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Processo nº 93/2022 Data: 04.11.2022
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Autorização de residência na R.A.E.M..
Erro nos pressupostos.



SUMÁRIO

  O “erro nos pressupostos de facto” constitui uma das causas de invalidade do acto administrativo, consubstanciando um vício de violação de lei que configura uma ilegalidade de natureza material, pois é a própria substância do acto administrativo que contraria a lei.
  Tal vício consiste na divergência entre os pressupostos de que o autor do acto partiu para prolatar a decisão administrativa final e a sua efectiva verificação na situação em concreto, resultando do facto de se terem considerado na decisão administrativa factos não provados ou desconformes com a realidade.
  Assim, se o pressuposto (factual) de que o acto recorrido partiu, não se mostra verificado, o mesmo encontra-se inquinado com o vício de “violação de lei” por “erro nos pressupostos de facto”.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 93/2022
(Autos de recurso jurisdicional)
   





ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:




Relatório

1. Em 05.05.2022, e nos Autos de Recurso Contencioso no Tribunal de Segunda Instância registado com o n.° 650/2021 proferiu-se o seguinte veredicto:

“I - RELATÓRIO
A (甲), Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando do despacho do Secretário para a Segurança, datado de 10/06/2021, que indeferiu o seu pedido de autorização de residência na RAEM, veio, em 27/07/2021, interpor o presente recurso contencioso para este TSI, com os fundamentos constantes de fls. 3 a 8, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. A recorrente entende que a decisão recorrida enferma dos vícios de apreciação errada de factos e de aplicação errónea da lei.
2. Dois eram os fundamentos subjacentes à decisão recorrida explicada pela entidade recorrida. Em primeiro lugar, a recorrente não terá vivido com seu marido B. Depois, visto que B se encontra a cumprir pena de prisão, torna-se inviável a finalidade do pedido de autorização de residência, i.e., a reunião familiar. Aliás, nada impede a interessada, ainda que não residente de Macau, de ir ter com seu marido à prisão e trazer-lhe tudo o que é preciso para viver.
3. Quanto ao primeiro fundamento, é de indicar que é verdadeiro o vínculo matrimonial entre a recorrente e seu marido B. Tinham sempre vivido juntos antes da reclusão do B.
4. Já no início de 2013 a recorrente e B viviam juntos. Depois, em Maio de 2013, a recorrente deu-se conta de ser grávida. O casal acreditava que era filho de B.
5. Em seguida, em 08/07/2013, a recorrente casou-se com B. A filha C nasceu em 03/01/2014. Resulta dos indícios cronológicos que a recorrente se casou pela gravidez.
6. Além disso, a filha C tem o apelido de B. Caso o casamento fosse falso, a recorrente, enquanto mãe, não teria desejado que a filha fosse portadora do apelido dum estranho.
7. Constam dos autos uma série de fotos de família da recorrente, B e a filha, bem como fotos de onde a família vivia. Tudo isso é capaz de demonstrar a veracidade do vínculo matrimonial do casal, sendo indícios de vida em comum.
8. Desde que B começou a cumprir pena de prisão no Estabelecimento Prisional de Coloane até Janeiro de 2020, a recorrente foi lá visitá-lo na cadeia por um total de 56 vezes. Muitas vezes trouxe-lhe bens de primeira necessidade e depósitos em numerário que B usasse no Estabelecimento Prisional de Coloane.
9. Se se tratasse de um mero casamento falso, a recorrente não teria de alguma maneira desperdiçado tempo, dinheiro e energia por causa de B; nem B se teria mostrado disposto a receber a recorrente por tantas vezes na cadeira ou aceitar os bens e o dinheiro trazidos por ela.
10. Tudo o acima referido mostra energicamente que a recorrente viveu com seu marido B no passado, e que eles se sustentavam uma ao outro através dos altos e baixos da vida.
11. Então, o entendimento da entidade recorrida, de que não se mostra preenchido o pressuposto previsto pelo artigo 9.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003, pois que a recorrente não terá vivido com B, enferma do vício de apreciação errada de factos.
