax.
6. O recorrente e a sua esposa habitam conjugalmente em Macau numa casa arrendada em 2016 e cujo contrato, entretanto, já foi renovado, sendo que nessa fracção estão colocados os pertences pessoais do casal adquiridos ao longo dos últimos quase 6 anos, verbi gratia roupa, mobília, esculturas, equipamentos electrónicos e outros bens com elevado valor estimativo e financeiro do casal.
7. O recorrente e a sua esposa elegeram Macau como o centro fixo das suas vidas pessoal, familiar e profissional, tendo acordado aquando da celebração do casamento que a base e o pressuposto da sua vida conjugal futura deveria ser sempre a sua estadia e permanência em Macau, em termos de decorrer sempre na R.A.E.M. o centro habitual e referencial das suas vidas.
8. O pai do recorrente - ou seja, o sogro de B - vive no Canadá, residindo sozinho e padecendo de Diabetes de tipo 2, doença crónica que implica que tenha de usar insulina diariamente.
9. Antes de Março/Abril de 2020, data em que a pandemia se começou a manifestar de forma mais grave e séria em todo o mundo (obviamente incluindo no Canadá), o pai do recorrente deixou de poder contar com o apoio de uma auxiliar que, diariamente, o apoiava no dia a dia, inclusive para a preparação e ministração de insulina.
10. O recorrente e a sua esposa tinham viajado no início de Fevereiro de 2020 de Macau até ao Canadá para aí permanecerem por cerca de 1 mês, sendo sua intenção, por um lado, sair de Macau por um período curto de tempo porque nessa data - Fevereiro de 2020 - Macau estava praticamente paralisada devido à Covid-19, estando já encerradas ou proibidas todas as actividades não essenciais.
11. A isto acresce, por outro lado, que o casal queria também aproveitar essa viagem ao Canadá para estarem juntos um com o outro e para estarem em família com o seu pai e sogro e dar-lhe apoio.
12. O recorrente e a sua esposa estiveram a partir de Fevereiro de 2020 juntos no Canadá, prestando em simultâneo ambos apoio ao seu pai e sogro.
13. Por volta de Março de 2020 tornou-se evidente a disseminação mundial da pandemia Covid 19 e, nesse momento, a pessoa que apoiava o pai do recorrente teve de deixar de o apoiar por razões de prevenção e cautela acerca da contaminação pelo coronavírus e, por isso, desde cerca de Março de 2020, o recorrente e a esposa passaram a ser quem exclusivamente prestava apoio diário ao pai e sogro no Canadá.
14. Com o agravamento da pandemia à escala planetária, as viagens tornaram-se progressivamente mais dificultadas, incluindo para Macau.
15. Cerca de Julho de 2020, tanto por se ter tornado essencial para poder dar continuidade à sua relação de trabalho com o C mas também porque houve a abertura temporária de uma curta "janela de oportunidade" para os residentes poderem viajar de volta a Macau, ambos o recorrente e a sua esposa decidiram em conjunto que ele seria o primeiro a voltar a Macau e que ela se juntaria logo depois.
16. Assim, em conjunto, o casal decidiu que ela ficaria ainda temporariamente por um período suplementar no Canadá, não só devido às dificuldades de fazer essa viagem longa de volta a Macau mas também para que pudesse continuar a prestar apoio ao seu sogro.
17. A esposa do recorrente beneficia somente de um visto de turista no Canadá que apenas lhe faculta uma estadia sempre precária e temporária através de múltiplas e sucessivas reentradas periódicas, não se tratando de qualquer autorização de residência ou outro qualquer título de estadia no Canadá que abranja ou garanta à esposa do recorrente um período estabilizado de estadia longa ou sequer de média duração.
18. No início de Fevereiro de 2020 foi declarada a existência da Pandemia do Covid-19 em Macau e por essa altura foi decretado pelo Governo de Macau um bloqueio total nas fronteiras de Macau e também o encerramento dos Casinos e de todas as actividades da Função Publica, tendo também sido aconselhado que não deveriam haver deslocações para Macau por parte dos residentes de Macau e as fronteiras seriam fechadas só com entradas limitadas e muito controladas de residentes de Macau.
19. Também em Macau foram impostas medidas sérias e rigorosas nas fronteiras e nas deslocações dos residentes de Macau no seu regresso.
20. A situação pandémica gerou a restrição total dos movimentos das pessoas e, em especial, afectou seriamente todos os voos regulares de e para Macau, salvo se for vital e absolutamente essencial.
21. Em Março de 2021 a esposa do recorrente regressou a Macau, tal qual ela e o recorrente tinham previamente combinado em Julho de 2020.
22. Ambos, como sempre fizeram desde que começaram a namorar e se casaram, vivem juntos e coabitam como casal na mesma casa em Macau e o centro de vida do recorrente e da sua esposa foi e continua a ser em Macau, que representa para ambos, enquanto planeamento de vida do casal, a sua residência habitual, aliás a única que sempre quiseram e projectam para o seu futuro.
23. A ausência temporária de Macau de um e outro a partir de Fevereiro de 2020 e a vinda antecipada do recorrente em Julho em 2020, e a vinda da sua esposa em Março de 2021, em nada colide com o estabelecimento em Macau do centro de vida do casal, sendo aqui a sua residência habitual.
24. Toda a vida da esposa do recorrente e, conjugada e articuladamente, toda a vida do recorrente se alinham e orientam em tomo do propósito firme e resoluto de, como casal e célula conjugal e familiar, ser e continuar futuramente a ser Macau o centro e palco central das suas vidas e, pois, a residência habitual do casal.
