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Processo nº 92/2020
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A ou A1 (甲), A., intentou “acção de impugnação de deliberações sociais” contra a “B”, (“乙”), R., (ambos com os restantes sinais dos autos), e alegando – em síntese – que “sete deliberações” tomadas na assembleia geral desta de 10.04.2017 eram inválidas, deduziu, a final, o seguinte pedido:

“(i) Ser declarada inválida por nulidade, nos termos das alíneas c) e d) do n.° 1 do artigo 228.° do CCom, ou se assim não se entender, por ser anulável, nos termos previstos pela alínea a) do n.° 1 do artigo 229.° do mesmo diploma legal, a deliberação do ponto 1.1. da ordem de trabalhos;
(ii) Ser declarada inválida, por nulidade, nos termos das alíneas c) do n.° 1 do artigo 228.° do CCom, ou se assim não se entender, por anulabilidade, nos termos previstos pela alínea a) do n.° 1 do artigo 229.° do mesmo diploma legal, a deliberação do ponto 1.2. da ordem de trabalhos;
(iii) Ser declarada inválida, por anulabilidade, nos termos previstos pela alínea a) do número 1 do artigo 229.° do CCom, a deliberação resultante do ponto 2 da ordem de trabalhos;
(iv) Ser declarada inválida, por nulidade, por consubstanciar a expressão de abuso de maioria, sancionado nos termos dos artigos 212.° e 475.° do CCom, e por configurar também um abuso do direito e uma violação dos bons costumes, nos termos das alíneas c) do n.° 1 do artigo 228.° do CCom e também por constituir violação do artigo 219.° do CCom, e por anulabilidade, nos termos previstos no artigo 222.°, n.° 1 alínea d) e pela alínea a) do n.° 1 do artigo 229.° do mesmo diploma legal, a deliberação resultante do ponto 3 da ordem de trabalhos;
(v) Ser declarada inválida, nos termos das alíneas c) do n.° 1 do artigo 228.° do CCom e também por constituir violação do artigo219.° do CCom, e por anulabilidade, nos termos previstos no artigo 222.°, n.° 1 alínea d) e pela alínea a) do n.° 1 do artigo 229.° do mesmo diploma legal, a deliberação resultante do ponto 4 da ordem de trabalhos;
(vi) Ser declarada inválida, por inexistência nos termos do artigo 225.° do CCom, nula por força do disposto nos artigos 219.°, 212.°, n.° 3, alínea e), 228.°, n.° 1, alínea c) e também anulável vide artigo 229.°, n.° 1, alínea a) todos do CCom, a deliberação constante do ponto 5 da ordem de trabalhos;
(vii) Ser declarada inválida, por nulidade, por constituir violação do artigo 219.° do CCom, e por anulabilidade, nos termos previstos no artigo alínea a) do n.° 1 do artigo 229.° do mesmo diploma legal, a deliberação resultante do ponto 6 da
ordem de trabalhos”; (cfr., fls. 2 a 91 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Citada, a R. não contestou, o que levou à consideração que “os factos pelo A. os alegados se dessem como provados”; (cfr., fls. 93 a 96).

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Oportunamente, após alegações de direito, pela Mma Juiz Presidente do Tribunal Judicial de Base foi proferida sentença onde – julgando-se improcedentes as excepções de “ilegitimidade activa do A.”, de “litisconsórcio necessário” e de “falta de interesse em agir” nas ditas alegações suscitadas – decidiu-se:

“1. Anular as deliberações tomadas sobre o ponto 4 e 5 da ordem de trabalhos da assembleia geral da Ré, B, realizada no dia 10 de Abril de 2017; e,
2. Absolver a Ré dos restantes pedidos formulados pelo Autor, A aliás A1”; (cfr., fls. 187 a 216-v).

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Do assim decidido, recorreram a referida R., (“B”), e o A. (A ou A1); (cfr., fls. 227 a 236 e 238 a 270).

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Em apreciação dos ditos recursos, proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 27.02.2020, (Proc. n.° 854/2018), decidindo:

“․Não conhecer do pedido de substituição da deliberação nos termos prescritos no art° 231°/6 do Código Comercial, formulado pela Ré em sede de recurso;
․Julgar improcedente o recurso interposto pela Ré B;
․Julgar improcedente uma parte da impugnação da matéria de facto suscitada pelo Autor e não tomar conhecimento da restante parte da impugnação, nos termos acima consignados na fundamentação; e
․Julgar deserta uma parte do recurso interposto pelo Autor e improcedente a restante parte do recurso interposto pelo Autor, nos termos acima consignados na fundamentação”; (cfr., fls. 309 a 370-v).

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Ainda inconformado, vem o A. (A ou A1) recorrer, alegando para concluir nos termos seguintes:

