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Processo nº 143/2021 Data: 12.10.2022
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : “Residência habitual”.
Autorização de residência temporária; (Lei n.° 4/2003 e Lei n.° 16/2021).
Cancelamento.



SUMÁRIO

1. A “residência habitual” é um “conceito indeterminado”, sindicável pelos Tribunais, implicando, necessariamente, uma “situação de facto”, com uma determinada dimensão temporal e qualitativa, que pressupõe um “elemento de conexão”, expressando uma “íntima e efectiva ligação a um local” (ou território), com a real intenção de aí habitar e de ter, e manter, residência”, sendo de se ponderar “não só uma “presença física” como a (mera) “permanência” num determinado território, (a que se chama o “corpus”), mas que seja esta acompanhada de uma (verdadeira) “intenção de se tornar residente” deste mesmo território, (“animus”), e que pode ser aferida com base em vários aspectos do quotidiano pessoal, familiar, social e económico, e que indiquem, uma “efectiva participação e partilha” da sua vida social.

2. A mera “ausência temporária” de uma pessoa a quem tenha sido concedida autorização para residir em Macau não implica a necessária conclusão que tenha deixado de “residir habitualmente” em Macau.

3. De facto, nos termos do art. 43°, n.° 5 da (nova) Lei n.° 16/2021:
“(…) não deixa de ter residência habitual o titular que, embora não pernoite na RAEM, aqui se desloque regular e frequentemente para exercer actividades de estudo ou profissional remunerada ou empresarial”.

4. Verificando-se porém que no período de vários anos o interessado tão só manteve uma “escassa permanência” em Macau, e sem que nada mais resulte dos autos, viável não é considerar-se que tem “residência habitual”.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 143/2021
(Autos de recurso jurisdicional)
   





ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), com os restantes sinais dos autos, recorreu contenciosamente para o Tribunal de Segunda Instância do despacho do SECRETÁRIO PARA A ECONOMIA E FINANÇAS de 22.05.2020 que cancelou a sua autorização de residência temporária em Macau; (cfr., fls. 2 a 9-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Oportunamente, por Acórdão de 03.06.2021, (Proc. n.° 704/2020), negou-se provimento ao recurso; (cfr., fls. 98 a 106).

*

Inconformado, traz o mesmo recorrente o presente recurso jurisdicional.

Nas suas alegações produz as seguintes conclusões:

“1. Na análise da questão de saber se o Recorrente tomava Macau como sua residência habitual, tanto nos doutos pareceres do IPIM, da Entidade Recorrida e do MºPº, como no acórdão a quo, apenas se atendeu o número de dias da presença do Recorrente em Macau e não se apreciaram nem se ponderaram os motivos da ausência temporária do Recorrente de Macau.
2. Nestas circunstâncias, entende o Recorrente que o acórdão a quo enferma do vício de aplicação incorrecta da lei na interpretação e aplicação do conceito indeterminado – “residência habitual”, visto que, no entendimento habitual da jurisprudência de Macau, o número de dias da presença de uma pessoa em Macau não é o único critério para determinar a residência habitual de uma pessoa, só se podendo tirar uma conclusão se se tiver ponderado globalmente a situação concreta da parte.
3. Na verdade, tanto na fase do procedimento administrativo como na fase do recurso contencioso, o Recorrente invocou e introduziu as diligências de prova concretas para demonstrar a existência de causas justificativas da sua ausência temporária de Macau, bem como alegou que nunca tinha deixado a intenção de tomar Macau como sua residência habitual.
4. Todavia, o acórdão a quo não apreciou nem ponderou as circunstâncias concretas em apreço, padecendo do vício de insuficiência da matéria de facto, pelo que o Recorrente vem, nos termos do disposto no art.º 650º do Código de Processo Civil, requerer ao TUI que proceda ao reenvio do presente processo para novo julgamento no TSI, bem como ordene a ampliação da matéria de facto, mormente a apreciação de todas as circunstâncias invocadas no artigo 10º da petição do recurso contencioso, a fim de proferir a nova decisão da aplicação de lei consoante a matéria de facto ampliada.
5. Presume-se que o TUI não concorde com o reenvio do processo para novo julgamento no TSI, ao abrigo do art.º 650º do Código de Processo Civil, entende o Recorrente que ele ainda reúne os requisitos constitutivos da residência habitual em Macau legalmente exigidos.
6. Nos termos dos artigos 97º e 106º, em conjugação com o art.º 43º, n.º 5 todos da Lei n.º 16/2021 ora vigente, a partir de 11 de Agosto de 2021, a Administração reaprecia, imediatamente, com base nos critérios estabelecidos pela referida lei em relação à residência habitual, os processos de renovação da autorização de residência que não se tiverem convertido em definitivos.
7. Por outras palavras, os critérios estabelecidos pela aludida lei em relação à residência habitual são igualmente aplicáveis ao presente processo que ainda não está convertido em definitivo.
8. No estabelecimento do art.º 43º, n.º 5 da lei supramencionada, o legislador especificou claramente que se considera que não deixa de ter residência habitual em Macau a parte que esteja ausente de Macau para prestar assistência a familiar doente e exercer actividade profissional remunerada em empresa sediada em Macau.
9. Tanto por motivo da família como do trabalho, a situação pessoal concreta do Recorrente é compatível com o pensamento legislativo em causa, a par disso, na fase administrativa e na fase do recurso contencioso, o Recorrente invocou e comprovou tempestivamente os respectivos motivos, reunindo, portanto, os requisitos de tomar Macau como residência habitual.
10. Assim sendo, entende o Recorrente que, na interpretação do conceito indeterminado – “residência habitual”, o Tribunal a quo classificou erradamente a situação do Recorrente como a de deixar de ter residência habitual em Macau, violando o art.º 43º, n.º 5 da Lei n.º 16/2021 ora vigente ou aplicando inexactamente a “residência habitual” mencionada no art.º 23º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, conjugado com o art.º 9º, n.º 3 da Lei n.º 4/2003 e art.º 24º, n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, pelo que o acórdão a quo não deve ser legalmente sustentado.
11. O Recorrente tem tomado Macau como sua residência habitual e, nos termos do disposto no art.º 124º do Código do Procedimento Administrativo, o acto recorrido deve ser anulado por padecer do vício de ilegalidade do acto administrativo por erro nos pressupostos de facto, deste modo, vem o Recorrente requerer ao TUI que revogue o acórdão a quo e, em consequência, anule o acto recorrido”; (cfr., fls. 115 a 118-v e 28 a 46 do Apenso)

*

Respondeu a entidade administrativa pugnando pela confirmação do Acórdão recorrido; (cfr., fls. 123 a 130).

*

Entretanto, com a entrada em vigor da Lei n.° 16/2021, (“Regime Jurídico do Controlo de Migração e das Autorizações de Permanência e Residência na R.A.E.M.”), e em face do processado a fls. 137 e segs., pelo ora relator foi decretada a “suspensão da instância”; (cfr., fls. 156).

*

Declarada a cessação da dita suspensão da instância, (cfr., despacho de 15.09.2022, a fls. 179), corridos os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada parecendo obstar, vieram os autos para decisão em conferência.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal de Segunda Instância vem indicada como “provada” a seguinte matéria de facto:

“- Pela Entidade Recorrida foi proferido o despacho recorrido que contém os elementos relevantes do caso em apreço:
No uso da competência conferida pela Ordem Executiva n.º 3/2020 e nos termos do art.º 23º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, aplicando-se subsidiariamente o art.º 9º, n.º 3 da Lei n.º 4/2003 e art.º 24º, al. 2) do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, concordo com a análise feita na presente proposta, declarando caducada a autorização da residência temporária do requerente e do seu agregado familiar beneficiado pela autorização da residência.
O Secretário para a Economia e Finanças
Lei Wai Nong
22 de Maio de 2020