25. Mais, o recorrente explicou que o motivo relevante e atendível para a ausência temporária da sua esposa no Canadá foi a necessidade indeclinável de ser prestado apoio familiar no Canadá ao sogro desta.
26. Contrariamente ao afirmado no acto recorrido, é insofismável que a necessidade de dar apoio familiar perante a doença do pai do recorrente não se trata de um simples e mero acto de vontade da esposa do recorrente, não é um seu acto arbitrário e livre.
27. O recorrente e a esposa viajaram para o Canadá em Fevereiro de 2020 exactamente nas vésperas de se manifestar a nível global a pandemia Covid19 e só quando a pandemia se iniciou foi quando o pai do recorrente perdeu o apoio domiciliário que tinha por parte de uma assistente no Canadá, pelo que, perante essa circunstância imprevisível e de força maior - que, nos planos moral, ético e legal, reclama o indeclinável apoio da família - o recorrente e a esposa prestaram ambos, conjuntamente, o apoio necessário diário ao seu pai e sogro.
28. A partir de Julho de 2020 tornou-se imprescindível ao recorrente regressar prontamente à RAEM a fim de aqui assegurar a continuidade da sua relação de trabalho e, nessa altura, o recorrente e a esposa discutiram e ponderaram se regressariam ambos de imediato a Macau ou se, face à necessidade de apoio que o pai do recorrente ainda tinha, se ela ficaria por mais algum tempo e só mais tarde se rejuntaria ao marido, aqui recorrente.
29. Para essa ponderação, o recorrente e a esposa tiveram também em conta, além da perduração da necessidade de apoio do seu pai e sogro, que a actividade profissional desta na sua empresa de produção audiovisual se compadeceria em poder ser efectuada ainda por mais algum tempo por via remota, através da internet mas que, contudo, para o recorrente poder manter o seu vínculo laboral, teria necessariamente de se apresentar pessoalmente em Macau.
30. O recorrente e esposa tiveram também em devida conta as directrizes e recomendações emanadas por parte das autoridades da R.A.E.M. desaconselhando firmemente qualquer deslocação internacional - tanto de Macau como também para Macau - se e acaso essa viagem não fosse absolutamente necessária e imprescindível.
31. O recorrente a sua esposa, ponderando todos esses factores e considerandos, tomaram conjuntamente, como casal e família que são, uma decisão sobre qual a solução transitória que assegurasse o melhor interesse de toda a família e, por outro lado, que melhor se coadunasse com a situação de pandemia global já então em pleno vigor à escala mundial.
32. Uma ausência temporária de Macau, designadamente para prestar assistência a familiares não implica a perda de Macau como o centro da respectiva vida pessoal e profissional mas apenas uma situação transitória.
33. Em situações anteriores, a entidade recorrida, através do Serviço de Migração, ao abrigo dos mesmos normativos legais aqui em aplicação, já atendeu e mostrou uma extrema sensibilidade para acolher e aceitar situações similares e homólogas em que um titular de B.I.R. se tem de ausentar temporariamente de Macau para apoio directo a familiares.
34. ln casu, o recorrente e a esposa deslocaram-se logo no começo de Fevereiro de 2020 ao Canadá para fins de recreio e lazer mas, lá chegados, depararam-se quase de imediato com uma circunstância inesperada e de força maior, que em nada dependeu de qualquer sua acção ou omissão: a saída da pessoa que diariamente dava apoio no domícilio ao pai do recorrente.
35. Com base num motivo inteiramente atendível e justificado – cuidar pessoalmente do seu pai e sogro -, ambos decidiram que o recorrente regressaria em primeiro lugar e que a sua esposa, pelas razões múltiplas e cumulativas acima referidas, regressaria em momento posterior.
36. Contrariamente ao que parece subjazer ao acto recorrido, tal ausência temporária da esposa do recorrente da R.A.E.M. não significou qualquer ruptura do pacto e vínculo conjugal entre o recorrente e a sua esposa.
37. Muito pelo contrário, foi também e sobretudo por amor da esposa do recorrente ao marido e também ao seu sogro, carecido de apoio diário, que a esposa do recorrente combinou com o recorrente que - uma que que ela tinha essa possibilidade profissional e que, porém, ele a não tinha - ela ficaria ainda por mais algum tempo no Canadá e o marido regressaria de imediato a Macau a fim de assegurar a continuidade da sua relação laboral.
38. Logo, essa decisão conjugal, feita em consideração de uma série de factores, sobretudo o amor conjugal e familiar, nunca implicou qualquer desligamento ou abrandamento quer do recorrente quer da sua esposa em relação a Macau como o centro referencial das suas vidas enquanto casal, para efeitos do que se designa legalmente como residência habitual.
39. Segundo o art. 30.°, n.º 2, do Código Civil residência habitual é o «(...) lugar onde o indivíduo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal (...)».
40. O Tribunal de Última Instância, no seu acórdão de 27 JAN 2021, tirado no proc. n.º 182/2020 e relatado pelo Juiz Conselheiro JOSÉ MARIA DIAS AZEDO, a páginas 16, julgou que «(...) Na verdade, a "residência habitual", (e como cremos que a própria expressão o diz), não pode deixar de implicar um "local" que, com a necessária e imprescindível estabilidade, constitua o "centro - habitual - de interesses" de uma pessoa (e da sua família), não nos parecendo que possa ser um "local de passagem ", de permanência ocasional ou esporádica, sob pena de se converter em "residência temporária e/ou acidental". Isto, como é óbvio, não se traduz numa (absoluta) impossibilidade de "ausência" - como pode suceder, por determinados períodos, como por exemplo, em resultado de compromissos profissionais, para férias ou visita de familiares e amigos (...)».
