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Processo nº 903/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 02 de Março de 2023

ASSUNTO:
- Contrato de compra e venda
- Actos de alienação

SUMÁRIO:
- A celebração do contrato de compra e venda de imóveis por escritura pública consiste numa prestação infungível, isto é, tem de ser feita pelas próprias partes.
- Se uma das partes recusar de assinar o contrato, não pode ser constrangida fisicamente a fazê-lo, sob pena de violar a sua liberdade pessoal, nem pode ser substituída por outrem que o assine por ela, a não ser no âmbito de representação voluntária, ou no âmbito da execução específica do contrato promessa de compra e venda.
- A Ré, mesmo for condenada, pode insistir em não praticar os actos de alienação, a Autora não pode obrigá-la fisicamente a fazer através da acção executiva para prestação de facto, pois, no âmbito da execução para prestação de facto, o credor só pode requerer a prestação por outrem se o facto for fungível, a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação e a quantia eventualmente devida a título de sanção pecuniária compulsória (cfr. nº 1 do artº 826º do CPCM).
O Relator























Processo nº 903/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 02 de Março de 2023
Recorrente: A Limitada
Recorrida: Conservatória do Registo Predial

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – RELATÓRIO
Por sentença de 13/05/2022, julgou-se improcedente o recurso interposto pela Recorrente A Limitada.
Dessa decisão vem recorrer a Recorrente, alegando, em sede de conclusões, o seguinte:
1. Por requerimento de registo junto à apresentação n.º 125 de 3/12/2021, veio a ora Recorrente requerer o registo da Acção nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Código do Registo Predial;
2. Em particular, a Recorrente, pretende ver registada a segunda parte do pedido subsidiário identificado na alínea b) da Acção, isto é, “juntamente com a condenação a executar os actos necessários à alienação a favor da Autora das Fracções Autónomas, isto é das fracções autónomas “P17-04”, “P17-05”, “P17-08”, “P20-07”, “B041C/V1”, “B042C/V1”, “B082C/V2” e “B083C/V2”, todas do prédio sito em Macau, com os números XX da Rua de XX e números XX da Avenida do XX, freguesia da Sé, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 22381 e inscrito na matriz predial sob o número 73225”;
3. O Conservador do Registo Predial, recusou tal pedido de registo, uma vez que entende que o supra referido pedido subsidiário corresponde a um pedido de restituição pecuniária, não estando, por isso, sujeito a registo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Código do Registo Predial, e que o pedido da Acção não se enquadra no conceito de acção registável para efeitos do artigo 3.º do Código do Registo Predial;
4. Considerou ainda o Conservador do Registo Predial que a Recorrente deveria antes ter peticionado junto do Tribunal Judicial de Base por um pedido de execução específica;
5. A Direcção dos Serviços dos Assuntos de Justiça viria a confirmar a posição de recusa de registo do referido pedido subsidiário;
6. Tal posicionamento do Conservador do Registo Predial atenta contra a lei, nomeadamente contra a teleologia do artigo 3.º n.º 1, alínea a) do Código do Registo Predial, uma vez que desconsidera por completo os efeitos que uma eventual sentença de condenação da Ré quanto ao pedido subsidiário identificado na alínea b) da Acção terá sobre as Fracções Autónomas;
7. Lamentavelmente, tal posição acaba por ser adoptada pelo Tribunal Judicial de Base de Macau, uma vez que se baseia numa argumentação semelhante à utilizada pelo Conservador do Registo Predial para negar o recurso judicial interposto pela Recorrente;
8. Nos termos do artigo 3.º n.º 1, alínea a) do Código do Registo Predial, estarão, entre outras, sujeitas a registo, todas e quaisquer acções cujo o efeito útil tenha interferência na estrutura objectiva e/ou subjectiva de um direito real;
9. Ora na hipótese de a Ré ser condenada por decisão transitada em julgado no pedido subsidiário identificado na alínea b) da Acção (i.e. ser condenada a executar os actos necessários à alienação a favor da Recorrente das Fracções Autónomas), a Ré fica imediatamente constituída na obrigação de emitir (e praticar todos os actos tendentes a essa emissão) uma declaração de transmissão da titularidade das Fracções Autónomas da sua esfera jurídica para a esfera jurídica da Recorrente.
