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Processo n.º 212/2022 Data do acórdão: 2022-5-12 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– fundamentação fáctica e probatória da decisão
– art.o 355.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
– falta de fundamentação da decisão
– erro notório na apreciação da prova
– contradição insanável da fundamentação
– âmbito do dever de decisão sobre o recurso
S U M Á R I O
1. Uma coisa é fundamentação fáctica e probatória da decisão nos termos exigidos pelo art.o 355.o, n.o 2, do Código de Processo Penal (CPP), e outra coisa, bem distinta, é a razoabilidade do resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo tribunal recorrido. A não aceitação do resultado do julgamento dos factos feito por esse tribunal não é susceptível de acarretar a existência do vício de falta de fundamentação da decisão condenatória penal recorrida.
2. No caso concreto, após vistos, em global e de modo crítico, todos os elementos probabórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que seja manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo tribunal a quo, o qual nem sequer tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, pelo que é de respeitar o julgado desse tribunal sentenciador, por não ter ocorrido, na decisão recorrida, qualquer erro notório na apreciação da prova como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
3. Outrossim dada a congruência e razoabilidade da fundamentação fáctica e probatória da decisão recorrida, nem se divisa qualquer contradição insanável entre os factos provados em primeira instância, pelo que nem pode ter havido, aí, o vício aludido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
4. Mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente decisor do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 212/2022
(Autos de recurso penal)
(Da reclamação para conferência da decisão de rejeição do recurso)
  Recorrentes:
  1.o arguido A
  2.a arguida (ora reclamante) B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 804 a 816v (com rectificação de lapsos de escrita a fl. 914) do Processo Comum Colectivo n.o CR2-21-0249-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram condenados:
– o 1.o arguido A pela prática, em co-autoria material, na forma consumada, de quatro crimes de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 4, alínea a), e 1, e 196.o, alínea b), do Código Penal (CP), em três anos de prisão por cada, e pela prática, em autoria material, na forma consumada, de três crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea a), do CP, em nove meses de prisão por cada, e ainda pela prática, em autoria material, na forma consumada, de quatro crimes de falsificação de documento de especial valor, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.os 245.o e 244.o, n.o 1, alínea a), do CP, em um ano e seis meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico de todas essas penas em causa, finalmente na pena única de cinco anos de prisão;
– e a 2.a arguida B pela prática, em co-autoria material, na forma consumada, de quatro crimes de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 4, alínea a), e 1, e 196.o, alínea b), do CP, em quatro anos de prisão por cada, e pela prática, em autoria material, na forma consumada, de quatro crimes de uso de documento falsificado de especial valor, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.os 245.o e 244.o, n.o 1, alínea c), do CP, em dois anos de prisão por cada, e, em úmulo jurídico de todas essas penas em causa, finalmente na pena única de seis anos de prisão.
Inconformados, interpuseram ambos os arguidos recurso ordinário para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Alegou a 2.a arguida no essencial, e peticionou, na sua motivação apresentada a fls. 847 a 877 dos presentes autos correspondentes, o seguinte:
– analisada a fundamentação do acórdão recorrido, entende ela que o Tribunal recorrido, ao arrepio do exigido pelo art.o 355.o, n.o 2, do Código de Processo Penal (CPP), não conseguiu apresentar os motivos por que optou pela convicção do facto de que ela conhecia as falsificações confessadamente feitas pelo 1.o arguido;
– olvidou o Tribunal recorrido factos que seriam mais do que suficientes para concluir que a própria 2.a arguida foi também enganada pelo 1.o arguido, até inclusivamente porque foi ela própria quem acompanhou os ofendidos à Polícia Judiciária para formalização de queixa;
– ademais, “ajudar alguém” a matricular-se numa universidade, fazendo “lobi”, procurando convencer quem a dirige, seja por que meios for – mas legais, obviamente… – não corresponde a um crime, nem há prova nos autos de nenhuma ilegalide imputável à própria arguida, neste seu “agenciamento”;