41. Idem, a páginas 19: «(...) apresenta-se imprescindível que a qualidade - ou estatuto - de "residente habitual", implica, necessariamente, uma "situação de facto", com uma determinada dimensão temporal e qualitativa, na medida em que aquela pressupõe também a natureza de um "elemento de conexão", expressando uma "íntima e efectiva ligação a um local" (ou território), com a real intenção de aí habitar e de ter, e manter, residência. Daí que, muitas vezes - e em nossa opinião, adequadamente – se mostre de exigir não só uma "presença física" como a (mera) "permanência" num determinado território, (a que se chama o "corpus"), mas que seja esta acompanhada de uma (verdadeira) "intenção de se tornar residente" deste mesmo território, ("animus "), e que pode ser aferida com base em vários aspectos do seu quotidiano pessoal, familiar, social e económico, e que indiquem, uma "efectiva participação e partilha" da sua vida social (...)».
42. A mera "ausência temporária" de uma pessoa a quem o respectivo cônjuge tenha sido concedida autorização para residir em Macau enquanto casal não implica como necessária a conclusão de descaracterização do corpus e animus conjugalis em Macau do casal e que, pois, tenham ambos deixado de "residir habitualmente" em Macau.
43. Em termos de lugar paralelo, para efeitos do disposto no artigo 1.º, n.º 1, al. 9), da Lei 8/1999, tem domicílio permanente ou definitivo em Macau quem, além de residir habitualmente em Macau, tem aqui centrada a sua economia doméstica, quem tem em Macau o centro da sua vida profissional e familiar, quem paga os seus impostos em Macau, com intenção de aqui permanecer definitivamente.
44. Segundo o Professor CARLOS MOTA PINTO, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, fls. 258, residência habitual é o local onde a pessoa vive normalmente, onde costuma regressar após ausências mais curtas ou mais longas, sem prejuízo de ausência prolongada por motivos ponderosos e atendíveis.
45. Estando em causa um conceito indeterminado, na sua densificação dever-se-ão abarcar e acolher situações variadas em que o interessado - ou, in casu, ambos os cônjuges - se ausentem, simultânea ou sucessivamente, conjunta ou separadamente, do local por motivos variados, designadamente por motivos de apoio e assistência familiar.
46. A simples ausência física transitória da esposa do recorrente de Macau não é, face às circunstâncias supra elencadas, fundamento nem motivo juridicamente válido para se ter determinado que esta não teria residência habitual em Macau e que, reflexamente, o recorrente teria por isso deixado de satisfazer os pressupostos originários aquando da inicial autorização de residência.
47. Reitere-se que residência permanente é o local de residência habitual, estável e duradouro de qualquer pessoa, ou seja a casa em que a mesma vive com estabilidade e em que tem instalada e organizada a sua economia doméstica, envolvendo, assim, necessariamente, fixidez e continuidade e constituindo o centro da respectiva organização doméstica referida - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 JAN 1978.
48. Tanto o recorrente como a sua esposa têm - ele, desde há 11 anos, e ela, desde sempre -, vivido em Macau, aqui trabalhando e desenvolvendo as suas actividades profissionais, aqui passando os seus momentos de lazer e se radicando em todos os planos e dimensões das suas vidas.
49. Com isto se demonstra que o recorrente e a sua esposa estão integrados na comunidade de Macau, estando assim preenchidos os elementos subjectivos e objectivos do conceito de residência habitual sendo que qualquer modificação a tal status quo será de futuro, ocorrendo, passível de apreciação pela Administração competente ao abrigo do princípio rebus sic stantibus.
50. O não acolhimento dos motivos relevantes invocados pelo recorrente configurou um quadro de total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários por parte da Administração, tal qual decorre da al. d), in fine, do n.º 1 do art. 21.° do C.P.A.C.
51. A decisão ora recorrida fez errada interpretação e aplicação do art. 3.° da Lei 4/2003, do n.º 2 do art. 22.° do Regulamento Administrativo 5/2003 e do art. 30.°, n.º 2, do Código Civil.
52. Consequentemente, atentos esses vícios, a decisão a quo configura-se como um acto anulável, ex vi do art. 124.° do C.P.A., invalidades que aqui se invocam como fundamentos específicos para a sua anulação por V. Ex.as, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.° e a al. d), in fine, do n.º 1 do art. 21.° do C.P.A.C.
