Processo nº 638/2022
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)
Data do Acórdão: 7 de Dezembro de 2022
ASSUNTO:
- Acto administrativo
- Pressupostos de facto
- Livre apreciação da prova
SUMÁRIO:
Sendo os elementos de prova livremente apreciados tanto pelo Administração como pelo Tribunal, não incorreu em nenhum erro a Administração Recorrida quando baseou o seu acto num dos elementos de prova fornecidos pelo Administrado/Recorrente antes de tomada de decisão.
_______________
Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 638/2022
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)
Data: 7 de Dezembro de 2022
Recorrente: A
Recorrido: Presidente do Instituto de Habitação
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
veio interpor recurso contencioso da decisão de 13.07.2021, do
Presidente do Instituto da Habitação,
com os fundamentos e pedidos que constam de fls. 57 a 72.
Foi proferida sentença a julgar improcedente o recurso contencioso com a consequente manutenção do acto recorrido.
Não se conformando com a decisão proferida veio o Recorrente recorrer da mesma, apresentando as seguintes conclusões:
1. O recorrente explicou quer perante a Administração quer na petição inicial do recurso contencioso quais as duas razões para dever ser atendida e valorada relevantemente a 2ª avaliação, afastando os dados indiciados através da lª avaliação: i) a comparação feita entre os valores constantes na 2ª avaliação e os documentos de avaliação efectuados em relação a imóveis similares à data de 2013, inclusive uma alienação feita através do organismo de Hong Kong homólogo ao I.H. de Macau, militam a favor de uma maior razoabilidade, de uma maior justeza e, sobretudo, de uma maior aproximação dos valores de avaliação expressos no 2.º relatório face aos valores reais de mercado efectivamente praticados face a imóvel idêntico à data de 2013; e ii) a antiguidade, vetustez e degradação do estado e condições efectivas da fracção autónoma E.
2. Contrariamente ao expendido nos autos a quo, o recorrente fundamentou por que motivos a 2.ª avaliação deveria sobrelevar e ser preferida à 1.ª avaliação.
3. Ambas as avaliações incorporam juízos técnicos que incidem sobre a realidade do mercado imobiliário de Hong Kong em determinado momento temporal, dentro de determinado círculo geográfico e face a uma específica e determinada tipologia de fracção autónoma.
4. Não está em causa uma simples opinio, nem uma livre e mera apreciação valorativa acerca de determinado quid: antes, está em causa um parametrizado juízo técnico-científico elaborado por profissionais de.certa.área.do conhecimento.
5. Tratando-se de um juízo técnico-científico, o meio juridicamente admissível de o rebater e afastar - seja a Administração, seja o poder judicial - não pode ser a mera invocação da sua anterioridade / posterioridade (“critério da prioridade”); isto é, a singela invocação de que um seja anterior e primário e que, por isso só, deva fixar-se e para sempre deva rigidamente prevalecer relativamente a quaisquer outros posteriores juízos técnico-científicos que se lhe porventura sucedam.
6. Mais ainda. O meio juridicamente admissível de rebater e afastar - seja a Administração, seja o poder judicial - um tal juízo técnico-científico também não pode ser o critério de quem o apresenta ou oferece nos autos (“critério da fonte”); isto é, se um mesmo sujeito procedimental apresenta um primeiro de tais juízos técnico-científicos, não poderá ser o facto de apresentar um segundou ou um terceiro que faz com que aquele primeiro e inicial juízo técnico-científico deva necessariamente prevalecer sobre os subsequentes!
7. A Administração, com a contestação posterior do Tribunal recorrido, não tratou de rebater a 2ª avaliação com base em argumentos de tipo fundamentos materiais e substantivos que concreta e directamente enfrentassem e questionassem o juízo técnico-científico incorporado de forma detalhada e minuciosa na 2.ª avaliação, tendo-se bastado com os critérios da prioridade e da fonte.
8. Ao mera e simplesmente arredarem a apreciação e o rebatimento crítico e fundamentado da 2ª avaliação, quer a Administração, quer em segunda linha a decisão a quo, dispensaram a essencialidade de deverem deter um núcleo de conhecimentos técnicos e científicos necessariamente subjacentes para efeitos de apreciação e contra-comparação entre ambas as avaliações.