– o acórdão em apreço é, por isso, nulo, porquanto a mera enunciação dos meios de prova (e umas tantas conclusões) é insuficiente para dar cumprimento àquele preceito do art.o 355.o, n.o 3, do CPP;
– quanto ao crime de burla, o desconhecimento que a própria arguida tinha sobre as confessadas falsificações de documentos, perpetradas pelo 1.o arguido, corresponde à inexistência do tipo objectivo do crime;
– isto é, ela não falsificou os documentos e desconhecia que os mesmos eram falsos, pelo que não praticou os actos que determinaram os ofendidos nos autos a um prejuízo patrimonial, e não os praticou porque não actuou junto dos lesados com a intenção de obter, para si, um enriquecimento ilegítimo; a conduta de burla foi inteiramente imputável ao 1.o arguido que, ele mesmo, pela sua conduta, motivou a própria arguida directamente, e os ofendidos indirectamente, a uma indevida disposição patrimonial;
– e no respeitante ao crime de uso de documento falsificado de especial valor, o tipo objectivo deste crime está relacionado com aqueloutro do crime de burla;
– e se ela desconhecia que os documentos eram falsos, a respectiva utilização – que até nem se provou – não corresponde ao “uso” desses documentos, falsificados pelo 1.o arguido;
– e mesmo que se admitisse que ela conhecia as falsificações perpetradas pelo 1.o arguido, o que apenas se admite, sem conceder, por mera hipótese de raciocínio, então, ela, ao passá-los por fotografia à pessoa chamada C, não usou um documento falso, usou sim uma fotografia de um documento falso que é “um documento distinto do original”, não sendo essas fotografias uma declaração “idónea para provar facto juridicamente relevante”, a relevar na letra da norma incriminadora do art.o 243.o do CP;
– por outro lado, existe contradição insanável da fundamentação entre factos objectivos provados; isto é, deu-se como provados factos objectivos e factos objectivos que são contraditórios com aqueloutros;
– ora, face ao teor da matéria de facto assente sob os pontos 10, 15, 25, 27, 30 e 31, por um lado se diz que foi o 1.o arguido quem enviou, por falso e-mail, aos quatro pretensos alunos, os documentos que, ele mesmo, falsificou, e por outro lado, faz-se referência ao facto de ter sido a própria arguida quem os enviou aos ofendidos (sem referir quando, como e em que circunstâncias) e sem que dos autos haja a menor prova desse facto, bem como provado se deu, fazendo-se referência aos documentos de páginas 150 a 159, que foi a própria arguida quem enviou os falsos documentos à pessoa chamada D, sem que, também dos autos, conste a menor referência a tal facto;
– afigura-se óbvio à própria arguida que todo e qualquer contacto com os ofendidos foi sempre feito pela referida pessoa C;
– o envio dos falsos documentos aos ofendidos, e a forma como se processou, é facto deveras importante na decisão dos autos, porque manifestamente tem influência nos tipos objectivo e subjectivo dos crimes por que vinha ela condenada em primeira instância;
– no silêncio dos autos quanto àqueles factos, ao Tribunal de recurso não é possível decidir da causa, devendo, por isso, determinar-se o reenvio o processo para novo julgamento;
– e ainda subsidiariamente falando, mesmo que se admitisse que os factos assentes em audiência de julgamento foram suficientes para a condenação da própria arguida (o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio), então pelo menos ela não poderia ser condenada pelos crimes de burla e o de uso de documento falso (ou meramente de falsificação de documento);
– de facto, ambos os crimes têm, com actuação, a intenção de causar um prejuízo;
– apesar de serem diferentes os bens jurídicos protegidos num e noutro crimes, a falsificação de documentos é um meio para a concretização do enriquecimento ilegítimo do autor do crime de burla; o erro ou engano que determina outrem a uma disposição patrimonial é obtido através daquela falsificação; teria, assim, havido uma única resolução criminosa, pelo que a própria arguida deveria ser condenada apenas pelo crime de burla, e não também pelo crime de falsificação de documento;
– finalmente, não deixaria de haver sempre discrepância das penas parciais e únicas entre os dois arguidos, daí que na remota hipótese de condenação da própria arguida, ela deveria passar a ser condenada na mesma pena única que foi aplicada ao 1.o arguido, o qual até cometeu mais crimes do que ela e aquele “certo grau de arrependimento” do arguido falado no acórdão recorrido não tem o menor valor face aos factos.