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Citada a Entidade Recorrida, o Senhor Secretário para a Segurança veio contestar o recurso com os fundamentos constantes de fls. 347 a 354, tendo formulado as seguintes conclusões:
1) 上訴人不服保安司司長對其居留許可的續期申請不予批准之決定,提起本司法上訴;
2) 上訴人指被上訴的決定存在《行政訴訟法典》第21條第1款d)項所指的違反法律的瑕疵,認為被上訴批示在解釋和適用第4/2003號法律第3條、第5/2003號行政法規第22條第2款以及《民法典》第30條第2款規定方面存在錯誤,在行使自由裁量權時絕對不合理;
3) 關於居留許可的續期,第5/2003號行政法規第22條第1款和第2款規定,居留許可的有效期原則上為一年,居留許可的續期取決於是否符合原則性法律及本行政法規所定的前提及要件;
4) 第4/2003號法律第9條第2款則明確規定,行政當局在決定是否批給居留許可時“尤其應考慮”的因素,包括利害關係人與澳門特別行政區居民的親屬關係以及在澳門居留的目的及其可能性;
5) 根據行政卷宗所載資料,上訴人及其配偶不在澳門共同生活的期間逾10個月,非如上訴人所指般僅屬短暫;
6) 在對“通常居住”作出判定時,首先須建基於存在逗留的事實狀況(“體素”),其後,方有需要就相應逗留的意圖作分析;
7) 上訴人與其配偶明顯欠缺共同在澳門生活的“事實狀況”;
8) 在通知上訴人獲批給居留許可以及獲准續期居留許可的通知書中,均載明了上訴人與其配偶每一周年須在澳居留不少於183天,每次離澳連續不超過半年的注意事項,有關事項構成兩人的一項法律負擔;
9) 上訴人在接受聽證時解釋,其配偶因疫情關係,留在加拿大照顧上訴人的父親,但所提交的資料未能闡明其父親在加拿大的生活狀況,尤其是關於其自理能力,以及尋求當地政府、民間團體或機構和聘請私人以提供協助的可行性或任何困難;
10) 上訴人並未就日後照顧其父親的安排一事以及其配偶何時回澳作任何交代;
11) 上訴人及其配偶在明知彼等每年有需要在澳門居留至少183天的情況下,決定由其配偶留在加拿大照顧上訴人的父親,明顯屬兩人的個人決定;
12) 因此,被上訴批示對上訴人續期居留許可申請不予批准的決定,並無任何上訴人所指違反有關法律規定的情況,亦不存在不合理行使自由裁量權的情況,更遑論絕對不合理。
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O Digno. Magistrado do Ministério Público junto do TSI emitiu o douto parecer de fls. 419 a 422, pugnando pelo provimento do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre analisar e decidir.
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    II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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    III – FACTOS
São os seguintes elementos, extraídos do processo principal e do processo administrativo com interesse para a decisão da causa:

1. O Recorrente casou-se em 2016 com B - cfr. DOC. 4 junto no Procedimento Cautelar e original que se protesta juntar como DOC. 1.
2. A esposa do Recorrente nasceu em Macau em 1986, sendo uma "originária" residente permanente da R.A.E.M. por ter aqui nascido - cfr. DOCs. 5 e 6 do Procedimento Cautelar.
3. A esposa do Recorrente viveu sempre em Macau, não tendo residido em outro território ou país além da R.A.E.M.
4. O Recorrente e a sua esposa planeiam ter futuramente filhos, sendo sua vontade poder criá-los em Macau.
5. O Recorrente trabalha com exclusividade para o C - cfr. DOC. 7 junto no Procedimento Cautelar.
6. A esposa do Recorrente trabalha na área do cinema e da indústria audiovisual, sendo proprietária da empresa D LIMITED - cfr. DOC. 8 junto no Procedimento Cautelar -, dando oportunidade de ocupação e formação a alguns residentes locais.
7. A empresa da esposa do Recorrente está plenamente activa e opera no respectivo mercado audiovisual de Macau, interagindo com diversas entidades, designadamente para o efeito de requer os respectivos licenciamentos de filmagem em locais públicos - cfr. DOCs. 2 a 58 que se protestam juntar.
8. Toda a vida da esposa do Recorrente está centrada e focada na R.A.E.M., tanto no plano conjugal e familiar, lado a lado com o Recorrente, mas também no plano profissional e pessoal, tendo nomeadamente contratado apólices de seguros, tendo contas bancárias, investimento financeiros, cartões de crédito, telemóveis, internet e fax - cfr. DOCs. 59 a 120 que se protestam juntar.
9. O Recorrente e a sua esposa habitam conjugalmente em Macau numa casa arrendada em 2016 e cujo contrato, entretanto, já foi renovado - cfr. DOC. 9 junto no Procedimento Cautelar.
10. Nessa fracção estão colocados os pertences pessoais do casal adquiridos ao longo dos últimos quase 6 anos, verbi gratia roupa, mobília, esculturas, equipamentos electrónicos e outros bens com elevado valor estimativo e financeiro do casal.
11. O Recorrente e a sua esposa elegeram Macau como o centro fixo das suas vidas pessoal, familiar e profissional.
12. Ambos acordaram aquando da celebração do casamento que a base e o pressuposto da sua vida conjugal futura deveria ser sempre a sua estadia e permanência em Macau, em termos de decorrer sempre na R.A.E.M. o centro habitual e referencial das suas vidas.
13. Efectivamente, tem sido em Macau que o Recorrente e a sua esposa passam conjuntamente quase todos os seus momentos de lazer e convívio social com os seus amigos e colegas, aproveitando para desfrutar e conhecer ainda melhor Macau, as suas gentes e a sua cultura.
14. As opções adoptadas pelo Recorrente e a sua esposa quanto às suas vidas pessoais e familiares documentam de forma nítida que pretendem que a sua ligação a Macau possa continuar a ser perene e aqui estabelecida por um prazo indeterminado, vinculando-se a um estatuto de particular e séria pertinência à R.A.E.M., não se encontrando no Território com fins meramente transitórios ou temporários.
