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Processo nº 115/2022
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR4-21-0050-PCC do 4° Juízo do Tribunal Judicial de Base, e por Acórdão de 18.02.2022, julgou-se parcialmente procedente o pedido de indemnização civil aí enxertado, fixando-se a “culpa” pelo acidente dos autos em 30% para o arguido A (甲), e em 70% para o ofendido (demandante) B (乙), condenando-se a demandada civil “C”, (“丙”), a pagar a quantia total de MOP$227.449,62 ao referido demandante; (cfr., fls. 420 a 437 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Em sede do recurso que do assim decidido o referido demandante interpôs para o Tribunal de Segunda Instância, veio-se a proferir Acórdão de 30.06.2022, (Proc. n.° 372/2022), com o qual se concedeu parcial provimento ao recurso, e, considerando-se o arguido como o “único e exclusivo culpado”, (e alterando-se também o valor do salário mensal do demandante de MOP$19.098,00 para MOP$20.316,00), condenou-se a aludida demandada no pagamento de uma indemnização no valor total de MOP$772.778,77; (cfr., fls. 510 a 529).

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Inconformada, traz agora a demandada civil o presente recurso, onde, a final das suas alegações produz as conclusões seguintes:

“I. Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância - que aqui se dá por integralmente reproduzido - o qual, julgando parcialmente procedente o recurso do Assistente, revogou o acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Base no que concerne à concorrência de culpas das duas partes e determinação da sua proporção.
II. Em face do objecto do processo e das questões que lhe foram colocadas em sede de recurso, andou mal o Venerando Tribunal de Segunda Instância a não ter confirmado na íntegra a decisão proferida em primeira Instância.
III. Conforme resulta dos autos, após a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal Judicial de Base, por acórdão de 18 de Fevereiro de 2022, julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil enxertado, condenando, assim, a ora Recorrente no pagamento de MOP$227,449.62 e título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo Ofendido no acidente de viação melhor descrito nos presentes autos, correspondentes a 30% da culpa na produção do acidente, tendo o Ofendido ficado com 70% da culpa na produção do mesmo.
IV. Em face da prova produzida em audiência de julgamento, entendeu o Tribunal Judicial de Base que o acidente em discussão nos presentes autos ficou a dever-se a uma maior culpa do lesado e ora Recorrido.
V. Com relevo para o presente recurso, e não olvidando a Recorrente que esse Venerando Tribunal de Última Instância apenas compete conhecer de matéria de direito, foram dados por provados os seguintes factos:
- Em 9 de Janeiro de 2019, por voltas das 9h40 da manhã, o arguido A esteve a conduzir o veículo pesado (para o transporte de combustível) com matrícula de XX-XX-XX, com o seu colega D, na faixa direita da Rua Norte do Patane (que comporta três faixas no mesmo sentido) (em direcção da Rua do Conselheiro Borja ao EDF. LOK YEUNG FA YUEN).
- Ao chegar à intersecção para entrar na Rua Norte do Patane em direcção à Rua da Doca Seca, foi embatido o peão B (ofendido) que estava a atravessar a rua, a partir de canteiros de jardim, em direcção da Rua do Comandante João Belo à Escola Primária de Santa Madalena.
- No acidente em causa, o pé esquerdo do ofendido foi atropelado pela roda traseira direita do veicula conduzido pelo arguido.
- Naquela altura, o pavimento estava seco e a densidade de trânsito estava normal.
- Quando se aproximou do cruzamento em "T", o veículo em causa não abrandou a marcha e causou a ocorrência do presente acidente de viação devido à condução não cautelosa ao virar à direita para entrar nas raias oblíquas paralelas.
- Ao atravessar a rua, o ofendido não prestou atenção ao veículo que se aproximando.
- O ofendido saiu na rua de um lugar impercetível de ser descoberto pelo arguido que estava a conduzir, passou a rua, a partir dos canteiros de jardim, em direcção da Rua do Comandante João Belo à Escola Primária de Santa Madalena, sem uso de uma passadeira.
VI. Em face dos aludidos factos, o Tribunal Judicial de Base decidiu que o Arguido teve 30% da culpa na produção do acidente e o Ofendido, 70% da culpa na produção do mesmo.