9. Um dos limites imanentes e naturais à livre apreciação da prova é, precisamente, a circunstância de se estar em face de um juízo produzido e elaborado ao abrigo de conhecimentos técnicos e científicos específicos por pessoa ou entidade dotada precisamente desse mesmo tipo de conhecimentos, não devendo ser considerada livre a convicção que, para afastar a 2ª avaliação face à 1ª avaliação, simplesmente se funda nos critérios da prioridade e da fonte, nem devendo ser considerada “prudente” a convicção que afasta a 2ª avaliação face à 1ª avaliação simplesmente com base nesses mesmos 2 aludidos critérios.
10. O recorrente sustenta que o regime do art. 512.º do C.P.C. e do art. 383.º do Código Civil devem ser necessariamente articulados com os limites imanentes e naturais subjacentes à “livre apreciação da prova segundo a prudente convicção do julgador” a que alude o n.º 1 do art. 558.º do C.P.C.
11. Deveria a Administração ter considerado relevantemente a 2.ª avaliação e ter mantido, com base na mesma, a plena candidatura do recorrente e, reflexamente, deveria ter o Tribunal a quo cassado essa decisão ilegal da Administração que decidiu diversamente.
12. Ao não ter adoptado este entendimento e, pois, ao acolher a actuação procedimental da Administração, o Tribunal a quo frustrou a mais adequada e acertada interpretação e aplicação das normas e princípios com sede, entre outros normativos, nos artigos 512.º e no n.º 1 do art. 558.º, ambos do C.P.C., e do art. 383.º do Código Civil.
Notificada a Entidade Recorrida do recurso este silenciou.
Foram os autos ao Ilustre Magistrado do Ministério Público o qual emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
Da decisão recorrida consta a seguinte factualidade:
- Em 22 de Setembro de 1989, o Recorrente adquiriu a fracção autónoma XXX, Hong Kong, bem como já liquidou o empréstimo (fls. 32 a 44 do P.A.).
- Em 10 de Junho de 2013, o Recorrente apresentou ao IH o boletim de candidatura para aquisição de habitação económica com o número XXX, cujo agregado familiar contava com o Recorrente e a mãe B. O Recorrente declarou que o seu património líquido era de MOP10.000,00 (fls. 2 a 3v do P.A.).
- 29 de Setembro de 2014, o IH, por ofício nº 1409260012/DHEA, notificou o Recorrente Contencioso para selecionar fracção de habitação económica (fls. 11 a 12 do P.A.).
- 24 de Outubro de 2014, o Recorrente celebrou com o IH o contra-promessa para adquirir a fracção XXX, Coloane, Macau, pelo preço de MOP585.900,00 (fls. 16 a 18 do P.A.)
- Antes da celebração de escritura pública, ao Recorrente foi exigida a apresentação dos documentos tais como o contrato de hipoteca do referido bem imóvel em Hong Kong, distrate da hipoteca e relatório de avaliação imobiliária (fls. 30 a 50 do P.A.).
- De acordo com a avaliação feita em 13 de Maio de 2019 pela XXX Consultancy Ltd. (XXX顧問有限公司), o valor de mercado avaliado daquele imóvel em 10 de Junho de 2013 era de HKD2.208.000,00 (valor de mercado antes do pagamento da compensação). (fls. 49 a 50 do P.A.)
- Em 3 de Março de 2021, o chefe da Divisão de Assuntos Jurídicos proferiu despacho de “concordância”, apontando que o Recorrente Contencioso possuía a fracção autónoma XXX, Hong Kong, a qual foi avaliada em HKD2.208.000,00 em 10 de Junho de 2016. Portanto, o valor real do património líquido do agregado familiar do Recorrente era de MOP2.284.240,00. Uma vez que o valor do património líquido do agregado familiar do Recorrente excedeu o limite máximo de património líquido legal do agregado familiar com 2 elementos ou superior que era de MOP1.344.336,00, o seu agregado familiar não preencheu os requisitos para a aquisição da habitação económica. Nesta situação, o IH deve excluir o Recorrente como adquirente selecionado, nos termos do artº 28º/nº 1/al. 1) da Lei da Habitação Económica, e deve declarar nulos o acto de autorizar o Recorrente a escolher fracção de habitação económica e o contrato-promessa de compra e vendo celebrado com ele, bem com realizar audiência do agregado familiar do mesmo, nos termos dos artºs 122º/nº 2/al. i) e 123º/nº 2 do CPA, e (fls. 51 a 52v do P.A.).