10. Ou seja, uma eventual sentença de condenação - transitada em julgado - da Ré no pedido subsidiário identificado na segunda parte do pedido da alínea b) da Acção irá forçosamente impactar a estrutura subjectiva do direito de propriedade das Fracções Autónomas, nomeadamente porque a Ré ficará assim obrigada a transmitir por força de um comando judicial a propriedade das ditas Fracções Autónomas para a Recorrente;
11. Não cabe nas competências do Conservador do Registo Predial - e nem nas competências da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça - recusar pedidos de registo com base em julgamentos de mérito sobre os factos alegados e/ou sobre os pedidos peticionados pela Recorrente na Acção;
12. Tal tarefa, cabe única e exclusivamente aos Tribunais da RAEM;
13. A condenação da Ré no Pedido que contra a mesma foi formulado pela Recorrente pode ser coerciva mente obtido em sede de execução da sentença, caso aquela opte por não cumprir voluntariamente a decisão judicial que a venha condenar na realização de todos os actos, jurídicos e materiais, necessários à transmissão da titularidade das Fracções Autónomas a favor da Recorrente;
14. Ou seja, a Recorrente poderá obter o cumprimento coercivo de uma eventual condenação da Ré no Pedido (caso esta opte por não cumprir voluntariamente com tal comando judicial), pelo que a alteração da titularidade das Fracções Autónomas da Ré para a Recorrente não estará dependente de nenhuma conduta da Ré em tal sentido;
15. Como tal, não poderão restar dúvidas de que uma eventual condenação da Ré no Pedido produzirá obrigatoriamente uma modificação subjectiva na estrutura do direito de propriedade das Fracções Autónomas, uma vez que ou a Ré transfere voluntariamente a propriedade das Fracções Autónomas para a Recorrente ou a Recorrente recorre ao mecanismo judicial de execução de sentença para poder obter o cumprimento coercivo de tal comando judicial;
16. Parece assim ser claro que o Pedido, i.e. o pedido subsidiário identificado na segunda parte da alínea b) da Acção deverá ser registado nos termos e para os efeitos do artigo 3.º n.º 1 alínea a) do Código do Registo Predial, devendo a decisão do Tribunal Judicial de Base de Macau vertida na Sentença ser revogada por se encontrar viciada de ilegalidade e deve, por essa razão, ser revogada com fundamento nos termos apresentados no presente recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II - FACTOS
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
1. Em 03 de Dezembro de 2021 a Recorrente apresentou um pedido de registo da acção - sob a apresentação n.º 125 de 03/12/2021 - junto da Conservatória do Registo Predial (cfr. 45 e v, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
2. Na petição inicial dada a registo a Recorrente pediu a condenação da Ré: “a) (…) na restituição do montante de HKD37.300.000,00 (trinta e sete milhões e trezentos mil dólares de Hong Kong), equivalente a MOP38.419.000,00 (trinta e oito milhões, quatrocentas e dezanove mil Patacas), correspondente ao somatório do valor do capital ilegitimamente levantado pelo Ré a título pessoal das contas bancárias da Autora, ou subsidariamente
b) (…) restituição do montante em capital de HKD17.300.000,00 (dezassete milhões e trezentos mil dólares de Hong Kong), juntamente com a condenação a executar os actos necessários à alienação a favor da Autora das Fracções Autónomas, isto é das fracções autónomas “P17-04”, “P17-05”, “P17-08”, “P20-07”, “B041C/V1”, “B042C/V1”, “B082C/V2” e “B083C/V2”, todas do prédio sito em Macau, com os números XX da Rua de XX e números XX da Avenida do XX, freguesia da Sé, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 22381 e inscrito na matriz predial sob o números 73225 ou subsidariamente
c) o montante de HKD37.300.000,00 (trinta e sete milhões e trezentos mil dólares de Hong Kong), equivalente a MOP38.419.000,00 (trinta e oito milhões, quatrocentas e dezanove mil Patacas), correspondente ao somatório do valor do capital ilegitimamente levantado pela Ré a título pessoal das contas bancárias da Autora, a título de indemnização por enriquecimento sem causa.”
3. Em 22/12/2021, através do Despacho n.º 7973 (cfr. fls. 26), o Conservador do Registo Predial de Macau recusou o registo da Acção, requerido através da apresentação n.º 125 de 03/12/2021.
