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Processo nº 134/2020
(Autos de recurso jurisdicional)
   





ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU, (R.A.E.M.), representada pelo o Ministério Público, propôs, no Tribunal Administrativo, acção de anulação de decisão arbitral contra o “Consórcio” formado pelas sociedades “A”, “B” e “C”, com sede em Macau, pedindo, a final, que fosse “declarada nula ou anulada a decisão proferida pelo douto Tribunal Arbitral em 23/3/2010, na parte que diz respeito à condenação à RAEM a pagar ao CONSÓRCIO o montante de MOP 11.790.180,00 relativamente aos Trabalhos do Túnel, e o montante de MOP 1.585.822,41 relativamente às sanções aplicadas, nos termos e ao abrigo do n.° 1, al. c) e n.° 2 do art.° 37.°, e também do n.° 1, al. b) do art.° 38.° do Decreto-Lei n.° 29/96/M, de 11 de Junho, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.° 110/99/M, de 13 de Dezembro, por ter conhecido questões de que não podia tomar conhecimento, ou seja, ser incompetente para conhecer as questões determinantes das referidas condenações. (…)”; (cfr., fls. 2 a 20 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, por sentença do Mmo Juiz do Tribunal Administrativo de 09.07.2019, julgou-se “parcialmente procedente a presente acção interposta pela R.A.E.M. da arguição da nulidade da decisão arbitral contra o Consórcio, na parte respeitante à condenação da A. para pagar o R. as sanções aplicadas no montante de MOP 1.585.822,41, sem juros de mora, nos termos dos art.°s 37.°, n.° 1, primeira parte da alínea c), n.° 2, 39.°-A e 39.°-B do D.L. n.° 29/96/M, de 11 de Junho, e da Cláusula Trigésima do Contrato. (…)”; (cfr., fls. 719 a 745).

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Em sede do recurso que do assim decidido interpuseram o Ministério Público e o aludido “Consórcio”, proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 19.03.2020, (Proc. n.° 1186/2019), onde se decidiu:

“1) - Negar provimento ao recurso interposto pela Autora/RAEM, mantendo-se a decisão na parte recorrida.
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2) - Conceder provimento ao recurso interposto pelo Recorrente/Consórcio, revogando-se a decisão do TA na parte que anulou a decisão arbitral (tendo esta revogado a decisão da aplicação da multa por não estarem reunidos os pressupostos exigidos), mantendo-se a decisão proferida pela respectiva comissão arbitral.
(…)”; (cfr., fls. 871 a 912).

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Traz agora o Ministério Público o presente recurso, alegando para, a final, produzir as conclusões seguintes:

“1. Os actos administrativos de estatuição autoritária praticados no decurso da execução de contratos administrativos de subordinação estão legalmente arredados do âmbito da arbitragem voluntária.
2. Entre tais actos contam-se aqueles que aplicam as sanções previstas para a inexecução do contrato.
3. A Comissão Arbitral criada para resolução de litígios associados à interpretação, validade e execução do contrato de “Prestação de Serviços de Gestão de Projecto e Assistência Técnica para a Implementação da 1.ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau” não detinha, pois, competência material para decidir sobre a validade do acto administrativo que aplicou uma sanção dessa espécie no âmbito da execução do contrato.
4. Pelo que a respectiva decisão devia ser anulada, como bem decidiu o Tribunal Administrativo.
5. Ao revogar a sentença do Tribunal Administrativo, nessa parte, o acórdão recorrido interpretou e aplicou mal as disposições legais vigentes na matéria, nomeadamente os artigos 175.º, 167.º, alínea e), 173.º e 110.º do Código do Procedimento Administrativo, 38.º, n.º 1, b), e 39.º-A do DL 29/96/M, e 113.º, n.º 2, do Código de Processo Administrativo Contencioso.
6. Na definição da Cláusula Segunda do contrato de “Prestação de Serviços de Gestão de Projecto e Assistência Técnica para a Implementação da 1.ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau” são excepcionais os trabalhos que, não sendo normais ou adicionais, se venham a revelar necessários à implementação da 1.ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau, cuja adjudicação ao Consórcio seja aconselhável ou particularmente vantajosa para os interesses da RAEM.
7. Uma tal definição impõe que “identificada, equacionada ou detectada a necessidade de realização de trabalhos dessa espécie, se proceda à adjudicação da respectiva execução ao Consórcio, caso tal seja aconselhável ou particularmente vantajoso para os interesses da Região Administrativa Especial de Macau, com formalização através do necessário contrato.
8. A Comissão Arbitral incluiu naquela categoria de excepcionais trabalhos relativos ao traçado em túnel, que não estavam previstos no concurso e no contrato de “Prestação de Serviços de Gestão de Projecto e Assistência Técnica para a Implementação da 1.ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau” e que, nos termos da própria definição de trabalhos excepcionais, demandavam uma nova adjudicação e um novo instrumento contratual.
9. E conheceu do litígio relativo a essa matéria, considerando-se competente para o efeito.
10. Sucede que a convenção de arbitragem constante da Cláusula Trigésima do contrato restringe os poderes da Comissão Arbitral aos litígios relativos à interpretação, validade ou execução do “presente contrato”, que é o contrato de “Prestação de Serviços de Gestão de Projecto e Assistência Técnica para a Implementação da 1.ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau”.
11. Devendo ser objecto de nova adjudicação e de novo contrato, por força daquela Cláusula Segunda, a execução dos trabalhos do traçado em túnel não pode considerar-se compreendida no âmbito do contrato de “Prestação de Serviços de Gestão de Projecto e Assistência Técnica para a Implementação da 1.ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau”, para o qual vigorava a cláusula compromissória.
12. Pelo que a Comissão Arbitral, ao julgar esta matéria, fê-lo sem a necessária competência, por falta de jurisdição relativamente aos trabalhos do traçado em túnel, porquanto estes não estavam abrangidos na cláusula compromissória.
13. Ao manter, nesta parte, a sentença do Tribunal Administrativo e ao não anular este vector da decisão da Comissão Arbitral, o acórdão recorrido violou os artigos 38.º, n.º 1, alínea b), do DL 29/96/M, 228.º do Código Civil, e as Cláusulas 2.a e 30.a do Contrato.
14. Termos em que, no provimento do recurso, deve revogar-se o douto acórdão e anular-se a decisão da Comissão Arbitral quanto aos dois questionados vectores, tal como a recorrente Região Administrativa Especial de Macau sustentara na sua petição inicial, com o que se fará justiça”; (cfr., fls. 920 a 931-v).