- Em 9 de Março de 2021, o IH notificou o Recorrente por ofício nº 2103030062/DAJ para apresentar audiência escrita (fls. 53 a 55v do P.A.).
- Em 31 de Março de 2021 e 26 de Maio do mesmo ano, o Recorrente apresentou, respectivamente, a audiência escrita e as respectivas informações à Entidade Recorrida (fls. 56 a 58 e 66 a 71v do P.A.).
- Em 13 de Julho de 2021, a Entidade Recorrida proferiu despacho de “concordância” na Informação nº 1350/DAJ/2021, apontando que o valor do património líquido do agregado familiar do Recorrente excedeu o limite máximo de património líquido legal do agregado familiar com 2 elementos ou superior que era de MOP1.344.336,00. Uma vez que o agregado familiar do Recorrente nunca reuniu os requisitos de candidatura à habitação económica, o IH pode, nos termos do artº 28º/nº 1/al. 1) da Lei da Habitação Económica e do artºs 122º/nº 2/al. i) e 123º/nº 2 do CPA, excluir o Recorrente como adquirente selecionado e declarar nulos o acto de autorizar o Recorrente a escolher fracção de habitação económica e o contrato-promessa de compra e vendo celebrado com ele (fls. 77 a 80v do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- Em 19 de Julho de 2021, por ofício nº 2107130086/DAJ o IH notificou o Recorrente da referida decisão (fls. 77 a 80v do P.A.).
- Segundo a avaliação feita em 30 de Agosto de 2021 pela XXX Surveyors Limited (XXX測量師有限公司), o valor de mercado daquele imóvel em 10 de Junho de 2013 era de HKD1.600.000,00 (fls. 111 a 112 do P.A.).
- Em 1 de Setembro de 2021, o Recorrente veio de tal decisão interpor recurso contencioso para este Tribunal.
b) Do Direito
É do seguinte teor a decisão recorrida:
«Do que se recorre aqui é o acto que excluiu o Recorrente como adquirente selecionado e declarou nulo o contrato-promessa celebrado para aquisição da habitação económica, pelo facto de que a Recorrida constatou, após, a celebração do dito contrato, que o património líquido real do respectivo agregado familiar ao tempo da apresentação da candidatura em 2013, era superior ao limite máximo legal fixado pelo Despacho do Chefe do Executivo n.° 43/2013, de MOP 1.344.336,00, se tivesse tido em consideração do valor avaliado nessa altura do bem imóvel localizado em Hong Kong de que o Recorrente é proprietário.
Não obstante ser pouco feliz o enquadramento jurídico da factualidade apurada pelo acto impugnado, o ora Recorrente limitou-se, diante do mesmo, a impugnar o pressuposto de facto em que se funda o mesmo, alegando que a Recorrida ficou erradamente convencido da avaliação imobiliária realizada por organismo de Hong Kong de 13/5/2019 que determinou o valor do imóvel avaliado em HKD 2.208.000,00, e acabou por levar ao cálculo do património liquido do agregado familiar a que o Recorrente pertence no montante superior ao limite máximo legal.
Segundo o mesmo, a Administração deveria alicerçar o seu acto no resultado da avaliação imobiliária realizada em 30/8/2021, no valor de HKD1.600.000,00 que se mostra mais consentâneo e compatível com os reais valores de mercado praticados à data de 2013.
É de sublinhar que tanto a primeira avaliação imobiliária como a segunda foram fornecidas pelo próprio Recorrente. A apresentação da primeira ocorreu em 17/5/2019, altura em que o Instituto de Habitação estava prestes a lavrar a escritura pública com o mesmo (conforme se junta a fls. 49 a 50 do processo administrativo), enquanto que a segunda foi junta no processo administrativo, na fase da reclamação deduzida contra o acto na expectativa de que esse elemento pudesse ser ponderado para a tomada da uma nova decisão (conforme se junta a fls. 111 a 112 do processo administrativo).
Na realidade, além de reclamar contra a excessividade do valor decorrente da primeira avaliação, o Recorrente nunca nos disse porquê o resultado que daí consta não convence ou convence menos que a segunda (conforme se alega nos artigos 6.° a 11.° da petição inicial), e quanto a esta, por mais detalhada que aparenta ser, não é suficiente para ilidir o resultado decorrente daquela primeira, por este ser também fruto do trabalho escrupuloso.