“A) Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal de Segunda Instância (TSI) do passado dia 3 de Março de 2020, que julgou improcedente o recurso formulado pelo Autor e, em consequência, decidiu manter a decisão do Tribunal Judicial de Base (TJB) que havia decidido absolver a Ré dos pedidos formulados pelo Autor de invalidade das deliberações tomadas sob os pontos 1.1, 1.2, 2, 3 e 6 da ordem de trabalhos da Assembleia-Geral em causa;
B) Ao abrigo do ponto 1.1 da ordem de trabalhos foi deliberado "Relativamente à ocupação das 7 lojas do [Edifício(1)], é exigida ao sócio A compensação pela ocupação na ausência de autorização, mediante pagamento mensal à Sociedade de renda no montante total de MOP$180.000,00, contada a partir de 17 de Fevereiro de 2017";
C) A afirmação do Tribunal a quo no sentido da desnecessidade da impugnação sobre a matéria de facto equivale, materialmente, a omissão de pronúncia, o que consubstancia nulidade processual;
D) Se o Tribunal a quo (quer o da primeira instância que o da segunda instância), tivesse apreciado e considerados provados os factos referidos nas respectivas alegações (em virtude da inexistência de contestação) - nomeadamente os artigos 34.°, 35.°, 38.° a 41.°, 43.° e 46.° da petição inicial - teria em sua posse elementos mais do que suficientes para densificar os vícios imputados pelo Autor às deliberações em causa;
E) Mesmo não o tendo feito, os restantes factos provados nos presentes autos seria, de per si, bastante para cumprir o ónus de alegação e prova a cargo do Autor;
F) A propósito do preceito legal constante da alínea d), do número 1 do artigo 228.° do Código Comercial é pacífico o entendimento na jurisprudência e doutrina Portuguesas - citada a título de direito comparado - que se deve entender por "(…) mas também aqueles casos em que "a assembleia geral, mal esclarecida sobre os seus poderes, resolve interferir na esfera jurídica de terceiros - geralmente de sócios enquanto terceiros (ou, de qualquer modo, em qualidade diversa da de sócios) ou de outros terceiros ligados à empresa social (…)";
G) Os factos alegadas pelo Autor, e reconhecidos por ambas as instâncias jurisdicionais, e ainda aqueles cuja inclusão na matéria de base instrutória, fazem concluir que a deliberação da Ré foi tomada sobre matéria fora, por natureza, da competência da assembleia geral, nomeadamente que i) os imóveis em causa não se encontravam ocupados pelo Autor; ii) o Autor não se recursou a proceder à respectiva desocupação e restituição à Sociedade; iii) as fracções em causa eram ocupadas pela sociedade denominada C; iv) a referida sociedade tem como sócios além do Autor o sócio D; v) a aludida utilização por essa outra sociedade sempre foi também do conhecimento dos sócios E e D; vi) nenhum dos sócios da Ré se opôs à mesma utilização, tendo consentido na mesma pelo menos tacitamente; vii) a Ré exigiu ao Autor o pagamento de uma renda mensal, no valor de MOP$180.000,00, desde 17 de Fevereiro de 2017 em contrapartida da ocupação das fracções pela referida sociedade; viii) o referido valor é desfasado dos valores de mercado; e ix) os sócios E e D, com a deliberação impugnada, quiseram impor uma sanção ao Autor por um facto que não lhe é sequer imputável;
H) É manifesto, assim, que o Autor cumpriu o seu ónus de alegação; no sentido da invalidade da deliberação por se referir a matéria que não está sujeita a deliberação dos sócios, nos termos do artigo 228.°, n.° 1, al. d) do Código Comercial, pelo que deverá a decisão recorrida ser revogada;
I) Os factos apresentados são de molde a legitimar a impugnação da deliberação em causa, com fundamento no sentido e motivações subjacentes à deliberação;
J) Não se defende que, no âmbito de uma assembleia geral de uma sociedade, não se possa decidir exigir o cumprimento de obrigações de que a sociedade é credora, mas sim que não se pode deliberar exigir pagamentos a alguém quando se sabe manifestamente não ser o mesmo exigível - precisamente o que os sócios E e D despudoradamente fizeram;
K) Ademais, uma deliberação deste tipo comporta a possibilidade de unilateralmente definir um montante a título de renda e impô-lo a um terceiro alheio à sociedade, mas como foi admitido e reconhecido em ambas as instâncias jurisdicionais, não é nem podia ser legalmente exigível o pagamento de uma qualquer renda sem haver qualquer negociação ou contratualização nesse sentido com tal terceiro;
L) Tal como esclarecido pelo Tribunal a quo (e o TJB antes deste), a deliberação em causa não produz quaisquer efeitos perante o Autor;
M) E o que acaba de ser dito para o preceito legal constante do artigo 228.°, n.° 1, alínea d) do CComercial é aplicável, na respectiva medida, ao disposto no artigo 229.°, n.° 1, alínea a) do CComercial, pelo que se rejeita a fundamentação e subsequente decisão do Tribunal a quo nesta matéria, a qual, por ser ilegal ao considerar que o ónus de alegação do Autor não foi respeitado, deverá ser revogada e corrigida pelo douto Tribunal ad quem;
N) Por sua vez, quanto ao abuso de direito, é manifesto que a deliberação emanada pela Ré ora sob escrutínio não tem a virtualidade de vincular o Autor;
O) Mais chocante é que essa deliberação foi tomada pela Ré mesmo sabendo que o que dela brotava jamais poderia ser obtido, mormente o pagamento de uma qualquer compensação pela utilização de fracções que esta sabia era feita com a sua permissão, de forma gratuita;
P) O que aqui está em causa é a censurabilidade da deliberação ao formular exigências indemnizatórias com base na alegada ocupação das fracções por parte do Autor quando a Ré sabia que quem ocupava as fracções não era o Autor mas uma outra sociedade que tinha como sócios o Autor e D - como, aliás, foi dado como provado nos presentes autos;
Q) A conduta subscrita pelos demais sócios na deliberação em causa é contrária aos ditames da consciência ética, é que não pode ser outro o entendimento do Autor, ora Recorrente, qual seja o da nulidade da mesma;
R) Com a decisão em crise, o Tribunal a quo admite expressamente e dá cobertura à existência de situações em que uma Sociedade, como forma de importunar de forma inaceitável e desprovida de qualquer fundamento legal, delibere contra um sócio o pagamento, a título de indemnização, de determinados montantes quando sabe, ab initio, que os mesmos não são devidos e que, ainda que o fossem, seriam devidos por uma outra entidade;
S) Não pode haver conduta mais censurável e ofensiva do entendimento socialmente aceitável do que seja honestidade, justeza e rectidão do que o comportamento que agora se sindica e que obteve vencimento na deliberação ora impugnada.
T) In casu, o princípio fundamental, com relevância para a vida em sociedade, é o princípio da responsabilidade, isto é, o de que ninguém poderá ser obrigado ou condenado a pagar quaisquer montantes sem que seja responsável pelos mesmos;
U) Com efeito, é social, ética e moralmente chocante que alguém determine outra pessoa, de forma unilateral e sem qualquer fundamento fáctico ou jurídico para tal, ao pagamento de montantes cuja causa não lhe é minimamente imputável, sabendo, de resto; que a existir um responsável seria uma entidade diferente e jamais o Autor, ora Recorrente;
V) O que é ilegal na decisão de que ora se recorre é o facto de esta entender que a Ré, ora Recorrida, não obstante saber que não tem fundamento para exigir ao Autor, ora Recorrente, o pagamento de quaisquer indemnizações relativamente às fracções, vem exigi-las na mesma, fazendo impender sobre este uma obrigação pecuniária ilegal, infundada e moralmente ofensiva dos bons costumes;
W) Com um efeito perverso adicional, qual seja o de que, ao manter a referida deliberação, o Tribunal está a permitir o surgimento de um direito de crédito na esfera jurídica da Ré, ma Recorrida, contra o Autor, com os efeitos jurídicos daí potencialmente advenientes, mormente ao nível da distribuição de lucros, inter alia;
X) Nesta sede, recorde-se também que a Ré, ora Recorrida, no âmbito da sua deliberação referente ao ponto 5 da ordem de trabalhos, determinou que uma eventual distribuição de bens - donde se pode legitimamente incluir uma eventual distribuição de lucros - ficaria sempre condicionada ao apuramento de quaisquer eventuais prejuízos da sociedade, pelos quais o Autor, ora Recorrente seria responsável;
Y) O que demonstra claramente que a intenção dos demais sócios da Ré era o de reduzir e limitar os proventos a que o Autor, ora Recorrente, sempre teria direito numa futura liquidação e dissolução;
Z) Ora, como já se frisou supra, e agora se faz questão de reiterar, a exigência ao Autor, ora Recorrente, de montantes a título da ocupação de fracções da Ré, ora Recorrida, quando esta sabia que quem as ocupava era uma outra entidade e não o Autor (não sendo por este, logicamente, devidas), choca profundamente a consciência social e o ético mínimo de justiça e da correcção negocial societária;
AA) E não se venha dizer, como pretende inculcar o Tribunal a quo, que uma tal deliberação seria inócua porquanto não produziria efeitos externos para com o Autor, ora Recorrente, na medida em que o mesmo estava a ser considerado na deliberação em crise não na sua qualidade de sócio mas, outrossim, como terceiro alheio à Ré;
BB) A manutenção de uma tal deliberação poderá ter (e, muito provavelmente, terá) efeitos ao nível das relações internas da sociedade Ré, ora Recorrida, porquanto a mesma poderia, em abstracto, possibilitar o nascimento de um direito de crédito totalmente ilegal desta sobre o Autor, ora Recorrente, que esta poderá utilizar como forma de compensação ou limitação dos direitos de crédito deste sobre aquela, nomeadamente em sede de distribuição de lucros;
CC) Nos presentes autos, a Ré, ora Recorrida - por via da conjugação dos votos (e esforços) dos sócios E e D - aproveita-se do facto de o Autor, ora Recorrente, ser um dos sócios (tal corno D, recorde-se) da sociedade que ocupou as suas fracções, para vir exigir uma prestação patrimonial reconhecidamente indevida, concretizando uma tal exigência o conceito de exploração económica censurável;
DD) Por essa razão é a deliberação manifestamente atentatória dos bons costumes e, como tal, susceptível de ser sancionada com a nulidade, pelo que andou mal o Tribunal a quo ao decidir que o grau de censurabilidade reconhecido por si à deliberação não era suficiente para ser enquadrado como ofensivo dos bons costumes;
EE) Ainda que assim não se entenda, jamais se poderá deixar de concluir que a deliberação em causa encerra uma invalidade em função do abuso de direito que a mesma comporta, o que fundamenta, igualmente, a ilegalidade da decisão judicial do Tribunal a quo que ora se sindica por via do presente recurso, como entende a jurisprudência e doutrina maioritárias passíveis de ser convocadas;
FF) Ao permitir a verificação de uma situação como esta, a decisão está fatalmente viciada por ilegalidade, o que se sindica por intermédio do presente recurso, pelo que, em suma, é inegável que a decisão recorrida, ao considerar válida a deliberação em causa, padece de manifesta ilegalidade, pelo que se reiteram os pedidos de declaração de invalidade nos termos e com os fundamentos peticionados no quadro dos presentes autos;
