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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.º 49 / 2008

Recorrente: Ministério Público








   1. Relatório
   O arguido A foi julgado no processo comum colectivo n.° CR1-07-0191-PCC do Tribunal Judicial de Base e foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado previsto e punido pelo art.° 198.°, n.° 2, al. e) do Código Penal na pena de 3 anos e 3 meses de prisão.
   Inconformado com o acórdão de primeira instância, o arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.° 520/2008, foi julgado parcialmente procedente o recurso, reduzindo a pena para 2 anos e 9 meses de prisão efectiva.
   Deste acórdão vem agora o Ministério Público interpor recurso para o Tribunal de Última Instância em benefício do arguido, apresentando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. O acórdão recorrido considerou verificada a circunstância prevista na al. e) do n.º 2 do art.º 198.º do C. Penal; no entanto,
   2. Da conjugação dessa norma com as disposições das als. d) e e) do antecedente art.º 196.º resulta que a expressão “espaço fechado” tem de ser entendida com o sentido restrito de lugar fechado dependente de uma casa; e
   3. No caso presente não se está perante essa situação, uma vez que o furto correu nos estaleiros de uma obra; sendo assim,
   4. Impõe-se afastar a referida qualificativa; dessa forma,
   5. A actuação do arguido deverá ser enquadrada na previsão da al. a) do n.º 1 do mencionado art.º 198.º, atento o valor elevado da subtracção; nessa perspectiva,
   6. Há que optar pela pena privativa da liberdade, nos termos do art.º 64.º do mesmo diploma; e
   7. Tendo em conta o comando do subsequente art.º 65.º, deve ser imposta ao arguido uma pena não inferior a um ano e seis meses de prisão; entretanto,
   8. Tal pena não deverá ser suspensa na sua execução, por não se verificar o pressuposto material exigido pelo art.º 48.º, n.º 1, do citado C. Penal;
   9. O douto acórdão violou as disposições constantes das conclusões 1ª, 2ª e 5ª.”
   Entendendo que, no provimento do recurso, deve ser alterada a qualificação jurídico-penal efectuada e, consequentemente, a pena aplicada na forma apontada.
   