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Respondendo, diz o “Consórcio” recorrido o que segue:

“A. O primeiro segmento objecto de recurso é a questão de saber se a Comissão Arbitral tinha ou não competência material para julgar o litígio relativo à condenação da Recorrente a devolver ao Recorrido o montante MOP$1.585822,41, relativo à aplicação da cláusula penal contratual sobre o balanço da operação comercial, ao abrigo da Cláusula 20.1 do Contrato.
B. Divergimos do entendimento de que a aplicação da sanção pecuniária em apreço assume a natureza de um verdadeiro acto administrativo definitivo e executório, dotado de imposição autoritária e reunindo todas as características contidas na definição dada pelo art. 110º do CPA.
C. Desde logo, aquela actuação não cumpre os elementos e os pressupostos dum verdadeiro acto administrativo para efeitos de impugnação contenciosa. O acto produzido não resulta dum comportamento adoptado no exercício de uma actividade de natureza administrativa pública, visto que o Adjudicante se limitou a aplicar uma cláusula penal decorrente do alegado incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato, não a exercitar um poder público de punir.
D. Também quanto aos motivos da decisão ou fim que com aquela pronúncia se visa prosseguir, não se vislumbram nela razões de segurança jurídica ou protecção de um interesse público.
E. Se é verdade que a Administração beneficia, na execução do contrato administrativo, do poder de aplicar sanções como autorizada o artigo 167º alínea e) do CPA, não é exacto afirmar-se que tal poder é sempre exercido mediante definição autoritária da Administração.
F. Neste caso em concreto, a Lei e a Doutrina em Macau são claros: nos contratos de prestação de serviço para fins de utilidade pública é a própria lei, no artigo 65º n.º 2 do DL n.º 63/85/M de 6/7, que afasta a competência para a emissão de actos administrativos no âmbito da execução do contrato, determinando que as questões submetidas ao julgamento do Tribunal Administrativo sobre interpretação, validade ou execução do contrato revestirão a forma de acção.
G. Isto prende-se com a própria natureza do objecto do contrato: a prestação de um serviço que se traduziu na realização de estudos e assistência técnica com vista à implementação da 1ª fase do sistema de Metro Ligeiro em Macau, ou seja, os poderes exercidos pelo contraente adjudicante não se situam num plano de supra-ordenação.
H. Mas em certos contratos administrativos podem coexistir momentos de igualdade jurídica e de exercício de poderes de autoridade na prossecução do interesse público.
I. Aliás, terá sido a diferenciação dos interesses envolvidos, que justificou um regime legal diverso quanto à forma processual entre o contrato de aquisição de bens e serviços (artigo 65º n.º 1 do Decreto Lei n.º 63/85/M de 6 de Julho) e o contrato das empreitadas de obras públicas (artigo 218º do Decreto Lei n.º 74/99/M de 8 de Novembro).
J. De facto, as partes estipularam uma cláusula compromissória no Contrato, segundo a qual qualquer litígio relativo à interpretação, validade ou execução do presente contrato, que não seja possível dirimir por acordo das partes será submetido a uma Comissão Arbitral, com sede na RAEM.
K. Ora, a análise da arbitrabilidade da questão sub judice tem de ser ponderada em concreto e interpretando teleologicamente todo o pertinente quadro normativo.
L. O Decreto-Lei nº 29/96/M, de 11 de Junho, que estabelece o regime da arbitragem voluntária, prescreve no n.º 1 do seu artigo 2º que a arbitragem pode ter por objecto qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis, desde que não seja submetido por lei especial a tribunal judicial ou a arbitragem necessária. O critério da disponibilidade é pois, um pressuposto geral da arbitrabilidade.
M. Do ponto de vista da arbitrabilidade subjectiva, ao abrigo do artigo 5º n.º 2 da LAV, o território de Macau e as demais pessoas colectivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, se forem autorizados para o efeito por lei especial ou se tais convenções tiverem por objecto litígios respeitantes a relações jurídicas de natureza civil ou comercial.
N. Ou seja, de acordo com o artigo 175º do CPA, a Administração só pode actuar na medida em que uma lei prévia e específica a permita.
O. Em Portugal, o legislador ampliou o leque de matérias arbitráveis, admitindo a constituição de tribunal arbitral para julgar questões respeitantes a contratos, incluindo a anulação ou declaração de nulidade de actos administrativos relativos à respectiva execução (alínea a) do n.º 1 do artigo 180º do CPTA), modificando a esfera tradicional da indisponibilidade relativa à legalidade de actos administrativos.
P. É verdade que não é na legislação portuguesa que se há-de encontrar a solução para a questão vertente. Mas o quadro normativo de Macau dá resposta cabal ao caso em apreço.
Q. O artigo 39º-A da LAV corporiza a lei habilitadora no âmbito do contencioso administrativo que permite submeter a arbitragem voluntária os litígios sobre questões sobre validade, interpretação e execução de contratos administrativos.
R. No entanto, o facto de a lei não mencionar expressamente a possibilidade de julgamento por tribunais arbitrais de questões relativas a actos administrativos, não é por si, motivo para considerar incompetente a Comissão Arbitral para conhecer da aplicação da sanção contratual, por violação do princípio da legalidade.
S. Mesmo que dum acto administrativo destacável do contrato se tratasse, não se vislumbram razões legais nem de princípio que obstem a que as partes não possam acordar relativamente a actos de base negocial.
T. Aliás, a própria possibilidade legal de impugnação da decisão arbitral por recurso prevista no artigo 34º n.º 2 da LAV é pois, uma garantia de controlo do mérito ou da legalidade da decisão arbitral.
U. Por outro lado, não deve olvidar-se a clara intenção do legislador de Macau de apresentar a arbitragem como uma alternativa de resolução de litígios, relativamente aos meios jurisdicionais comuns, justamente em matéria administrativa.
V. Intenção já expressa no artigo 64º do Decreto Lei n.º 63/85/M de 6 de Julho e posteriormente reiterada para o núcleo duro dos contratos administrativos no artigo 25º da lei de bases do regime das concessões de obras públicas e serviços públicos (Lei n.º 3/90/M de 14 de Maio).
W. Todavia, o caso em apreço contém especificidades, que o afastam das considerações generalistas sobre actos administrativos da doutrina citada pela Recorrente e da distinta gênese de outros casos decididos pela jurisprudência de Macau sobre a competência do recurso contencioso sobre aplicação de multas contratuais no quadro da execução de contratos de empreitada de obras públicas.