12. Pedia-se ao Mm.º Juiz anular a decisão recorrida nos termos do art.º 124.º do CPA.
13. Agora do segundo fundamento de facto apresentado pela entidade recorrida, mais uma vez, a recorrente discorda.
14. Antes de tudo, ao pedir reunião familiar, nem a recorrente nem B estava à espera que B fosse parar à prisão.
15. Era só para que o casal e a filha pudessem viver juntos em Macau que se pediu reunião familiar. Além disso, tinha-se em mente mandar a filha a uma escola em Macau, o que era uma expectativa totalmente legítima da recorrente.
16. Além disso, à luz do direito fundamental de família consagrado nos artigos 38.º e 43.º da Lei Básica e nos artigos 1.º a 3.º da Lei n.º 6/94/M – Lei de bases da política familiar, o qual comporta a protecção da família e a tutela da união e da estabilidade familiar.
17. A reunião familiar é uma justificação humanitária. Assim, o casal separado pela distância geográfica se reunirá e passará a ter uma vida em comum.
18. É preciso indicar que a reclusão não coloca em questão a viabilidade da reunião familiar.
19. Uma eventual autorização de permanência (sic – N. da T.) concedida à recorrente facilitará a comunicação e o cuidado entre a recorrente e seu marido preso em Macau, reforçando a afeição entre o casal e a base da família.
20. É portanto errado o entendimento da entidade recorrida, de que o pedido de autorização de permanência (sic – N. da T.) da recorrente não satisfaz a finalidade prevista pelo artigo 9.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003. Ao mesmo tempo, ignorou-se o direito de família da recorrente e de B, juntamente com a sua expectativa legítima de reunião familiar.
21. Pela aplicação errada da lei, rogava-se ao Mm.º Juiz anular a decisão recorrida nos termos do art.º 124.º do CPA.
*
Citada a Entidade Recorrida, o Senhor Secretário para a Segurança veio contestar o recurso com os fundamentos constantes de fls. 21 a 26, tendo formulado as seguintes conclusões:
1) No caso em apreço, recorre-se do despacho de 10 de Junho de 2021 de Sua Excelência o Secretário para a Segurança de indeferimento do pedido de autorização de residência apresentado pela recorrente;
2) Na petição de recurso a recorrente invocava erros na apreciação de factos e na aplicação da lei verificados no despacho recorrido. Então, ao abrigo do art.º 124.º do CPA, é anulável;
3) Segundo a recorrente, o despacho recorrido enferma do vício de apreciação incorrecta de factos pela convicção da inexistente convivência dela com B;
4) Tendo analisado tudo o que constava dos autos administrativos, incluindo a morada declarada pela recorrente e por B, o relatório de investigação do CPSP, os autos de declaração do casal e os seus registos de movimentos fronteiriços, no despacho recorrido deu-se por assente que a recorrente não tinha convivido com B em Macau; nem a Administração podia convencer-se duma vida em comum do casal algures no Interior da China no passado. Não há algum erro na apreciação de factos.
5) A recorrente defendia ainda que o despacho recorrido enfermava do vício de aplicação da lei pela inconformidade com o artigo 9.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003, por considerar inviável a finalidade da recorrente ao apresentar o pedido de autorização de residência, a qual era a reunião com B, bem como por acreditar na inexistência de impedimentos à recorrente, ainda que não residente de Macau, de visitar B e de trazer-lhe bens de primeira necessidade quando fosse preciso.
6) Segundo informam os dados, desde o aprisionamento de B em Novembro de 2017, múltiplas vezes a recorrente foi visitá-lo à prisão, trouxe-lhe artigos e depositou dinheiro em numerário. Como resulta óbvio, o ser ou não residente de Macau não é pressuposto para a recorrente poder ir fazer visitas à prisão de Macau e fornecer bens de primeira necessidade a B, exactamente como aponta o despacho recorrido;
7) Acerca da reunião familiar enquanto finalidade do pedido de autorização de residência, a copiosa jurisprudência da RAEM tem desde sempre entendido que a falta de vida em comum factual do casal em Macau indubitavelmente faz perder todo o sentido ao pedido de autorização de residência por motivos de reunião familiar;