GG) Nos termos da deliberação tomada ao abrigo do ponto 1.2 da ordem de trabalhos, foi decidido reservar direito de exigir compensação pela utilização de 21 parques de estacionamento do [Edifício(1)] por parte do Autor;
HH) O Autor concorda em absoluto com a asserção do Tribunal a quo e, anteriormente, do Tribunal Judicial de Base, nos termos da qual o Autor não poderá ser afectado por uma qualquer decisão de lhe impor o pagamento de quaisquer montantes com fundamento na ocupação dos 21 parques de estacionamentos mencionados no ponto 1.2 da ordem de trabalhos, quer na sua qualidade de sócio da Ré que como terceiro perante aquela, sobretudo porquanto, de acordo com a factualidade assente e provada, a utilização dos referidos parques de estacionamento foi feita pelo Autor, ora Recorrente de forma lícita, autorizada e consentida por parte da Ré, ora Recorrida;
II) Não há, assim, qualquer utilização de terceiro não autorizada dos referidos parques de estacionamento a ser sindicada por parte da Ré e, muito menos, exigida qualquer compensação;
JJ) Não obstante não decorrer de forma expressa da deliberação, a verdade é que da discussão do referido ponto em sede de assembleia geral resultou a pretensão dos sócios E e D, através da Ré, ora Recorrida, de exigir uma compensação ao Autor, ora Recorrente, pela ocupação dos referidos imóveis, ocupação essa que, como consta da matéria de fado dada como provada nos presentes autos, foi totalmente lícita e autorizada;
KK) A presente deliberação tem encapotada uma exigência pecuniária ao Recorrente, pelo que todas as considerações deixadas supra a propósito da invalidade da deliberação 1.1;
LL) Caso se aceitasse o raciocínio do Tribunal, sempre que uma deliberação não esteja dirigida a nenhum visado concreto, esta tratar-se-ia apenas de uma intenção resultante do órgão deliberativo da Ré, como espécie de directiva ou orientação, perante actos eventuais de terceiros, mas tal argumentação não pode colher de forma alguma;
MM) A invalidade de deliberações deste género não radica no facto de não poderem ser eficazes, mas porque atentam claramente no sentido comum do que possa entender-se por bons costumes, e como tal, não é porque a deliberação é abstracta que pode concluir-se que não pode afectar a noção dos bons costumes;
NN) Uma deliberação afecta os bons costumes quando o seu teor radica em algo que é censurável ética e moralmente, tal como se deixou explicitado de forma extensa e manifesta a respeito da deliberação tomada sob o ponto 1.1 da ordem de trabalhos;
OO) No caso sub judice, uma deliberação sobre uma potencial exigência de pagamento relativamente a uma ocupação que, como ficou provado, não só era conhecida, como também era gratuitamente consentida, enquadra-se no referido conceito genérico e indeterminado de "ofensa aos bons costumes":
PP) Termos em que deve ser reconhecida a ilegalidade da decisão a quo ora em crise, reiterando-se o pedido de invalidade da deliberação em causa;
QQ) Por sua vez, ao abrigo do ponto 2 da ordem de trabalhos da Assembleia, foi deliberado designar a auditora F para proceder à auditoria e reelaboração das contas societárias desde 2008 até à presente data;
RR) Em resposta aos argumentos do Autor, veio o Tribunal a quo desconsiderar os factos alegados por defender que a técnica de alegação por junção de documento não é admissível e, por outro lado, que a deliberação em causa não é de molde a ser considerada como geradora de abuso de direito - posição com a qual o Autor não concorda;
SS) A propósito do primeiro segmento decisório haverá sempre que dizer que se tratou da junção de uma petição inicial, devidamente identificada e relativamente a uma matéria praticamente idêntica, citada a propósito dos factos alegados, com factos comuns a todas as acções judiciais em curso correntemente;
TT) Ademais, o Autor não se limitou a juntar o referido documento, mas teve o cuidado de identificar minuciosamente os artigos a que fazia apelo e de abordar a questão na sua alegação, tendo tais factos como pano de fundo;
UU) Tratando-se, assim, de factos conhecidos do Tribunal que, assim, não carecem depois de ser alegados novamente (artigo 434.°/2 do CPC);
VV) Já quanto à admissibilidade da contestação por junção de documento e à não admissibilidade de exposição de factos que constituem a causa de pedir por inexistência de norma ou posições conhecidas sobre a matéria, sempre se dirá que a não aceitação de tal meio de exposição poria em destaque uma inaceitável desigualdade entre as partes, na medida em que nada justifica que tal faculdade seja permitida a um réu mas não a um autor;
WW) Ainda que não haja norma expressa a admitir a alegação de factos inscritos em documentos juntos, tal maneira de alegar deverá ser atendida, sobretudo porquanto neste caso, tal referência não consubstancia a mera junção de documento mas fazendo referência expressa e especificadamente aos factos em concreto e alegando com base nos mesmos;
XX) Deverá, assim, a decisão recorrida ser revogada e determinada a aceitação da referida alegação e, ademais, incluídos os factos mencionados em sede de recurso da matéria de facto, na matéria de facto assente;
YY) Por outro lado, a respeito da parte decisória que conclui pela improcedência do abuso de direito, entende o Autor que existe tal conduta abusiva porque os motivos dos outros sócios subjacentes à deliberação correspondem a "mero capricho dirigido contra o Autor";
ZZ) Tal como se aflorou já nesta sede, não é correcto que o Autor não tenha aduzido factos para comprovar o motivo espúrio subjacente à deliberação ora em apreço, porquanto no artigo 73.° da petição inicial (não contestada, recorde-se) considerou-se reproduzida a matéria dos artigos 23.° a 57.° do acção que corre termos sob o n.° CV1-17-0026-CAO, matéria essa que deveria ter sido dada como provada pelo Tribunal a quo;
AAA) A ausência de resposta deste nesta sede consubstancia omissão de pronúncia sancionável com nulidade da decisão, o que vai requerido;
BBB) Deve, nessa senda, ser revogada a decisão recorrida e admitida a inclusão da referida matéria de facto, na matéria de facto assente;
CCC) Se tais factos (indicados por remissão, e bem assim os factos indicados no âmbito do recurso da matéria de facto anterior) tivessem sido considerados, ter-se-ia forçosamente de concluir que a deliberação de exigir a reelaboração das contas ora em causa corporiza a pretensão dos sócios E e D, por intermédio da saciedade Ré, ora Recorrida, de prejudicar o Autor e sobretudo a própria Sociedade, enquanto procuram, ilegitimamente, beneficiar-se a si próprios;
DDD) De facto, com tal deliberação, os sócios E e D designaram um familiar para preceder à reelaboração das contas societárias, pedido que, aliás, vêm reiteradamente fazendo (nomeadamente na assembleia geral da Ré de 16 de Fevereiro de 2017);
EEE) Ora, recorde-se que não só todas as contas da Ré foram aprovadas por esta, como os demais sócios, aquando da cessão de quotas ocorrida em 1999, analisaram as contas e determinaram o montante total do activo e do passivo, assim aprovando as respectivas contas;
FFF) Nunca as mesmas foram questionadas, pelo contrário, foram aceites e reconhecidas por todos os sócios e, consequentemente, pela Ré, ora Recorrente, enquanto entidade que corporiza a vontade e interesse daqueles;
GGG) Perante este circunstancialismo fáctico, é fácil de ver que o interesse subjacente a deliberação sub judice é o de, mediante o recurso a um elemento que, em função dos laços familiares com um dos sócios que votou no sentido favorável da mesma não pode, de forma alguma, ser parcial, fazer operações de cosmética financeira e contabilística de forma a criar créditos da Ré, ora Recorrida, sobre o Autor, ora Recorrente;
HHH) Não deixa de ser curioso, que esta maquilhagem contabilística, com o único intuito de se favorecer a si próprio prejudicando o Autor, ora Recorrente, apenas seja suscitada numa altura em que, em face dos litígios insanáveis entre os sócios, todos acordaram em extinguir a sociedade e distribuir entre si o património social;
III) Nos factos anteriores se estriba a justificação para a deliberação em manifesto venire contra factum proprium, o tal "mero capricho dirigido contra e em prejuízo de alguém" a que o Tribunal Judicial de Base se referiu e o Tribunal a quo também não logra encontrar;
JJJ) Assim, deveria ter esta deliberação sido declarada inválida, donde resulta a ilegalidade da decisão do Tribunal a quo ora objecto do presente recurso, pelo que se requer a final seja a decisão recorrida revogada e substituída por uma que reconheça a declaração de invalidade da presente deliberação;
KKK) Por sua vez, ao abrigo do ponto 3 da ordem de trabalhos, foi aprovado a designação dos administradores E e D para elaboração de relatório e, em conformidade, com a eventual existência de provas, apurar se houve ou não sócios que prejudicassem os interesses societários;
LLL) A título preliminar, refere o Tribunal a quo que a matéria de facto referida no recurso da decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base apresentado pelo Recorrente e que não havia sido considerada como matéria de facto assente (em virtude da ausência de contestação, por efeito de revelia operante) "não se mostra necessária à apreciação das questões que se colocaram", conclusão com que não pode o Autor concordar e que, de resto, configura nulidade processual por omissão de pronúncia;
MMM) Por outro lado, há igualmente a referir que o Autor jamais se referiu a acordos parassociais na sua argumentação, pelo que que a menção aos mesmos pelo Tribunal a quo como única forma de se poder mobilizar os artigos 475.° e 212.° do Código Comercial é redutora e simplista, com a qual o Autor, ora Recorrente, não pode de maneira alguma, concordar;
NNN) O número 3 do artigo 475.° faz operar uma remissão para o artigo 212.°, n.° 1, alínea e), que se diferencia do teor do número 1 do artigo 212.°, todos do Código Comercial, ao estabelecer, para efeitos de considerar uma situação de abuso da posição de sócio dominante, uma equiparação entre i) os casos em que há um sócio dominante e sócios ligados entre si por acordos parassociais e ii) os casos de sócios que concorram com os seus votos para a aprovação de deliberações com o consciente propósito de obter para si ou para terceiro, vantagem indevida em prejuízo da sociedade, de outros sócios ou de credores daquela;
OOO) Nesta sede, a remissão prevalente é a feita operar pelo número 3 e não a do número 1 do artigo 415.°, à luz da qual se terá de concluir que a figura do abuso da maioria não é um acto privativo do sócio dominante, podendo existir, uma tal situação perante sócios cuja maioria resulte da mera agregação do seu capital social, como sucede nos presentes autos;
PPP) Tão clara como a amplitude daquela remissão, é o fito dos sócios D e E, o qual densifica plenamente o "consciente propósito" a que é feito referência na alínea e) do número 3 do artigo 212.° do Código Comercial;
QQQ) Perante a factualidade relevante dos presentes autos (a considerada assente e aquela que o não foi mas cuja inclusão foi requerida ao Tribunal a quo, em virtude da total falta de oposição da Ré, ora Recorrida), o intuito dos sócios E e D que subjaz à deliberação ora em causa era o de conseguir para si uma vantagem especial na eventual partilha dos bens sociais acordada entre as partes, em prejuízo do Autor, ora Recorrente;
