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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.º 5 / 2008

Recorrentes: A, B, C
Recorrida: D






   1. Relatório
   D instaurou uma acção declarativa com processo ordinário contra A, B e C, pedindo que sejam declarados nulos, por simulação, os negócios de transmissão de duas quotas da E, entre os primeiros dois réus e o terceiro réu, bem como cancelados os respectivos registos de aquisição na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis.
   Por despacho do juiz do Tribunal Judicial de Base, foi a autora declarada parte ilegítima por não ter nenhum direito de preferência na aquisição das quotas dos demais sócios nem interesse na declaração de nulidade dos negócios de transmissão de quotas por simulação e os réus absolvidos da instância.
   Inconformada com esta decisão, a autora recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.º 592/2007, foi concedido provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida.
   Deste acórdão vêm agora os réus interpor recurso para o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. Reiterando a autora que o seu interesse na declaração de nulidade provém do facto de ser sócia da sociedade “E” (onde detém cinquenta por cento do capital), a qual é a detentora do interesse directo, legítimo e juridicamente protegido, porque tinha o eventual direito de haver para si as quotas transmitidas no exercício de um direito convencional de preferência que lhe é atribuído pelo art.º 5.º dos estatutos da sociedade, verifica-se que a mesma não tem um interesse directo, legítimo e juridicamente protegido, pois não é titular de qualquer relação cuja consistência jurídica ou prática seja afectada pelo negócio que pretende nulo, a sua posição relativamente à sociedade mantém-se inalterada no seu núcleo de direitos, obrigações e poderes-deveres – interpretação diversa faz indevida aplicação dos art.ºs 234.º e 279.º do CC.
   2. O acto constitutivo de uma sociedade por quotas não é um acto jurídico intuitu personae, qualificativo que significa que o acto jurídico é realizado em atenção às qualidades pessoais de um ou vários dos sujeitos, por nem a lei, nem os estatutos, considerarem causa de dissolução da sociedade, a substituição por acto “intervivos” de um dos sócios originários ou a sua morte; só assim se verificaria que o acto constitutivo da sociedade por quotas era um negócio intuitu personae.
   3. A sociedade por quotas é um misto entre sociedades de pessoas (aquelas que assentam nas pessoas dos seus membros, na sua colaboração pessoal para a obtenção de fins comuns, ficando em segundo plano a sua participação de capital) e sociedades de capitais (aquelas que assentam na participação de capital, ficando a pessoa do sócio em segundo plano), devendo o seu carácter predominantemente personalista ou capitalista resultar não de uma qualificação abstracta retirada do seu regime legal supletivo, mas antes averiguada casuísticamente, pelo modo como determinada sociedade se estruturou, ou seja, pela análise das suas cláusulas estatutárias.
   4. O legislador de Macau no regime supletivo legal que instituiu para as sociedades por quotas deu-lhes um cunho vincadamente capitalista (art.º 367.º do Código Comercial, na sua nova redacção).
   5. Os estatutos da sociedade comercial por quotas em causa na presente acção relativamente à transmissão de quotas a terceiros não exigem o consentimento da sociedade ou o consentimento de todos os outros sócios, não prevêm a amortização da quota em caso de falecimento do sócio, execução, exclusão ou oneração do sócio (exigências estabelecidas pela lei relativamente às sociedades de carácter personalista, v. art.ºs 337.º e 338.º do Código Comercial, relativamente às sociedades em nome colectivo, e 354.º e 355.º do Código Comercial, relativamente às sociedades em comandita), só prevêem o direito de preferência da sociedade em caso de cessão de quota a terceiro e, portanto, a sociedade em causa tem carácter predominantemente capitalista.
   6. Não relevando a pessoa dos sócios ou as qualidades que neles concorram, como verificável pelo modo como a sociedade se estruturou, ou seja, pela análise das suas cláusulas estatutárias, a autora, ora recorrida, não tem qualquer interesse directo e tutelado por lei de o corpo societário ser integrado por determinados sócios ou de no mesmo não serem admitidas novas pessoas como sócias sem o seu sancionamento.
   7. Inexistindo na pessoa da autora e ora recorrida qualquer interesse directo e legítimo na declaração de nulidade dos negócios celebrados entre os dois primeiros réus o terceiro réu, ora recorrentes, ocorre ilegitimidade da autora, ora recorrida, para ser parte na acção – interpretação diversa faz indevida aplicação dos art.ºs 412.º, n.ºs 1 e 2, 413.º, e) e 414.º do C.P.C.”
   Pedindo que seja revogado o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, com a manutenção da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base.
   