8) Visto que B está a cumprir pena de prisão na RAEM, é naturalmente inviável a reunião com este, i.e., a finalidade invocada pela recorrente no seu pedido de autorização de residência;
9) Não se verifica portanto o erro de aplicação da lei acusado pela recorrente;
10) Dada a inexistência de erros nem na apreciação de factos nem na aplicação da lei, a decisão é livre dos vícios ocasionadores de anulabilidade como entende a recorrente.
***
O Digno. Magistrado do Ministério Público junto do TSI emitiu o douto parecer de fls. 89 a 91, pugnando pelo improvimento do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre analisar e decidir.
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II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade "ad causam".
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS
São os seguintes elementos, extraídos do processo principal e do processo administrativo com interesse para a decisão da causa:
1. A recorrente tornou-se a namorada de B no final do ano 2012. Os dois passaram a viver juntos no início de 2013.
2. Em 08/07/2013, a recorrente casou-se com B de papel passado junto do Departamento de Assuntos Civis de Zhuhai, China. (vd. os autos administrativos, a fls. 42)
3. Depois do casamento, a recorrente vivia com B no domicílio familiar sito no [Endereço(1)], Zhuhai, Guangdong, China (vd. as fotos da família e do domicílio familiar a fls. 11 a 23, 24 a 30 e 67 a 82 dos autos administrativos)
4. Em 03/01/2014, a recorrente deu à luz a filha C em Macau. Acompanhada por B, tratou de registo de nascimento para C junto da Conservatória do Registo Civil da RAEM (vd. os factos assentes n.º 9 e n.º 10 na sentença n.º CR1-18-0368-PCC a fls. 62 dos autos administrativos)
5. Depois do nascimento da filha, a recorrente, B e a filha C viviam juntos no domicílio acima referido em Zhuhai. (vd. as fotos da família e do domicílio familiar a fls. 11 a 23, 24 a 30 e 67 a 82 dos autos administrativos)
6. Para reunir-se com a recorrente em Macau, B pediu às Autoridades competentes do Interior da China cumprir as formalidades para ela vir à RAEM. Abriram-se, em seguida, os procedimentos de comunicação à RAEM e de apreciação do pedido por parte da DSI da RAEM (vd. os factos assentes n.ºs 5 a 7 na sentença n.º CR1-18-0368-PCC a fls. 61v dos autos administrativos)
7. Assim foi até 2017, quando a filha C veio frequentar escola a Macau. Para melhor tomar conta da filha, a recorrente, B e a filha C alojavam-se na fracção sita no [Endereço(2)], Macau. Aos fins-de-semana, voltavam para Zhuhai e passavam o tempo no domicílio familiar.
8. Foi D (irmão mais velho de B) que pediu a E (marido de F, irmã mais velha de B) alugar a fracção acima referida. D deixou a recorrente, B e a filha C habitá-la.
9. Em 10/11/2017, B foi preso por estar envolvido num caso de tráfico de droga. (vd. o facto assente n.º 8 na sentença n.º CR1-18-0368-PCC a fls. 62 dos autos administrativos)
10. Pelo caso de tráfico de droga acima mencionado, B começou a cumprir a pena de prisão de 6 anos de 3 meses, a partir de 11/11/2017. (vd. a Certificado de Reclusão de B a fls. 44 dos autos administrativos)
11. Durante o período que vai de Novembro de 2017 a Janeiro de 2020, foi por um total de 56 vezes que a recorrente visitou o B recluso. (vd. a autorização de visita a fls. 31 e as informações emitidas pelo Director dos Serviços Correccionais em 27/02/2020 sobre as entradas e as saídas da recorrente no estabelecimento prisional a fls. 54 dos autos administrativos)
12. Durante as visitas, a recorrente trazia a B objectos de uso quotidiano para seu uso, segundo as suas necessidades. (vd. a lista dos artigos passados durante as visitas e os recibos de depósito em numerário a fls. 32 a 34v dos autos administrativos)
13. No processo n.º CR1-18-0368-PCC do TJB, em 18/10/2019, B e a recorrente foram absolvidos da acusação do crime de "falsificação de documento" p. e p. pelo art.º 18.º, n.º 2 da Lei n.º 6/2004 por suspeitos de casamento falso. (vd. a sentença n.º CR1-18-0368-PCC a fls. 59 a 64 dos autos administrativos, dada por integralmente reproduzida aqui.)
*
- O despacho recorrido tem o seguinte teor:
DESPACHO
Assunto: pedido de autorização de residência
A interessada: A