RRR) Com efeito, a pretexto de eventuais prejuízos provocados à Ré por parte do Autor - que como ficou provado (e ademais reconhecido pela primeira e segunda instâncias quando afirmaram que tais deliberação não vinculam o Autor na sua qualidade de terceiro), não têm qualquer fundamento, os sócios E e D auto-designaram-se como responsáveis pela preparação de um lei relatório para apurar a existência de tais alegados prejuízos;
SSS) Ora, ficou já provado à saciedade que o Autor, ora Recorrente, não é responsável por quaisquer prejuízos causados à Ré por força da alegada ocupação das fracções autónomas e dos parques de estacionamento;
TTT) Como se tem vindo já a dizer, esta actuação consubstancia, de forma inegável, uma evidente demonstração de um abuso do direito, manifestamente contrário aos bons costumes, na modalidade do venire contra factum proprium;
UUU) O que os sócios E e D tinham em mente - revelado à saciedade pelas posições que assumiram em toda a Assembleia-Geral e nas anteriores, de resto - mais não é do que ficcionar um prejuízo da Ré de modo a poderem opô-lo ao Autor;
VVV) Toda a conduta dos referidos sócios na assembleia geral torna claro que já ditaram o veredicto final do relatório, no sentido de, por um lado, apurar a existência de prejuízos da Ré apenas imputáveis ao Autor e, por outro lado, a total absolvição daqueles de quaisquer condutas danosas em relação à Ré;
WWW) Só com tal actuação conseguirão os referidos sócios inventar um suposto crédito da Recorrida para com o Recorrente, com o desiderato de sair injustificadamente beneficiados na partilha dos bens sociais resultante da acordada dissolução da Ré, em prejuízo do Recorrente;
XXX) Daí que não se compreenda o que sustenta o Tribunal a quo quando diz que "sendo meramente hipotéticos, senão demasiadamente prematuros, os fundamentos ora invocados pelo Autor, não têm a virtualidade de inquinar a deliberação das invalidades" a esta imputada pelo Autor. É que este propósito não é meramente hipotético nem prematuro;
YYY) O referido propósito ficou evidenciado de forma patente na discussão do ponto 5 da ordem de trabalhos em que os sócios E e D aprovaram que os lugares de estacionamento que caberiam ao Recorrente da partilha dos bens sociais apenas seriam entregues ao último depois da conclusão e votação do relatório, por eles elaborado, destinado a apurar os alegados danos causados pelo mesmo à Recorrida, ficando, entretanto, retidos;
ZZZ) Ora bem, uma tal deliberação, aprovada pelos sócios E e D, em que eles se nomeiam a si próprios para elaborar o dito relatório, excluindo o Autor, ora Recorrente, de qualquer participação na elaboração do mesmo, tem como único visado este e como resultado a beneficiação artificial dos sócios E e D e da Sociedade;
AAAA) A deliberação visa promover uma forma artificial de criar créditos à Sociedade e dívidas na esfera patrimonial do Autor, ora Recorrente, como forma de obter benefício indevido futuro (em eventual momento de distribuição e/ou dissolução);
BBBB) A elaboração de um tal relatório, nestes moldes, neste contexto, e com estas vicissitudes não tutela o interesse da sociedade, porquanto a adopção de deliberações sociais desta índole em nada beneficiam a Sociedade Ré, que por força de lei, terá que suportar todas as despesas judiciais associadas à sua impugnação, a pretexto de obtenção ilegítima de benefícios por parte de alguns sócios que, em conjunta, formam a maioria do capital social;
CCCC) O apuramento de quaisquer potenciais responsabilidades face à sociedade por parte de sócios, em que as pessoas encarregues de apurar tais danos são elas próprias sócios da sociedade alvo, integra, manifestamente, o conceito de conflito de interesses, configurado no artigo 219.° do Código Comercial;
DDDD) A doutrina e jurisprudências da RAEM e, bem assim, de Portugal - suscitada a título de direito comparado -, são unânimes no entendimento de que a temática do conflito de interesses entre o sócio e a sociedade relativamente ao impedimento do direito de voto está umbilical mente ligada ao princípio do interesse social, devendo ser entendido como como um mecanismo de prevenção ao abuso do direito, tem em vista prevenir situações em que o sócio se depara com uma situação de conflito de interesses, entre os seus interesses, próprios e pessoais, e os interesses da sociedade;
EEEE) A existência de conflito de interesses se apura do confronto entre o interesse pessoal dos sócios e o interesse social, sendo certo que o interesse dos sócios E e D não é compatível com o da sociedade, qual seja o de fixar responsabilidades e danos que, como se deixou provado, não existem;
FFFF) Ainda que assim não se considere, sempre haverá que concluir que tendo a deliberação ora em causa como objecto apurar eventuais responsabilidades dos sócios da sociedade, nomear administradores que também são sócios para fazer o referido apuramento, ou seja, pessoas com interesse em que, relativamente a si próprios, não pretendem que sejam assacadas quaisquer responsabilidades, configura manifestamente um dissenso entre o interesse social e o seu próprio interesse;
GGGG) Existe nesta situação, tal como referido na Jurisprudência acima referida, um conflito de interesses, ainda que potencial ou abstracto, que requer tutela jurídica, mormente pela proibição de voto por parte dos impedidos (in casu, de todos os sócios) e, em caso de ter havido votação por parte dos impedidos, da declaração da sua invalidade por parte do Tribunal, nos termos referidos supra e já peticionados nos presentes autos, e que foram - mal - julgados improcedentes pelo Tribunal a quo;
HHHH) Mesmo que se considerasse que os sócios E e D não estavam impedidos de votar esta matéria, conforme acima defendido, a deliberação em apreço nunca poderia deixar de se considerar como manifestamente abusiva e contrária aos bons costumes e, por conseguinte, nula;
IIII) Com a deliberação em apreço os sócios E e D, com o exercício do direito de voto nos termos em que o fizeram, mais não procuram do que obter para si vantagens especiais em prejuízo do Autor, sendo a deliberação ora impugnada o meio de o conseguir, o que é de molde a gerar a invalidade da presente deliberação, ao contrário do que decidiu o Tribunal a quo, pedido que ora se reitera seja julgado procedente nos termos peticionados, revogando-se a decisão ora em crise;
JJJJ) No âmbito do ponto 6 da ordem de trabalhos, foi deliberada a "delegação de poderes nos administradores para tratarem das acções judiciais relacionadas com a Sociedade e actualizarem as informações, a espécime de assinatura e novo carimbo junto dos bancos em Macau";
KKKK) A este propósito, referiu o Tribunal a quo que "Não tendo sido destituído o Autor por ter sido entretanto anulada a deliberação que o exonerou, a gerência da Ré permanece inalterada, o que retira qualquer inutilidade à deliberação sobre o ponto 6 da ordem de trabalhos, que no fundo decidiu restruturar a composição de toda a gerência e incumbi-la de algumas tarefas", reconhecendo a argumentação do Autor no sentido de que a deliberação tomada ao abrigo do ponto 6 da ordem de trabalhos está na dependência lógica da deliberação tomada à luz do ponto 4 da ordem de trabalhos, a qual foi considerada inválida, quer pelo Tribunal Judicial de Base quer pelo Tribunal de Segunda Instância;
LLLL) A referida dependência lógico-funcional implica que a declaração de invalidade da primeira significa a invalidade da segunda ou, pelo menos, a sua total inutilidade - tal como reconhecida pelo douto Tribunal de Segunda Instância;
MMMM) O TSI apenas não concluiu de forma irreversível pela consequente invalidade / inutilidade da deliberação de que ora nos ocupamos em virtude da possibilidade da Ré recorrer da sua decisão de manter a invalidade declarada pelo TJB relativamente à deliberação tomada sob o ponto 4. da ordem de trabalhos;
NNNN) O Autor apurou que a Ré optou por não apresentar qualquer recurso sobre a decisão recorrida - conformando-se, portanto, com o teor e consequências da mesma -, pelo que deverá o douto Tribunal ad quem decidir pela inutilidade da deliberação tomada ao abrigo do ponto 6 da ordem de trabalhos;
OOOO) Subsidiariamente, o Autor considera que a deliberação em causa deveria ser invalidade com fundamento na existência de conflito de interesses dos demais sócios na sua adopção;
PPPP) Nesta sede, a doutrina e jurisprudência de Portugal - aqui citadas a título de direito comparado - têm referido que um sócio está em conflito de interesses com a sociedade "quando no caso haja divergência de princípio entre o interesse do sócio e o interesse da sociedade - interesse comum a todos os sócios enquanto tais - convindo, portanto, ao sócio uma deliberação orientada em determinado sentido e à sociedade uma deliberação em sentido diferente";
QQQQ) No caso sub judice, o interesse dos sócios D e E é claramente o de afastar o Autor, ora Recorrente, da administração da Ré, ora Recorrida, prevenindo-se assim a sua legítima actuação como administrador da sociedade mesmo quando a flagrante invalidade da deliberação da sua destituição fosse reconhecida;
RRRR) O interesse da sociedade, em geral, é o da prossecução do lucra no espectro da sua actividade, logo, o afastamento de um dos sócios da administração, que mais não visa senão a exclusão do Recorrente das matérias de gestão da sociedade, em nada auxilia o interesse da sociedade;
SSSS) Existe, assim, uma manifesta divergência entre aquilo que é o interesse da sociedade (rectius, dos seus sócios - onde se inclui naturalmente o Recorrente) e o interesse objectivo dos demais sócios;
TTTT) A posição pessoal dos sócios D e E choca com o interesse da sociedade, e que se corporiza na pretensão destes de excluir ilegítima e ilegalmente o Recorrente da administração da Ré;
UUUU) É contra o interesse da Ré permitir-se com esta deliberação o afastamento deliberado do Autor da administração da Ré;
VVVV) É também contra o interesse daquela permitir-se que apenas dois dos seus sócios a possam representar nas matérias deliberadas, sendo da sua conveniência que os interesses dos sócios, que, em última análise, são os seus, sejam tutelados de forma igual e equilibrada, o que não sucede com a deliberação ora em crise - aí se baseando a invalidade da presente deliberação e, consequentemente, a ilegalidade da decisão recorrida que a manteve;
WWWW) A atribuição de poderes deliberada no ponto 6 da ordem de trabalhos configura verdadeiramente uma deliberação em benefício próprio (dos sócios E e D), relativamente à qual existe manifesto conflito de interesses e, como tal, passível de ser sancionada, assim, com nulidade por violação do disposto no 219.° do Código Comercial;
XXXX) A decisão do Tribunal a quo, ao não reconhecer a invalidade da deliberação ora em apreço, encontra-se viciada de ilegalidade e deve, por essa razão, ser revogada com fundamento nos termos apresentados no presente recurso”;
(cfr., fls. 380 a 413, notando-se que, certamente por lapso se diz na “conclusão A” que o Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância é datado de “3 de Março de 2020”, pois que foi proferido em “27.02.2020”).