   O arguido não apresentou resposta.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Matéria de facto
   Foram considerados provados os seguintes factos pelas instâncias:
   “A partir dos meados de Maio de 2007, foram verificados com frequência casos de furto de cabos eléctricos no terreno de construção da [Endereço], deste modo, a companhia responsável pela segurança do referido terreno de construção passou a reforçar o serviço de segurança.
   Em 24 de Maio de 2007, por volta das 03H00 da madrugada, os guardas de segurança, de nome B (ident. a fls. 125) e C (ident. a fls. 119) confirmaram que já não havia operários a trabalharem no terreno, por, momentos antes, eles terem verificado, durante a patrulha, que todos os operários já tinham saído do terreno de construção.
   Todavia, quando os referidos dois guardas de segurança que estavam em patrulha, chegaram até ao 2° andar; do referido terreno de construção, encontraram dois indivíduos, do sexo masculino, sendo um o arguido A e o outro de identidade desconhecida, que estavam a cortar, com tesoura e x-acto, cabos eléctricos da bobina grande (cfr. fotografias a fls. 26) colocá-los numa carrinha de mão.
   Face a tal, o guarda de segurança B dirigiu-se, de imediato, para o 1° andar onde pediu ajuda a um outro guarda de segurança, de nome D (ident. a fls. 121 dos autos), enquanto o guarda de segurança C vigiava o arguido A e o indivíduo desconhecido.
   Os referidos guardas de segurança, por um lado, informaram os factos a outros guardas de segurança para estes bloquearem as entradas/saídas do terreno de construção, e por outro lado, participaram o caso à Polícia. Esta entidade policial, por sua vez, comunicou os Serviços de Alfândega para que fosse mandado um bote rápido para fazer a vigilância na zona marítima junto da retaguarda do terreno de construção em causa.
   Pouco depois, o B e o D chegaram ao 2° andar do terreno de construção (cfr. fls. 5 dos autos). Nessa altura, o arguido e o indivíduo desconhecido, por terem apercebido de que alguém estava a chegar perto deles, viraram-se e fugiram, de imediato, do local, tendo os dois guardas de segurança ido no encalço deles.
   Quando o D chegou às escadas de acesso ao 3º andar, o indivíduo desconhecido apanhou, ao acaso, um tijolo para intimidar o D, a fim de este recuar-se.
   O D, para não ser atacado e sem outra alternativa, recuou-se. Depois, ele telefonou ao responsável da companhia de segurança, de nome E (ident. a fls. 86 dos autos), reportando-lhe o sucedido.
   Face a tal, o E chamou, de imediato, vários guardas de segurança para proceder a busca global no terreno de construção. No mesmo dia, por volta das 4H00 da madrugada, no 2º andar, o E e o D encontraram o arguido que estava a trepar o andaime de bambu, para baixo, pelo que eles foram, de imediato prendê-lo.
   Mais tarde, os investigadores da PJ. chegaram ao local onde procederam à detenção do arguido.
   Posteriormente, na zona do eixo n.º 14-15 do 2º andar, os investigadores encontraram uma carrinha de mão (onde estavam uns cabos eléctricos cortados), um alicate próprio para cortar cabos eléctricos, e no chão dali perto, foram encontrados alguns invólucros plásticos de cabo eléctrico e um rolo de cabo eléctrico cortado, bem como um x-acto (cfr. o auto de apreensão a fls. 36 dos autos e as fotografias a fls. 24 a 29 dos autos).
   Conforme a avaliação feita pelo chefe de segurança da Companhia de Instalação Eléctrica, de nome F (ident. A fls. 123, ele era também responsável pela obra realizada no terreno em causa), os cabos eléctricos, furtados pelo arguido e pelo referido indivíduo, custavam HK$72.000,00 (cfr. o auto de exame e avaliação a fls. 38 dos autos).
   O referido terreno de construção onde o arguido praticou o crime, estava cercado por tábuas de 4 metros de altura. Os operários não trabalhavam às noites e o portão da entrada era fechada após findo o serviço. Deste modo, o arguido introduziu-se, por escalamento das tábuas, no referido terreno de construção para praticar o crime.
   O arguido agiu livre e conscientemente e com dolo.
   Com a intenção ilegítima de apropriar-se de coisas móveis alheias, o arguido introduziu-se, por escalamento, em estabelecimento comercial alheio em construção (terreno de construção), Ele, com x-acto e tesoura, abriu e cortou os cabos eléctricos (coisas móveis alheias), tendo-os subtraído, o que causou prejuízo patrimonial elevado a terceiro.
   O arguido sabia perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei de Macau.
   Auferia cerca de RMB$800,00 a 1.000,00.
   É casado e tem a seu cargo os pais e um filho.
   O arguido não confessou os factos e é primário.
   
   Factos não provados: nenhum.”
   
   
   2.2 Qualificação dos estaleiros de obra de construção civil
   Como recorrente, o Ministério Público impugna, através do presente recurso, a qualificação jurídico-penal efectuada no acórdão recorrido. Considera que a expressão “espaço fechado”, circunstância prevista na al. e) do n.° 2 do art.° 198.° do Código Penal (CP), tem forçosamente de ser entendido com o restrito sentido de lugar fechado dependente de uma casa. Como o furto ocorreu nos estaleiros de uma obra de construção civil, não integra no conceito de “espaço fechado” e a conduta do arguido enquadra antes na previsão da al. a) do n.° 1 do mesmo art.° 198.°, por causa do valor da subtracção. E, com a nova qualificação, propõe que seja aplicada ao arguido uma pena de prisão efectiva não inferior a um ano e seis meses de prisão.
   
   Segundo os factos provados, o arguido introduziu-se, por escalamento das tábuas, nos estaleiros de uma obra de construção para furtar os cabos eléctricos. Todos os estaleiros da obra estavam cercados por tábuas de 4 metros de altura. Os operários não trabalhavam às noites e o portão da entrada era fechada após o serviço.
   
