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Processo n.º 349/2022 Data do acórdão: 2022-7-28 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– escuta telefónica judicialmente autorizada
– valoração probatória de factos de conhecimento fortuito
– crime do catálogo
– art.o 172.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Penal
– investigação criminal
– valoração probatória da conversa presencial gravada por car cam
– art.o 80.o, n.os 2 e 5, do Código Civil
– art.o 112.o do Código de Processo Penal
– gravação de comunicações telefónicas por car cam
– regime de autorização judicial
– art.o 113.o, n.o 3, do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. A propósito da questão da admissibilidade da valoração judicial probatória de factos de conhecimento fortuito resultante de escuta telefónica judicialmente autorizada, apenas se admite essa valoração na medida em que os factos conhecidos no âmbito da escuta estão em conexão com a suspeita de um crime do catálogo, não sendo, entretanto, necessário que os conhecimentos fortuitos estejam em conexão com o crime do catálogo que motiva a escuta, podendo reportar-se a esse ou outro crime do catálogo, da responsabilidade do arguido ou de um terceiro não suspeito.
2. Como o crime de burla em valor consideravelmente elevado então em investigação em relação a todos os arguidos do presente processo penal é punível com pena de prisão de limite máximo superior a três anos de prisão, esse delito penal fica abrangido na alínea a) do n.o 1 do art.o 172.o do Código de Processo Penal.
3. Para fins de justiça (nomeadamente para efeitos de investigação criminal), o conteúdo, gravado por um “car cam”, da conversa presencial entre dois dos arguidos no interior de um automóvel também pode ser objecto de valoração lícita probatória pelo tribunal recorrido (cfr. inclusivamente o disposto no art.o 80.o, n.os 2 e 5, do Código Civil, e no art.o 112.o do Código de Processo Penal).
4. Entretanto, já não se pode valorar judicialmente, para efeitos de prova, o conteúdo de comunicações telefónicas ocorridas dentro de automóvel mas gravadas por respectivo “car cam”, visto que sobre a matéria de gravação de comunicações telefónicas, vigora o regime especial de autorização judicial (cfr. sobretudo o disposto nos art.os 172.o e seguintes do Código de Processo Penal, e o art.o 113.o, n.o 3, parte final, do mesmo Código, no referente a telecomunicações).
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 349/2022
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
  Arguido A (A)
  Arguida B (B)
  Arguido C (C)
  Arguido D (D)
  Arguido E (E)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 1735 a 1753 do Processo Comum Colectivo n.o CR1-21-0178-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, os arguidos A (A), B (B), C (C), D (D) e E (E) foram condenados como co-autores materiais, na forma consumada, de um crime de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelos art.os 211.o, n.o 4, alínea a), e 196.o, alínea b), do Código Penal (CP), sendo os primeiros quatro punidos igualmente com quatro anos de prisão, e o último com três anos e nove meses de prisão, para além de condenados todos no pagamento, solidário, da quantia indemnizatória de HKD1.421.500,00 (um milhão, quatrocentos e vinte e um mil e quinhentos dólares de Hong Kong) a favor do ofendido F (F), com juros legais a contar da data desse próprio acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformados, vieram todos os cinco arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
O arguido D, na motivação apresentada a fls. 1785 a 1792 dos presentes autos correspondentes, imputou à decisão condenatória recorrida o excesso na medida da sua pena ao arrepio dos padrões da medida da pena dos art.os 40.o e 65.o do CP, para pedir que a sua pena fosse reduzida para três anos apenas, com sempre almejada suspensão da execução da pena, alegando, para o efeito, que exibiu já ele a atitude de arrependimento, e prestou parte da indemnização a favor do ofendido, desempenhou o papel tão-só de condutor nos factos, é delinquente primário e precisa de acompanhar a sua mãe doente em deslocações quotidianas e pagar despesas de tratamento médico desta, etc..