A interessada, residente no Interior da China, pediu autorização de residência para reunir-se com o marido.
A interessada pronunciou-se duas vezes sobre o indeferimento intentado pela Administração do seu pedido de autorização de residência. Dá-se por integralmente reproduzida a sua opinião.
De acordo com o Relatório n.º 7910/2017-P.222.03/4G do CPSP constante dos autos, na altura B, marido da interessada, declarava não ter residência fixa em Macau, morando no Interior da China na [Endereço(3)], Zhongshan. A morava em Macau no [Endereço(2)] e no Interior da China no [Endereço(1)] (fase 1), Zhuhai. B confessou não viver com B nem em Macau nem no Interior da China. Além disso, da investigação subsequente realizada pela polícia resultou também que os dois não tinham uma vida em comum em Macau.
O agente policial responsável pela investigação, quando consultado, contou que na altura B agia de maneira normal e respondia bem às perguntas. Não diferia duma pessoa normal. Nem se notava qualquer confusão mental na sua pessoa.
Em Junho de 2020, o CPSP inquiriu separadamente os dois cônjuges requerentes sobre a sua vida em Zhuhai e as circunstâncias concernentes. Os autos de inquirição e o relatório de investigação (dados por integralmente reproduzidos aqui) motivam sérias dúvidas sobre uma precedente vida em comum do casal, quanto mais não seja porque os dois apresentaram respostas totalmente discrepantes a perguntas tais como a divisão de ambientes da casa que os dois terão habitado juntos por mais de 4 anos (ou seja, a residência declarada, i.e., [Endereço(1)] Fase 1, Zhuhai) (B ignorava até a existência duma casa de banho no quarto principal), se os dois moravam no mesmo quarto, se B tinha acompanhado a interessada durante as consultas obstétricas, e se ele tinha tomado conta da filha, e se B, carregando a filha no colo, sentava-se na parte anterior ou posterior do carro particular, pois que não se trata de bagatelas que se esquecem facilmente com o passar do tempo.
De facto, quando à existência ou não duma vida em comum de A e B, nada é mais directo e acreditável que as narrativas dos próprios interessados. Portanto, encontramo-nos em perfeito acordo com o CPSP, segundo o qual não é precisa a audição das testemunhas arroladas pelos interessados durante a segunda audiência.
Por enquanto, B está a cumprir pena de prisão no Estabelecimento Prisional de Coloane.
Dada a falta duma vida em comum do casal interessado na RAEM, não podendo a Administração convencer-se duma sua convivência precedente no Interior da China; além disso, B está a cumprir pena de prisão; revela-se inviável a finalidade invocada pela interessada no seu pedido de autorização de residência, que era a reunião familiar. Ademais, nada impede a interessada, ainda que não residente de Macau, de ir visitar B em cadeia e de fornecer-lhe tudo o que precisa para viver.
Portanto, nos termos do art.º 9.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003, decide-se indeferir-lhe o pedido de autorização de residência.
O Secretário para a Segurança,
WONG SIO CHAK
Aos 10 de Junho de 2021
***
IV –FUNDAMENTOS
A propósito das questões suscitadas pelo Recorrente, o Digno. Magistrado do MP junto deste TSI teceu as seguintes doutas considerações:
“(…)
1.
A, melhor identificada nos autos, veio interpor recurso contencioso do acto administrativo datado de 10 de Junho de 2021 praticado pelo Secretário para a Segurança que indeferiu o seu pedido de autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM), pedindo a respectiva anulação.
A Entidade Recorrida apresentou contestação na qual concluiu pela improcedência do recurso.