   Prescreve assim o art.° 198.°, n.° 2, al. e) do CP: Quem furtar coisa móvel alheia, introduzindo-se em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.
   Para efeito da referida norma, escalamento consiste na “introdução em casa, ou em lugar fechado dela dependente, por local não destinado normalmente à entrada, nomeadamente por telhados, portas de terraços ou de varandas, janelas, paredes, aberturas subterrâneas ou por qualquer dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada ou passagem,” segundo a definição legal prevista no art.º 196.°, al. e) do CP.
   No presente recurso, discute-se se o local onde ocorreu o furto, ou seja, os estaleiros de obra de construção civil, cabe na previsão “casa ou lugar fechado dela dependente”.
   
   Entende-se por casa “todo o espaço físico, fechado, que histórico-culturalmente se encontra adaptado à habitação ... ou a outras normais actividades da vivência dos homens em comunidade (assim, nesta perspectiva, tem todo o sentido falar-se, v. g., de casa para comércio; de casa para repartição pública; de casa da Justiça; de casa de saúde, etc., etc.). Um espaço físico, com as características anteriores, possuidor de uma autonomia funcional ligada ao modo de viver comum, historicamente situado. O que implica, bom é de ver, que não é, nem de longe nem de perto, necessário que a casa esteja habitada; basta que seja um espaço, com as qualidades já referidas, apto a ser habitado ou apto a que nele se desenvolvam as actividades humanas para que foi criado.”1
   
   Segundo este entendimento, “habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial”, elementos constantes da previsão da al. e) do n.° 2 do art.º 198.° do CP cabem perfeitamente na noção de “casa” a que se relaciona com o arrombamento e escalamento legalmente definidos nas al.s d) e e) do art.º 196.º do CP.
   E o elemento “outro espaço fechado” previsto ainda na referida alínea também deve ser entendido no âmbito da mesma alínea e das definições legais de arrombamento e escalamento, ou seja, como espaço fechado semelhante à habitação, ao estabelecimento comercial ou industrial, ou dependente de um destes tipos de “casa”.
   Assim, será espaço fechado o espaço com a figura e dimensão semelhante a uma casa, passível de se desenvolver actividades humanas, cujo acesso é controlado por instrumento ou dispositivo de segurança que o demarcam claramente do exterior. É, em regra, um espaço imóvel, com excepção de habitação móvel, pois neste caso prevalece o critério de lugar onde vivem pessoas em detrimento do de mobilidade do espaço.
   A razão de qualificação dos actos de introdução ilícita no espaço fechado por arrombamento, escalamento ou com chaves falsas reside no maior desvalor destes actos por serem facilitados com a invalidação dos meios próprios de segurança do espaço fechado e por serem praticados nos referidos tipos de espaço, pois está relacionado com a violação do domicílio e é normalmente guardada grande quantidade de bens patrimoniais nos estabelecimentos comerciais e industriais e espaços fechados semelhantes, objecto privilegiado de furto.
   
   No presente caso, os estaleiros de obra de construção civil, que são equipados com instrumentos que os separam do exterior de modo a controlar o seu acesso, integram-se na previsão de “espaço fechado”, por serem semelhantes a um estabelecimento industrial, em que são normalmente colocados e guardados grande quantidade de equipamentos e materiais de construção destinados a desenvolver actividades industriais com vista a criar uma construção. É certo que não haja ainda um edifício acabado nem actividades para realizar a finalidade prevista para o mesmo. Mas durante o período de construção, é esta a actividade que é prevista e que se desenvolve no respectivo espaço de terreno, constituindo a finalidade, embora necessariamente transitória, do respectivo espaço físico.
   É de manter, portanto, o enquadramento da conduta do arguido no crime de furto qualificado previsto no art.° 198.°, n.° 2, al. e) do CP por furto praticado no espaço fechado através de introdução com escalamento, ficando prejudicado o conhecimento da questão de nova fixação da pena concreta.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
   Sem custas por o recorrente estar legalmente isento da sua tributação.
   Fixa-se os honorários da defensora nomeada do arguido em mil patacas a pagar pelo GPTUI.
   
   
   Aos 17 de Dezembro de 2008



Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 José de Faria Costa e outros, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 15 e 16.
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Processo n.º 49 / 2008 1