Assunto: Proposta da caducidade da autorização de residência temporária
(Processo n.º 0072/2012/02R)
Proposta n.º: 0725/AJ/2020
Data: 26/03/2020
Exmo. Senhor Director do Departamento Jurídico e de Fixação de Residência, D:
1. Em 27 de Julho de 2012, ao requerente, A (甲), foi concedida a autorização de residência temporária, ao abrigo do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, na qualidade de quadro dirigente, e, na mesma data, foi deferido o pedido da autorização de residência temporária do seu agregado familiar. Seguem-se os dados da autorização de residência temporária dos interessados:
N.º da ordem
Nome
Relação
Validade da autorização de residência temporária
1
A (甲)
Requerente
04/05/2020
2
B (乙)
Cônjuge
04/05/2020
3
C (丙)
Descendente
04/05/2020
2. Dados da relação de trabalho em que se fundamenta o deferimento do pedido de renovação da autorização de residência temporária do requerente:
Empregadora
[Empresa(1)]
Cargo
Vice-presidente sénior
Salário mensal
MOP90.000,00
Período do emprego
Início de funções em 1 de Janeiro de 2014, contrato válido até 31 de Dezembro de 2020
3. De acordo com o “contrato de trabalho” apresentado pelo requerente na renovação da autorização, o requerente desempenha funções de “vice-presidente sénior” na aludida instituição empregadora, com atribuições de apoiar o presidente da sociedade na iniciação do trabalho no exterior, esforçando na elevação da reputação e do grau de prestígio da sociedade; coordenar o relacionamento entre as repartições no interior, elevando o nível de gestão da sociedade; e, co-administrar as novas actividades desenvolvidas pela sociedade, garantindo o lucro e o desenvolvimento contínuos da sociedade (vide anexo 1).
4. Conforme as informações do registo comercial, o projecto da “[Empresa(1)]” consiste na realização de investimentos em projectos industriais, investimentos de natureza financeira através de participações próprias no capital de outras sociedades e gestão dessas participações, bem como a actividade de consultadoria no domínio financeiro (vide anexo 2).
5. Visando verificar o cumprimento exacto do contrato de trabalho por parte do requerente durante o período de validade da autorização de residência temporária e a manutenção da situação jurídica relevante apresentada na altura em que foi concedida a autorização, este IPIM solicitou ao CPSP o fornecimento dos registos de migração do requerente (vide anexo 3):
Período
Número de dias da presença em Macau
01/01/2014-31/12/2014
106
01/01/2015-31/12/2015
28
01/01/2016-31/12/2016
24
01/01/2017-31/12/2017
2
01/01/2018-31/05/2018
1
6. Segundo os supracitados dados referentes ao número de dias da presença em Macau, desde 2015, o número de dias em que o requerente residiu em Macau baixou drasticamente, até que, em todo o ano de 2017, ele apenas permaneceu 2 dias em Macau (10 a 11 de Abril de 2017), factos esses revelam que Macau não era o centro da vida profissional e familiar do requerente durante o período da autorização de residência temporária, verificando-se que Macau não é a residência habitual do mesmo.
7. Assim sendo, entende-se que o requerente não residiu habitualmente na RAEM durante o período da autorização de residência temporária, não reunindo o requisito de manutenção da autorização de residência temporária, pelo que, nos termos do art.º 23º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, aplicando-se subsidiariamente o art.º 9º, n.º 3 da Lei n.º 4/2003 e art.º 24º, al. 2) do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, é de declarar caducada a autorização de residência temporária dos interessados.
8. Por isso, realizou-se a audiência escrita dos interessados e, por seu turno, o requerente apresentou a resposta (vide anexo 4), com os seguintes conteúdos essenciais:
1) Declarou o requerente que ele próprio e seus familiares já tinha integrado na vida e cultura de Macau; ele adquiria imóvel em Macau por hipoteca, tinha médico de família em Macau, participava activamente em actividades sociais durante a sua estadia em Macau e investia para criar duas sociedades limitadas;