Por outra banda, alegou o 1.o arguido no seu essencial, e rogou, o seguinte, na sua motivação de fls. 879 a 900v dos presentes autos:
– o acórdão condenatório recorrido padece do erro notório na apreciação da prova do art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP aquando da decidida verificação da intenção criminosa do próprio arguido na conduta de burla, pelo que deve ele passar a ser absolvido dos quatro crimes de burla por que vinha condenado;
– e mesmo que assim não se entendesse, o Tribunal recorrido omitou a análise sobre a aplicação, em sede da medida da pena do próprio arguido, do disposto nos art.os 13.o, n.o 3, 26.o e 67.o do CP, não devendo ele ser considerado como co-autor da burla, mas sim agente da burla com dolo eventual ou até tão-só como cúmplice na burla, devendo ele passar a ser condenado em prisão de menos de um ano por cada um dos crimes de burla, dentro da correspondente moldura penal extraordinariamente atenuada;
– e mesmo que se entendesse que ele foi co-autor, todas as suas penas deveriam ser reduzidas, aos critérios dos art.os 40.o e 65.o do CP.
Respondeu o Ministério Público a fls. 918 a 920v ao recurso do 1.o arguido e a fls. 921 a 924 ao recurso da 2.a arguido, igualmente no sentido de improcedência dos mesmos.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer de fls. 939 a 946v, opinando pela manutenção da decisão recorrida.
Por decisão sumária de fls. 948 a 954v, o relator rejeitou os dois recursos, por entendida manifesta improcedência dos mesmos, nos termos permitidos pelos art.os 407.o, n.o 6, alínea b), e 410.o, n.o 1, do CPP, com condenação dos dois arguidos nas custas dos respectivos recursos, com três UC de taxa de justiça para o 1.o arguido, e seis UC de taxa de justiça para a 2.a arguida, com três UC de sanção para aquele e cinco UC de sanção para esta, pela rejeição dos seus recursos.
Após feitas as notificações dessa decisão sumária, veio a 2.a arguida B reclamar da mesma para conferência, através do petitório de fls. 962 a 963, aí alegando, no essencial, o seguinte:
– reitera ela que houve falta de fundamentação no acórdão recorrido, por o Tribunal recorrido nem ter indicado um único facto susceptível de fundamentar o conhecimento, por ela, da falsificação perpetrada confessadamente pelo 1.o arguido;
– acresce que a decisão sumária do relator não deu resposta à questão de contradição insanável da fundamentação, não restando dúvidas de que, dos factos elencados, e pela sua contradição, se fica sem saber quem enviou os documentos falsos aos ofendidos;
– por outro lado, não basta o critério de bem jurídico referido na decisão sumária do relator, para justificar o alegado concurso real dos crimes de burla e de falsificação, devendo, no entendimento da ora recorrente, apenas por cautela de raciocínio, o crime de falsificação ser consumido pelo crime de burla;
– e sempre haveria discrepância entre as penas aplicadas no acórdão recorrido aos arguidos.
Sobre a matéria da reclamação, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fl. 966 a 966v, no sentido de improcedência da reclamação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão então impugnado inclusivamente pela 2.a arguida ficou proferido a fls. 804 a 816v (com rectificação de lapsos de escrita a fl. 914), cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. A decisão sumária, ora sob reclamação pela 2.a arguida, que rejeitou também o seu recurso tem por fundamentação fulcral, inclusivamente, o seguinte:
– <<[…]
Desde já, da questão, suscitada a título principal na motivação do recurso da 2.a arguida, de incumprimento do art.o 355.o, n.o 2, do CPP por parte do Tribunal recorrido aquando da fundamentação probatória da decisão condenatória penal ora recorrida:
Entende esta recorrente que esse Tribunal não conseguiu apresentar os motivos por que optou pela convicção do facto de que ela conhecia as falsificações confessadamente feitas pelo 1.o arguido.
