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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso laboral
N.º 31 / 2008

Recorrente: A
Recorrido: B







   1. Relatório
   B instaurou uma acção de processo civil do trabalho comum contra a A, pedindo que esta seja condenada a pagar ao autor certa quantia em dinheiro por violação dos seus direitos a descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios.
   No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção peremptória de prescrição invocada pela ré, de que esta interpôs recurso.
   Afinal, o Tribunal Judicial de Base julgou a acção improcedente com a absolvição da ré do pedido por procedência da excepção peremptória da existência da remissão das dívidas laborais da ré por parte do autor.
   Desta sentença recorreu o autor para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.º 143/2008, foi concedido provimento ao recurso final do autor, revogando a decisão recorrida de absolvição da ré do pedido, e declarou que seja necessário conhecer do mérito do recurso intercalar da ré.
   Deste acórdão vem agora a ré recorrer para este Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
   - O douto acórdão recorrido violou os art.ºs 5.º e 6.º, de ambos do RJRT, conquanto a interpretação do princípio do tratamento mais favorável não tem cabimento no caso concreto.
   - A declaração que consubstanciou uma remissão de créditos / de dívida foi emitida já depois de a relação contratual entre o autor e a ré estar extinta, pelo que não se trata de qualquer “regulamentação normativa atinente às condições de trabalho”.
   - O preceito legal contigo no art.º 6.º do RJRT não tem aplicação ao caso concreto.
   - No caso da remissão de créditos laborais, não se consagrou qualquer imperatividade das normas laborais.
   - Sempre se aplicará ao caso concreto o disposto no art.º 854.º do Código Civil.
   Pedindo que seja julgado procedente o recurso, revogando a decisão recorrida.
   
   O recorrido não apresentou resposta.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Matéria de facto
   Foram considerados provados os seguintes factos pelo Tribunal Judicial de Base que não forma alterados pelo Tribunal de Segunda Instância:
   “A ré tem por objecto social a exploração de jogos de fortuna ou azar, a indústria hoteleira, de turismo, transportes aéreos, marítimos e terrestres, construção civil, operações em títulos públicos e acções nacionais e estrangeiros, comércio de importação e exportação.
   A ré foi concessionária, até 31 de Março de 2002, de uma licença de exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna e azar ou outros, em casinos.
   Para levar a cabo o seu escopo, designadamente na área dos casinos, a ré contrata com pessoas individuais a fim de exercerem a actividade de croupier, como foi o caso do autor.
   Em 11 de Novembro de 1964, o autor iniciou uma relação laboral com a ré mediante retribuição por parte desta exercendo as funções de croupier até 21 de Julho de 2002, data em que passou a trabalhar para a SJM.
   O horário de trabalho do autor foi sempre fixado pela ré, em função das suas necessidades, por turnos diários, em ciclos de três dias, num total de 8 horas, alternadas de 4 em 4 horas, existindo apenas o período de descanso de 8 horas diárias durante dois dias e um período de 16 horas de descanso no terceiro dia.
   A retribuição do autor tinha uma componente fixa, a qual foi de MOP$4.10 desde o início da relação laboral e até 30 de Junho de 1989, de HKD$10,00 desde 1 de Julho de 1989 até 30 de Abril de 1995 e de HKD$15.00 desde 1 de Maio de 1995 até 20 de Julho de 2002.
   Além disso, o autor, ao longo do período em que se manteve a relação laboral com a ré, recebeu uma quota-parte, variável, do total das gorjetas entregues pelos clientes da ré a todos os seus trabalhadores e que eram distribuídas, de dez em dez dias, pelos mesmos de acordo com a categoria profissional a que pertenciam.
   Entre os anos de 1984 e 2002, o autor recebeu, ao serviço da ré, os seguintes rendimentos anuais:
   1984 - MOP$116,618.00
   1985 - MOP$123,085.00
   1986 - MOP$120,442.00
   1987 - MOP$138,810.00
   1988 - MOP$145,131.00
   1989 - MOP$164,869.00
   1990 - MOP$190,180.00
   1991 - MOP$179,714.00
   1992 - MOP$191,781.00
   1993 - MOP$198,302.00
   1994 - MOP$215,365.00
   1995 - MOP$228,105.00
   1996 - MOP$221,679.00
   1997 - MOP$205,253.00
   1998 - MOP$190,762.00
   1999 - MOP$169,994.00
   2000 - MOP$176,163.00
   2001 - MOP$178,629.00
   2002 - MOP$186,046.00
   O autor só auferia retribuição quando prestava trabalho efectivo.
   No dia 23 de Julho de 2003, o autor subscreveu a declaração cujo teor consta de fls. 71, com o seguinte teor na versão portuguesa:
   ‘Eu, B, titular do BIR n.° -/------/-, recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$29.790,10 da A1, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a A1.
   Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a A1 subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à A1, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.’
   Tal declaração foi aceite pela ré.
   Além da quantia referida na alínea anterior, o autor recebeu da ré a quantia de MOP$14,895.05.
   Desde o início da relação entre autor e ré e até à sua cessação, nunca a ré autorizou a autor a gozar um único dia de descanso semanal.
   Nem lhe pagou qualquer compensação monetária pelo trabalho prestado nos dias de descanso semanal.
   Durante o mesmo período, nunca a ré autorizou o autor a gozar o período de descanso anual.
   Nem nunca lhe pagou a compensação pecuniária pelo trabalho prestado no período de descanso anual.
   Durante o tempo em que durou a relação entre autor e ré, esta nunca autorizou que o autor gozasse descanso nos feriados obrigatórios.
   Nem lhe pagou qualquer compensação pecuniária pelo trabalho prestado nos dias de feriado obrigatório.
   Quando assinou a declaração acima referida, o autor trabalhava para a SJM.
   Pessoal dirigente e outros trabalhadores da A1 transitaram para a SJM.”
   