*

Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre apreciar e decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como provados os factos seguintes:

«․ A Ré é uma sociedade comercial de responsabilidade limitada por quotas, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º XXXX(SO), com o capital social de MOP$100.000,00, dividido em três quotas, que tem como objecto social a construção civil e a compra e venda e outras operações sobre imóveis.
․ O Autor é um dos sócios da Ré, sendo titular de uma participação social no capital daquela no montante de MOP$37.500,00, equivalente a 37,5% do capital social da Ré.
․ O restante capital social da Sociedade encontra-se dividido em duas quotas pertencentes ao sócio D, titular de uma participação social de MOP$25.000,00, equivalente a 25% do capital social da Ré, e ao sócio E, titular de uma participação de MOP$37.500,00, equivalente a 37,5% do capital social da Ré.
․ A administração da Ré encontra-se organizada em três distintos grupos, a saber:
i. Grupo A constituído pelo não sócio庚G, pessoa da sua confiança;1
ii. Grupo B que era formado pelo Autor mas que, na sequência da sua destituição deste cargo na assembleia geral, de 10 de Abril de 2017, se encontra por preencher; e
iii. Grupo C integrado pelo sócio D e pela não sócia H, sua familiar.
․ A respectiva gerência é assegurada por dois gerentes, pertencentes a diferentes grupos, com excepção da execução de actos respeitantes a alienação de quotas da sociedade, para o que são necessárias as assinaturas conjuntas de três gerentes, pertencentes a diferentes grupos da gerência.
․ O sócio D convocou, por carta datada de 20 de Março de 2017, e recebida pelo Autor em 22 de Março de 2017, uma assembleia-geral extraordinária a ser realizada no dia 10 de Abril de 2017, nos termos constantes da Convocatória.
․ A convocatória recebida pelo Autor, assinada pelo sócio D continha a seguinte ordem de trabalhos:
1. 討論及議決【[大廈(1)]】及【[大廈(2)]】本公司的物業及車位租值;
2. 討論及議決委任己核數師審計及重編由2008年至今的公司賬目;
3. 討論及議決計算股東損害公司利益價值及商議解決方案;
4. 討論及議決解任一名行政管理機關成員經理之職務;
5. 討論及議決具體如何分配公司現有資產及現金;
6. 委任行政管理機關成員具體執行股東決議及行使以經理身份管理公司的權力;
7. 其他必要事項。
․ No seguimento da referida convocatória, o Autor compareceu na hora e local agendados para a realização da Assembleia.
․ Aberta a reunião, os sócios E e D propuseram serem eles a assumirem respectivamente os cargos de Presidente e Secretário da Assembleia, advertindo que a acta da reunião seria elaborada e disponibilizada aos sócios em 10 dias úteis após a realização da assembleia geral, tempo que consideravam necessário para tal tarefa.
․ Considerando o referido prazo manifestamente excessivo e uma confissão velada da incapacidade dos ditos sócios para o exercício dos citados cargos, o Autor propôs ser ele a assumir tal incumbência comprometendo-se a elaborar a acta da reunião em 7 dias.
․ A referida proposta foi rejeitada pelos sócios E e D sem qualquer justificação e, malgrado as várias tentativas do Autor, feitas através dos seus mandatários, em obter o referido documento o mais rapidamente possível, a cópia da acta em apreço apenas lhe foi disponibilizada no dia 24 de Abril.
․ Todas as matérias sujeitas a deliberação (com excepção daquela que se refere ao ponto 1.3, entretanto adiado), não obstante o voto desfavorável do Autor, foram aprovadas com os votos favoráveis dos sócios D e E.
․ Realizaram-se duas Assembleias-Gerais da Ré em 20 de Janeiro de 2017 e 16 de Fevereiro de 2017, e a validade da maioria das deliberações aí tomadas encontra-se a ser discutida no 1º Juízo Cível deste Tribunal, nos âmbitos dos Processo n.º CV1-17-0016-CAO e CV1-17-0026-CAO.
․ O teor e fim último das deliberações impugnadas nos presentes autos e aqueles que se impugnaram através das acções que correm termos neste Tribunal sob os nºs CV1-17-0016-CAO e CV1-17-0026-CAO é praticamente idêntico.
․ Os sócios E e D vêm deliberando repetidamente sobre os mesmos assuntos e as mesmas matérias, sempre em prejuízo do Autor.
․ O ponto 1.1 da ordem de trabalhos da Assembleia, que resulta do desdobramento do ponto 1, consiste no seguinte:
討論及議決【[大廈(1)]】及【[大廈(2)]】本公司的物業及車位租值 (“Discussão e deliberação sobre o valor locatício dos imóveis e parques de estacionamento do edifício [Edifício(1)] e [Edifício(2)], pertencentes à Sociedade”).
․ Após a discussão sobre o referido ponto, foi aprovada a seguinte deliberação:
“「就【[大廈(1)]】7個舖位的佔用情況,要求股東甲需補償因擅自佔用而支付每月繳付租金合共港幣180,000元予公司,並從2017年2月17日開始計算」。”
“Relativamente à ocupação das 7 lojas do [Edifício(1)], é exigida ao sócio A compensação pela ocupação na ausência de autorização, mediante pagamento mensal à Sociedade a renda no montante total de MOP$180.000,00 contada a partir de 17 de Fevereiro de 2017”.
․ Estão em causa sete fracções autónomas sitas no [Edifício(1)] e e que são pertença da Sociedade: fracções autónomas designadas por “APR/C”, “BAR/C”, “AQR/C”, “ATR/C”, “AVR/C”, “AWR/C” e “BBR/C”, do prédio denominado [Edifício(1)] sito em Macau na [Rua(1)], nº 484, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX.
․ Os mencionados imóveis não se encontravam ocupados pelo Autor, nem este se recusou a proceder à respectiva desocupação e restituição à Sociedade.
․ Estas fracções encontram-se a ser ocupadas pela sociedade denominada C.
․ Esta sociedade tem como sócios, além do Autor, o sócio D.
․ A utilização dos ditos imóveis pela C sempre foi também do conhecimento dos sócios E e D.
․ Nenhum dos sócios da Ré se opôs à mesma utilização.
․ Ao menos tacitamente sempre consentiram na nessa utilização.
․ Só muito recentemente a Ré pediu a restituição das fracções em apreço, o que fez através de carta.
․ Pedido a que o Autor acedeu, respondendo através de uma carta datada de 7 de Fevereiro de 2017 e em que se limitou a solicitar a concessão de um prazo considerado razoável para concretizar a desocupação dos imóveis.
․ O Autor, na sua qualidade de sócio da C imediatamente diligenciou no sentido de responder a esse pedido da Ré.
․ São totalmente desconhecidas do Autor as premissas em que assenta o referido valor, nomeadamente a avaliação que os sócios E e D referem ter obtido mas que não exibem à Assembleia.
․ O ponto 1.2 da ordem de trabalhos da Assembleia consiste no seguinte:
“1.2 公司擁有的【[大廈(1)]】21個車位租值問題” (“Questão do valor locatício dos 21 parques de estacionamento do [Edifício(1)], que a Sociedade possui”).
․ Após a discussão sobre o referido ponto, foi aprovada a seguinte deliberação:
“就【[大廈(1)]】21個車位於今日由甲交吉予公司及保留追討此21個車位在2017年2月17日或之前被任何人士侵佔使用權的金錢損失賠償,以及自上次會議後至今次會議期間之金錢損失”
“Os 21 parques de estacionamento do [Edifício(1)] são entregues, nesta data em estado devoluto por A à Sociedade e é reservada a reclamação de indemnização dos prejuízos pecuniários até ao dia 17 de Fevereiro de 2017, derivados do uso abusivo por qualquer terceiro do direito de uso dos tais 21 parques de estacionamento”.
․ Estão em causa 21 lugares de estacionamento sitos no [Edifício(1)] e que são pertença da Sociedade.
․ A Ré, os seus sócios e administradores estavam a par e sabiam perfeitamente que o Autor se encontrava a usar os 21 lugares de estacionamento em apreço tendo consentido em tal uso.
․ Tão só na assembleia geral de 16 de Fevereiro de 2017 os restantes sócios da Ré pediram ao Autor para cessar o uso dos 21 lugares de estacionamento, este imediatamente acedeu a fazê-lo.
․ O ponto 2 da ordem de trabalhos da Assembleia consistia no seguinte:
“討論及議決委任己核數師審計及重編由2008年至今的公司賬目” (“Discussão e deliberação sobre a designação da auditora F para proceder à auditoria e reelaboração das contas societárias desde 2008 até à presente data”).
․ Discutido o referido ponto, foi aprovada a seguinte deliberação:
“委任己核數師審計及重編由2008年至今公司帳目”
“Designação da auditora F para proceder à auditoria e reelaboração das contas societárias desde 2008 até à presente data”.
․ Todas as contas referentes à actividade da Ré foram já preparadas, escrutinadas e aprovadas pela Ré e, subsequentemente, auditadas por um auditor oficial de contas inscrito nos serviços de finanças e cuja competência e idoneidade nunca foi posta em causa.
․ As mesmas foram submetidas na repartição de finanças e validadas pela Ré.
․ O ponto 3 da ordem de trabalhos da Assembleia consistia no seguinte:
“討論及議決計算股東損害公司利益價值及適議解決方案” (“Discussão e deliberação sobre o valor dos danos causados por sócios(s), bem como como negociação sobre a forma de resolução”).
․ Discutido o referido ponto, foi aprovada a seguinte deliberação:
“就委託行政管理機關成員戊及丁製作報告書,並根據是否有證據下證明有否股東損害公司利益”
“Designação dos administradores E e D para elaboração de relatório e, em conformidade, com a eventual existência de provas, apurar se houve ou não sócios que prejudicassem os interesses societários.”
․ Recentemente e antes da realização da assembleia geral de 20.01.2017 os sócios da Ré acordaram por unanimidade que, em virtude de divergências insanáveis entre os mesmos, a mesma deveria ser dissolvida.
․ E que na sequência dessa dissolução, satisfeitos os eventuais credores sociais, o património social da Ré seria objecto de partilha entre os sócios na proporção das suas participações sociais, em conformidade com o que neste particular dispõe a lei.
․ É neste contexto que surge a deliberação tomada sobre o ponto 3 da ordem de trabalho.
․ Toda a discussão tida sobre esta matéria versou unicamente sobre alegados prejuízos causados à Ré pelo Autor enquanto sócio da mesma e que lhe são imputados, sem qualquer prova e fundamento, pelos outros dois sócios.
․ Não foram fornecidos quaisquer elementos de informação para a discussão e votação do ponto 3 da ordem de trabalhos.
․ Resulta da discussão deste ponto, ao que se supõe os alegados prejuízos infligidos à Ré pelo Autor derivariam da ocupação das 7 fracções autónomas e dos 21 lugares de estacionamento a que acima já se fez menção.
․ O ponto 4 da ordem de trabalhos tinha a seguinte redacção:
“討論及議決解任一名行政管理機關成員經理之職務” (“Discussão e deliberação sobre a exoneração do cargo de um administrador, na qualidade de gerente”).
․ Após discussão foi aprovada a exoneração do Autor do cargo de administrador/gerente da Ré.
․ A discussão mantida sobre este ponto centrou-se unicamente na justa causa para a exoneração do Autor do cargo.
․ A Ré (e os restantes sócios da mesma) não forneceu ao Autor quaisquer elementos de informação quanto a esta matéria.
․ Para justificar a deliberação em apreço, os sócios E e D afirmaram que o Autor não executou as deliberações das assembleias gerais de 20 de Janeiro e 16 de Fevereiro de 2017.
․ O Autor votou contra e impugnou essas deliberações através das acções judiciais com o processo n.º CV1-17-0016-CAO e CV1-17-0026CAO.
․ Dessas deliberações nada havia a executar e a intervenção do Autor é desnecessária.
․ Das ditas assembleias não resultou qualquer deliberação mandatando especificamente o Autor para a execução das deliberações aí tomadas.
․ A pretensão dos sócios E e D com esta exoneração é a de afastarem o Autor, enquanto sócio minoritário, das decisões da Ré, passando a sua gestão a ser controlada exclusivamente por eles que, assim poderão tomar quaisquer decisões de gestão ao seu bel-prazer, sem a opinião daquele, que também é sócio da Ré.
․ A Ré foi inicialmente constituída pelo Autor, por D e por I.
․ Na altura da constituição da Ré ficou estatutariamente previsto que a sua administração e representação caberiam à gerência composta por quatro gerentes, divididos pelos grupos A e B.
․ Foram então nomeados como gerentes do Grupo A o então sócio I e o Autor, e como gerentes do Grupo B o sócio D e a não sócia H, sua familiar.
․ Nos termos do artigo sétimo dos estatutos ficou ainda previsto que a sociedade Ré se obrigaria com a assinatura conjunta de três membros da gerência, sendo dois do grupo A e um do grupo B.
․ A ideia subjacente às referidas disposições estatutárias e à escolha dos sócios para integrarem a administração da Ré foi não só, o de atribuir a estes um direito especial à gerência mas também o de garantir um equilíbrio na gestão da Ré entre a posição dos sócios assegurando a todos o controlo efectivo e influência nessa gestão.
․ Em 16 de Agosto de 1999, aquando da cessão da quota para E por parte de I os estatutos da Ré foram alterados de modo a que a gerência passasse a ser composta por três grupos distintos, integrando os três sócios da ré cada um destes grupos.
․ A forma de obrigar e representação da Ré exige a assinatura conjunta de dois gerentes, pertencentes a diferentes grupos de gerência.
․ Os sócios E e D pretendem menorizar e prejudicar a posição do Autor na partilha dos bens sociais que todos haviam acordado fazer fruto da dissolução da Ré.
․ O ponto 5 da ordem de trabalhos da Assembleia consistia no seguinte:
“討論及議決具體如何分配公司現有資產及現金” (“Discussão e deliberação sobre a forma concreta de distribuição dos bens e dinheiro que a Sociedade detém presentemente”).
․ Discutido o referido ponto, foi aprovada a seguinte deliberação:
“以抽籤形式分配「[大廈(1)]」21個車位中的19個車位,餘下2個車位則在市場放售後再以持股比例分配現金,由於資訊顯示甲損害公司利益,甲的份額將存放於公司,待調查甲有否損害公司經濟損失後,再結清發放。”
․ A liquidação da Ré não constava da ordem de trabalhos.
․ A liquidação não foi aprovada com os votos favoráveis de dois terços do capital social.
․ O ponto 6 da ordem de trabalhos e a respectiva deliberação têm a seguinte a redacção:
委任行政管理機關成員具體執行股東會決議及行使以經理身份管理公司的權力e “授權行政管理機關成員處理關於公司的訴訟及澳門銀行更新資料、簽名樣式及印章。”»; (cfr., fls. 188-v a 194).

Do direito

3. Como resulta do que se deixou relatado, e, atentas as “conclusões” do A., ora recorrente, tem o presente recurso como objecto o pelo Tribunal de Segunda Instância decidido sobre as impugnadas “deliberações da assembleia geral da R. de 10.04.2017, relativamente aos «pontos 1.1, 1.2, 2, 3 e 6» da ordem de trabalhos”, e, em relação às quais, pedia a declaração da sua invalidade, (não tendo obtido provimento).

–– Considerando que em causa está a validade de várias “deliberações sociais” tomadas em Assembleia Geral de uma Sociedade Comercial, mostra-se desde já adequada uma nota preliminar.

É a seguinte.

Inserido no Capítulo respeitante às “Pessoas Colectivas”, prescreve o art. 184°, n.° 1 do C.C.M. que:

“As sociedades são pessoas jurídicas de substrato pessoal, cujos membros se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade ou de proporcionarem uma economia”; (valendo a pena recordar também que nos termos do n.° 1 e 2 do art. 144° do mesmo código: “1. A capacidade das pessoas colectivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins”, e “2. Exceptuam-se os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular”).

Por sua vez, regulamentando, (especialmente), a matéria das “Sociedades Comerciais”, (como é o caso da R., ora recorrente), estatui o art. 214°, n.° 1, al. a) do C. Comercial que:

“1. São órgãos das sociedades comerciais: a) A assembleia geral;”, preceituando o art. 216° sobre as “Matérias da competência deliberativa dos sócios”, e prescrevendo, também, sob a epígrafe “Formas de deliberação”, o seguinte art. 217°, n.° 1 que: “Os sócios deliberam reunindo em assembleia geral, nos termos prescritos para cada tipo societário”.

Certo sendo que nas organizações de tipo associativo, a “assembleia geral” constitui o “órgão supremo” (onde se manifesta a sua “vontade” e decide das políticas a seguir), sem esforço se compreende também que no art. 218°, n.° 1 do referido C. Comercial se prescreva que: “Salvo disposição legal em contrário, todos os sócios têm direito a participar nas reuniões da assembleia geral e aí discutir e votar”.

In casu, com a acção que no Tribunal Judicial de Base propôs, impugnou o A. “7 deliberações” da R., (da qual é sócio), e confirmado que viu o deliberado quanto a “5” delas, (o que sucedeu com o decidido pelo Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância), traz agora a este Tribunal de Última Instância o presente recurso, manifestando o seu inconformismo em relação ao entendimento pelas ditas Instâncias recorridas assumido e insistindo na invalidade daquelas deliberações.

Nota-se, ainda, que contra a mesma R., e impugnando outras suas deliberações, propôs, anteriormente, o A., ora recorrente, outros dois processos – CV1-17-0016-CAO e CV1-17-0026-CAO – que se encontram com a instância suspensa a aguardar o resultado da presente lide recursória; (cfr., fls. 457 a 461).

Compreende-se a “conduta processual” do A. quanto ao referido “impulso processual”, pois que, em face das “datas” das deliberações e do prazo legal que dispunha para as impugnar, (cfr., art. 230°, n.° 2 do C. Comercial), necessária foi a sua diligência.

Porém, e vista estando a “conexão processual”, adequado se nos mostra que, em momento oportuno se devia ter decidido por uma “apensação de processos”, (cfr., art. 219° do C.P.C.M.), para que, num só, se viesse a resolver o “litígio” entre A. e R. existente e que os autos dão conta.