Aliás, sabendo que um relatório e o outro são livremente apreciados tanto pelo Administração como pelo Tribunal, não incorreu em nenhum erro a Recorrida quando baseou o seu acto na avaliação imobiliária de 13/5/2019, que fora disponibilizada pelo próprio Recorrente antes de tomada de decisão.
Pelo que se deve improceder o recurso quanto ao fundamento aqui invocado.
*
Mais assacou o Recorrente ao acto impugnado a anulabilidade pela violação do artigo 123.°, n.° 3 do CPA, por não ter abrandado a consequência resultante do acto nulo, considerandos os respectivos efeitos putativos.
Com o devido respeito, este fundamento não pode ser acolhido manifestamente.
São os efeitos putativos aqueles efeitos jurídicos que se deva atribuir ''a situação de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito", conforme se prevê no artigo 123.°, n.° 3 do CPA. Trata-se de uma mitigação do regime da nulidade, "em especial do carácter permanente da ineficácia dos actos nulos, decorrente de uma necessidade de compatibilização das exigências de reintegração plena do bloco de legalidade com outros princípios, designadamente o da tutela da confiança” (Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, p. 174).
Porém, cremos que não se deve afirmar que a falta de atribuição do efeito putativo pudesse gerar a ilegalidade do acto recorrido: se o efeito putativo pela definição dirige à situação de facto decorrente de um acto nulo, naturalmente, a atribuição daquele efeito em nenhum caso impedirá a declaração da nulidade, mas antes pressupõe a existência prévia desse acto de declaração como validamente praticado.
Ou seja, a questão da atribuição do efeito putativo apenas surgirá a posteriori, a saber que tipo da postura que se possa-ainda assumir pela Administração face à situação jurídica constituída pelo anterior acto favorável que entretanto deixou de ser eficaz-por causa da declaração da nulidade.
Se o recurso contencioso é de mera legalidade, ao abrigo do artigo 20.° do CPAC, o juiz encontra-se limitado à questão da validade do acto impugnado enquanto um acto que existia como tal ao tempo da sua prática, então no caso dos autos em apreço, até ao momento em que o ora acto recorrido foi praticado, não era ainda oportuno para fazer entrar as considerações sobre a atribuição ou não dos efeitos putativos. Dito por outra forma, o acto recorrido não é susceptível de violar o disposto no artigo 123.°, n.° 3 do CPA.
Daí, o vício invocado é sem relevância.».
Foi do seguinte teor o Douto Parecer do Ministério Público:
«(…)
2.
No presente recurso, se bem interpretamos as respectivas alegações, vem colocada uma única questão que é a de saber se a douta sentença recorrida julgou mal ao decidir que o acto administrativo recorrido não enferma de erro nos pressupostos de facto.
Essa questão, a nosso ver, deve merecer resposta negativa. Pelo seguinte.
(i)
O Recorrente candidatou-se à aquisição de uma fracção autónoma no regime da habitação económica. Já após ter sido notificado para seleccionar uma fracção autónoma e ter celebrado contrato-promessa de compra e venda com o Instituto de Habitação, tendo por objecto a fracção correspondente ao XXX, Coloane, e antes da celebração da escritura pública, o Instituto de Habitação verificou que o património líquido do Recorrente era de 2.284.240,00 patacas, excedendo, portanto, o limite máximo legalmente previsto, pelo que a Entidade Recorrida, considerando que o mesmo não preenchia os requisitos para a aquisição da habitação económica, praticado, em consequência, o acto contenciosamente impugnado perante o Tribunal Administrativo.
(ii)
O Recorrente questionou no recurso contencioso o pressuposto de facto em que assentou o acto administrativo. Em seu entender, o valor do seu património líquido foi fixado com base num relatório que, não obstante ter sido por si junto no decurso do procedimento administrativo, contém uma avaliação errada da fracção autónoma situada em Hong Kong de que é proprietário, uma vez que o valor de mercado à data de 2013 não era de 2.208.000,00 patacas, como consta desse relatório e foi decidido a Administração, mas, antes, de 1.600.000,00 patacas, tal como resulta do relatório de avaliação imobiliária datado de 30 de Agosto de 2021 que igualmente juntou.