   
   2.2 Validade da declaração do trabalhador. Princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. Vício da vontade
   A recorrente considera que o acórdão recorrido padece da nulidade por errada interpretação e aplicação do art.º 6.º do Regime Jurídico das Relações de Trabalho (Decreto-Lei n.º 24/89/M), entendendo que tal norma se aplica apenas no período em que a relação laboral está ainda em vigor e a remissão ocorreu já após a sua vigência e não se relaciona com as condições de trabalho, pelo que tal norma não tem aplicação no presente caso.
   
   A questão suscitada, a proceder, configura um erro de julgamento e não a nulidade da sentença.
   
   Foi aceite no acórdão recorrido de que se está formalmente perante uma remissão de dívida corporizada na declaração emitida pelo autor. Mas entende que tal contrato de remissão não é válido tendo em conta o disposto no art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, por violação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador nele consagrado. E invocou ainda o art.º 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M para reforçar a sua tese.
   
   Segundo os factos assentes, o recorrido trabalhou para a ré de 1964 a 21 de Julho de 2002, data em que passou a trabalhar para a C. Um ano depois, o recorrido emitiu a declaração em questão em que declarou que recebia voluntariamente da ré a quantia de MOP$29.790,10 a título de prémio de serviço, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a A1. Mais declarou que nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a ré subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é exigível, por qualquer forma, à mesma empresa.
   
   Dispões assim o art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M:
   “São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei.”
   
   Está consagrado neste artigo o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador no sentido de que as normas convencionais prevalecem sobre as normas legais quando aquelas estabelecem condições de trabalho não menos favoráveis que estas.
   Tal norma refere às condições de trabalho a ser observadas durante a vigência da relação laboral. Ao passo que o teor da declaração emitida pelo recorrido não se relaciona com as condições de trabalho, mas antes declarações negociais sobre a disposição de créditos laborais, pelas quais o recorrido declarou que ter recebido determinada quantia pecuniária devida pela relação laboral já extinta e mais nada ter a receber da antiga entidade patronal.
   Assim, o referido art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M é inaplicável ao presente caso.
   
   É natural que haja outras disposições legais com objectivo de proteger a efectivação dos direitos de trabalhador, tal como o disposto no art.º 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, diploma que estabelece o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, que foi referido no acórdão recorrido.
   Apesar de ter finalidade semelhante ao art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, não se pode perder de vista que cada norma tem o seu campo de aplicação e na concretização do direito num caso concreto deve atender estritamente às normas que regulam exactamente a questão a resolver. É manifesto que cada um dos dois diplomas legais tem o seu próprio âmbito de aplicação, de modo que as disposições do Decreto-Lei n.º 40/95/M que regula as matérias de acidentes de trabalho e doenças profissionais são insusceptíveis de justificar a solução a dar ao presente caso relacionado com a disposição de créditos laborais derivados duma relação de trabalho que, entretanto, já deixou de vigorar.
   