2) Em 1 de Janeiro de 2014, o requerente iniciou as suas funções na instituição onde actualmente trabalha, responsabilizando-se principalmente pelo desenvolvimento de actividades no Interior da China e pela exploração de novas actividades, bem como se deslocando frequentemente ao Interior da China, consoante a exigência da sociedade e a situação efectiva dos negócios, para tratar das actividades desenvolvidas pela sociedade em várias regiões do Interior da China. Desde o segundo semestre do ano de 2015, o requerente precisava de se deslocar ao Interior da China para comunicar com Director geral da sociedade sobre os trabalhos, uma vez que o último trabalhava frequentemente no Interior da China naquela altura. Desde 2016, tornou-se curto o tempo em que o requerente trabalhava na sede da sociedade situada em Macau;
3) Desde 2017, o requerente passou a residir habitualmente em Pequim com seu cônjuge, na sequência da doença sofrida pela sua mãe, bem como continuou a tratar dos negócios existentes em várias cidades do Interior da China;
4) O requerente apresentou uma carta de descrição emitida pela instituição onde actualmente ele trabalha, na qual referiu que o requerente iria adoptar medidas de sanação, garantindo a satisfação do requisito relativo ao tempo de trabalho e da sua presença em Macau.
9. Face à resposta acima exposta, cumpre analisar o seguinte:
1) Conforme o esclarecimento dado pelo requerente, desde o início de funções na instituição empregadora em 1 de Janeiro de 2014, o requerente deslocava-se frequentemente ao Interior da China, consoante a exigência da sociedade e a situação efectiva dos negócios, para tratar das actividades desenvolvidas pela sociedade em várias regiões do Interior da China. Portanto, desde 2016, tornou-se curto o tempo em que o mesmo trabalhava na sede da sociedade situada em Macau.
2) Embora o requerente seja contratado por entidade empregadora sediada em Macau, de acordo com os factos acima expostos, no período supramencionado, o centro de trabalho do mesmo não estava em Macau;
3) O “contrato de trabalho” e o documento complementar “carta de descrição” apresentados pelo requerente apenas revelam que é possível que ele necessite de trabalhar fora de Macau. O requerente só declarou que tinha ido trabalhar no Interior da China devido à exigência da sociedade e à necessidade do negócio, porém não apresentou documento que demonstrasse a que cidade se deslocou o mesmo para realizar o trabalho exigido pela sociedade, bem como não se apurou o facto de o requerente passar a residir temporariamente no Interior da China por motivo de trabalho. Assim sendo, não se apura a existência de motivo de trabalho ou outras causas justificativas da ausência do requerente de Macau por um longo período de tempo (de 2014 a 31 de Maio de 2018);
4) Declarou o requerente que ele adquiria imóvel em Macau por hipoteca, mas não apresentou as respectivas informações de registo predial para efeitos de apuramento;
5) Todavia, segundo os dados de registo de migração fornecidos pelo CPSP, averigua-se que, no período compreendido entre 2014 e 31 de Maio de 2018, o requerente se encontrava com 106, 28, 24, 2 e 1 dias, respectivamente, em Macau, ficando com menos da metade do tempo permanecido em Macau. Desde 2017, o requerente costumava ausentar-se de Macau por mais de meio ano consecutivo em cada vez; ademais, declarou o requerente que ele próprio e seu cônjuge passavam a residir habitualmente em Pequim a partir de 2017.
6) Pela análise acima exposta, não se vislumbra que Macau é o centro do trabalho e da vida, nem residência habitual do requerente, e que o requerente não alegou como é que considerou Macau como centro da sua vida profissional e familiar, pelo que, tendo-se em conta as circunstâncias mencionadas no n.º 4 do art.º 4º da Lei n.º 8/1999, conclui-se que o requerente não residiu habitualmente em Macau no período em apreço e, em consequência, não se deve manter a autorização de residência temporária que lhe foi concedida.
10. Nesta conformidade, a residência habitual na RAEM é o requisito de manutenção da autorização de residência, contudo, segundo os dados de registo de migração, o requerente não residiu habitualmente na RAEM, deixando de reunir o requisito de manutenção da autorização de residência temporária. Findo o procedimento da audiência, propõe-se ao Exmo. Senhor Secretário para a Economia e Finanças que, nos termos do art.º 23º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, aplicando subsidiariamente o art.º 9º, n.º 3 da Lei n.º 4/2003 e art.º 24º, al. 2) do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, declare caducada a autorização de residência temporária do requerente A (甲), de seu cônjuge B (乙) e descendente C (丙), válida até 4 de Maio de 2020.
Submete-se à consideração superior a proposta supra.