Não assiste, porém, razão a esta recorrente, dado que da leitura atenta da fundamentação probatória da decisão condenatória penal da Primeira Instância, resulta nítido que esse Tribunal, depois de enumerar, na parte II do texto do seu acórdão, os factos provados incriminatórios da conduta delitual penal então acusada aos dois arguidos (e os factos provados com pertinência para a comprovação do conhecimento, pela 2.a arguida, das falsificações feitas pelo 1.o arguido já ficaram descritos sob os pontos 3, 24, 25, 28 e 32 da parte II do mesmo texto decisório recorrido, sendo certo que estes factos, conjugados entre si, dão para sustentar a matéria descrita sob o ponto 35 da mesma pate II desse acórdão), já indicou quais as provas que, mediante o exame crítico das mesmas, serviram para formar a sua convicção sobre os factos provados (e no respeitante à convicção do facto de conhecimento, pela arguida, das falsificaçõs feitas pelo arguido, cfr. as considerações expostas pelo Tribunal recorrido em sede da fundamentação probatória, nas linhas 4 a 18 da página 20 do mesmo texto decisório, a fl. 813v).
Daí que o acórdão recorrido não pode ser declarado nulo, ao contrário do pretendido pela arguida recorrente.
De notar que uma coisa é fundamentação fáctica e probatória da decisão nos termos exigidos pelo art.o 355.o, n.o 2, do CPP, e outra coisa, bem distinta, é a razoabilidade do resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal recorrido. A não aceitação do resultado do julgamento dos factos feito por esse Tribunal não é susceptível de acarretar a existência do vício de falta de fundamentação da decisão condenatória penal recorrida.
Outrossim, a 2.a arguida recorrente, na sua motivação, não deixou de sindicar materialmente o resultado do julgamento dos factos feito pelo Tribunal recorrido, para preconizar a sua tese fáctica, sobretudo, de desconhecimento das falsificações praticadas pelo 1.o arguido, e de inexistência de intenção, por parte dela, de obter enriquecimento ilegítimo junto dos ofendidos dos autos, tendo alegado inclusivamente que ela tinha sido enganada pelo 1.o arguido.
Por outra banda, o 1.o arguido também apontou ao Tribunal recorrido o cometimento de erro notório na apreciação da prova na parte referente à sua intenção de burla.
Pois bem, a propósito da temática do julgamento de factos, é sempre útil relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso concreto dos autos, após vistos, em global e de modo crítico, todos os elementos probabórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que seja manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal a quo, na parte concretamente sindicada pelos dois arguidos recorrentes, o qual nem sequer tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, pelo que é de respeitar o julgado desse Tribunal sentenciador.
Aliás, o Tribunal recorrido já explicou bem convincentemente (nas páginas 19 (a partir do 4.o parágrafo) a 21 (até ao 3.o parágrafo) do texto decisório recorrido, a fl. 813 a 814) as razões por que, inclusivamente, não acreditou, materialmente, na versão fáctica do 1.o arguido (quanto à alegada falta de intenção de burla) e da 2.a arguida (relativamente à alegada falta de intenção de burla e ao alegado desconhecimento das falsificações confessadas pelo 1.o arguido).
Por outro lado, dada a congruência e razoabilidade da fundamentação fáctica e probatória da decisão penal recorrida, nem se divisa qualquer contradição insanável entre os factos provados em primeira instância, pelo que não pode ter havido o vício aludido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP no acórdão impugando, ao contrário do sustentado pela arguida na sua motivação do recurso.
Assim, perante toda a matéria fáctica provada em primeira instância, fica prejudicada toda a tese fáctica defendida pelos dois arguidos nas respectivas motivações de recurso.
Perante todo o circunstancialismo fáctico provado em primeira instância, o 1.o arguido é co-autor material (com dolo evidentemente directo) (e como tal não é cúmplice) da 2.a arguida nos quatro crimes de burla em valor consideravelmente elevado por que vinha já condenado.
Com pertinência à questão jurídica de subsunção de factos provados ao Direito, invoca a 2.a arguida que a sua conduta de passar os documentos falsificados (pelo 1.o arguido) por fotografia a outrem não pode ser considerada como conduta de uso desses documentos falsificados, já que a fotografia assim tirada a esses documentos não é declaração idónea para provar facto juridicamente relevante.