VII. O Ofendido e ora Recorrido dela recorreu para o Tribunal de Segunda Instância, com fundamento em erro notório na apreciação da prova assim como na contradição insanável da fundamentação.
VIII. Em sede de Recurso para o Tribunal de Segunda Instância, ora Recorrido, e ali Recorrente, insurgiu-se contra a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base na parte em entende ter havido um erro notório na apreciação da prova em relação ao reconhecimento dos factos "o Ofendido não prestou atenção ao veículo que se aproximava ao atravessar a faixa de rodagem" e "o Ofendido saiu na rua de um lugar impercetível de ser descoberto quando o Arguido conduzia", concluindo que, o Tribunal Judicial de Base andou mal por não existirem factos ou provas objectivas suficientes para dar como provado que "o Ofendido saiu da estrada numa posição menos percetível para o veículo conduzido pelo arguido" e "o Ofendido atravessou a rua e não prestou atenção aos veículos aquando do presente acidente".
IX. Assacando à decisão proferida pejo Tribunal a quo apenas o vício de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável.
X. Entende a ora Recorrente que andou bem o Tribunal a quo ao decidir conforme decidiu, tal como é confirmado por um voto vencido na Acórdão ora Recorrido.
XI. O Tribunal de Segunda Instância acomodou a pretensão do então Recorrente e aqui Recorrido, revogando uma decisão que, na nossa mais humilde opinião, foi a mais justa.
XII. Assim, entendeu o Tribunal de Segunda Instância que, não obstante ambas as partes envolvidas terem tido responsabilidade no acidente, o "dever especial de cautela" ao qual o Condutor do veículo estaria vinculado, se deve sobrepor ao "dever geral" que recaía sobre o Ofendido.
XIII. Uma análise cuidada da decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base à luz dos mais elementares princípios do direito permitirá concluir que assim não é.
XIV. A verdade é que, ambos os Tribunais apuraram existir uma elevada culpa por parte do Ofendido, resultando provado de que este violou vários preceitos legais aos quais estava adstrito.
XV. É consabido que ao tribunal cumpre investigar, independentemente da acusação e da defesa, com os limites previstos na lei, os factos sujeitos a julgamento, de forma a criar as bases necessárias para a decisão. O fim do processo penal, contido no seu objecto, é precisamente a busca da verdade material.
XVI. E foi com base nessa investigação, e na prova produzida em julgamento, que ao Tribunal Judicial de Base foi possível chegar a uma conclusão essencial não apenas na perspectiva penal, mas também do pedido cível no mesmo enxertada: a culpa do acidente foi maioritariamente do Ofendido.
XVII. E nem se diga que o Tribunal Judicial de Base fundamentou a sua decisão de culpabilidade em factos conclusivos ou questões de direito.
XVIII. Isto porque o Tribunal Judicial de Base deu por provados os seguintes FACTOS concretos e objectivos:
- Ao atravessar a rua, o ofendido não prestou atenção ao veículo que se aproximando.
- O ofendido saiu na rua de um lugar impercetível de ser descoberto pelo arguido que estava a conduzir, passou a rua, a partir dos canteiros de jardim, em direcção da Rua do Comandante João Belo à Escola Primária de Santa Madalena, sem uso de uma passadeira.
XIX. Foram provados factos que apontam para a conduta ilícita e culposa do Ofendido.
XX. Foi possível, então, imputar ao lesado a prática de um facto ilícito culposo - não respeitou as obrigações às quais estava adstrito - o que deixa claro uma maior responsabilidade deste na produção do acidente.
XXI. A Decisão Recorrida nunca poderia senão ter julgado improcedente o recurso interposto pelo aqui Recorrido e consequentemente confirmar a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base, que atribuiu 70% da culpa ao Ofendido e 30% ao condutor do veículo.
XXII. Ao decidir de modo diverso, violou o preceituado nos artigos 321º e 358º do CPP e nos artigos 498º e 499º do Código Civil;
XXIII. A Decisão Recorrida deverá ser revogada e substituição por outra que, dando provimento ao presente recurso, confirme a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base que, por entender que o acidente ocorreu por maior culpa do Ofendido tal como decorreu comprovado em sede de julgamento”; (cfr., fls. 538 a 547).