Técnico auxiliar Director-Adjunto da Divisão de Assuntos Judiciais
E F
26/03/2020 30/03/2020

Anexo:
1. Documentos comprovativos da relação de trabalho apresentados pelo requerente na renovação da autorização: contrato de trabalho e certidão de efectividade de funções.
2. Informações do registo comercial da instituição empregadora;
3. Cópia do ofício n.º 03518/DJFR/2018 deste IPIM e resposta formulada pelo CPSP;
4. Cópias dos ofícios n.ºs 03840/DJFR/2018 e 03841/DJFR/2018 deste IPIM e resposta apresentada pelo requerente em 20 de Julho de 2018;
5. Processo n.º 0072/2012/02R”; (cfr., fls. 101-v a 103 e 19 a 27 do Apenso).

Do direito

3. Com o presente recurso pretende o recorrente a revogação da decisão com a qual se cancelou a sua autorização de residência temporária em Macau, posteriormente, confirmada em sede do incidente de reapreciação previsto no art. 97° da atrás aludida Lei n.° 16/2021.

Cremos, porém, que imperativa é uma decisão de improcedência da aludida “pretensão”.

Vejamos.

Acolhendo, integralmente, o teor do douto Parecer do Ministério Público, assim considerou o Tribunal de Segunda Instância quanto à questão que nos é agora novamente colocada:

“(…)
A, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso do acto administrativo praticado pelo Secretário para a Economia e Finanças, datado de 22 de Maio de 2020, que declarou a caducidade da sua autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM).
Citada, a Entidade Recorrida apresentou contestação na qual concluiu no sentido da improcedência do presente recurso contencioso.
2.
2.1.
O Recorrente obteve autorização de residência temporária em Macau ao abrigo da norma do n.° 3 do artigo 1.° do Regulamento Administrativo n.° 3/2005 e a Administração declarou a respectiva caducidade com o fundamento na falta de residência habitual do Recorrente em Macau.
Entende o Recorrente que o acto recorrido enferma de violação do dever de investigação e vício do erro nos pressupostos de facto e de violação das regras de distribuição do ónus da prova.
Salvo o devido respeito, cremos que não tem razão. Procuraremos justificar.
De acordo com o artigo 9.°, n.° 3 da Lei n.° 4/2003, «a residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência» e do artigo 24.°, n.° 2 do Regulamento Administrativo n.° 5/2003, que regulamenta aquela Lei, decorre que a falta de residência habitual do interessado na RAEM é causa de caducidade da autorização de residência.
Com base nestas normas e após ter concluído que o Recorrido não tinha a sua residência habitual em Macau, a Administração decidiu declarar a caducidade da autorização de residência temporária em Macau.
O conceito de residência habitual que é, fora de dúvida, um conceito indeterminado que não confere à Administração qualquer margem de livre apreciação ou, dizendo de outra forma, não concede à Administração qualquer discricionariedade por isso que não apela a um juízo de apreciação ou valoração próprio da Administração. Daí que o respectivo preenchimento esteja sujeito a um pleno controlo jurisdicional.
Trata-se, como é bom de ver, de um conceito relativo ou de geometria variável em função, justamente, da teleologia própria das normas que dele fazem uso. Queremos com isto dizer que, em nosso entender, não é possível definir aprioristicamente um conceito de residência habitual que se adeque a todas as situações independentemente das finalidades normativas próprias que em cada caso se revelem.
Em todo o caso, parece-nos que a norma do artigo 30.° do Código Civil, sendo embora uma norma de conflitos, fornece um importante contributo no sentido de uma densificação judicativamente relevante do que seja a residência habitual: «considera-se residência habitual o lugar onde o indivíduo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal».
A partir deste critério normativo, pode dizer-se, com alguma segurança, que a residência habitual é o centro em torno do qual gravitam as ligações existenciais de uma determinada da pessoa. Por isso, se pode dizer, pela negativa, que não constitui lugar da residência habitual aquele que serve de mera passagem, ou aquele no qual uma pessoa está por curtos períodos de tempo, pois que aí se não encontra a estabilidade indispensável a radicar um centro existencial a partir do qual se possa fundar a formação paulatina, mas consistente, de um vínculo de pertença à comunidade que forma o substrato pessoal da Região e que, a final, vá culminar na aquisição do estatuto de residente permanente, pois que, como sabemos, tal aquisição, de acordo com o artigo 24.° da Lei Básica pressupõe, justamente, a residência habitual em Macau.
Isto dito. Parece-nos claro que, face aos elementos de facto que fluem dos autos e que constituíram os pressupostos de facto do acto recorrido que, como a Administração concluiu, o Recorrente não tem residência habitual em Macau.
Os registos das entradas e saídas do Recorrente na Região permitem verificar que, nos anos de 2014 a 2017 e até Maio de 2018, ou seja durante mais de 1600 dias, o Recorrente permaneceu em Macau esparsamente durante um total de 161 dias, o que representa não mais do que um décimo daquele período total considerado pela Administração, sendo que, no ano de 2017 esteve em Macau apenas por 2 dias e durante os primeiros 5 meses de 2018 por um único dia.
Ora, como bem se compreende, uma tão escassa permanência em Macau, tendo em conta a caracterização do conceito indeterminado da residência habitual que antes fizemos, está longe de ser suficiente para poder suportar em relação ao Recorrente a conclusão de que o mesmo, no período em causa, aqui manteve tal residência. (Sublinhado nosso)
Na verdade, não se pode dizer, a nenhuma luz, que o Recorrente tinha o centro da sua vida em Macau e que, com maior ou menor frequência, se deslocava ao exterior ao serviço da sua entidade patronal. O que sucedeu foi que, durante o período de tempo antes assinalado, o Recorrente passou, de longe, muito mais tempo no exterior do que em Macau, podendo dizer-se que de quando em vez, a espaços, aqui se deslocava.
Não se contesta que, como refere o Recorrente, a residência habitual não implica nem pressupõe uma presença contínua ou constante em Macau. Implica, no entanto, estamos em crer, um substrato presencial mínimo, seja do próprio, seja, ao menos do núcleo familiar (cônjuge, filhos, pais) que permita vislumbrar os tais laços pessoais de ligação à Região e isso, no caso, manifestamente não se vislumbra. (Sublinhado nosso)
Deste modo, revelando-se fundada a conclusão da Administração no sentido de que o Recorrido incumpriu o dever legal de manter a sua residência habitual em Macau e constituindo o incumprimento desse dever um fundamento para a declaração de caducidade da autorização de residência temporária, é também evidente que outra não podia ser a decisão administrativa senão aquela que agora foi impugnada (neste mesmo sentido, a propósito de situação semelhante, veja-se o recente acórdão do Tribunal de Segunda Instância tirado no processo 746/2020).
2.2.
Não houve, face ao exposto, e ao contrário do que alega o Recorrente qualquer falta de investigação e realização de diligências por parte da Administração que vicie o acto recorrido.