X. O artigo 65º n.º 1 do Decreto Lei n.º 63/85/M de 6 de Julho diz expressamente que as decisões ou deliberações proferidas pelo adjudicante após a celebração de contrato reduzido a escrito, sobre matéria deste, não são susceptíveis de recurso contencioso. E no n.º 2 do mesmo artigo estabelece-se que todas as (outras) questões submetidas ao julgamento do Tribunal Administrativo sobre interpretação, validade ou execução do contrato seguem a forma de acção.
Y. A Doutrina em Macau também é a este respeito muito clara quando defende que nos contratos de prestação de serviços para fins de utilidade pública as questões daqueles emergentes estão submetidas a um contencioso de plena jurisdição e não de mera anulação.
Z. É que neste tipo de contratos de prestação de serviço é essencialmente na fase da formação do contrato que se colocam maiores exigências de regulamentação atinentes à gestão e defesa do interesse público. Decorrida pois, essa fase, as posições que a Administração tome correspondem a declarações negociais através dos quais se exercem direitos potestativos que produzem efeitos jurídicos, mas desprovidos de autoridade.
AA. Com efeito, não há aqui qualquer incompatibilidade ou necessidade de derrogação de normas. O regime especial previsto no n.º 1 do artigo 65º do Decreto Lei n.º 63/85/M deve ser aplicado in casu, nada impedindo que a legalidade de actos administrativos executórios e definitivos fora daquele recorte normativo seja decidida em recurso contencioso de anulação por aplicação do art. 113º n.º 1 e 2 do CPAC.
BB. Portanto, nada a censurar relativamente à revogação da decisão do Tribunal Administrativo neste segmento, pois é manifesto que o tribunal arbitral é competente para conhecer da matéria da aplicação da penalidade contratual, nos temos em que o fez.
CC. Outra questão submetida pela Recorrente a esta instância de recurso tem a ver com a interpretação da abrangência da cláusula compromissória ínsita na Cláusula Trigésima do Contrato relativamente à execução de trabalhos excepcionais.
DD. Para a Recorrente, a execução dos trabalhos de traçado em túnel, que admite tratar-se de trabalhos excepcionais ao abrigo do Contrato, não estão abrangidos pela convenção de arbitragem pois, na sua interpretação, dependem da formalização de um novo contrato.
EE. Salvo o devido respeito, querer enjeitar a competência do tribunal voluntariamente acordado, depois de ter solicitado os trabalhos e reconhecido a sua execução, é inaceitável ao abrigo do basilar princípio da boa fé, especialmente importante no âmbito da actividade administrativa.
FF. Além do mais, tal argumento revela-se totalmente inconsistente face às próprias condições contratuais acordadas.
GG. Na verdade, o objecto do Contrato celebrado por ajuste directo, com dispensa de concurso compreende a gestão completa do projecto, bem como a Prestação de Assistência Técnica nos Trabalhos de Construção Civil, Sistema e Material Circulante, Escolha do Modelo de Operação/Exploração Comercial, objectivando a boa implementação da 1ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau.
HH. Além de fazerem uma clara distinção entre “trabalhos normais”, “adicionais” e “excepcionais”, as partes estabelecem inter alia, nas Cláusulas Quinta, Sexta e Vigésima do Contrato um regime completo de execução de cada um destes tipos de trabalhos, desde a forma de os solicitar, a fórmula de cálculo do preço, cláusulas detalhadas sobre a suspensão de pagamentos e aplicação de sanções por incumprimento.
II. Ora, se tais trabalhos excepcionais não integrassem o vertente Contrato e dependessem da formalização de novo contrato, a própria Adjudicante não os contemplaria com tanto pormenor aquando da elaboração da minuta do Contrato.
JJ. Além disso, a cláusula não refere qualquer necessidade de formalização de um novo contrato, como tal não pode extrapolar-se da expressão “adjudicação” ali usada outro sentido que as partes obviamente não quiseram dar quando com a inclusão e regulamentação de trabalhos excepcionais no vertente Contrato quiseram obviar a que pudessem ser objecto de outro concurso, com o ónus das formalidades legais.
KK. Defender que apenas o fez para acautelar a manutenção dos elementos essenciais da adjudicação inicial, facilitar a negociação, a estabilidade da relação contratual e o andamento do projecto, é simplesmente esvaziar por completo a autonomia negocial das partes e o princípio de economia e celeridade que estas quiseram justamente assegurar, ao regulamentar no Contrato quase exaustivamente todo o tipo de trabalhos possíveis, o respectivo regime, escolhendo uma jurisdição alternativa mais célere para qualquer litígio emergente sobre a validade, execução e/ou interpretação do Contrato.
LL. Do mesmo modo, argumentar que a solicitação dos referidos trabalhos foi feita na expectativa duma futura formalização, caso aquela adjudicação fosse aconselhável ou particularmente vantajosa para os interesses da RAEM, é exceder a vontade negocial expressa e a boa fé contratual.
MM. Se o acto de solicitação dos referidos trabalhos foi precedido duma avaliação sobre a vantagem ou ponderação do interesse público, essa responsabilidade cabe à RAEM, mas a intenção subjacente à ideia de adjudicação consumou-se logicamente com a sua solicitação.
NN. Este é o sentido normal que resulta da vontade das partes expressa num contrato que contém todos os elementos formais e materiais sobre a execução dos trabalhos que, apesar de integralmente realizados pelo Recorrido, depois de solicitados pela Recorrente não foram pagos, como a própria não porfia.
OO. De facto, não é a necessidade de formalizar outro contrato que está em causa, mas tão somente o cumprimento da obrigação de pagar os trabalhos da parte Adjudicante.
PP. Por último, ao alegar que a opção dos trabalhos de traçado em túnel não foi prevista, além de contrariar factos provados em sede arbitral, a Recorrente prende-se numa insanável contradição, depois de reconhecer que os trabalhos executados (de traçado em túnel) são trabalhos excepcionais. Além de inapelável, pois a discordância da Recorrente sobre se os trabalhos do traçado em túnel estavam ou não “em cima da mesa”, extravasa quer o âmbito da acção proposta, quer o objecto deste recurso, uma vez que o objecto da acção de anulação é a própria decisão arbitral e não já a discussão sobre a relação material controvertida.
QQ. Em suma, a Comissão Arbitral não excedeu as suas competências nesta matéria, uma vez que a convenção de arbitragem previa expressamente a apreciação de questões relativas à interpretação, validade e execução do contrato, sendo que os “trabalhos excepcionais” integram o respectivo Contrato, pelo que, improcedendo claramente os argumentos da Recorrente, incensurável deve manter-se o douto aresto recorrido”; (cfr., fls. 933 a 961).