15. O pai do Recorrente - ou seja, o sogro de B - vive no Canadá.
16. Refira-se que o Sr. E, pai do Recorrente, vive sozinho no Canadá e padece de Diabetes de tipo 2, doença crónica que implica que tenha de usar insulina diariamente - cfr. DOC. 10 junto no Procedimento Cautelar.
17. Antes de Março/Abril de 2020, data em que a pandemia se começou a manifestar de forma mais grave e séria em todo o mundo (obviamente incluindo no Canadá), o pai do Recorrente deixou de poder contar com o apoio de uma auxiliar que, diariamente, o apoiava no dia a dia, inclusive para a preparação e ministração de insulina - cfr. DOC. 11 junto no Procedimento Cautelar.
18. O Recorrente e a sua esposa tinham viajado no início de Fevereiro de 2020 de Macau até ao Canadá para aí permanecerem por cerca de 1 mês.
19. A intenção do casal foi a de, por um lado, sair de Macau por um período curto de tempo porque nessa data - Fevereiro de 2020 - Macau estava praticamente paralisada devido à Covid-19, estando já encerradas ou proibidas todas as actividades não essenciais.
20. O casal queria também aproveitar essa viagem ao Canadá para estarem juntos um com o outro e para estarem em família com o seu pai e sogro e dar-lhe apoio.
21. Assim sendo, o Recorrente e a sua esposa estiveram a partir de Fevereiro de 2020 juntos no Canadá, prestando em simultâneo ambos apoio ao seu pai e sogro.
22. Conforme é sabido, por volta de Março de 2020 tomou-se evidente a disseminação mundial da pandemia Covid 19.
23. Nesse momento, a pessoa que apoiava o pai do Recorrente teve de deixar de o apoiar por razões de prevenção e cautela acerca da contaminação pelo coronavírus - cfr. cit. DOC. 11 junto com o Procedimento Cautelar.
24. Por isso, desde cerca de Março de 2020, o Recorrente e a esposa passaram a ser quem exclusivamente prestava apoio diário ao pai e sogro no Canadá.
25. Entretanto, com o agravamento da pandemia à escala planetária, as viagens tornaram-se progressivamente mais dificultadas, incluindo para Macau.
26. Cerca de Julho de 2020, tanto por se ter tornado essencial para poder dar continuidade à sua relação de trabalho com o C mas também porque houve a abertura temporária de uma curta "janela de oportunidade" para os residentes poderem viajar de volta a Macau, ambos o Recorrente e a sua esposa decidiram em conjunto que ele seria o primeiro a voltar a Macau e que ela se juntaria logo depois.
27. Assim, em conjunto, o casal decidiu que ela ficaria ainda temporariamente por um período suplementar no Canadá, não só devido às dificuldades de fazer essa viagem longa de volta a Macau mas também para que pudesse continuar a prestar apoio ao seu sogro.
28. A esposa do Recorrente beneficia somente de um visto de turista no Canadá que apenas lhe faculta uma estadia sempre precária e temporária através de múltiplas e sucessivas reentradas periódicas.
29. Não se trata, por conseguinte de qualquer autorização de residência ou outro qualquer título de estadia no Canadá que abranja ou garanta à esposa do Recorrente um período estabilizado de estadia longa ou sequer de média duração.
30. No início de Fevereiro de 2020 foi declarada a existência da Pandemia do Covid-19 em Macau.
31. E que nessa altura, entre outras várias de prevenção, foi decretado pelo Governo de Macau um bloqueio total nas fronteiras de Macau e também o encerramento dos Casinos e de todas as actividades da Função Publica - cfr. DOCs. 12 e 13 juntos no Procedimento Cautelar.
32. Como também foi nessa data aconselhado que não deveriam haver deslocações para Macau por parte dos residentes de Macau e as fronteiras seriam fechadas só com entradas limitadas e muito controladas de residentes de Macau - cfr. DOC. 14 junto no Procedimento Cautelar.
33. A pandemia do Covid-19 não se limitou à China e a Macau mas cavalgou fronteiras e atingiu toda a Asia e o resto do mundo.
34. Assim, também em Macau foram impostas medidas sérias e rigorosas nas fronteiras e nas deslocações dos residentes de Macau no seu regresso - cfr. cit. DOCs. 12 e 13 juntas no Procedimento Cautelar.
35. É também facto público e notório que a pandemia do COVID-19 teve início em finais de Janeiro de 2020 e até ao presente momento está fustigar a Asia, incluindo, Macau, bem como que alastrou e invadiu todo o mundo.
36. Situação pandémica que gerou a restrição total dos movimentos das pessoas e, em especial, afectou seriamente todos os voos regulares de e para Macau - cfr. cit. DOCs. 12 e 13 juntas no Procedimento Cautelar.
37. Também as fronteiras de Macau e de todos os países sofreram serias restrições, sendo totalmente desaconselhável qualquer deslocação entre países se tal não for vital e absolutamente essencial.
38. O Governo de Macau - como medida contra a pandemia do COVID-19 - aconselhou os residentes de Macau a somente se deslocarem para Macau se não houvesse quaisquer alternativas - cfr. cit. DOCs. 12 e 13 juntas no Procedimento Cautelar.
39. Em Março de 2021 a esposa do Recorrente regressou a Macau, tal qual ela e o Recorrente tinham previamente combinado em Julho de 2020.
40. Ambos, como sempre fizeram desde que começaram a namorar e se casaram, vivem juntos e coabitam como casal na mesma casa em Macau.