Como salienta a melhor doutrina, é ao órgão instrutor que compete julgar da necessidade das diligências em termos de instrução do procedimento administrativo e da consistência da comprovação já existente sobre as questões de facto e de direito relevantes (assim, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA – PEDRO COSTA GONÇALVES – J. PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, Coimbra, 1998, p. 459).
Assim, se o órgão instrutor ou a própria entidade decisora considera que a instrução efectuada é suficiente para suportar os pressupostos da sua actuação tal não representa qualquer violação de lei procedimental em razão de um défice instrutório que manifestamente não existe, antes representa o exercício de uma prerrogativa legalmente conferida.
O que sucede é que, como é evidente, ao particular fica legalmente assegurada a possibilidade de impugnar o acto final do procedimento, podendo então demonstrar, se for caso disso, a insubsistência dos pressupostos de facto e de direito em que o mesmo assentou.
No caso, é manifesto que as diligências instrutórias efectuadas pela Administração e que esta considerou suficientes para escorar os pressupostos de facto do acto recorrido, nomeadamente no que concerne aos períodos de permanência do Recorrente em Macau durante o lapso temporal considerado e à falta de manutenção por parte deste da sua residência habitual em Macau, são bastantes. Na verdade, os registos fornecidos pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública relativos aos movimentos de entrada e de saída do Recorrente em Macau demonstram, exuberantemente, os factos que a Administração considerou constitutivos dos pressupostos da sua actuação pelo que não faz sentido, salvo o devido respeito, a alegada violação das regras de distribuição do ónus da prova a que o Recorrente se refere na douta petição inicial.
De resto, o Recorrente não só não produziu qualquer prova infirmadora da conclusão administrativa como nem sequer indicou que diligências terão sido e que, em seu entender, a terem sido realizadas, poderiam ter abalado os pressupostos do acto impugnado.
O que nos leva a um último ponto de natureza conclusiva. Do que antecede resulta, estamos convictos, que o acto recorrido não enferma do erro nos pressupostos de facto que lhe vem imputado pelo Recorrente.
3.
Pelo exposto, deve o presente recurso contencioso ser julgado improcedente.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.”
Em face de douta argumentação acima transcrita, que subscrevemos inteiramente e que é reproduzida para a fundamentação da decisão deste TSI, nesta sede limitamo-nos a acrescentar e realçar o seguinte:
1) - Em matéria discutida nestes autos, admitimos sempre provas para justificar a ausência temporária ou prolongada de Macau, por quem que ainda não é residente permanente, não seguimos cegamente o critério de 183 dias como período de tempo mínimo (e invariável) para ponderar se o Recorrente tem ou não centro de vida aqui, em Macau;
2) - Tal como afirmamos no acórdão do processo nº 473/2019, de 2/07/2020:
I – Em matéria de pedido da autorização (e renovação) de fixação de residência temporária em Macau por parte dos titulares de qualificação profissional e especializada, o artigo 9° (mormente o seu n° 3) da Lei n°4/2003 (regime geral de entrada, permanência e fixação de residência na RAEM), de 17 de Março, aplica-se subsidiariamente, por força da remissão feita pelo artigo 23° do Regulamento Administrativo nº 3/2005, de 4 de Abril, não obstante este último ser um diploma de carácter especial, por estabelecer o regime de fixação de residência temporária de investidores, quadros dirigentes e técnicos especializados.
II – É certo que o artigo 9°/3 da Lei n°4/2003 (regime geral de entrada, permanência e fixação de residência na RAEM), de 17 de Março, prescreve uma situação vinculativa para a Administração Pública, não é menos correcto que, ao nível de densificação do conceito de residência habitual, o legislador deixa à Administração Pública um espaço de manobra relativamente amplo e admitem-se alguns desvios.
III – Em direito administrativo, residência habitual é um conceito impreciso classificatório, cujo preenchimento solicita a constatação de dados descritos-empíricos e a sua imprecisão se dissolve em sede de interpretação, logo o juiz pode repetir a interpretação feita pela Administração Pública.
IV – Sem prejuízo do conceito legal de residência habitual fixado no artigo 30°/2 do CCM, a doutrina entende por residência habitual o local onde a pessoa vive normalmente, onde costuma regressar após ausências mais curtas ou mais longas (Mota Pinto. Teor. Ger. Dir. Civ., 3.ª ed.-258), sem prejuízo de ausência prolongada por motivos ponderosos.
V – Tratando-se de um conceito indeterminado, em circunstâncias especiais admitem-se desvios no que toca aos padrões normalmente seguidos para densificar o conceito de residência habitual, visto que em várias situações o interessado pode ausentar-se do local por motivos variados (ex. por motivo de reciclagem ou estudo profissional, mandado pela companhia que recrutou o requerente para frequentar qualquer curso de especialidade fora de Macau durante 6 meses ou mais tempo; ou por motivo profissional o requerente vai ser destacado para uma companhia filial situada fora de Macau para desempenhar uma função altamente técnica durante 6 meses ou mais tempo; ou por motivo de doença prolongada e hospitalização em estabelecimento fora Macau para receber tratamentos adequados durante 6 meses ou mais tempo; ou porque tem filhos menores que carecem de cuidado especial fora de Macau por causa de doença ou saúde durante 6 meses ou mais tempo), o que demonstra que a presença física prolongada de uma pessoas ou pernoitar num determinado local não são critérios únicos e exclusivos para determinar a residência habitual de uma pessoa.