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Admitido o recurso nos termos legais, adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre apreciar.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Exmo. Juiz do Tribunal Administrativo foi considerada e indicada como “assente” a seguinte factualidade:

“1.º - Aos 23/09/2009, foi celebrado entre a A. e o R. o «Contrato de Prestação de Serviços de Gestão de Projecto e Assistência Técnica para a Implementação da 1.ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau» (adiante designada por “Contrato”) (cfr. fls. 514 a 548 e verso dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
2.º - Por carta datada de 31/03/2010, foi o R. notificado do despacho do Exmº Senhor Chefe do Executivo sobre a decisão do indeferimento do recurso hierárquico necessário interposto contra o acto do Coordenador do GIT, exarado na Informação-Proposta n.º 026/ET/GIT/2010, de 15/03/2010, pelo qual foi determinada a aplicação da sanção contratual da multa ao R. pelo cumprimento defeituoso (cfr. fls. 22 a 70 e 558 a 562 e verso dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
3.º - Por carta datada de 31/01/2011, o R. notificou ao Exmº Senhor Chefe do Executivo para a constituição do Tribunal Arbitral a fim de resolver os litígios na execução do Contrato (cfr. fls. 549 a 557 e verso dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
4.º - Pela decisão proferida pelo Tribunal Arbitral constituído para resolução do conflito emergente da interpretação e execução do «Contrato de Prestação de Serviços de Gestão de Projecto e Assistência Técnica para a Implementação da 1.ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau» datada de 10/09/2012, foi determinado nos termos seguintes:
- 1. A R. (RAEM) é condenada a pagar ao A. (o Consórcio) o montante de MOP 11.790.180,00 para os trabalhos do túnel já executados e a executar até ao 46.º mês do contrato;
- 2. A R. (RAEM) é condenada a pagar ao A. (o Consórcio) as sanções aplicadas no montante de MOP 1.585.822,41, sem juros de mora;
- 3. A R. (RAEM) é condenada a pagar ao A. (o Consórcio) o montante de MOP 4.945.355,00 para todos os trabalhos a mais já executados e a executar até ao 46.º mês do contrato; e
- 4. O A. (o Consórcio) é condenado a pagar à R. (RAEM) o montante de MOP 45.497,50 como compensação para os danos devido aos atrasos no processo de concurso RS&S (cfr. fls. 73 a 203 dos autos, com traduções em língua oficial constantes a fls. 209 a 268 e 269 a 399 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
5.º - Em 11/09/2012, foi a A. notificada da decisão arbitral acima mencionada.
6.º - Em 10/10/2012, a A., representada em juízo pelo licenciado em direito designadamente nomeado pelo Exm.º Senhor Chefe do Executivo, através do despacho n.º 132/CE/2013, veio intentar a acção judicial da anulação da decisão arbitral junto deste Tribunal, correndo sob o processo n.º 189/12-ATA (cfr. fls. 404 a 511 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
7.º - Pela decisão proferida em 10/04/2013 a fls. 2793 a 2794 dos autos do processo n.º 189/12-ATA, foi determinada a absolvição do R. da instância por inverificação do suprimento da irregularidade da capacidade judiciária da A. (cfr. fls. 564 a 566 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
8.º - Pelo acórdão dos Venerando Juízes do Tribunal de Segunda Instância, no âmbito do recurso jurisdicional ordinário interposto pela A. sobre a decisão acima mencionada, proferido em 23/01/2014 nos autos do processo de recurso n.º 515/2013, foi negado provimento ao ora recurso jurisdicional e confirmada a decisão recorrida (cfr. fls. 567 a 587 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
9.º - Em 17/02/2014, o douto acórdão do T.S.I. transitou em julgado (cfr. fls. 588 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
10.º - Em 18/03/2014, a A. intentou junto deste Tribunal a presente acção judicial da decisão arbitral contra o R. (cfr. fls. 2 a 20 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito)”; (cfr., fls. 719-v a 720-v e 880-v a 881).