2.
(i)
A Recorrente requereu a autorização de residência na RAEM para se poder reunir ao seu marido, B. Tal autorização foi indeferida com base, essencialmente, em dois fundamentos. Em primeiro lugar, a Administração considerou que a Recorrente e o seu marido nunca coabitaram entre si, nem no Interior da China, nem na RAEM. Além disso, e este é o segundo fundamento do acto recorrido, ponderando que B se encontra a cumprir pena de prisão no Estabelecimento Prisional de Coloane, a Administração entendeu que a finalidade da reunião familiar não tinha viabilidade enquanto fundamento daquela autorização.
(ii)
Começa a Recorrente por imputar ao acto recorrido o vício do erro nos pressupostos de facto, alegando que manteve uma vida em comum com o B.
Cremos, no entanto, e salvo o devido respeito, que dos elementos recolhidos pela Administração no decurso do procedimento administrativo que culminou com o acto de indeferimento agora impugnado, resulta, até abundantemente, que, não obstante o vínculo jurídico do casamento que existe entre ambos, a Recorrente e o B não mantiveram, seja no Interior da China, seja em Macau, a verdadeira comunhão de vida que caracteriza o matrimónio.
Por outro lado, os depoimentos das testemunhas inquiridas pelo Tribunal não lograram, em nosso modesto entender, constituir contraprova com força bastante para abalar aquela conclusão, do mesmo modo não se mostrando suficiente para esse efeito a sentença de absolvição da prática do crime de falsificação de documento proferida no processo n.º CR1-18-0368-PCC em que foram arguidos B e a Recorrente.
Assim, demonstrando-se que a Recorrente, apesar do vínculo conjugal, não coabitou nem coabita com o seu marido, não enferma o acto do erro nos pressupostos de facto invocado pela Recorrente.
(iii)
O segundo fundamento do presente recurso consiste num alegado erro da Administração na aplicação da lei ao ter considerado que o pedido de autorização de residência da Recorrente não preenche a finalidade prevista no artigo 9.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003.
Salvo o devido respeito, não nos parece.
A norma do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, nos termos da qual, «o Chefe do Executivo pode conceder autorização de residência na RAEM», é uma norma de competência cuja configuração estrutural que não é frequente, uma vez que lhe falta a parte da previsão ou da hipótese.
Na verdade, em geral, as normas e as normas de competência administrativa em particular, por isso que são normas com programação condicional, têm uma estrutura que comporta uma hipótese ou previsão na qual se estabelecem os pressupostos, ou seja, os factos da vida real e as situações jurídicas cuja ocorrência vai desencadear a intervenção administrativa e uma estatuição na qual se indica o conteúdo dessa intervenção, aquilo que a Administração pode ou deve fazer em face da situação verificada (cfr. PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual de Direito Administrativo, Volume I, Coimbra, 2019, p. 173).
Ora, como dissemos, à norma do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003 falta a previsão dos pressupostos cuja verificação pode dar lugar à intervenção administrativa ali prevista, ou seja, à concessão da autorização de residência por parte do Chefe do Executivo. Estamos, pois, perante uma norma de competência que confere aquilo a que alguma doutrina designa de «discricionariedade aberta», uma vez que através dela, o Chefe do Executivo é investido no poder de proceder a uma «determinação substancial do interesse público», uma vez que, embora nela tal não esteja expressamente dito, está, porém, implícito que aquele órgão administrativo pode, por razões de interesse público ou de conveniência, conceder a autorização de residência em Macau. Mas a substanciação desse interesse é deferida, integralmente, à Administração. É o Chefe do Executivo que, segundo o seu critério, tem o poder de determinar ou identificar a presença de um interesse, de uma razão de mérito ou de oportunidade e, na sequência disso, caso assim o entenda, conceder a autorização de residência a quem a tenha requerido (os «aspectos» referidos no n.º 2 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003 não constituem verdadeiros pressupostos justificativos da intervenção administrativa em causa. Esta discricionariedade aberta, embora muito próxima da chamada «discricionariedade livre», não se confunde com esta e por isso, não obstante a sua elevada amplitude, o seu exercício não deixa de estar sujeito a critérios jurídicos e, portanto, nessa medida, a algum controlo judicial. Neste mesmo sentido, acolhendo o nosso entendimento e a propósito, justamente da norma do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, veja-se o Acórdão do Tribunal de Última Instância de 19.03.2021, processo n.º 8/2021).
No caso em apreço, e na parte concretamente questionada pela Recorrente, a Administração entendeu ser de indeferir o pedido de autorização de residência por considerar que, dada a circunstância de o B se encontrar a cumprir pena de prisão no Estabelecimento Prisional de Coloane, a reunião familiar não teria viabilidade enquanto fundamento substantivo da concessão da autorização de residência, nada impedindo aquela, no entanto, de continuar a efectuar visitas, se assim o entender, sem que para isso se mostre necessária a falada autorização.
Significa isto, se bem interpretamos o acto administrativo recorrido, que, embora a finalidade invocada pela Recorrente para fundamentar os pedidos de autorização de residência tenha sido o reagrupamento familiar, a Administração considerou que, estando demonstrando no procedimento administrativo que o marido da requerente se encontra a cumprir pena de prisão, nenhum interesse público, nenhuma razão de mérito ou conveniência existe para justificar a concessão da autorização de residência na RAEM com tal fundamento.
Ora, como se sabe, a intervenção sindicante do Tribunal relativamente a este juízo administrativo cinge-se à verificação da observância dos chamados critérios jurídicos do exercício da discricionariedade, nomeadamente, os princípios gerais da actividade administrativa e em especial os princípios da imparcialidade e da proporcionalidade e bem assim o respeito pelos direitos fundamentais dos interessados.
Tendo isto presente, estamos em crer que o acto recorrido não infringiu tais critérios, não se mostrando ao contrário do que foi alegado no artigo 47.º da petição inicial do recurso, que o mesmo, de forma intoleravelmente desproporcionada ou parcial, tenha afectado direitos fundamentais da Recorrente ou sequer do seu filho ou de B, nomeadamente aqueles que estão consagrados nos artigos 38.º e 43.º da Lei Básica e nos artigos 1.º a 3.º da Lei n.º 6/94/M, de 1 de Agosto.
Além disso, porque estamos no âmbito do exercício de um poder discricionário, é sabido que não cabe ao Tribunal sindicar o mérito da decisão administrativa que considerou não se justificar uma autorização de residência com fundamento em reagrupamento familiar numa situação em que um dos cônjuges se encontra a cumprir pena de prisão. É à Administração e só a ela que, no exercício de valorações próprias e autónomas, compete avaliar, tendo em vista a concreta prossecução do interesse público, se, em tal situação, se justifica ou não autorizar a residência. Por isso, também não pode acolher-se, em nosso modesto entender, a invocação do vício de erro na interpretação da alínea 3) do n.º 2 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003 que foi feita pela Recorrente.