   A autora apresentou resposta com as seguintes conclusões:
   “1. A autora é sócia da sociedade comercial por quotas denominada E onde detém uma quota com o valor nominal de cinquenta mil patacas, correspondentes a 50% do capital social dessa sociedade;
   2. Mediante a presente acção impugna e pede a declaração de nulidade dos actos de cessão de quotas ocorridas na dita sociedade, em que foram cedentes os primeiro e segundo réus e cessionário o terceiro réu;
   3. Como a autora alegou na sua petição inicial os negócios de cessão de quotas são simulados. Mas o que é certo é que tiveram como consequência imediata que o terceiro réu passasse a figurar no registo comercial como detentor de 50% do capital social da E, pois logo no dia do negócio simulado os réus promoveram o registo do acto;
   4. A E, nos termos do disposto no artigo quinto dos seus estatutos tem direito de preferência na transmissão de quotas dos seus sócios a favor de estranhos, sendo que o terceiro réu se enquadrava nessa qualificação de estanho / não sócio;
   5. Mas o primeiro réu e o segundo réu realizaram a cessão das suas respectivas quotas sem terem dado prévio conhecimento desse facto quer à sociedade E quer à sócia não cedente, a ora autora;
   6. Ora, este negócio nulo, nos moldes em que ocorreu, prejudica muito – e de forma directa – a autora, e só a autora pode e deve reagir conta o mesmo;
   7. Contra o que fica dito não procede a douta argumentação e fundamentação avançada nas alegações de recurso no sentido de que só a E é parte legítima na acção em que se pede a declaração de nulidade dos negócios, pois a aceitar-se esse entendimento, nem a autora nem a E poderiam reagir, em termos práticos, contra a dita nulidade;
   8. Não poderia reagir a autora, porque, seria parte ilegítima, e não poderia também a E porque em resultado dos negócios simulados o terceiro réu passou a ser formalmente detentor de 50% do capital social, logo ficou com o poder de “vetar” e “boicotar” qualquer iniciativa da E no sentido de questionar a legitimidade dos negócios que permitiram ao terceiro réu adquirir os 50% do capital social;
   9. Se ficar dependente da vontade do terceiro réu impugnar ou não a sua aquisição de 50% do capital social da E, é óbvio que este vai decidir não questionar a legalidade do negócio que só o beneficia e prejudica a sociedade e a autora...;
   10. Donde, ficaríamos na insólita situação do o terceiro réu ter – dentro da E – o poder de decidir avançar (ou não) para a acção de declaração de nulidade do negócio em que ele adquiriu a sua participação no capital social da dita E, e é certo que este jamais decidiria avançar contra os seus próprios interesses;
   11. Em suma, é a autora, como detentora de 50% do capital social da E e que está em confronto com os restantes actuais 50% do capital social (do ora terceiro réu) quem tem legitimidade para pedir ao Tribunal a declaração de nulidade do negócio sub judice. Pois se essa legitimidade residisse só e apenas na E, o terceiro réu ficava com o poder de jamais autorizar e até de vetar qualquer iniciativa da dita sociedade em questionar a cessão de quotas na E pelo terceiro réu.”
   Entendendo que o recurso deve ser julgado improcedente.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   Legitimidade processual de arguir nulidade do negócio jurídico por simulação
   Os recorrentes entendem que a autora, ora recorrida, não tem razão para substituir à E na defesa de qualquer interesse da sociedade, a cessão de quotas desta sociedade não afectam a posição da recorrida na sociedade, e o acto constitutivo da sociedade não é um negócio intuitu personae, não sendo uma sociedade de carácter personalista.
   
   Na petição inicial, a recorrida, como autora, pediu a declaração de nulidade dos negócios de cessão de quotas da E, Limitada, dos dois primeiros recorrentes para o terceiro recorrente, por razão de simulação dos preços, como estratégica dissuasora do exercício do direito de preferência da Companhia na aquisição das referidas quotas sociais e que apenas visava prejudicar a recorrida, pois os recorrentes não deram prévio conhecimento da cessão à Companhia nem à recorrida.
   
   Em princípio, a nulidade do negócio jurídico por simulação pode ser invocado por qualquer interessado, ao abrigo dos art.°s 234.°, n.° 1 e 279.° do Código Civil (CC).
   Entende-se por interessado o “sujeito de qualquer relação jurídica afectada, na sua consistência jurídica ou prática, pelos efeitos a que o negócio se dirigia.”1
   
   Está em causa a preterição do exercício do direito de preferência na cessão de quotas da Companhia.
   De acordo com o art.° 5.° do Estatuto da Companhia, “na transmissão de quotas a favor de estranhos apenas a sociedade tem direito de preferência na respectiva aquisição.”
   Então, é a Companhia, e não a recorrida, o titular do direito de preferência cujo exercício foi alegadamente impedido pelos recorrentes, pelo que a recorrida não pode invocar a violação de tal direito para fundamentar a sua legitimidade de pedir a nulidade dos negócios jurídicos de cedência de quotas sociais por simulação.
   Isto é, mesmo sobre o direito de preferência configurado pela recorrida como autora na presente acção, ela não tem legitimidade processual por não ser sujeito da relação material controvertida (art.° 58.° do Código de Processo Civil).
   
   Por outro lado, não pode servir de fundamento para atribuir legitimidade à recorrida na presente acção o facto de que a Companhia foi constituída com intuitu personae entre os sócios originários, tal como entendeu o tribunal recorrido ao revogar a decisão de primeira instância.
   Na realidade, tal facto nunca foi alegado pela autora, ora recorrida. Assim, o tribunal recorrido não pode invocá-lo para fundamentar a sua decisão (art.°s 567.° e 5.°, n.° 2 do Código de Processo Civil). De qualquer modo, a própria recorrida não é um dos sócios fundadores da Companhia, segundo a certidão do registo comercial desta a fls. 19 dos presentes autos.
   
   A recorrida alegou ainda que, ao negar a sua legitimidade em impugnar a cedência de quotas sociais, nem ela nem a Companhia poderiam reagir em termos práticos contra a referida nulidade dos respectivos negócios jurídicos, porque a recorrida seria parte ilegítima, e a Companhia também não poderia proceder à impugnação por empate de votos resultado do empate de capital dos dois sócios com 50% cada.
   
   Este é um puro argumento ad terrorem, insusceptível de conferir legitimidade à recorrida para pedir a declaração da nulidade dos negócios jurídicos em causa. Até isso é uma consequência normal da composição de quotas sociais da Companhia. A detenção de precisa metade de capital social pela recorrida significa que, para formar a vontade da Companhia, é necessária a unanimidade quando o ou os sócios que representam a outra metade de capital social tenham uma posição unitária.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogando o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, e manter a decisão de primeira instância.
   Custas na segunda e na presente instância pela autora.
   
   Aos 21 de Janeiro de 2009


Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 620. No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 263.
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Processo n.º 5 / 2008 9