Este raciocínio continua a ser valido aqui.
3) - No caso, como o Recorrente não carreou elementos probatórios suficientes, seguros e fidedignos para justificar a sua ausência prolongada de Macau e assim não nos convence que ele tomava Macau como efectivo centro de vida, tal como observou o MP, razão pela qual é de julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
(…)”; (cfr., fls. 103 a 106).

Aqui chegados, em face do que se deixou transcrito, e tendo presente o estatuído no art. 152° do C.P.A.C. (quanto aos “fundamentos” do presente recurso jurisdicional para este Tribunal de Última Instância), vista cremos que está a solução que atrás se deixou adiantada, muito não se mostrando necessário consignar para o demonstrar.

Com efeito, inexistindo qualquer deficiência na “matéria de facto” tida como relevante para a decisão de cancelamento da autorização de residência temporária do ora recorrente, evidente é que a mesma não permite considerar que o mesmo tenha mantido uma “residência habitual em Macau” que, como se sabe, constitui pressuposto legal (imprescindível) para que possível fosse uma (eventual) decisão administrativa em sentido diverso.

Na verdade, nos termos do art. 9°, n.° 3 da Lei n.° 4/2003, (vigente no momento da prática do acto administrativo em causa): “A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência”.

E, não se olvidando que o referido conceito de “residência habitual” é um “conceito indeterminado”, sindicável pelos Tribunais, implicando, necessariamente, (como já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de considerar), “uma “situação de facto”, com uma determinada dimensão temporal e qualitativa, na medida em que aquela pressupõe também um “elemento de conexão”, expressando uma “íntima e efectiva ligação a um local” (ou território), com a real intenção de aí habitar e de ter, e manter, residência”, sendo de se ponderar “não só uma “presença física” como a (mera) “permanência” num determinado território, (a que se chama o “corpus”), mas que seja esta acompanhada de uma (verdadeira) “intenção de se tornar residente” deste mesmo território, (“animus”), e que pode ser aferida com base em vários aspectos do seu quotidiano pessoal, familiar, social e económico, e que indiquem, uma “efectiva participação e partilha” da sua vida social”; (cfr., v.g., o Ac. de 27.01.2021, Proc. n.° 182/2020, podendo-se também ver o Ac. de 18.12.2020, Proc. n.° 190/2020, onde se consignou nomeadamente que “A mera “ausência temporária” de uma pessoa a quem tenha sido concedida autorização para residir em Macau não implica a necessária conclusão que tenha deixado de “residir habitualmente” em Macau”, mas que “Verificando-se porém que a mesma tem “ausências prolongadas” de Macau, e perante a sua alegação de se deverem a “razões profissionais”, cabe-lhe o ónus da prova do referido motivo para efeitos de manutenção, (ou cancelamento), da concedida autorização de residência”).

E, nesta conformidade, muito mais não se mostra de dizer.

Na verdade, em face do que provado está, e mesmo à luz do disposto no n.° 5 do art. 43° da (nova) Lei n.° 16/2021 – com base no qual, e nos termos do art. 97°, se procedeu a uma “reapreciação” da situação do ora recorrente, mantendo-se a decisão de cancelamento da sua autorização de residência temporária – claro se apresenta que o mesmo não manteve uma “residência habitual em Macau” no período temporal relevante para que possível fosse uma decisão favorável à sua pretensão.

Com efeito, este (novo) comando legal também não prescinde, (antes, exige), que o interessado, (ainda que não pernoite), se “desloque a Macau regular e frequentemente para exercer actividades de estudo ou profissional, remunerada ou empresarial”.

Ora, in casu, e como – bem – salienta o Ministério Público no seu douto Parecer de fls. 178 a 178-v, os registos das entradas e saídas do ora recorrente permitem verificar que, nos anos de 2014 a 2017, e até Maio de 2018, ou seja durante mais de 1600 dias, o mesmo apenas tenha permanecido em Macau um total de 161 dias, sendo ainda de notar que, no ano de 2017, tão só esteve em Macau por “2 dias”, e que durante os primeiros 5 meses de 2018, por apenas “um único dia”.

Ora, sob pena de se proceder a uma interpretação e aplicação manifestamente “contra legam” do regime legal que regula a matéria, temos pois para nós que uma tão escassa permanência em Macau – especialmente, no ano de 2017, em que aqui esteve 2 dias, e nos primeiros 5 meses de 2018, em que apenas esteve 1 dia – impede, totalmente, qualquer outra solução.

Dest’arte – em face da factualidade provada, e não se olvidando também que nos termos do dito art. 43°, n.° 5 da nova Lei n.° 16/2021: “Para efeitos da alínea 3) do n.º 2, considera-se que não deixa de ter residência habitual o titular que, embora não pernoite na RAEM, aqui se desloque regular e frequentemente para exercer actividades de estudo ou profissional remunerada ou empresarial” – imperativa é a improcedência do presente recurso.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 12 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 12 de Outubro de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

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