Do direito

3. Vem o Ministério Público – em representação da R.A.E.M. – recorrer do Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância que, (como se viu), revogou a sentença do Mmo Juiz do Tribunal Administrativo nos termos que atrás se deixaram relatados.

Desde já, e para melhor – boa – compreensão do que em causa está nos presentes autos, adequado se mostra de consignar o que segue.

Pois bem, (como cremos que resulta do que atrás se deixou retratado), o presente litígio diz respeito a um “processo arbitral” que opôs a R.A.E.M. ao “Consórcio” já identificado nos autos – partes do “Contrato de Prestação de Serviços de Gestão de Projecto e Assistência Técnica para a Implementação da 1ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau” – no qual veio a ser proferida a decisão (arbitral) condenatória da R.A.E.M. ao pagamento das quantias de MOP$11.790.180,00 e MOP$1.585.822,41 ao aludido “Consórcio”, quantias essas que foram considerado devidas, respectivamente, pelos “trabalhos do Traçado em Túnel”, e enquanto “reversão de sanções pecuniárias” que haviam sido aplicadas pela R.A.E.M..

Reagindo ao assim decidido, e representada pelo Ministério Público, a R.A.E.M. propôs uma acção junto do Tribunal Administrativo pedindo a declaração de nulidade ou a anulação da dita decisão arbitral, alegando a sua “incompetência” para o conhecimento das questões que deram lugar à sua condenação, isto porque, por um lado, os “trabalhos do Traçado em Túnel” não estavam previstos no contrato celebrado entre a R.A.E.M. e o “Consórcio”, e, como tal, não se enquadraria na “cláusula compromissória” constante daquele contrato, e, por outro lado, dado que o Tribunal Arbitral era (também) incompetente para apreciar da legalidade do “acto (administrativo)” através do qual àquele se tinham aplicado sanções pecuniárias.

Considerou, porém, o Mmo Juiz do Tribunal Administrativo que ao Tribunal Arbitral assistia competência para apreciar a questão relativa aos referidos “trabalhos do Traçado em Túnel”, mas já não quanto à aplicação da sanção pecuniária, visto tratar-se de um (verdadeiro) “acto administrativo” para o qual não tinha competência para a sua apreciação, declarando assim a nulidade da decisão arbitral relativamente a essa parte.

Em sede do recurso que do assim decidido interpuseram a R.A.E.M. e do “Consórcio”, (nas partes em que lhes era desfavorável), proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão agora recorrido onde, (a) manteve a decisão do Tribunal Administrativo no que diz respeito à competência do Tribunal Arbitral para apreciar e decidir quanto aos “trabalhos do Traçado em Túnel”, e, (b) quanto à questão das “sanções pecuniárias aplicadas pela R.A.E.M. ao Consórcio”, considerou que tinha o Tribunal Arbitral competência para a sua apreciação, (por se tratar de matéria de “execução contratual”), decidindo, assim, revogar, nesta parte, a sentença do Tribunal Administrativo (que havia determinado a nulidade parcial da sentença arbitral).

No presente recurso trazido a este Tribunal de Última Instância, defende-se, (resumidamente), que o Tribunal Arbitral não tem competência para a apreciar da legalidade da decisão de aplicação de multas ao “Consórcio”, (já que em causa está a apreciação da legalidade de um “acto administrativo”), não lhe assistindo igualmente competência para as questões que se colocavam em relação aos “trabalhos do Traçado em Túnel”, pois que sendo “trabalhos extraordinários”, estão para além do objecto do Contrato Administrativo celebrado, (e, como tal, não estavam abrangidos pela sua cláusula compromissória).

Identificadas que assim se nos apresentam ter ficado as duas “questões” a apreciar, vejamos.