3.
Deve, pois, face ao exposto, ser julgado improcedente o presente recurso contencioso.
É este, salvo melhor opinião, o parecer do Ministério Público.”

*
Quid Juris?
Ora, a leitura que o Digno. Magistrado do MP fez dos factos tem a sua lógica, só que, globalmente analisados os factos considerados provados, a conclusão a que chegamos será diferente, pois, de entre os outros, importa destacar os seguintes elementos provados:
“(…)
2. Em 08/07/2013, a recorrente casou-se com B de papel passado junto do Departamento de Assuntos Civis de Zhuhai, China. (vd. os autos administrativos, a fls. 42)
3. Depois do casamento, a recorrente vivia com B no domicílio familiar sito no [Endereço(1)], Zhuhai, Guangdong, China (vd. as fotos da família e do domicílio familiar a fls. 11 a 23, 24 a 30 e 67 a 82 dos autos administrativos)
4. Em 03/01/2014, a recorrente deu à luz a filha C em Macau. Acompanhada por B, tratou de registo de nascimento para C junto da Conservatória do Registo Civil da RAEM (vd. os factos assentes n.º 9 e n.º 10 na sentença n.º CR1-18-0368-PCC a fls. 62 dos autos administrativos)
5. (…)
6. Para reunir-se com a recorrente em Macau, B pediu às Autoridades competentes do Interior da China cumprir as formalidades de deslocação para ela. Abriram-se, em seguida, os procedimentos de comunicação à RAEM e de apreciação do pedido por parte da DSI da RAEM (vd. os factos assentes n.ºs 5 a 7 na sentença n.º CR1-18-0368-PCC a fls. 61v dos autos administrativos)
7. Assim foi até 2017, quando a filha C veio frequentar escola a Macau. Para melhor tomar conta da filha, a recorrente, B e a filha C ficaram alojavam-se na fracção sita no [Endereço(2)], Macau. Aos fins-de-semana, voltavam para Zhuhai e passavam o tempo no domicílio familiar.
8. (…)
9. Em 10/11/2017, B foi preso por estar envolvido num caso de tráfico de droga. (vd. o facto assente n.º 8 na sentença n.º CR1-18-0368-PCC a fls. 62 dos autos administrativos)
10. Pelo caso de tráfico de droga acima mencionado, B começou a cumprir a pena de prisão de 6 anos de 3 meses, a partir de 11/11/2017. (vd. a Certificado de Reclusão de B a fls. 44 dos autos administrativos)
11. Durante o período que vai de Novembro de 2017 a Janeiro de 2020, foi por um total de 56 vezes que a recorrente visitou o B recluso. (vd. a autorização de visita a fls. 31 e as informações emitidas pelo Director dos Serviços Correccionais em 27/02/2020 sobre as entradas e as saídas da recorrente no estabelecimento prisional a fls. 54 dos autos administrativos)
12. Durante as visitas, a recorrente trazia a B objectos de uso quotidiano para seu uso, segundo as suas necessidades. (vd. a lista dos artigos transmitidos durante as visitas e os recibos de depósito em numerário a fls. 32 a 34v dos autos administrativos)
13. No processo n.º CR1-18-0368-PCC do TJB, em 18/10/2019, B e a recorrente foram absolvidos da acusação do crime de "falsificação de documento" p. e p. pelo art.º 18.º, n.º 2 da Lei n.º 6/2004 por suspeitos de casamento falso. (vd. a sentença n.º CR1-18-0368-PCC a fls. 59 a 64 dos autos administrativos, dada por integralmente reproduzida aqui.)
(…)”
Perante este quadro factual, principalmente a decisão de absolvição da prática pelo cônjuge (B) da Recorrente de um crime de falsificação de documentos (por motivo de casamento falso), é de admitir que existem relações matrimoniais entre a Recorrente e o cônjuge (B) por força do artigo 579º do CPC, à Entidade Recorrida cabe alegar e provar a inexistência de tais relações. O que não foi feito, aliás, as provas carreadas pela Entidade Recorrida não são suficientes para nos convencer de que inexista tal casamento, subsistindo a presunção decorrente do normativo citado. Eis também uma questão da convicção do julgador.
Por outro lado, o depoimento prestado pelas testemunhas (ex. a irmã do cônjuge (B) da Recorrente) revela que a Recorrente tem sido tratada pelos familiares do cônjuge como verdadeira membro da família e nas festividades chinesas havia convívio entre a Recorrente e os familiares, o que reforça a nossa ideia de que se mantém a relação matrimonial entre a Recorrente e o cônjuge, não obstante este estar a cumprir uma pena de prisão, existindo assim um erro nos pressupostos de facto quando a Entidade Recorrida decidiu não renovar o BIRM da Recorrente, alegando a inexistência de relação matrimonial, o que é razão bastante para anular a decisão recorrida.
*
Síntese conclusiva:
Perante a sentença de absolvição da prática do crime de falsificação de documento (por motivo de alegado casamento falso) proferida num processo-crime, em que foram arguidos o cônjuge e a Recorrente, e, atendendo à presunção prevista no artigo 579º do CPC, é de admitir a existência de vínculo matrimonial entre a Recorrente e o seu cônjuge, já que os indícios carreados pela Entidade Recorrida não são bastantes para ilidir tal presunção, ao decidir não renovar o BIRM da Recorrente, alegando que esta não tinham comunhão de vida com o seu cônjuge, há assim erro nos pressuposto de facto, o que constitui razão bastante para anular a decisão recorrida.
(…)”; (cfr., fls. 95 a 102 e 4 a 25 do Apenso que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformada com o assim decidido, traz a entidade administrativa o presente recurso, onde, em alegações, produz as seguintes conclusões:

“1) Indicou o acórdão recorrido que, na tomada de decisão, a entidade recorrida incorreu em erro nos pressupostos de facto, e por conseguinte, anulou a decisão recorrida.
2) Em princípio, o acórdão recorrido entende que a recorrente e B mantinham ainda a relação conjugal, pelo que o que alegou a entidade recorrida na decisão que não existe a relação conjugal incorreu em erro nos pressupostos de facto.
3) Na decisão, a entidade recorrida, desde o início até ao fim, não reconheceu se a relação conjugal entre a recorrente e B não fosse real ou não existisse, e no despacho recorrido, nunca a considerou como fundamento para a decisão de indeferimento do pedido de autorização de residência da recorrente.
4) Por isso, evidentemente não procede o que considerou o acórdão recorrido que a entidade recorrida indeferiu o pedido de autorização de residência formulado pela recorrente devido à não existência da relação conjugal entre a recorrente e B, e pelo que concluiu que a decisão recorrida incorreu em erro nos pressupostos de facto.
5) Além disso, face aos factos n.ºs 3, 5 e 7 dados como provados pelo acórdão recorrido, depois de sintetizados e analisados os elementos constantes do processo administrativo, bem como os depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento, entendemos que tais factos não devem ser considerados como provados”; (cfr., fls. 112 a 120 e 27 a 38 do Apenso).