41. O centro de vida do Recorrente e da sua esposa foi e continua a ser em Macau, que representa para ambos, enquanto planeamento de vida do casal, a sua residência habitual, aliás a única que sempre quiseram e projectam para o seu futuro.

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- O despacho recorrido tem o seguinte teor:
通知書 編號:200524/SRDARPNT/2021P
茲通知A[持加拿大護照第GAXXXXXX號],關於 台端在2020年11月12日遞交申請書,要求批准居留許可續期一事,保安司 司長按載於本局居留及逗留事務廳第300165/SRDARPREN/2020P號補充報告書意見所述之理由,於2021年3月11日作出“不予批准”之批示。
現將上述報告書主要內容轉述如下:
“1. 申請人A先生於2017年12月1日獲批居留許可之目的是在澳與配偶B團聚。
2. 申請人於2020年11月12日提起居留許可續期程序,根據出入境紀錄顯示,在過去一年(2019年12月至2020年11月)期間,申請人配偶居澳僅71天,且於2020年2月9日離澳後,至今(2020年11月24日)一直沒有回澳,期間超逾9個月沒有在澳生活,顯示出申請人配偶沒有在澳與其共同生活,該種情況明顯與當初批准居留之目的(在澳與配偶團聚)不符,故本次居留續期應不獲批准。
3. 按申請人在聽證程序中陳述的主要內容意譯大意,聲稱其配偶因疫情關係,在加拿大照顧其父親。
4. 綜合分析本案,申請人陳述內容,稱其配偶因疫情關係,在加拿大照顧其父親,有關行為屬個人選擇,理由並不充份。因其等沒有於澳門共同生活,與原獲批居留許可前提要件不符;其配偶自2020年2月9日至今(2021年1月4日)沒有回澳,期間超逾10個月沒有在澳生活。且目前並無跡象顯示其配偶短期內回澳與其共同生活;因此,經考慮第4/2003號法律第9條第2款所指各項因素,尤其3項,及第5/2003號行政法規第22條第2款之規定,建議不批准是次的居留許可續期申請。”
上述行政行為可按照【行政訴訟法典】第廿五條之規定,向中級法院提起司法上訴。
居留及逗留許可處
居留分處

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    IV – FUNDAMENTOS
A propósito das questões suscitadas pelo Recorrente, o Digno. Magistrado do MP junto deste TSI teceu as seguintes doutas considerações:
“(…)
1.
A, melhor identificado nos autos, veio instaurar o presente recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Segurança em 11 de Março de 2021 que indeferiu o seu pedido de renovação da autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM), pedindo a respectiva anulação.
A Entidade Recorrida, devidamente citada, apresentou contestação na qual pugnou pela improcedência do recurso contencioso.

2.
(i)
Está em causa no presente recurso contencioso o acto administrativo praticado pela Entidade Recorrida através do qual esta decidiu indeferir o pedido formulado pelo Recorrente de renovação da autorização de residência na RAEM.
Baseou-se o referido indeferimento na norma do n.º 2 do artigo 22.º do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, em vigor à data da prática do acto, de acordo com a qual «a renovação da autorização (de residência) depende da verificação dos pressupostos e requisitos previstos na lei de princípios e no presente regulamento».
Considerou a Administração que, no caso, tais pressupostos se não verificavam em virtude de o cônjuge do Recorrente, entre Dezembro de 2019 e Novembro de 2020, apenas ter permanecido na RAEM pelo período de 71 dias, o que é revelador de que o Recorrente e o seu cônjuge não coabitaram em Macau por um período superior a 9 meses. Deste modo, ainda no entender da Administração, não estaria preenchida a finalidade inicial da autorização de residência, pelo que o pedido de renovação deveria ser indeferido.
Ou seja, na base do indeferimento do pedido de renovação de residência está o entendimento segundo o qual a falta de coabitação do Recorrente e do seu cônjuge na RAEM por um período superior a 9 meses constitui obstáculo a essa renovação.
Trata-se de uma interpretação da lei que, como todo o respeito pela opinião contrária, não podemos acompanhar. Pelo seguinte.
(ii)
Aceitamos que, se a autorização de residência na RAEM for concedida a uma pessoa não residente com fundamento no seu casamento com uma pessoa que tenha o estatuto de residente, a manutenção de tal autorização dependerá da existência, não só do vínculo jurídico do casamento, mas também de uma verdadeira comunhão de vida, a qual por sua vez pressupõe a existência de coabitação, em sentido jurídico e não puramente fáctico, entre os cônjuges. Isto porque, o que, em primeira linha, justifica a concessão da autorização de residência é a garantia do direito do residente à fruição de uma vida familiar plena e estável a que a Lei Básica, no seu artigo 38.º, defere evidente protecção. Quer isto dizer, portanto, que a autorização de residência que se tenha fundado no casamento do beneficiário da autorização com um residente, pode não ser renovada se a Administração verificar que, entretanto, ocorreu o divórcio ou a separação de facto, uma vez que, numa e noutra situação, o pressuposto que esteve na base da concessão da autorização terá deixado de se verificar e, consequentemente, a dita autorização deixou de se justificar.
No caso, o Recorrente não se divorciou do seu cônjuge, pelo que aquilo que importa verificar é se os mesmos se separaram de facto pois que só isso poderia justificar, em princípio, o acto de não renovação aqui impugnado.