–– Comecemos pela relacionada com a (in)competência do Tribunal Arbitral para apreciar da aplicação da multa (e condenação da R.A.E.M. à devolução ao “Consórcio” da quantia de MOP$1.585.822,41).

Em suma, coloca-se aqui a questão, (aliás, muito debatida), quanto à “natureza jurídica” dos actos praticados pela Administração no âmbito da execução dos contratos de que é parte; (sobre a matéria, cfr., v.g., Pedro Gonçalves in, “O Contrato Administrativo – Uma Instituição do Direito Administrativo do Nosso Tempo”, e Alexandra Leitão in, “Da natureza jurídica dos actos praticados pela Administração no âmbito da execução dos contratos – anotação ao Ac. do STA de 23.6.1998”, C.J.A., n.° 25, 2001).

Com efeito, e como refere Pedro Gonçalves:

“Sobre o assunto podemos detectar três posições na jurisprudência portuguesa:
- para uma primeira corrente, tradicional, aqueles são actos administrativos; por ex., nesse sentido, cfr. o Acórdão do STA/1.ª de 14/2/2002, proc. n.º 47543: “a rescisão de um contrato (administrativo) de atribuição de incentivo financeiro (…) constitui um acto administrativo”;
- para uma segunda corrente, revolucionária, todos aqueles actos correspondem a meras declarações negociais, emitidas ao exercício de direitos potestativos; nesse sentido, cfr., por ex., Acórdão do STA/1.ª, de 29/01/98: “os actos de rescisão de um contrato administrativo, praticado ao abrigo do respectivo clausulado, são declarações negociais, não tendo a natureza de actos administrativos”;
- para uma terceira corrente, indecisa, aqueles actos podem ser actos administrativos, mas também podem ser meras declarações negociais; tudo depende; nesse sentido, cfr., por ex., Acórdão do STA/1.ª, de 20/12/2000, proc. n.º 46372: “a cláusula, inserta num contrato administrativo, que permita à Administração rescindir o acordo de vontades em caso de incumprimento da parte adversa, tanto pode corresponder à previsão de um direito potestativo extintivo, como pode significar a possibilidade de conformação do assunto mediante um acto administrativo.
(…)
Uma tomada de posição sobre a questão exige, em primeiro lugar, que se tenha em conta que ela só se coloca em relação a actos praticados ao abrigo do artigo 180.º do CPA ou das cláusulas contratuais que repitam ou densifiquem os poderes ali previstos, bem como daqueles que sejam praticados ao abrigo de uma lei especial que confere à entidade pública um poder de decisão e de produção de um efeito jurídico que se impõe ao contratante particular – a advertência tem toda a razão de ser, designadamente para se não cair no erro de supor que o problema se coloca em relação a toda e qualquer declaração da entidade pública contratante: em princípio, as declarações que ela emite não são certamente actos administrativos, nem a colocação do problema faz qualquer sentido quando não estejam reunidos as condições estruturais para poder falar-se de acto administrativo”.

E, ponderando sobre o tema, apresenta o mesmo autor as seguintes
razões em defesa da doutrina tradicional, “segundo a qual os poderes da Administração a que se refere o artigo 180.º do CPA são poderes públicos exercidos através de “verdadeiros” actos administrativos.
Considerando as disposições do CPA, é isso que resulta do seguinte:
a) por um lado, a referência legal no artigo 180.º - numa norma jurídica que é inequivocamente de direito público – a “poderes da Administração” sugere imediatamente que estão em causa “poderes públicos de autoridade”: não faz sentido supor-se que uma norma que se dirige especialmente à Administração, uma norma de direito público, lhe atribui um poder privado. É certo que poderá dizer-se que o que está aí e em causa não é um poder privado, mas um poder público especial, um direito potestativo de natureza pública: mas então é de perguntar como pode chegar-se a essa conclusão sem qualquer apoio na letra da lei, contra a longa tradição de aceitação do poder público contratual (tradição com a qual o CPA não quis abertamente romper) e contra o princípio, genericamente aceite, segundo o qual, no nosso sistema, o poder confiado especialmente à Administração é um poder público de autoridade. É certamente possível – não sabemos se desejável – romper com esse sistema, mas então há-de ser a lei a estabelecer de forma nítida as bases da ruptura. Enquanto isso não se verificar, ela deverá ser interpretada de acordo com o espírito do sistema nos contornos que se conhecem e que correspondem à tradição, com um século, do regime do contrato administrativo. Referindo-se o artigo 180.º do CPA a poderes públicos de autoridade, é por via de actos administrativos que a Administração os exerce, não fazendo qualquer sentido a dúvida que por vezes se coloca quanto a saber se a Administração Pública está formalmente habilitada a praticar actos administrativos no âmbito do contrato: o que se passa é que a lei lhe confere certos poderes que, por natureza, são exercidos através de actos administrativos;
b) o artigo 186.º – que estabelece expressamente não serem actos administrativos os actos opinativos – só faz sentido se se partir do princípio de que há outros actos que a Administração pratica no âmbito da relação contratual que são actos administrativos; se estivesse acolhido no CPA um princípio geral de que a Administração não pratica actos administrativos, não era necessário dizer que não era essa a natureza dos actos opinativos – neste sentido, cfr. Rodrigo Esteves de Oliveira, ob. cit., p. 154.
c) como veremos melhor, o artigo 187.º pressupõe que a Administração pode estar munida de um título executivo que imponha a execução forçada de prestações: ora, só os actos administrativos (e não as declarações negociais) têm uma função tituladora.
Assim, é para nós claro que os poderes que a lei confere à Administração (desde logo, no artigo 180.º) são poderes públicos em cujo âmbito ela está portanto autorizada a praticar actos administrativos.
É assim no direito constituído e, do nosso ponto de vista, assim deverá manter-se no futuro”; (in ob. cit., pág. 113 a 117, e Alexandra Leitão in, ob. cit., pág. 23 e 24).