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Após contra-alegações da agora recorrida a pedir a improcedência do recurso, (cfr., fls. 123 a 127-v), e remetidos os autos a esta Instância, foram os mesmos com vista ao Exmo. Representante do Ministério Público que em douto Parecer considera que o recurso merece provimento; (cfr., fls. 140 a 140-v).

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Adequadamente processados os autos, e com os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, vieram à conferência.

Passa-se a decidir.

Fundamentação

2. Como se colhe do que até aqui se deixou relatado, vem a entidade administrativa recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 05.05.2022, (que atrás se deixou integralmente transcrito).

Em apertada síntese que nos se apresenta adequada, entendeu-se no dito Acórdão que “genuína” era a “relação matrimonial” (e “vida em comum”) da então recorrente A com B, “existindo assim um erro nos pressupostos de facto quando a Entidade Recorrida decidiu não renovar o BIRM da Recorrente, alegando a inexistência de relação matrimonial, o que é razão bastante para anular a decisão recorrida”, (cabendo aqui notar que certamente por lapso manifesto se referiu ao “BIRM da Recorrente”, certo sendo que em causa estava um “pedido de autorização de residência”).

Atenta a motivação e conclusões do presente recurso, (atrás transcritas), dois são os argumentos invocados e apresentados à apreciação e decisão deste Tribunal de Última Instância.

O primeiro, afirmando-se que “a entidade recorrida, desde o início até ao fim, não reconheceu se a relação conjugal entre a recorrente e B não fosse real ou não existisse, e no despacho recorrido, nunca a considerou como fundamento para a decisão de indeferimento do pedido de autorização de residência da recorrente”, (cfr., concl. 3ª e 4ª), e, o segundo, considerando-se que “factos n.ºs 3, 5 e 7 dados como provados pelo acórdão recorrido, (…), não devem ser considerados como provados”; (cfr., concl. 5ª).

Aqui chegados, identificada a “razão da decisão recorrida” e os “motivos de discordância” da entidade administrativa agora recorrente, vejamos.

Nos termos do art. 152° do C.P.A.C.:

“O recurso dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância apenas pode ter por fundamento a violação ou a errada aplicação de lei substantiva ou processual ou a nulidade da decisão impugnada”.

E, em conformidade com o assim prescrito, cremos que não se pode acolher o que se alega relativamente aos “factos provados n°s 3, 5 e 7”.

Na verdade, em relação a esta “matéria”, e percorrida toda a “motivação” de recurso, tão só se encontra esta “passagem” que lhe diz respeito e que se passa a transcrever:

“ 17.º
Além disso, segundo os elementos constantes do processo administrativo, embora os dois respectivamente tenham os registos de entrada e saída por várias vezes, desde 1 de Janeiro de 2013 (entre os quais a recorrente tinha 881 vezes e B 2935 vezes), no período de 4 anos contados desde o casamento dos dois até ao cumprimento da pena de prisão de B, existem apenas 23 registos de entrada e saída de Macau dos dois em conjunto (segundo o cálculo baseado na entrada e saída em 5 minutos de intervalo) e só existem 7 vezes que os dois utilizaram a mesma passagem (vd. fls. 153 do processo administrativo), tais elementos, evidentemente, não correspondem ao que todas as vezes B acompanhou a recorrente e sua filha para ter os cuidados de saúde infantil em Macau e quando foram concluídos, todos regressaram juntamente de Macau para Zhuhai, tal como declarado pela recorrente.
18.º
Com base nisso, entendemos que os factos n,ºs 3, 5 e 7 dados como provados pelo acórdão recorrido não devem ser considerados como provados”; (cfr., fls. 118 a 119 e 36 e 37 do Apenso).

Ora, sem prejuízo do muito respeito devido, cabe dizer que o assim alegado não consubstancia nenhum dos “fundamentos de recurso” enunciados no transcrito art. 152° do C.P.A.C., não se podendo também olvidar que, no caso dos autos, o Tribunal a quo procedeu à inquirição de 4 testemunhas pela ora recorrida arroladas, (cfr., fls. 79 a 80), dúvidas não parecendo haver assim que na decisão da “matéria” em questão não deixou de ponderar nos depoimentos prestados.

Dest’arte, vista se nos apresentando a solução para a dita “impugnação da matéria de facto”, e, assim, sendo a mesma de se manter na sua íntegra, passemos a apreciar se incorreu, (ou não), a entidade administrativa, ora recorrente, no pelo Tribunal de Segunda Instância detectado “erro nos pressupostos de facto”.