Como vimos, a Administração, para justificar a sua actuação, bastou-se com a verificação o Recorrente e o seu cônjuge estiveram fisicamente separados por mais de 9 meses para concluir que entre eles não houve coabitação por esse mesmo período e que, por isso, o pressuposto da autorização de residência havia deixado de se verificar, certamente por ter entendido que tal implicava a existência de uma situação de separação de facto. Mas não cremos, com todo o respeito, que assim seja.
A coabitação entre os cônjuges não é um conceito susceptível de apreensão puramente fáctica ou naturalística, ao contrário daquilo que a Administração parece entender. Pelo contrário, aliás. Trata-se de um conceito jurídico que reveste uma «grande plasticidade» e que, por isso, não dispensa uma análise casuística das concretas circunstâncias que em cada situação ocorram, de forma a procurar desvelar, não só a objectividade da falta de vida em comum, em regra em lugares separados, mas, também, o indispensável elemento subjectivo, qual seja, o propósito de ambos ou, ao menos de um dos cônjuges, de não restabelecer a vida em comum. Sem este elemento subjectivo não pode falar-se de quebra do dever de coabitação e, portanto, não pode dizer-se que os cônjuges deixaram de coabitar ou que estejam separados de facto. É isto o que resulta de forma claríssima do disposto no n.º 1 do artigo 1638.º do Código Civil. É por isso que, por exemplo, se um dos cônjuges emigra para um outro país e está fisicamente ausente da casa de morada da família, e separado do outro cônjuge por largos períodos de tempo, como tantas vezes acontece, daí não resulta a quebra da comunhão de vida, nem do dever de coabitação, tanto mais que da norma do artigo 1534.º do Código Civil decorre, inequivocamente, que os cônjuges podem ter residências separadas.
Isto que decorre de disposições legais relevantes do nosso Direito da Família não pode deixar de se projectar na avaliação administrativa da existência e da manutenção dos pressupostos de determinado acto administrativo se, como no caso, o interesse público prosseguido por esse acto consiste, como dissemos, na garantia de uma vida familiar plena e estável aos residentes da RAEM. A unidade do sistema jurídico, neste específico contexto, reclama que a Administração, num primeiro momento e o juiz administrativo em eventual fiscalização da actuação administrativa, não deixem de interpretar e aplicar conceitos e institutos que são próprios do Direito da Família à luz dos respectivos cânones.
Ora, no caso em apreço, a Administração limitou-se a verificar que, objectivamente, durante um período de aproximadamente 9 meses, o Recorrente viveu em Macau e o seu cônjuge permaneceu fora de Macau, concretamente no Canadá, mas não demonstra que a essa separação física correspondeu, juridicamente, a uma verdadeira separação de facto e, portanto, que tal período tenha correspondido a uma ausência de comunhão de vida, ou de uma coabitação em sentido juridicamente relevante, uma vez que, dos elementos colhidos no decurso do procedimento administrativo nada indicia que de um ou de ambos os cônjuges não houvesse o propósito de, assim que possível, voltarem a viver no mesmo lugar.
Pode assim dizer-se que na aplicação da «norma» que construiu no exercício dos seus poderes discricionários, segundo a qual a falta de coabitação em Macau por um período superior a meio ano pode levar à não renovação da autorização de residência, a Administração incorreu em manifesto erro quando partiu da consideração de que o Recorrente deixou de coabitar com o seu cônjuge, pelo que ocorre fundamento para a anulação do acto recorrido.
(iii) A esta conclusão não nos parece que se possa contrapor, como se faz na contestação, que o Recorrente e o seu cônjuge sabiam perfeitamente que precisavam de permanecer em Macau pelo menos 183 dias por cada ano e se decidiram que o cônjuge deveria ficar no Canadá a cuidar do pai do Recorrente, isso é uma decisão individual que não pode ser objecto de consideração (cfr. artigo 21.º da contestação e também no mesmo sentido o artigo 23.º do mesmo articulado).
Não desconhecemos que a administração pode apor aos actos administrativos que pratica as chamadas cláusulas acessórias, prevendo-se expressamente na norma do artigo 111.º do CPA que «os actos administrativos podem ser sujeitos a condição, termo ou modo, desde que estes não sejam contrários à lei ou ao fim a que se destina».
No caso, embora a Entidade Recorrida, na sua douta contestação, se tenha dispensado de proceder à respectiva qualificação, parece-nos que, no caso, a dita imposição ao Recorrente de que coabite com o seu cônjuge em Macau durante, pelo menos, 183 dias, consubstanciaria um modo, uma vez que, como se sabe, este se define como a cláusula acessória de um acto produtor de vantagens que se traduz na imposição de um dever de fazer, não fazer ou suportar dirigido ao seu destinatário, sendo que, contrariamente ao que acontece com a condição ou o termo, o modo não influi sobre a eficácia do acto pois o seu incumprimento pode levar a uma execução ou a outras possíveis consequências sancionatórias, incluindo a possibilidade de revogação do acto favorável (cfr. ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, Direito Administrativo, Coimbra, 1978, p. 290 e JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito administrativo, 5.ª edição, Coimbra, 2018, p. 211).
No entanto, na situação em apreço, nem ao acto de concessão da autorização de residência nem ao acto da primeira renovação dessa autorização foi aposta qualquer cláusula acessória, nomeadamente aquela que temos vindo a referir. O que aconteceu foi que, na notificação do acto que deferiu o primeiro pedido de renovação e que se encontra a fls. 92 do processo administrativo instrutor, ficou consignado que a renovação da autorização dependeria, nomeadamente, de o requerente viver ou não em Macau com o seu cônjuge por um período não inferior a 183 dias e que se o requerente não satisfizesse tal condição o próximo pedido de renovação poderia ser indeferido.