O arguido A, na motivação apresentada a fls. 1800 a 1816 dos presentes autos, assacou à decisão condenatória recorrida os vícios de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, aludidos nas alíneas c) e a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), para rogar a sua absolvição (por entender que nos autos sobretudo não há provas concretas a apontar ter sido ele próprio o projectista do plano delinquente nem ter sido ele quem preparou ou produziu as fichas de jogo falsificadas para efeitos de burla, sendo certo que o Tribunal não podia ter valorado o conteúdo de conversa gravado pelo sistema de vigilância prisional), ou o reenvio do processo para novo julgamento, para além de pedir, a titulo subsidiário, a redução da pena.
A arguida B, na motivação de fls. 1817 a 1876 dos autos, imputou ao Tribunal recorrido, a montante, a violação do art.o 355.o, n.o 2, do CPP (por falta de exame crítico da prova), do princípio da livre apreciação da prova do art.o 114.o do CPP, e do princípio de in dubio preo reo, e a jusante, o excesso na medida da pena, para pedir a título principal a sua absolvição, ou a declaração da nulidade da decisão condenatória, e subsidiariamente a redução da pena, com sempre desejada suspensão da execução da pena.
O arguido E, na motivação de fls. 1886 a 1900v dos autos, começou por pedir a sua absolvição ou o reenvio do processo para novo julgamento, com alegado fundamento em ter o Tribunal recorrido cometido erro notório na apreciação da prova (por violação das regras da experiência), para além de apontar, subsidiariamente, ao mesmo Tribunal o excesso na medida da pena.
Por fim, o arguido C, na motivação de fls. 1933 a 1944 dos autos:
– começou por suscitar a questão de alegada ilegalidade (à luz do art.o 113.o, n.o 4, do CPP) da valoração, pelo Tribunal recorrido, do conteúdo de gravação sonora feita pelo “car cam” instalado dentro do veículo automóvel ligeiro n.o MP-**-** do arguido D, bem como a questão de ilegalidade (por violação do disposto na Lei n.o 2/2012 e na Lei n.o 8/2005) de valoração, pelo mesmo Tribunal, do conteúdo de conversa então tida por ele com o seu irmão dentro do Estabelecimento Prisional aquando da visita prisional;
– e depois, defendeu que ele não foi co-autor material dos factos em causa mas sim apenas cúmplice, porquanto os projectistas de todo o plano delinquente foram o arguido A e a arguida B;
– e fosse como fosse, a sua pena de prisão é demasiado pesada;
– rogando, pois, que passasse a ser absolvido (ou que fosse reenviado o processo para novo julgamento) ou a ser condenado como mero cúmplice nos termos dos art.os 26.o, n.o 2, e 67.o do CP, com também pretendida redução da pena.
Respondeu a Digna Delegada do Procurador aos recursos dos 1.o a 4.o arguidos, respectivamente a fls. 1978 a 1987, 1988 a 1992, 1993 a 1995v e 1996 a 1997 dos autos, pugnando pela manutenção do julgado, enquanto ao recurso do 5.o arguido respondeu a fls. 1998 a 2006 no sentido de provimento somente na parte relativa à medida da pena.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, opinou, a fls. 2039 a 2049, pela devida redução, em termos gerais, por razões de justiça relativa em matéria da medida da pena, da pena do 5.o arguido, com negação de provimento aos recursos dos outros quatro arguidos.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 1735 a 1753, cuja fundamentação (fáctica e inclusivamente probatória) se dá por aqui integralmente reproduzida.
2. Nos factos provados 5 e 6, descritos a partir do último parágrafo da página 15 até à linha 8 da página seguinte, do texto desse mesmo acórdão (a fl. 1742 a 1742v), foram transcritas as palavras ditas pelo arguido A para outrem através de telemóvel (sobretudo para a exposição, em detalhes, do plano delinquente em causa) dentro do veículo automóvel ligeiro de chapa de matrícula n.o MP-**-**, aquando da condução por ele desse automóvel na madrugada do dia 9 de Janeiro de 2021, palavras ditas por esse arguido então gravadas pelo “car cam” instalado dentro do mesmo veículo.