Pois bem, sobre a referida “questão” este Tribunal de Última Instância já teve oportunidade de consignar o que segue:

“Como é sabido, o “recurso contencioso”, é o meio (processual) próprio para obter o reconhecimento judicial da existência de (todos os) vícios que possam inquinar um acto administrativo lesivo, e, assim, obter a sua anulação contenciosa; (cfr., art. 21° do C.P.A.C.).
Por sua vez, no âmbito da temática dos “vícios do acto administrativo”, tem-se entendido, que estes se identificam com os (tradicionais vícios) de “usurpação de poder”, “incompetência”, “vício de forma”, “desvio de poder” e “violação de lei”.
O conceito de “violação de lei”, não abarca toda e qualquer violação da lei: com efeito, por definição, qualquer vício do acto administrativo implica uma violação da lei (no sentido amplo de “bloco de legalidade”).
Há um critério positivo e um critério negativo de identificação do vício de violação de lei.
O conteúdo essencial do vício de violação de lei respeita às ilegalidades objectivas materiais dos actos administrativos: o vício de violação de lei é, assim, aquele em que incorrem os actos administrativos que desrespeitem requisitos de legalidade relativos aos pressupostos de facto, ao objecto e ao conteúdo.
O vício de violação de lei é também doutrinalmente empregue para garantir o caracter fechado da teoria dos vícios do acto administrativo.
Nestes termos, padecem de “violação de lei” os actos administrativos (ilegais) cuja ilegalidade não se possa reconduzir a qualquer dos outros vícios, tendo, portanto, este vício, “carácter residual”.
Constituindo o “erro nos seus pressupostos” um dos vícios de violação de lei que conduzem à anulação do acto administrativo, e competindo ao recorrente alegar e provar no recurso os factos integrativos do erro, cabe ao Tribunal, face a todos elementos legalmente admissíveis de que dispõe, formular um juízo sobre a conformidade com a realidade dos pressupostos de facto que a Administração teve em conta aquando da prolação do acto impugnado.
O “erro nos pressupostos de facto” constitui assim uma das causas de invalidade do acto administrativo, consubstanciando um vício de violação de lei que configura uma ilegalidade de natureza material, pois é a própria substância do acto administrativo que contraria a lei.
Tal vício consiste na divergência entre os pressupostos de que o autor do acto partiu para prolatar a decisão administrativa final e a sua efectiva verificação na situação em concreto, resultando do facto de se terem considerado na decisão administrativa factos não provados ou desconformes com a realidade.
Assim, se o pressuposto (factual) de que o acto recorrido partiu, não se mostra verificado, o mesmo encontra-se inquinado com o vício de “violação de lei” por “erro nos pressupostos de facto”.
Adequado é desta forma dizer-se que:
- o «erro sobre os pressupostos de facto», traduz-se na divergência entre os factos que a entidade administrativa teve em conta para decidir como decidiu, e a sua real ocorrência; e que,
- o «erro nos pressupostos de direito», traduz-se na inadequação do regime jurídico e normas jurídicas aplicadas pela entidade administrativa à base factual convocada”; (cfr., v.g., os Acs. de 31.07.2020, Proc. n.° 67/2020, de 23.07.2021, Proc. n.° 71/2021, de 24.09.2021, Proc. n.° 109/2021 e de 28.01.2022, Proc. n.° 137/2021, podendo-se sobre esta matéria ver também o Ac. do S.T.J. de Portugal de 21.12.2021, Proc. n.° 11/21).

In casu, o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância entendeu que o referido “erro” existia porque em face da “matéria de facto” que veio a dar como provada, “genuína” era a “relação matrimonial” e “vida em comum” entre a então recorrente, A, e (o seu cônjuge) B.

E considerando assim que na decisão administrativa recorrida se tinha dado tal “relação” como inexistente, concluiu pelo aludido “erro nos pressupostos de facto”.

Diz-se agora em sede do presente recurso que “a entidade recorrida, desde o início até ao fim, não reconheceu se a relação conjugal entre a recorrente e B não fosse real ou não existisse, e no despacho recorrido, nunca a considerou como fundamento para a decisão de indeferimento do pedido de autorização de residência da recorrente”; (cfr., concl. 3ª).

Porém, e com o devido respeito, afigura-se-nos haver equívoco e que do teor do “Despacho” em questão outra realidade resulta.

Com efeito, aí afirmou-se que “da investigação subsequente realizada pela polícia resultou também que os dois não tinham uma vida em comum em Macau” e que os autos “motivam sérias dúvidas sobre uma precedente vida em comum do casal”.

Ora, nesta conformidade, afigura-se-nos efectivamente existente o assinalado “erro”, motivos não havendo para se censurar o Acórdão recorrido.

Decisão

3. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Sem tributação.

Registe e notifique.

Macau, aos 04 de Novembro de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

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