Ora, a notificação não faz parte do acto administrativo, é um elemento exterior a ele destinado a desencadear a respectiva eficácia e por isso, a referida cominação que dela se fez constar é juridicamente irrelevante, não vinculando de qualquer forma o seu destinatário.
Além disso, mesmo que, sem conceder, se entendesse que assim não é, ou seja, que a dita cláusula acessória vincularia o particular, sempre seria de considerar que a mesma, que, aliás, sempre se sublinhe, impõe um dever não só ao beneficiário do acto, mas também ao seu cônjuge, é contrária à lei, no caso, ao artigo 33.º da Lei Básica e por isso dela poderia resultar qualquer vinculação relevante para o respectivo destinatária nem, consequentemente, com base no respectivo incumprimento se poderia fundar o acto de de indeferimento aqui impugnado.
De acordo com o dito artigo 33.º da Lei Básica «aos residentes de Macau são reconhecidas a liberdade de se deslocarem e fixarem em qualquer parte da Região Administrativa Especial de Macau e a liberdade de emigrarem para outros países ou regiões. Os residentes de Macau têm liberdade de viajar, sair da Região e regressar a esta, bem como o direito de obter, nos termos da lei, os diversos documentos de viagem. (…)». Ora, salvo o devido respeito, parece-nos claro que a imposição ao cônjuge do Recorrente, que é residente permanente da RAEM, da obrigação de permanecer na Região pelo menos 183 dias em cada ano durante sete anos (o tempo necessário a que o Recorrente atinja o estatuto de residente permanente), como forma de evitar que o Recorrente perca o seu estatuto de residente não permanente, atinge desproporcionalmente (seja porque a imposição dessa restrição, seguramente, não é necessária, tendo em vista a concreta prossecução do interesse público, nem é proporcional em sentido estrito) o núcleo essencial daquela liberdade fundamental, podendo, por isso, reputar-se de contrária à lei e, portanto, inadmissível face ao disposto no artigo 111.º do CPA.
3. Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que o presente recurso contencioso deve ser julgado procedente, anulando-se, em consequência, o acto recorrido.”
Quid Juris?
Concordamos com a douta argumentação acima transcrita, da autoria do Digno. Magistrado do MP junto deste TSI, à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nela adoptada, merecendo destacar os seguintes aspectos: a esposa ficou no Canadá para cuidar o sogro, o que demonstra que há separação do casal, e, no início de 2021, quando se tornou mais suave a pandemia Covid-19, a esposa regressou definitivamente a Macau, juntando ao seu marido, ora Recorrente. Pelo que, entendemos que a decisão recorrida enferma dos vícios imputados, o que é razão bastante para conceder provimento ao recurso contencioso, anulando-se assim a decisão recorrida.
Síntese conclusiva:
I - A Administração, para justificar a sua actuação, bastou-se com a verificação o Recorrente e o seu cônjuge estiveram fisicamente separados por mais de 9 meses para concluir que entre eles não houve coabitação por esse mesmo período e que, por isso, o pressuposto da autorização de residência havia deixado de se verificar. A coabitação entre os cônjuges não é um conceito susceptível de apreensão puramente fáctica ou naturalística. Pelo contrário, é um conceito jurídico que reveste uma «grande plasticidade» e que, por isso, não dispensa uma análise casuística das concretas circunstâncias que em cada situação ocorram, de forma a procurar desvelar, não só a objectividade da falta de vida em comum, em regra em lugares separados, mas, também, o indispensável elemento subjectivo, qual seja, o propósito de ambos ou, ao menos de um dos cônjuges, de não restabelecer a vida em comum. Sem este elemento subjectivo não pode falar-se de quebra do dever de coabitação (cfr. n.º 1 do artigo 1638.º do Código Civil).
II - Se um dos cônjuges emigra para um outro país e está fisicamente ausente da casa de morada da família, e separado do outro cônjuge por largos períodos de tempo, como tantas vezes acontece, daí não resulta a quebra da comunhão de vida, nem do dever de coabitação, tanto mais que da norma do artigo 1534.º do Código Civil decorre, inequivocamente, que os cônjuges podem ter residências separadas.
III – Quando a Administração se limitou a verificar que, objectivamente, durante um período de aproximadamente 9 meses, o Recorrente viveu em Macau e o seu cônjuge permaneceu fora de Macau, concretamente no Canadá, mas não demonstra que a essa separação física correspondeu, juridicamente, a uma verdadeira separação de facto e, portanto, que tal período tenha correspondido a uma ausência de comunhão de vida, ou de uma coabitação em sentido juridicamente relevante, uma vez que, dos elementos colhidos no decurso do procedimento administrativo nada indicia que de um ou de ambos os cônjuges não houvesse o propósito de, assim que possível, voltarem a viver no mesmo lugar. Verificando-se um erro nos pressupostos de facto, o que é razão bastante para anular a decisão recorrida.
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Tudo visto, resta decidir.
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    V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do TSI acordam em julgar procedente o recurso, anulando-se a decisão recorrida.
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Sem custas por isenção subjectiva.
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Notifique e Registe.
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RAEM, 28 de Abril de 2022.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Tong Hio Fong
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Mai Man Ieng
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