3. Esse veículo de pertença do arguido D foi apreendido em 12 de Janeiro de 2021 pela Polícia Judiciária, com concordância escrita desse arguido – cfr. o teor do auto dessa apreensão a fl. 228, do qual constando que a apreensão desse veículo se destina à realização da busca sobre o mesmo, a fim de encontrar qualquer objecto relacionado com o processo, com possível apreensão de objecto assim encontrado. E em 8 de Fevereiro de 2021, a Polícia Judiciária procedeu à apreensão, para efeitos de investigação, daquele referido “car cam” montado no veículo automóvel n.o MP-**-** (cfr. o auto dessa apreensão a fl. 709).
4. No facto provado 46, descrito inclusivamente na página 25 do texto do acórdão recorrido (a fl. 1747), foi referido que em 4 de Abril de 2021, o irmão mais velho do arguido C foi visitar este, então preso preventivamente por causa do presente processo penal no Estabelecimento Prisional de Coloane, e que no decurso dessa visita, o arguido C chegou a dizer expressa e inclusivamente que: na transacção de troca de fichas de jogo falsificadas, ele próprio foi responsável por “arranjar pessoa para ir buscar dinheiro”, e o arguido A e a arguida B foram projectistas de toda a transacção de troca de fichas de jogo falsificadas.
5. O conteúdo da conversa entre o arguido C e esse seu irmão mais velho aquando da visita prisional foi levado ao conhecimento do presente processo penal por decisão judicial de 28 de Maio de 2021 (cfr. o respectivo despacho com teor certificado a fl. 1689) do Juízo de Instrução Criminal no âmbito do Inquérito penal n.o 8766/2020 no seio do qual tinha sido autorizada judicialmente a escuta, com gravação, da conversa entre o arguido C e todos os seus visitantes dentro da Cadeia.
6. Segundo a fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, na parte escrita nos últimos dois parágrafos da página 31 e no primeiro parágrafo da página 32 do respectivo texto (a fl. 1750 a 1750v):
– os arguidos A, C e D ficaram silentes na audiência de julgamento sobre os factos delinquentes acusados, enquanto a arguida B e o arguido E negaram a prática do crime;
– para formação da convicção sobre os factos, o Tribunal recorrido chegou a valorar, inclusivamente, o conteúdo de comunicação telefónica feita pelo arguido C para outrem no interior do veículo automóvel n.o MP-**-** e o conteúdo da conversa presencial, dentro desse veículo, entre o arguido C e o arguido D (sobre o decurso da realização do plano delinquente em causa), o conteúdo de comunicação telefónica feita pelo arguido A para outrem (sobretudo sobre a exposição, em detalhes, do plano delinquente em causa), e o conteúdo de conversa tida entre o arguido C e o seu irmão mais velho aquando da visita prisional.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas ao mesmo tempo nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O arguido D colocou apenas a questão da medida da pena como objecto do seu recurso, enquanto os outros quatro arguidos vieram sindicar principalmente do resultado do julgamento dos factos feito pelo Tribunal recorrido para suportar a pretendida absolvição penal, para além de pedirem a título subsidiário a redução da pena, nomeadamente.
Observa-se, desde logo, que a matéria inclusivamente referida nos pontos 4 a 6 da Parte II do presente acórdão de recurso se prende designadamente com a questão de valoração pelo Tribunal ora recorrido, a nível da prova para efeitos de julgamento do crime de burla em valor consideravelmente elevado ora em causa, de factos de conhecimento fortuito em escuta telefónica legalmente ordenada num processo penal de inquérito, diferente dos presentes autos penais.
A propósito da questão da admissibilidade legal, ou não, dessa valoração judicial probatória de factos de conhecimento fortuito, é de seguir mormente a posição jurídica apresentada no douto Acórdão da Relação de Lisboa, no seu Processo n.o 3577079, de 11 de Outubro de 2007, aqui citado para efeitos de mera referência académica, de acordo com a qual, e inclusivamente:
– “... há que distinguir, como o fez o Supremo Tribunal Federal Alemão, admitindo tal valoração <>, excluindo de tal valoração aqueles conhecimentos fortuitos <>. O que viria, segundo Costa Andrade, a <>.
Aquele Tribunal alemão precisaria, em ulteriores tomadas de posição <>”.