4. Não se conformando com o despacho n.º 7973, a Recorrente impugnou a decisão do conservador, interpondo recurso administrativo para o director da Direcção de Serviços de Assuntos de Justiça.
5. O Conservador do Registo Predial proferiu o despacho de sustentação no dia 31 de Janeiro de 2022.
6. O director da Direcção de Serviços de Assuntos de Justiça julgou improcedente o recurso administrativo interposto, concordando com a decisão de recursa de Conservador do Registo Predial.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
Adiantamos desde já que não assiste qualquer razão à Recorrente.
Em primeiro lugar, não se nos afigura que o pedido formulado pela Autora no sentido de condenar à Ré a executar actos necessários à alienação das fracções autónomas a seu favor como forma de pagamento da dívida seja viável.
É bem sabido que a celebração do contrato de compra e venda de imóveis por escritura pública consiste numa prestação infungível, isto é, tem de ser feita pelas próprias partes.
Se uma das partes recusar de assinar o contrato, não pode ser constrangida fisicamente a fazê-lo, sob pena de violar a sua liberdade pessoal, nem pode ser substituída por outrem que o assine por ela, a não ser no âmbito de representação voluntária, ou no âmbito da execução específica do contrato promessa de compra e venda, que não é o caso.
No mesmo sentido, veja-se o Ac. deste TSI, de 14/04/2011, Proc. nº 334/2007.
Ao nível do Direito Comparado, o Tribunal da Relação de Guimarães de Portugal, por Acórdão de 18/10/2007, publicado na Colectânea de Jurisprudências do ano de 2007, 4º Volume, pág. 295 a 298, decidiu-se que:
  “Não pode o contraente ser constrangido à prática do acto a que se obrigou (nemo cogi potest ad factum), nem pode também um terceiro substituí-lo na prestação, já que tal facto é tipicamente não fungível. Mas pode o promissário obter sentença que valha pelo contrato prometido”.
  “Portanto, a única forma que se concebe juridicamente para impor o cumprimento coercivo da promessa de venda é a sua execução em espécie (execução específica), obtendo-se assim sentença que vale pelo contrato prometido (o tribunal substitui-se ao faltoso, colmatando a sua conduta omissiva, e declara feita a venda). É para isso que existe o artº 830º do Código Civil”.
Mesmo que entendesse que tal pedido seja viável, bem referiu o Tribunal a quo que a sua procedência “só implica nascimento na esfera jurídica da Ré de uma obrigação de execução de actos necessários à alienação das fracções autónomas dos autos e nascimento na esfera jurídica da Recorrente de um direito de crédito de exigir o cumprimento de obrigação de execução de actos necessários à alienação das fracções autónomas dos autos por parte da Ré, não tendo o efeito de modificar já a titularidade das fracções autónomas dos autos.
  A modificação de titularidade das fracções autónomas dos autos depende de prática dos actos necessários à alienação das fracções autónomas dos autos por parte da Ré. Portanto, o efeito translativo de direito de propriedade só se opera com a prática dos actos necessários à alienação das fracções autónomas dos autos por parte da Ré e não por mero efeito de sentença proferida na acção instaurada pela recorrente contra a Ré”.
A Ré, mesmo for condenada, pode insistir em não praticar os actos de alienação, e neste caso, a Autora não pode obrigá-la fisicamente a fazer através da acção executiva para prestação de facto, pois, no âmbito da execução para prestação de facto, o credor só pode requerer a prestação por outrem se o facto for fungível, a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação e a quantia eventualmente devida a título de sanção pecuniária compulsória (cfr. nº 1 do artº 826º do CPCM).
Face ao expendido e sem necessidade de demais delongas, o recurso não deixará de se julgar improvido.
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IV – DECISÃO
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
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Custas pela Recorrente.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 02 de Março de 2023.


Ho Wai Neng
(Relator)

Tong Hio Fong
(1o Juiz-Adjunto)

Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(2o Juiz-Adjunto)




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903/2022