Não procede também esta objecção da arguida, porquanto ela chegou a usar esses documentos falsificados pelo arguido para tirar fotografia sobre os mesmos, para passar depois a outrem a fotografia assim tirada, com intuito de obter benefício ilegítimo.
Alega a arguida que ela não deve ser condenada a título autónomo em sede do tipo legal de uso de falsificação de documento, por este delito ser meramente um meio para a concretização da conduta de burla.
Sobre esta questão, é de seguir o critério de bem jurídico: sendo distintos (como já notou a própria arguida) os bens jurídicos que se procura tutelar num e noutro tipos legais de conduta delitual penal, há concurso efectivo real, e não concurso aparente, entre estes dois tipos legais de crime.
Por último, cabe ver a questão de justeza da medida da pena feita no acórdão recorrido.
Sendo co-autor material da 2.a arguida nos quatro crimes de burla em questão, não se pode aplicar ao 1.o arguido a moldura penal extraordinariamente atenuada deste tipo legal de ilícito, ao contrário do pretendido por este arguido.
Pois bem, vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas e descritas na fundmentação fáctica do aresto recorrido com pertinência à medida da pena aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP dentro da moldura penal ordinária aplicável dos tipos legais de crime em causa nos autos, tendo em conta as inegáveis exigências da prevenção geral dos mesmos tipos-de-ilícito, não se afigura notoriamente injusta a decisão da medida concreta da pena feita pelo Tribunal recorrido aos dois arguidos, e o mesmo se pode dizer (após ponderados em conjunto os factos e a personalidade dos dois arguidos reflectida nos factos por estes praticados nos termos e para os efeitos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP) em relação às penas únicas finalmente achadas no aresto recorrido, pelo que é de respeitar também esta parte do julgado da Primeira Instância (sendo de frisar que a arguida deve levar pena única mais pesada do que a do arguido, dada a sua postura, aliás já salientada no 2.o parágrafo da página 23 do texto decisório recorrido a fl. 815, de alijar toda a responsabilidade para os ombros do arguido, o qual confessou ter falsificado os documentos dos autos).
[…]>>.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Deduzida pela 2.a arguida recorrente a reclamação para conferência da decisão sumária de rejeição do seu recurso, cumpre agora decidir se procede o seu recurso.
Observa-se, desde já, que a recorrente insiste que nessa decisão sumária do relator não se deu resposta à contradição insanável da fundamentação então arguida na sua motivação do recurso.
Contudo, essa questão de alegadada verificação do vício de contradição insanável da fundamentação no acórdão condenatório dela em primeira instância já foi objecto de decisão expressa na fundamentação da própria decisão sumária sob reclamação, nos seguintes termos (então tecidos no segundo parágrafo da página 12 do texto da própria decisão sumária, a fl. 953v): <<[…] dada a congruência e razoabilidade da fundamentação fáctica e probatória da decisão penal recorrida, nem se divisa qualquer contradição insanável entre os factos provados em primeira instância, pelo que não pode ter havido o vício aludido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP no acórdão impugnado, ao contrário do sustentado pela arguida na sua motivação do recurso>>.
E de notar que tal como já se notou no primeiro parágrafo da fundamentação jurídica da decisão sumária ora sob reclamação: <<[…] mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente decisor do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001)>>.
Quanto às restantes questões então postas na motivação do recurso da 2.a arguida como objecto do seu recurso, a decisão sumária do relator, com a respectiva fundamentação fulcral (acima transcrita na parte II do presente acórdão de conferência), também delas já decidiu com o direito aplicável e aí aplicado concretamente, em conformidade com os elementos fácticos referidos e ponderados em sede da fundamentação da própria decisão sumária.
Daí que há que improceder a reclamação sub judice, por ser de manter a decisão condenatória final da Primeira Instância.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente a reclamação.
Pagará a 2.a arguida as custas do seu recurso, com doze UC de taxa de justiça.
Macau, 12 de Maio de 2022.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_______________________
Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
(entendo que os crimes de falsificação de documento deveram ser consumidos pelos crimes de burla por serem aqueles crimes instrumentos desses últimos.)



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