   Cabe referir que o autor, na sua resposta à excepção peremptória de remissão de créditos invocada pela ré, chegou a alegar factos tendentes a demonstrar que sofreu constrangimento inibidor da manifestação livre da vontade ao emitir a declaração por causa da relação entre a A1 e a C, com a qual mantém relação laboral a partir de Julho de 2002.
   No entanto, a questão do vício da vontade conducente à invalidade da declaração não procede no presente caso, simplesmente, entre outra causa, por não ter sido provado no julgamento o quesito (n.º 8-B) sobre o vício na formação da vontade do autor ao emitir a declaração em causa (cfr. despacho a fls. 277 verso).
   
   
   2.3 Natureza jurídica da declaração e os seus efeitos
   Nos termos da declaração do recorrido, este declarou que recebia uma prestação pecuniária e que não subsistia mais nenhum direito decorrente da relação de trabalho com a ré.
   Não parece que fosse uma remissão do recorrido.
   Segundo Antunes Varela:
   “A obrigação extingue-se sem chegar a haver prestação.
   Na remissão é o próprio credor que, com a aquiescência embora do devedor, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse, que a lei lhe conferia.”1
   
   Remitir significa perdoar.
   Para Menezes Leitão, a remissão “consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida. Efectivamente, o credor, tendo naturalmente direito a exigir a prestação do devedor, pode, com o acordo deste, abdicar desse direito, determinando a extinção da dívida, sem que ocorra a realização da prestação.”2
   
   Na realidade, o recorrido declarou que recebeu uma prestação pecuniária. Nada resulta, nem do teor da declaração, nem dos articulados, que o recorrido pretendia remitir, ou seja, perdoar a dívida laboral da ré, total ou parcialmente.
   
   Trata-se mais de uma quitação, pois a quitação é uma prova de cumprimento da obrigação entregue pelo credor a quem cumpre a obrigação (art.º 776.º do Código Civil).
   Mas é uma quitação complexa cujo conteúdo excede a simples declaração do credor de ter recebido uma prestação como satisfação do seu crédito, fenómeno que não deixa de ser tratado na doutrina:
   “A quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit Civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”3
   Vaz Serra, no estudo que precedeu à elaboração do anteprojecto do Código Civil de 1966, considera que a quitação pode significar uma remissão da dívida, ou seja, o credor quer remitir a dívida sob a forma de quitação, quando se prove que o devedor sabia que a dívida não estava extinta e que a quitação não foi passada na esperança de um pagamento. E pode significar também um reconhecimento da inexistência da dívida. Também aqui o reconhecimento não se conclui apenas da quitação, que o não declara. Portanto, a remissão ou o reconhecimento negativo da dívida não são de presumir, devendo resultar, pelo menos, das circunstâncias, dado que em regra, a quitação não é passada com essa finalidade.4
   
   E segundo o ensinamento de Antunes Varela, o reconhecimento negativo de dívida é o negócio declarativo pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe, assente sobre a convicção declarada da inexistência da obrigação.5
   
   O recorrido não alegou nem resulta do teor da declaração que pretendia perdoar o crédito laboral à ré, por isso não é de considerar a declaração como remissão concedida na forma de quitação.
   Mas declarou que recebeu uma determinada quantia da A1 e “nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a A1 subsiste”.
   Entendemos que se trata de uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
   
   O reconhecimento negativo de dívida visa certificar a efectiva inexistência da dívida, para pôr termo a uma situação de incerteza acerca da existência do crédito, tornado certo o que era incerto. Para tanto, o credor reconhece que a dívida não existe. O efeito deste reconhecimento é que a dívida se extingue, se acaso existia.6
   Assim, tem como consequência jurídica da declaração a extinção direito de crédito laboral do recorrido contra a recorrente.
   Bem andou o Tribunal Judicial de Base em decidir absolver a recorrente do pedido e, em consequência, deve ser revogado o acórdão recorrido e é prejudicado o conhecimento do recurso intercalar interposto pela ora recorrente.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância para ficar a subsistir a sentença do Tribunal Judicial de Base que absolveu a ré do pedido.
   Custas nesta e na segunda instância pelo autor.
   
   Aos 17 de Dezembro de 2008




Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. II, Almedina, Coimbra, 7ª ed., 1999, p. 243.
2 Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, Coimbra, 4ª ed., 2006, p. 219.
3 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 3ª ed., 1986, p. 40
4 Vaz Serra, Do cumprimento como modo de extinção das obrigações, in BMJ, n.º 34, p. 169 e 175.
5 Antunes Varela, obra citada, p. 252.
6 Vaz Serra, Remissão, reconhecimento negativo de dívida e contrato extintivo da relação obrigacional bilateral, in BMJ, n.º 43, p. 79 e 80.
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Processo n.º 31 / 2008 13