Assim não tendo sucedido, (transitadas em julgado que estão as decisões que decretaram a “suspensão da instância” nos aludidos processos, e ainda que com as eventuais “inconveniências” próprias da descrita situação), importa agora decidir do presente recurso.

Vejamos, então, que solução adoptar.

–– Pois bem, como se deixou relatado, no presente recurso, “5” são as deliberações da R. pelo A., ora recorrente, questionadas.

Comecemos pela primeira: sobre o “ponto 1.1” da ordem de trabalhos.

Começa o ora recorrente por notar que o facto de o Tribunal de Segunda Instância ter considerado desnecessária a apreciação da impugnação da matéria de facto, equivale, materialmente, a uma “omissão de pronúncia”, o que consubstanciaria uma “nulidade processual”; (cfr., alínea C) das alegações de recurso).

Em síntese, entende pois que era (muito) relevante ter levado em consideração a matéria que havia sido alegada nos “art°s 34°, 35°, 38° a 41°, 43° e 46° da petição inicial”, pois a mesma permitiria outra conclusão quanto à validade das deliberações impugnadas.

Ora, a respeito da dita impugnação da matéria de facto, pelo Tribunal de Segunda Instância foi – essencialmente – dito o que segue:

“(…) não se mostra relevante para a apreciação e a decisão das questões de direito suscitadas em sede do presente recurso a matéria não constante do elenco dos factos assentes da sentença recorrida, que agora por via de impugnação da matéria de facto o recorrente pretende ver julgada assente por este Tribunal de recurso, a fim de sustentar as suas teses referentes às questões que se prendem com as deliberações sobre os pontos 1.1, 1.2, 2 e 3 da ordem de trabalhos.
Portanto, passámos imediatamente a debruçar-nos sobre as questões de direito delimitadas nas conclusões do recurso, relativas aos pontos 1.1, 1.2, 2, 3 e 6 da ordem de trabalhos da assembleia geral da sociedade Ré, realizada em 10ABR2017”; (cfr., fls. 350-v e 351).

Compreendendo-se a lógica seguida pelo ora recorrente, afigura-se, no entanto, que não se pode dar por verificado o vício ao Acórdão recorrido apontado, pois que, no fundo, o Tribunal de Segunda Instância acabou por se pronunciar sobre a “questão da relevância daqueles factos”, tendo (efectivamente) concluído que não se mostravam relevantes para a decisão das questões de direito em apreciação, e, por essa razão, não se nos mostra verificada a imputada nulidade por “omissão de pronúncia”.

Porém, não se pode perder de vista o disposto no art. 562°, n.° 3, do C.P.C.M., segundo o qual: “Na fundamentação da sentença, o juiz toma em consideração os factos admitidos por acordo ou não impugnados, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer”.

Pronunciando-se sobre a matéria tem se entendido que “(…) o juiz, na sentença, deve considerar como provados os seguintes factos:
- Factos constantes do despacho com os factos assentes [artigo 430.º, n.º 1, alínea a)];
- Factos que o tribunal colectivo julgou provados (de entre os constantes da base instrutória ou aditados a esta);
- Factos provados nos articulados (admitidos por acordo das partes ou não impugnados), mas que o juiz que elaborou o despacho dos factos assentes, indevidamente, não os considerou nesta peça processual;
- Factos relevantes plenamente provados por documento ou por confissão escrita, mesmo que não constantes da base instrutória”; (cfr., v.g., Viriato de Lima in, “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., 2018, pág. 534).

E, como (igualmente) já decidiu este Tribunal de Última Instância: “Ainda que não conste como facto provado, do despacho dos factos assentes, nos termos do artigo 430.º e do julgamento da matéria de facto feito após a respectiva audiência, o juiz que profere a sentença deve considerar provado facto alegado por uma das partes e que esteja provado por meio de prova plena – por exemplo, por falta de impugnação nos articulados ou por confissão – podendo, também ser considerado como tal pelo Tribunal de Segunda Instância, ainda que não haja recurso da matéria de facto pelo recorrente ou impugnação da matéria de facto pelo recorrido, a título subsidiário, ou pelo Tribunal de Última Instância”; (cfr., v.g., o Ac. de 04.10.2011, Proc. n.° 39/2011).

Por sua vez, tem sido jurisprudência constante deste Tribunal de Última Instância que: “(…) apurar se um facto é ou não destituído de relevância jurídica para a decisão da causa constitui, manifestamente, matéria de direito e não de facto.
Neste sentido se pronunciaram, por exemplo, ALBERTO DOS REIS e A. ANSELMO DE CASTRO”; (cfr., v.g., os Acs. de 23.05.2001, Proc. n.° 5/2001, de 19.10. 2005, Proc. n.° 18/2005, de 11.03.2008, Proc. n.° 51/2007, de 17.04.2013, Proc. n.° 51/2012 e de 27.07.2022, Proc. n.° 37/2020).

Dest’arte, podendo esta Instância apreciar a questão colocada, vejamos.

Pois bem, os artigos da petição inicial cuja inclusão na matéria de facto provada vem reclamada são os seguintes:

“ 34.°
Acresce que, para além estarem perfeitamente cientes desta situação, jamais qualquer dos sócios da Ré se opôs à mesma, conforme o comprova a circunstância de em tempo algum esta matéria ter sido objecto de discussão e deliberação entre os sócios.
35.°
que, se não expressamente, ao menos tacitamente sempre consentiram na mesma, algo que se explica pelas relações societárias próximas entre estas duas sociedades e que derivam da coincidência do respectivo substrato social e também por ser do interesse da Ré, de modo a promover o edifício onde as fracções em face do destino dado às fracções.
38.°
Por conseguinte, não só é falso que haja qualquer obrigação pessoal do Autor em proceder à restituição dos imóveis, como é falso que o mesmo se tenha recusado a proceder a essa devolução.
39.°
Pelo contrário, ao invés do que sucedeu com o sócio D, o Autor, na sua qualidade de sócio da C imediatamente diligenciou no sentido de responder ao pedido da Ré (vide Doc. n.° 7), missiva que, conforme o mesmo salientou na assembleia geral de 10 de Abril, não mereceu daquela qualquer resposta.
40.°
Por outro lado, a exigência de uma renda mensal, no valor de MOP$180.000,00, a ser paga pelo Autor desde 17 de Fevereiro de 2017 em contrapartida da ocupação das fracções a que se vem fazendo referência, deliberada pelos sócios E e D é ilegal e não faz qualquer sentido.
41.°
Em primeiro lugar, como se disse, os imóveis não estão a ser ocupados pelo Autor mas sim pela C, que aí explora um negócio de venda de roupa a retalho.
43.°
No entanto, sempre se dirá que o dito valor de MOP$180.000,00 se afigura como claramente exagerado e afastado dos valores de mercado.
46.°
Assim, a pretensão dos sócios E e D com a deliberação que ora se impugna mais não é do que, de forma abusiva e contrária aos bons costumes, tentar impor uma sanção ao Autor por um facto que não lhe é sequer imputável”; (cfr., fls. 7 a 8).

Ora, visto estando que embora regularmente citada, a R. não contestou, nada impedindo que ao abrigo do art. 562°, n.° 3, do C.P.C.M. se possa tomar em consideração a reclamada matéria, e certo sendo até que “quod abundat non nocet”, (pois que como nota M. Cordeiro in R.O.A., Ano 55, I, pág. 139, “há que ser generoso na delimitação dos factos”), verifica-se, porém, que o teor dos art°s “40” e “46” são (puramente) “conclusivos”, pelo que terão de se considerar como “não escritos”; (cfr., v.g., o Ac. de 14.12.2011, Proc. n.° 57/2011 e, mais recentemente, o de 03.03.2023, Proc. n.° 115/2022).

Nesta conformidade, e voltando à atrás referida deliberação sobre o “ponto 1.1” da ordem de trabalhos, vejamos.

Tem esta o seguinte teor:

“Relativamente à ocupação das 7 lojas do [Edifício(1)], é exigida ao sócio A compensação pela ocupação na ausência de autorização, mediante pagamento mensal à Sociedade da renda no montante total de MOP$180.000,00 contada a partir de 17 de Fevereiro de 2017”.

E, sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento, ponderando sobre o que “provado” está e no que decidido foi, (e ainda que muito mérito se nos mostre de reconhecer às considerações em abstracto pelas Instâncias recorridas tecidas sobre o conceito de “bons costumes”), cremos que tem o A., ora recorrente, razão.

Com efeito, nos termos do art. 228° do C. Comercial:

“1. São nulas as deliberações dos sócios:
a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo o disposto no n.º 2 do artigo 217.º;
b) Tomadas por escrito quando algum sócio não tenha exercido por escrito o seu direito de voto, ou sem que todos os sócios tenham sido chamados a exercer o seu direito de voto por escrito, nos termos dos n.os 3 e 5 do artigo 217.º, respectivamente;
c) Que sejam contrárias aos bons costumes;
d) Sobre matéria que não esteja, por lei ou por natureza, sujeita a deliberação dos sócios ou não conste da ordem de trabalhos;
e) Que violem normas legais destinadas principal ou exclusivamente à tutela de credores da sociedade ou do interesse público.
2. Não se considera convocada, para os efeitos da alínea a) do número anterior, a assembleia geral cujo aviso convocatório não seja assinado por quem tenha competência para o efeito, ou não contenha a data, hora, local e ordem de trabalhos da reunião.
3. A nulidade de uma deliberação não pode ser arguida se já tiverem decorrido mais de cinco anos sobre a data do seu registo, salvo pelo Ministério Público se a deliberação constituir facto criminalmente punível para que a lei estabeleça prazo prescricional superior.
4. Uma deliberação nula por força das alíneas a) e b) do n.º 1 pode ser substituída por outra deliberação e a esta pode ser atribuída eficácia retroactiva, ressalvados os direitos de terceiros”; (sub. nosso).

E, em face da matéria de facto dada como assente, cremos que verificada está a situação da alínea c) do n.° 1 do transcrito art. 228°.

Na verdade, e como – cremos que – em tudo na vida, aceitável não é, (nem pode ser), o “vale tudo”, necessária (e imprescindível) sendo uma “proporção harmoniosa, equilibrada e justa das coisas”.

Transpondo tal consideração para os presentes autos – e mesmo que, como provado esteja, “por divergências insanáveis acordada já esteja a dissolução da sociedade R.” – cremos que se mostra de referir que evidente se nos apresenta que, ainda que com o estatuto de “órgão soberano”, não pode uma assembleia geral deliberar sobre tudo o que se lhe apetece, sem o mínimo respeito pelas mais elementares normas de convivência social e de respeito desde sempre reconhecidas pelo (próprio) “direito natural”.

Na verdade, como atrás se deitou retratado – e importa não olvidar – está (essencialmente) “provado” que:

“․ Os mencionados imóveis não se encontravam ocupados pelo Autor, nem este se recusou a proceder à respectiva desocupação e restituição à Sociedade.
․ Estas fracções encontram-se a ser ocupadas pela sociedade denominada C.
․ Esta sociedade tem como sócios, além do Autor, o sócio D.
․ A utilização dos ditos imóveis pela C sempre foi também do conhecimento dos sócios E e D.
․ Nenhum dos sócios da Ré se opôs à mesma utilização.
․ Ao menos tacitamente sempre consentiram nessa utilização.
․ Só muito recentemente a Ré pediu a restituição das fracções em apreço, o que fez através de carta.
․ Pedido a que o Autor acedeu, respondendo através de uma carta datada de 7 de Fevereiro de 2017 e em que se limitou a solicitar a concessão de um prazo considerado razoável para concretizar a desocupação dos imóveis.
․ O Autor, na sua qualidade de sócio da C imediatamente diligenciou no sentido de responder a esse pedido da Ré”; (cfr., fls. 190-v a 191 e 312 a 312-v).