(iii)
A nosso ver, importa começar por previamente esclarecer que, como muito bem se considerou na sentença recorrida, o juízo probatório ou de apreciação da prova efectuado pela Administração e que serviu de base à fixação do pressuposto de facto da sua decisão está sujeito a uma plena sindicância judicial, não consubstanciando um qualquer juízo discricionário, nem sequer da chamada discricionariedade técnica ou imprópria. Na verdade, quando assim actua, a Administração não exerce, como parece evidente, um poder próprio de apreciação por apelo a valorações autónomas e é isto que, como se sabe, caracteriza típica e essencialmente a discricionariedade (sobre isto, PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual de Direito Administrativo, Volume I, Coimbra, 2020, p. 217-218).
Isto dito. Devidamente interpretada, resulta da douta sentença a quo que o Meritíssimo do Tribunal Administrativo, ele próprio, decidiu que o pressuposto de facto do acto não enferma de qualquer erro em virtude de o valor da fracção autónoma de que o Recorrente é proprietário e situada em Hong Kong ser aquele que foi considerado pela Administração, sendo, portanto, excessivo o valor do seu património líquido.
No presente recurso, embora sem o dizer expressamente, é indiscutível que aquilo que a Recorrente pretende, pois, é questionar perante o Tribunal ad quem o julgamento efectuado pelo Tribunal recorrido relativamente a ao aludido facto, alegando ter havido um erro na apreciação da prova e invocando, aqui sim, de modo explícito, a violação das normas legais contidas nos artigos 512.º e 558.º do Código de Processo Civil (CPC) e 383.º do Código Civil. Todavia, sem razão.
Embora o artigo 629.º do CPC, aplicável ao processo administrativo por força do disposto no artigo 1.º do CPAC, preveja a modificabilidade da decisão de facto pelo Tribunal de Segunda Instância, estamos em crer, no entanto, que aquele julgamento que a Recorrente agora impugna não é merecedor de qualquer alteração. Com efeito, a prova produzida nos autos, tendo em vista a demonstração do valor do imóvel do Recorrente e, portanto, o valor do seu património líquido, são dois relatórios de avaliação imobiliária juntos pelo próprio Recorrente e ambos produzidos por empresas igualmente credíveis. O primeiro deles, que serviu de fundamento à decisão administrativa e à decisão recorrida sempre apresenta a vantagem de ter sido produzido em primeiro lugar, em momento temporal mais próximo do relevante, e, muito especialmente, de ter sido produzido em momento anterior ao da decisão administrativa contenciosamente impugnada nos presentes autos e daí que, num quadro legal de livre apreciação da prova, se afigure razoável ter o mesmo merecido maior credibilidade e ter servido de suporte à decisão. Daí que não se mostre, bem pelo contrário, de censurar o julgamento feito na 1.ª instância no sentido de manter intocado o pressuposto de facto do acto administrativo recorrido.
De resto, não será demais sublinhar que é sobre o requerente da aquisição de uma fracção autónoma no regime da habitação económica que recai o ónus da prova do preenchimento dos requisitos legais que facultam o acesso a essa aquisição, por se tratarem de factos constitutivos da sua pretensão. Por isso, a dúvida que pudesse existir sobre o valor da fracção e que, eventualmente, se não pudesse superar em face da existência de relatórios de avaliação contraditórios sobre o valor da fracção autónoma do Recorrente e, portanto, do seu património líquido, sempre seria de valorar contra ele, dando-se como não provado que tal património é de valor inferior ao limite legalmente fixado para permitir concorrer à atribuição de habitação económica (cfr. artigo 335.º n.º 1 do Código Civil e artigo 437.º do CPC. Como se sabe, o ónus da prova constitui, essencialmente, um critério de decisão destinado a permitir ultrapassar situações de falta de prova ou de dúvida quanto à realidade de determinado facto, transformando uma situação de non liquet numa situação de liquet contra a parte onerada. Em todo o caso, o critério do ónus da prova apenas deve intervir quando as vias probatórias possíveis estiverem esgotadas).
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional.».
Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, entendemos que a decisão impugnada não enferma de qualquer erro de julgamento ao manter os pressupostos de facto do acto impugnado, pelo que, versando o recurso apenas sobre esta matéria, nada mais havendo a acrescentar aos fundamentos daquela, para os quais remetemos e aderimos nos termos do nº 5 do artº 631º do CPC, impõe-se negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância em negar provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo do Recorrente.
Registe e Notifique.
RAEM, 7 de Dezembro de 2022
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Álvaro António Mangas Abreu Dantas
638/2022 ADM 41