No caso concreto, o crime de burla em valor consideravelmente elevado então em investigação em relação a todos os arguidos do presente processo penal é punível com pena de prisão de limite máximo superior a três anos de prisão, pelo que o mesmo delito penal fica abrangido na alínea a) do n.o 1 do art.o 172.o do CPP.
Assim sendo, não se vislumbra qualquer impedimento para a valoração lícita, pelo Tribunal ora recorrido, para efeitos de formação da livre convicção sobre os factos relativos àquele crime de burla, do conteúdo da conversa então tida entre o arguido C e o seu irmão mais velho aquando da visita prisional.
Solução essa que prejudica toda a tese jurídica defendida pelo arguido A e pelo arguido C nas respectivas motivações, a propósito dessa questão.
E a respeito da questão, suscitada pelo arguido C na sua motivação, de alegada ilegalidade da valoração, pelo Tribunal recorrido, do conteúdo de gravação sonora feita pelo “car cam” sobre o interior do veículo automóvel n.o MP-**-**:
O arguido D era dono desse veículo, à data dos factos. Dentro desse veículo, encontrava-se na altura já instalado um “car cam”.
Com pertinência à decisão, mantém-se aqui a posição jurídica já expendida no acórdão de recurso de 28 de Outubro de 2021 do Processo n.o 741/2021 deste TSI, acerca da legalidade da gravação por “car cam”.
Por isso, para fins de justiça (nomeadamente para efeitos de investigação criminal), o conteúdo então gravado pelo “car cam” da conversa presencial entre o arguido C e o arguido D pode ser objecto de valoração lícita probatória pelo Tribunal recorrido (cfr. inclusivamente o disposto no art.o 80.o, n.os 2 e 5, do Código Civil, e no art.o 112.o do CPP).
Entretanto, a posição jurídica veiculada naquele acórdão do Processo n.o 741/2021 já não é aplicável a comunicações telefónicas ocorridas dentro de automóvel mas gravadas por respectivo “car cam”. É que sobre a matéria de gravação de comunicações telefónicas, vigora o regime especial de autorização judicial (cfr. sobretudo o disposto nos art.os 172.o e seguintes do CPP).
Assim sendo, procede o recurso do arguido C na questão de valoração ilegal da gravação, feita por “car cam”, de palavras ditas por ele ao telefone para outrem dentro do referido veículo automóvel n.o MP-**-** (cfr. o art.o 113.o, n.o 3, parte final, do CPP, no referente a telecomunicações).
A procedência desta parte do recurso desse arguido aproveita a todos os restantes co-arguidos dele (art.o 392.o, n.o 2, alínea a), do CPP), pelo que é de anular toda a decisão condenatória final da Primeira Instância, devido à indevida valoração do conteúdo das palavras ditas nomeadmente por ele e pelo arguido A ao telefone dentro daquele veículo automóvel, cabendo ao mesmo Tribunal Colectivo ora recorrido voltar a investigar todo o tema probando do presente processo penal (sem valoração de qualquer conteúdo de comunicações telefónicas gravado por qualquer “car cam”), e decidir novamente do mérito do crime imputado a todos os arguidos.
A solução final do recurso acima chegada já torna desnecessária, por estar logicamente prejudicada, a indagação de todas das restantes questões postas nas motivações de recurso de todos os arguidos recorrentes.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em, por efeito de provimento parcial do recurso do arguido C, anular a decisão condenatória final da Primeira Instância, cabendo o mesmo Tribunal Colectivo ora recorrido voltar a julgar todo o tema probando do presente processo penal em relação a todos os arguidos, para depois proferir decisão jurídica final sobre toda a causa.
Pelo decaimento na questão de valoração de factos de conhecimento fortuito em escuta da conversa em visita prisional, o recorrente A tem que pagar um quarto das custas do seu recurso, e duas UC de taxa de justiça por causa dessa questão. Pelo decaimento nessa mesma questão de valoração de conhecimento fortuito e também na questão de valoração da gravação sonora da conversa presencial dentro de veículo automóvel, o recorrente C tem que pagar um terço das custas do seu recurso, e quatro UC de taxa de justiça por causa dessas duas questões.
Comunique o resultado da presente decisão ao ofendido F.
Macau, 28 de Julho de 2022.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_______________________
Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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