E, nesta conformidade – salientando-se que o referido D, que é sócio do A. na referida “C”, é o mesmo a “votar” no sentido da tomada da “deliberação” em questão – cremos nós que se deve reconhecer razão ao A., ora recorrente, quando alega que não pode deixar de ser “social, ética e moralmente chocante que alguém determine outra pessoa, de forma unilateral e sem qualquer fundamento fáctico ou jurídico para tal, ao pagamento de montantes cuja causa não lhe é minimamente imputável, sabendo, de resto; que a existir um responsável seria uma entidade diferente e jamais o Autor, ora Recorrente”; (cfr., concl. U).

Ora, como se deixou consignado, acompanham-se as considerações pelas Instâncias recorridas tecidas sobre o sentido e alcance do conceito de “bons costumes”.

Porém, em face das aludidas “circunstâncias” dos presentes autos e dos “termos” da deliberação em questão, temos para nós que esta não foi objecto de adequado enquadramento.

Dest’arte, (sem necessidade de mais alongadas considerações), e verificada estando a situação da alínea c) do n.° 1 do art. 228° do C. Comercial, declara-se nula a referida deliberação.

–– Passemos para a “deliberação sobre o ponto 1.2 da ordem de trabalhos”.

Tem o teor seguinte:

“Os 21 parques de estacionamento do [Edifício(1)] são entregues, nesta data em estado devoluto por A à Sociedade e é reservada a reclamação da indemnização dos prejuízos pecuniários até ao dia 17 de Fevereiro de 2017, derivados do uso abusivo por qualquer terceiro do direito de uso dos tais 21 parques de estacionamento”; (cfr., fls. 8-v a 9).

E, aqui, cremos que já não se pode reconhecer razão ao A., ora recorrente.

Com efeito, se a qualquer Assembleia Geral não deve caber o “poder” de (poder) deliberar sobre seja o que for, aos sócios não pode assistir o direito de – impugnando toda e qualquer deliberação tomada – agir de forma a bloquear completamente toda a normal actividade de uma sociedade comercial destinada a alcançar os seus fins…

No caso, é o próprio A. que alega – reconhecendo expressamente – que “A impugnação da deliberação em apreço não tem em vista, naturalmente, o compromisso assumido e já cumprido pelo Autor de entrega dos 21 lugares de estacionamento em apreço mas sim a propalada intenção de ser reclamada uma indemnização pelo seu pretenso uso abusivo a qual assenta em premissas erradas e é, ela sim, abusiva”; (cfr., art. 52 da p.i.).

E, nesta conformidade, cremos que se impõe um pouco – um mínimo – de razoabilidade (e pragmatismo).

Com efeito, e como cremos que se alcança, o “cerne da questão” diz (apenas) respeito a uma (mera) “intenção manifestada”, e que, com todo o respeito, não afecta, (pelo menos), de momento, qualquer direito ou interesse do A., ora recorrente, a quem, como é óbvio, (e não obstante a pela R. declarada “reserva” quanto à reclamação de uma indemnização), mantém, (igualmente), o pleno direito de, querendo, reagir, oportunamente, apresentando-se, pois, a impugnação em questão, “prematura”.

Compreende-se a “situação” e a “emoção” que a mesma possa causar aos que nela estão envolvidos.

Porém, em face do que se deixou consignado, (e atenta, especialmente, a referida ausência de “efeitos” – negativos – na esfera jurídica do ora recorrente), não se vislumbram motivos para se alterar o que pelas Instâncias recorridas foi decidido.

Avancemos.

–– Da deliberação sob o “ponto 2” da ordem de trabalhos, e que consistiu na “designação da auditora F para proceder à auditoria e reelaboração das contas da sociedade desde 2008 até à presente data”.

Aqui, coloca-se (também) uma questão digamos que “prévia”, relativamente à não consideração de “factos alegados por junção de documento”.

Ora, de forma (algo) abreviada, eis o que se nos oferece dizer.

Atentos os “termos” do pelo A., ora recorrente, alegado na sua petição inicial, identificando, concretamente, os artigos da petição inicial da acção CV1-17-0026-CAO e que constitui o “documento” que juntou, cremos que, nesta parte, mostra-se de acolher o que reclama.

Contudo, tal não altera o nosso ponto de vista sobre a deliberação em causa.

Com efeito, e como sucedeu com a deliberação anterior, mostra-se-nos que a impugnação em questão mais não é do que uma precipitada antecipação do A., ora recorrente, que, (embora, compreensivelmente), reage, (muito antes do tempo), perante uma deliberação que, no momento, (e ainda que venha mesmo a ser executada), não tem, (pelo menos, para já), qualquer demonstrada potencialidade de lhe causar danos.

Na verdade, como falar-se – desde já – de “maquilhagem contabilística”, e “cosmética financeira para criar créditos da R. sobre o A.”, se as “contas” nem estão elaboradas e se o mesmo possui, e manterá, todos os meios próprios e legais para fiscalizar as que vierem a ser apresentadas, e, se for caso disso, de as impugnar judicialmente?

Como cremos sabido, “as coisas devem ser feitas a seu tempo: nem antes, nem depois…”, e, por ora, não se vislumbrando, concretamente, que do deliberado possa resultar qualquer prejuízo – muito menos irreparável – para o ora recorrente, vista está a solução.

–– Quanto à deliberação do “ponto 3 da ordem dos trabalhos”, em que se aprovou a designação dos administradores E e D para a elaboração de relatório e, em conformidade com a eventual existência de provas, apurar se houve ou não sócios que prejudicaram os interesses societários, diz o A., ora recorrente, que:
- “o intuito dos sócios E e D que subjaz à deliberação ora em causa era o de conseguir para si uma vantagem especial na eventual partilha dos bens sociais acordada entre as partes, em prejuízo do Autor, ora Recorrente”, (cfr., concl. QQQ), e que,
- “não têm qualquer fundamento, os sócios E e D auto-designaram-se como responsáveis pela preparação de um relatório para apurar a existência de tais alegados prejuízos”, (cfr., concl. RRR), afirmando, também que a deliberação em causa representa um “abuso de posição dominante” nos termos dos art°s 475°, n.° 3, e 212°, n.° 1, alínea e) do C. Comercial, e que tal deliberação (sempre) deveria ser nula ao abrigo do art. 287° do C.C.M., visto que os sócios que votaram favoravelmente à deliberação estavam legalmente impedidos de o fazer, por força do “conflito de interesses” previsto no art. 219° do C. Comercial.

Ora, cremos que, também aqui, ao A., ora recorrente, não assiste razão.

Vejamos.

Comecemos pela questão da existência ou não de um “conflito de interesses” dos sócios que votaram favoravelmente a deliberação, conseguindo, assim, a sua aprovação.

Como nota J. Pinto Furtado, “o impedimento de voto, em caso de conflito de interesses entre o sócio e a sociedade, mais do que restringe a força de voto: anula o próprio poder de votar.
É a restrição máxima, cujo fundamento é simples de intuir. O sócio não pode aproveitar-se da sociedade, numa relação em que é extrassocialmente interessado, para alcançar ou influir na obtenção do consentimento societário. Acabaria assim, sendo o seu voto determinante, a realizar contratos consigo próprio. (…)
Não tem ainda legitimidade para votar o sócio ferido de impedimento de voto (arts. 251, 367-2, 384-6 e 410-6 CSC), porque se situa numa posição de titular de um interesse em conflito com o chamado interesse da sociedade”; (in “O voto nas deliberações das sociedades”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raúl Ventura, Vol. II, pág. 238 a 239 e 268).

Sobre a mesma matéria, considera igualmente Raúl Ventura que:

“Nos termos do art.º 251.º, n.º 1, primeira parte, o sócio não pode votar quando
- relativamente à matéria da deliberação
- se encontre em situação de conflito de interesses
- com a sociedade.
O primeiro requisito é evidente. Para se apurar a existência de um conflito de interesses, é indispensável definir a matéria sobre que ele incide e, como a proibição respeita ao voto numa deliberação, o objecto desta efectua aquela definição. (…)
Há situação de conflito de interesses quando estes são opostos, de tal modo que um deles não possa ser satisfeito sem sacrifício do outro. Caso típico é a liberação de uma obrigação; o sócio tem interesse em liberar-se, mas essa liberação implica o sacrifício do direito de crédito da sociedade. O conflito de interesses, quanto à deliberação, existe embora eventualmente os interesses venham a harmonizar-se depois de tal liberação, como sucederá por exemplo, se tomada uma liberação no sentido de a sociedade comprar um prédio pertencente ao sócio – deliberação em que o sócio não pode votar por causa de conflito de interesses – o contrato de compra e venda vier a ser celebrado, por coincidência de interesses de vendedor e de compradora.
Para melhor definir a situação de conflito de interesses, relevante para o impedimento de voto, escolho a formulação de MENGONI (Riv. Soc., 1956, p. 448), autor que, reportando-se ao art. 2373.º, Cod. Civile italiano, diz que este contempla as hipóteses em que o sócio se encontra relativamente ao conteúdo da deliberação a tomar, numa posição objectiva tal que revela de maneira típica a possibilidade de um conflito de interesses com a sociedade, isto é, a possibilidade de a deliberação satisfazer o interesse particular do sócio em detrimento comum. (…)
O interesse do sócio apura-se objectivamente, não importando o interesse em sentido subjectivo, isto é o interesse que em concreto tenha certo sujeito em determinada situação; na verdade, a fattispecie tomada em consideração é antecedente à deliberação e, portanto, por definição, não há ainda tomada de posição por parte de ninguém a respeito do objecto posto em deliberação (MINERVINI cit. p. 13)”; (in “Sociedades por Quotas”, Vol. II, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, pág. 294, 296 e 297).

O “impedimento legal do voto” fica assim assente em duas ideias, (conforme referia António Caeiro, citado por Raúl Ventura):

“«A primeira é que o sócio não pode ser juiz em causa própria, razão pela qual o voto lhe pode ser negado nas deliberações que versam sobre a deliberação duma responsabilidade sua ou a proposição duma acção contra ele, bem como sobre medidas a aplicar-lhe com fundamento em justa causa (por ex., destituição da gerência ou exclusão da sociedade). A segunda consiste em recusar o voto ao sócio quando houver um conflito entre o interesse da sociedade e o interesse particular daquele, sendo exemplo típico a decisão sobre um negócio a celebrar entre os dois».
(…) Já acima disse que a enumeração de casos feita nas referidas alíneas pode concorrer para a descoberta da noção de «conflito de interesses» nesse mesmo artigo. Ora, os casos previstos nas alíneas compreendem as duas ideias básicas pela doutrina alemã: não ser juiz em causa própria e o conflito de interesses propriamente dito. Portanto, para respeitar a letra do preceito, o intérprete terá de concluir que ele usa a expressão «conflito de interesses» num sentido muito amplo que abrange, além da situação de conflito de interesses em sentido restrito (caso típico, deliberação respeitante a negócio entre a sociedade e o sócio) outras situações correspondentes – talvez – à ideia de não ser o sócio juiz em causa própria”; (in ob. cit., pág. 307 e 308).