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Contra-alegando, pugna o demandante pela total improcedência do recurso; (cfr., fls. 550 a 558).

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Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre conhecer.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância foram dados como “provados” os factos como tal elencados nos respectivos Acórdãos que, oportunamente, se fará adequada referência; (cfr., fls. 422-v a 426 e 518-v a 521).

Do direito

3. Vem a demandada civil – “C” – recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância alegando e concluindo nos termos atrás já relatados.

Passa-se a decidir

Percorrendo às conclusões pela ora recorrente apresentadas – e não obstante, a final, peticionar a “confirmação da sentença do Tribunal Judicial de Base” – cremos que, em bom rigor, apenas uma questão nos vem colocada.

Mais precisamente, tão só, quanto à “percentagem de culpa do arguido”, (pela ora recorrente segurado), e que, como se viu, com o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância objecto do presente recurso se veio a considerar como “único e exclusivo culpado”, alterando-se a anterior decisão do Tribunal Judicial de Base que ao arguido e ofendido atribuiu, respectivamente, 30% e 70% de culpa pelo acidente dos autos.

Com efeito, e não obstante o referido pedido a final deduzido no sentido da “confirmação da sentença do Tribunal Judicial de Base”, tanto em sede de motivação como nas suas conclusões, nada é dito em relação ao segmento decisório (do Tribunal de Segunda Instância) que se pronunciou sobre o montante do salário do demandante, (e que o alterou de MOP$19.098,00 para MOP$20.316,00), pelo que se impõe considerar que (efectivamente) impugnado não foi o assim decidido.

Assim, cabendo-nos tão só emitir pronúncia sobre a aludida “percentagem de culpa pelo acidente”, vejamos.

Pois bem, relativamente às “circunstâncias do acidente”, (agora relevantes para a decisão da questão a tratar), importa atentar na seguinte matéria de facto pelas Instâncias recorridas tida como “provada” (e definitivamente adquirida):

“1) No dia 9 de Janeiro de 2019, por volta das 09h40, A (甲) (ora arguido) conduzia o automóvel pesado, de matrícula XX-XX-XX (veículo de transporte de combustível líquido), juntamente com o seu colega D (丁), circulando na faixa de rodagem direita da Rua Norte do Patane (sendo um troço de estrada com três faixas de rodagem do mesmo sentido de marcha) (em direcção da Rua do Conselheiro Borja para Lok Yeung Fa Yuen).
2) Quando chegou à intersecção com a Rua do Comandante João Belo, o veículo em questão virou à direita e passou a circular na Rua do Comandante João Belo em direcção à Rua da Doca Seca, atropelando o peão, B (乙) (ora ofendido), que se encontrava a atravessar a estrada. Na altura, o ofendido estava a atravessar a Rua do Comandante João Belo, caminhando do canteiro situado no meio da estrada para a Escola Madalena de Canossa.
3) No acidente, o pneu traseiro do lado direito do veículo conduzido pelo arguido passou por cima do pé esquerdo do ofendido.
4) Na ocorrência do facto, o pavimento era seco e a densidade do trânsito era normal.
(…)
7) O arguido não reduziu a velocidade do veículo a motor ao aproximar-se do entroncamento, bem como entrou na zona da raia oblíqua ao virar para a direita, consequentemente, a atitude de condução imprudente dele desencadeou o acidente de viação em causa.
8) O arguido agiu, de forma consciente, ao praticar o acto em apreço, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei de Macau.
Mais se provaram os seguintes factos na audiência de julgamento:
- O ofendido atravessou a estrada na ocorrência do facto, não tendo prestado atenção ao veículo que se aproximava dele.
- O ofendido deslocou-se dum lugar em que ele era dificilmente reparado pelo arguido na condução, para a estrada, isto é, atravessou a estrada junto ao canteiro situado no meio da estrada, em direcção da Rua do Comandante João Belo para a Escola Madalena de Canossa, sem usar a passagem para peões.
(…)”; (cfr., fls. 422-v a 423, 518-v e 35 e 37 do Apenso).