Em nossa opinião, os argumentos aduzidos por Pedro Gonçalves parecem-nos ser (perfeitamente) enquadráveis e válidos em sede do ordenamento jurídico da R.A.E.M., especialmente, em face, (nomeadamente), do estatuído nos art°s 167°, 173° e 174° do C.P.A.; (neste sentido, vd., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 22.01.2020, Proc. n.° 80/2018, e Viriato Lima e A. Dantas in, “C.P.A.C. Anotado”, pág. 325 e 326, sendo de referir também, que a “tese tradicional” foi a acolhida na evolução legislativa operada em Portugal, com a entrada em vigor do “Código dos Contratos Públicos”, como cremos se pode retirar do expressamente previsto no seu art. 307°, n.° 2, sendo também este o entendimento adoptado por Jorge Andrade da Silva, que considera que “Com efeito, no n.º 2, estabelece-se o princípio de que os actos praticados pelo contraente público no exercício dos poderes elencados no artigo 302.º são actos administrativos. (…) O CCP, neste preceito, adere claramente à orientação jurisprudencial tradicional, o que constitui um desvio às correntes mais recentes, para as quais, na execução dos contratos deveriam ser privilegiadas as situações de paridade das partes, só excepcionalmente, quando a lei o previsse, havendo lugar ao exercício de poderes de autoridade. (…) O CCP, através deste preceito, adoptou a corrente tradicional, qualificando de administrativos os actos praticados pelo contraente público no exercício dos poderes de autoridade definidos no artigo 302.º, para cujo comentário se remete. (…)”, in “Código dos Contratos Públicos, Anotado e Comentado”, pág. 655 e 656).

Nesta conformidade, adequada se nos mostra pois a qualificação do “acto de aplicação da multa em questão” como um (verdadeiro) “acto administrativo”; (cfr., também, no mesmo sentido, Freitas do Amaral, para quem o poder sancionatório traduzir-se-ia no “(…) poder de aplicar sanções ao contraente particular, seja pela inexecução (total ou parcial) do contrato, seja pelo atraso na execução, seja por qualquer outra forma de execução imperfeita ou defeituosa, seja ainda porque o contraente particular tenha trespassado o contrato para outrem sem a devida autorização da Administração, etc.
As duas modalidades típicas deste poder são a aplicação de multas e o sequestro.
A aplicação de multas não levanta dificuldades especiais que tenhamos de considerar aqui. Diga-se apenas que a multa contratual tanto pode ser uma penalidade como uma medida compulsória (a tanto por dia, até o faltoso cumprir) – “a multa não tem de estar prevista para cada concreta violação de uma obrigação contratual (princípio da taxatividade)”. (…)
As sanções contratuais são aplicadas pela Administração mediante acto administrativo, não carecendo, portanto, aquela – como no direito privado – de uma sentença judicial prévia a declarar a inexecução contratual pelo faltoso”, in “Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, pág. 634 e 635).

E, aqui chegados, outro aspecto importa ponderar, pois que, no domínio do “contencioso administrativo”, dispunha o art. 2°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 29/96/M de 11.06, (lei aplicável à arbitragem em causa nos autos), que: “A arbitragem pode ter por objecto qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis, desde que não esteja submetido por lei especial a tribunal judicial ou a arbitragem necessária”, não sendo de se olvidar que nos termos do art. 3° do C.P.A.C., (com a epígrafe “Conhecimento da competência”) se preceitua também que: “Com excepção do disposto na lei de processo civil quanto aos termos do processo comum de declaração, aplicável por força do n.º 1 do artigo 99.º, e no regime da arbitragem voluntária no domínio do contencioso administrativo, a competência para o julgamento de questões do contencioso administrativo é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de outra matéria”.

Nesta conformidade, (e em face do assim preceituado), clara se nos apresenta a solução para a questão, valendo aqui a pena salientar ainda que, sobre a mesma, considera também Freitas do Amaral, “(…) que as questões litigiosas surgidas no quadro da execução de um contrato administrativo e que envolvam a apreciação da legalidade de um acto administrativo não podem, no nosso ordenamento actual, por força dos mesmos princípios de que a competência dos tribunais administrativos é de ordem pública (artigo 3.º da LEPTA) e da indisponibilidade de todas as questões relacionadas com a legalidade dos actos da Administração Pública (artigo 214.º, n.º 3, da Constituição, e artigo 1.º, n.º 1, da Lei da Arbitragem Voluntária – LAV), ser solucionadas a título definitivo através de tribunal arbitral. Diversamente, para as questões litigiosas que não tenham por base um acto administrativo, mas, antes, uma mera declaração negocial, e que seriam normalmente apreciadas pela via da acção nos tribunais administrativos, já será viável a celebração de convenções de arbitragem (cfr. artigos 188.º do CPA, 2.º, n.º 2, do ETAF, e 1.º, n.º 4, da LAV)”; (in ob. cit., pág. 656).

–– Resolvida que desta forma se nos apresenta ficar a parte do recurso quanto ao decidido sobre as “sanções pecuniárias ao Consórcio aplicadas pela R.A.E.M.”, passemos agora para a segunda questão, relativa aos “trabalhos extraordinários”.

Vejamos.

A cláusula 2ª do “Contrato” entre a R.A.E.M. e “Consórcio” celebrado, (e com a epígrafe “Trabalhos Normais, Adicionais e Excepcionais”), tem – na parte que agora releva – o teor seguinte:

“Um. Para efeitos do presente contrato entende-se por:
‘ a) “Trabalhos Normais” – os indicados na Cláusula Primeira – (Objecto e Modo de Execução), do presente contrato;
b) “Trabalhos Adicionais” – os que decorrendo da execução dos “trabalhos normais”, compreendem alterações quanto ao tempo, modo e forma da sua prestação, incluindo, nomeadamente, a execução de prestações adicionais e complementares;
c) “Trabalhos Excepcionais” – os que não sendo “trabalhos normais” ou “trabalhos adicionais”, durante a execução do presente contrato de Prestação de Serviços de Gestão de Projecto e Assistência Técnica, se venham a revelar necessários à implementação da 1.ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau e que seja aconselhável ou particularmente vantajoso para os interesses da Região Administrativa Especial de Macau a sua adjudicação ao Adjudicatário”.

E, assim, há que referir que claro nos parece que a (transcrita) “cláusula” que define “trabalhos excepcionais”, determina, expressamente, (seja-nos permitido repetir), que os mesmos implicam uma “nova adjudicação” (ao “Consórcio”), sendo, igualmente, de notar que, em conformidade com o acordado, “trabalhos excepcionais” são (tão só) aqueles que, não sendo “trabalhos normais” ou “trabalhos adicionais”, se venham a revelar necessários à implementação da 1ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau – obviamente, durante a execução do contrato celebrado de “Prestação de Serviços de Gestão de Projecto e Assistência Técnica” – e que seja aconselhável, ou particularmente vantajoso para os interesses da R.A.E.M., a sua adjudicação ao Adjudicatário, e, assim, nesta conformidade, da evidente necessidade da celebração e formalização de um “novo contrato” para a execução de tais “trabalhos excepcionais”.

Admite-se que se possa considerar algo duvidoso que os “trabalhos” em questão, do “Traçado em Túnel”, (que em nossa opinião, correspondiam a uma análise ou reavaliação de uma solução em túnel para o Sistema de Metro Ligeiro), se possam enquadrar no âmbito (e conceito) de “trabalhos excepcionais”, (enquanto “trabalhos” que se venham a revelar necessários à implementação da 1ª Fase do Sistema de Metro Ligeiro de Macau durante a execução do contrato de “Prestação de Serviços de Gestão de Projecto e Assistência Técnica”).

Contudo, em todo o caso, e seja como for, apresenta-se-nos porém indiscutível, (e assim foi e tem sido entendido ao longo de todo este processo), que os trabalhos do “Traçado em Túnel” (estudos quanto à solução em túnel), não eram “objecto do contrato” de prestação de serviços assinado entre a R.A.E.M. e “Consórcio”, (pelo menos, no sentido de constituírem “trabalhos normais”), razão pela qual, foram, (precisamente), considerados “excepcionais”, pelo que há pois que dizer que a interpretação e entendimento no sentido de que os “trabalhos excepcionais” – por não estarem abrangidos no “contrato” celebrado entre a R.A.E.M. e “Consórcio” – implicavam (necessariamente) uma “nova adjudicação”, tem, desde logo, suporte, no “princípio da intangibilidade do objecto”, (cfr., Pedro Gonçalves in, ob. cit., pág. 108), dado que, como sabido é, não é legalmente permitida a alteração do objecto da prestação de serviços contratualizada, mesmo que através do aditamento de uma prestação de serviços – os estudos quanto à solução em túnel – que não constava da inicialmente acordada “prestação de serviços”.

Efectivamente, (e, quiçá, ao contrário do que resulta da definição contratual para “trabalhos adicionais”, sendo também muito discutível a sua admissibilidade no âmbito de um contrato administrativo de prestação de serviços), os “trabalhos excepcionais” implicam uma “alteração do objecto da prestação”, implicando, assim, por sua vez, a celebração de um “novo contrato”.

Admite-se, igualmente, que se poderá também dizer que foi a Administração que não avançou com a “adjudicação” e a “celebração” de um novo contrato para estes “trabalhos excepcionais”…

Porém, e ressalvando sempre melhor entendimento, não se pode ignorar que, o que verdadeiramente está em causa – como bem indica o Ministério Público nas suas alegações de recurso – é, precisamente, a questão da “competência do Tribunal Arbitral” para apreciar e determinar o montante a ser pago pelos alegados e reclamados “trabalhos excepcionais” que não se incluem no “objecto do contrato” de prestação de serviços assinado entre a R.A.E.M. e o “Consórcio”, e, no âmbito do qual foi estabelecida a “cláusula compromissória”.

Por sua vez, não se nega também a possível existência de “trabalhos excepcionais”, com reflexos na execução do Contrato celebrado, mas isso, não pode significar que a “cláusula compromissória” estabelecida naquele acordo estenda a “competência” do Tribunal Arbitral ao conhecimento de questões que vão para além do que na mesma se previa e que estavam dependentes de uma nova adjudicação e de um novo contrato.

Dest’arte, apreciada que nestes termos nos parecem terem ficado as “questões” colocadas no presente recurso, e outra(s) não havendo, resta decidir como segue.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão arbitral nos precisos termos peticionados.

Custas pelo “Consórcio” recorrido, com a taxa de justiça de 15 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 26 de Abril de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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