Ora, ponderando na transcrita matéria de facto dada como provada, cremos que se impõe desde já eliminar a passagem que – no “ponto 7°” – se refere à “condução imprudente do arguido que desencadeou o acidente de viação em causa”, pois que se nos apresenta (manifestamente) “conclusiva”.

De facto, como sabido cremos ser, uma “conclusão”, implica um juízo sobre factos, e estes, quando em si mesmos considerados, revelam uma realidade, compreensível e detectável sem necessidade de qualquer acréscimo dedutivo.

Por sua vez, há uma “questão de facto”, quando se procura reconstituir uma “situação concreta” ou um “evento do mundo real”, e há uma “questão de direito”, quando se submete a “tratamento jurídico” a situação concreta reconstituída, certo sendo também que, o “facto”, não pode incluir elementos que, a priori, contenham, (ainda que implicitamente), a resolução da questão concreta de direito que há a decidir.

Assim, há que se considerar a atrás identificada passagem como “não escrita”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 09.07.2003, Proc. n.° 11/2003 e de 14.12.2011, Proc. n.° 57/2011).

E, nesta conformidade, tendo presente a factualidade que se deixou retratada, (e da mesma se tentando extrair e compreender a “génese” do acidente dos autos), cremos que adequada e razoável não é a decisão no sentido de se considerar o arguido como o seu “único e exclusivo culpado”.

Como é óbvio, “contribuiu” para a eclosão do acidente, pois que, como se veio a provar, “não reduziu a velocidade do veículo a motor ao aproximar-se do entroncamento, bem como entrou na zona da raia oblíqua ao virar para a direita”, (cfr., ponto 7° da matéria de facto), e, desta forma, evidente se mostra que demonstrada está a sua “condução descuidada, (ou como atrás qualificada, “imprudente”), e imprópria para as condições da via”, (pois que até circulou na zona da raia).

Porém, e ainda que assim se nos mostre de considerar, inegável se nos apresenta também que o demandante tem igualmente culpa no acidente, pois que, como se viu, “atravessou a estrada, não tendo prestado atenção ao veículo que se aproximava”, “deslocou-se dum lugar em que era dificilmente reparado pelo arguido na condução”, e “atravessou a estrada junto ao canteiro situado no meio da estrada, em direcção da Rua do Comandante João Belo para a Escola Madalena de Canossa, sem usar a passagem para peões”; (cfr., os últimos dois § da matéria de facto dada como provada).

E, então quid iuris?

Ora, se devia o arguido conduzir com cuidado, atenção e no (estrito) respeito das prescrições da “Lei do Trânsito Rodoviário”, (Lei n.° 3/2007), adaptando a condução às condições e exigências da via e do seu trânsito, (cfr., v.g., art°s 30° e segs.), o mesmo deve suceder com qualquer peão que utilize a via, devendo fazê-lo também com idêntico cuidado e atenção, de forma a não pôr em risco a integridade física de quem quer que seja, sem perturbar a circulação rodoviária, não devendo “invadir” a faixa de rodagem (de forma súbita e inesperada), sem se assegurar que nela se pode introduzir e efectuar o seu atravessamento em segurança para todos os seus utentes, sem prejudicar o trânsito de veículos; (cfr., art°s 68°, 69° e 70° da referida Lei).

Assim, atenta a factualidade atrás retratada – reconhecendo-se que em matérias como a ora em questão intervém, sempre, algum subjectivismo – cremos que de censurar são ambas as “condutas” em questão, mais adequado se nos apresentando atribuir a culpa pelo acidente ao arguido e ofendido na proporção de 40% e 60% respectivamente.

Nesta conformidade, e em causa estando a indemnização no valor total de MOP$772.778,77, impõe-se a sua redução na referida proporção de culpas, ao demandante ficando a caber o montante total de MOP$309.111,51 que à ora recorrente cumprirá pagar.

Aqui chegados, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam julgar parcialmente procedente o recurso, ficando a recorrente demandada civil condenada a pagar ao recorrido demandante o montante total de MOP$309.111,51.

Custas pela recorrente e recorrido na proporção dos seus respectivos decaimentos.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 03 de Março de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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