A propósito de regra similar à do art. 219° do C. Comercial, (mas bastante mais desenvolvida no leque de casos exemplificativos), é também considerado que “Como casos de fronteira, temos: o sócio pode votar: (a) na sua própria eleição, como gerente; (b) na fixação do próprio vencimento; (c) quanto a relações entre a sociedade e o próprio cônjuge; (d) quanto às contas, mesmo sendo ele gerente; (e) quanto à amortização da própria quota.
Não pode votar quanto à própria exclusão. No tocante a inibições não previstas expressamente por lei, mau grado a sua natureza exemplificativa, exige-se uma proximidade valorativa com as constantes da lei”; (cfr., Diogo Pereira Duarte in, “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, Coordenação de António Menezes Cordeiro, 2ª ed., 2011, pág. 733 e 734).

Também a jurisprudência comparada tem alinhado no sentido proposto por Raúl Ventura:

“(…)
Entende-se que a referida situação de conflito de interesses se verifica designadamente quando se tratar da deliberação que recaia sobre: a) Liberação de uma obrigação ou responsabilidade própria do sócio, quer nessa qualidade quer como gerente ou membro do órgão de fiscalização; b) Litígio sobre pretensão da sociedade contra o sócio ou deste contra aquela, em qualquer das qualidades referidas na alínea anterior, tanto antes como depois do recurso a tribunal; c) Perda pelo sócio da parte da sua quota, na hipótese prevista no artigo 204, n. 2; d) Exclusão do sócio; e) Consentimento previsto no artigo 254, n. 1; f) Destituição, por justa causa, da gerência que estiver exercendo ou de membro do órgão da fiscalização; g) Qualquer relação, estabelecida ou a estabelecer, entre a sociedade e o sócio estranho ao contrato da sociedade.". (…)
A propósito - e com a sua reconhecida autoridade na matéria - diz Raúl Ventura, in "Comentário ao Código das Sociedades Comerciais - Sociedades por Quotas -" vol. II, 1989, página 291, o seguinte: "Ressalvado sempre o caso do sócio votar como representante de quem esteja em conflito de interesses com a sociedade, entende a doutrina alemã - e com ela concordo - que um sócio não está impedido de votar porque existe um conflito de interesses entre a sociedade e um outro sócio com o qual aquele tem relações de matrimónio ou parentesco".
(…)
Verificando-se que o conflito em abstracto se configura entre a sociedade e uma terceira pessoa, ainda que cônjuge do sócio, nada obsta na Lei a que este possa exercer o seu direito de voto, já que os interesses que são relevantes, em face do artigo 251, n. 1, são apenas interesses próprios (pessoais), morais ou materiais do sócio individualmente considerado.
(…)”; (cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 28.09.1995, Proc. n.° 087563, podendo-se ainda ver o Ac. de 27.02.2018, Proc. n.° 1860/08, onde se
considerou também que: «O Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 26.5.61 (http://www.dgsi.ptJSTJ00004317) estabeleceu, então com valor de assento, que o sócio só estava impedido de votar sobre os assuntos em que tivesse um interesse imediatamente pessoal, individual, oposto ao da sociedade.
Nesse aresto se escreveu:
“Sob pena de se paralisar a vida das sociedades por quotas, pela impossibilidade prática de se tomarem deliberações, não pode dar-se a esta disposição legal a interpretação ampla que o recorrente pretende.
Cada sócio tem sempre um interesse ligado à vida da sociedade, e consequentemente a toda e qualquer das deliberações nela tomadas. Seja qual for o assunto sobre que recaia uma deliberação, sempre ele, porque respeita à sociedade, também interessa ao sócio, como tal. O sócio não pode deixar de ser admitido a votar, porque só assim se forma a vontade social. O seu interesse identifica-se com o da sociedade.
É possível, porém, que determinado assunto, pela sua especial natureza, importe também para o sócio um interesse meramente pessoal, individual, a sobrelevar o que ele tem na qualidade de sócio; interesse oposto, portanto, ao da sociedade. Colocado nessa dúplice posição, o sócio não está em condições de ajudar a formar a verdadeira e correcta vontade social. Na realidade, o seu voto não representaria a vontade do sócio propriamente dito, do componente da sociedade, mas sim, e exclusivamente, a do particular, do indivíduo. Só formalmente ele expressaria a vontade do sócio. Em tal caso não deve ser admitido a votar.
É para esta última situação que a lei provê com a restrição contida no parágrafo 3, do artigo 39. A proibição de votar refere-se aos assuntos que directamente digam respeito ao sócio. Esses assuntos são unicamente aqueles que envolvem um interesse directo, imediato, do sócio considerado como pessoa particular, como simples indivíduo, e só mediatamente interessam ao sócio, própria e rigorosamente nesta qualidade. São assuntos que, desse modo, provocam um interesse do sócio oposto ao da sociedade.
Mas não estão nessas condições os problemas em que o sócio, votando, actua caracterizadamente nessa qualidade de sócio, para criar a real vontade social - ainda que da deliberação possa vir a resultar para ele, de modo mediato, algum proveito pessoal. Não havendo divergência entre o interesse da sociedade e o do sócio, o assunto respeita imediata e directamente à sociedade, só mediata e indirectamente ao sócio.”
(…)
Como refere Pereira de Almeida (Sociedades Comerciais, Coimbra Editora, Coimbra, 4ª edição:203), “não basta que o sócio tenha interesse pessoal na deliberação para ficar impedido, senão estaria impossibilitado de votar, por exemplo na deliberação sobre distribuição de dividendos, o que seria um absurdo”»).

Ora, ponderando o que se deixou exposto, cremos nós que não existe o pelo ora recorrente invocado “conflito de interesses”.

Com efeito, a deliberação tomada não envolve qualquer interesse “antagónico” entre a sociedade e os sócios designados para a elaboração do relatório, pois que as “motivações” (subjectivas) aos sócios E e D imputadas para a aprovarem, (cfr., art°s 100° a 111° da petição inicial), não se mostram, para já, bastantes e suficientes, pois que, como se viu, o alegado conflito de interesses é – deve ser – aferido “objectivamente”, “não importando o interesse em sentido subjectivo, isto é o interesse que em concreto tenha certo sujeito em determinada situação”; (cfr., v.g., Raúl Ventura in, ob. cit., pág. 297).

E que dizer do alegado “abuso de posição dominante”, (rectius, abuso de direito)?

Ora, para se considerar que uma deliberação foi tomada em “abuso de direito” é necessário que a deliberação satisfaça os propósitos de um ou mais sócios de conseguirem, através do direito de voto, vantagens especiais para si ou terceiros em prejuízo da sociedade.

Por outro lado, não se pode perder de vista que, a nosso ver, o prejuízo de outros sócios carece de ser bem entendido, isto é, importa que em causa esteja uma actuação que prejudica determinados sócios no âmbito “interno” da sociedade, (ou seja, no seio da sociedade ou das suas relações enquanto sócio com a sociedade: por exemplo, perda de património ou esvaziamento de poderes do sócio), e não eventuais “prejuízos” que lhe advenham no âmbito de outras potenciais relações jurídicas externas que tenha com a sociedade, (i.e., fora da sua qualidade enquanto sócio).

No caso, da deliberação tomada quanto ao “ponto 3” da ordem de trabalhos apenas se retira que os sócios E e D ficaram incumbidos de efectuar um relatório com o fim de “apurar se houve danos para a sociedade decorrentes da actuação de algum sócio”, cabendo salientar ainda que nem o próprio recorrente consegue explicitar (em concreto), que “vantagens especiais” ou “prejuízos para a sociedade ou para si” resultam, (tendo que recorrer a um “futuro hipotético”, onde o relatório já se encontra elaborado, e onde apurado já está que provocou danos à Sociedade).

E, assim, vista também está a solução para esta parte do recurso.

Continuemos.

–– Em relação ao “ponto 6” da ordem de trabalhos aprovou-se a seguinte deliberação: “Delegação de poderes nos administradores para tratarem das acções judiciais relacionadas com a Sociedade e actualizarem as informações, a espécie de assinatura e o novo carimbo junto dos bancos em Macau”.

Alegando que esta deliberação está na “dependência lógica” da deliberação antes tomada sobre o “ponto 4”, e que veio a ser invalidada, entende o recorrente que se deve determinar a sua (consequente) invalidade.

Além do mais, entende que a deliberação deveria ter sido invalidada por conta da existência de um “conflito de interesses”.

Eis o que se nos mostra de dizer.

Pois bem, embora o recorrente não o diga expressamente, o problema que se coloca é o de saber se estão em causa “deliberações conexas”, em especial deliberações conexas através do seu conteúdo, (ou seja, uma conexão entre as duas deliberações imposta exclusivamente pela “função” ou “efeito” das mesmas).

Segundo a doutrina, (que se tem como boa e se mostra de acompanhar), são deliberações conexas “aquelas que, tendo-se formado através de processos separados, se entrelacem por um elo de prejudicialidade-dependência, de tal modo que possa a existência ou o alcance de uma influenciar a existência ou o alcance da outra”, sendo, no entanto, de rejeitar uma “categoria tão ampla que seja susceptível de abranger todas aquelas que têm alguma relação entre si, ou um nexo de ligação”, (cfr., v.g., Jorge Pinto Furtado in, “Deliberações de Sociedades Comerciais”, pág. 401, valendo aqui a pena ver sobre a questão, e com muito interesse, V. Lobo Xavier in, “Anulação de Deliberação Social e Deliberações Conexas”, pág. 399 e segs.).

Assim postas as coisas, (e ponderados e apreciados os vários exemplos de “deliberações conexas pelo conteúdo” estudados por V. Lobo Xavier), será que se pode concluir que a deliberação tomada quanto ao “ponto 6” da ordem de trabalhos configura uma “deliberação conexa” em relação à deliberação tomada sobre o “ponto 4” da ordem de trabalhos quanto à destituição do ora recorrente do cargo de administrador e que veio a ser invalidada?

Salvo o devido respeito por opinião contrária, afigura-se que não.

Com efeito, com a deliberação tomada sobre o “ponto 6”, que, em nossa opinião, tem um alcance claramente mais limitado, apenas se decidiu delegar poderes para tratar das acções judiciais relacionadas com a sociedade e actualizar informações junto de entidades bancárias em Macau, não estando, de modo algum, “conexa” (pelo conteúdo) com a deliberação constante do “ponto 4” da ordem de trabalhos, (através da qual, como se viu, se pretendeu destituir o recorrente do cargo de administrador).

E não existindo assim a alegada “dependência” ou “prejudicialidade” entre as referidas deliberações, motivos também não se mostram existir para se não ter como plenamente válida a deliberação agora em questão.

Por sua vez, e valendo aqui o que atrás se expôs sobre a questão do “conflito de interesses”, (que impede o voto nos termos do art. 219° do C. Comercial), afigura-se-nos aqui que suficiente é a afirmação de que o mesmo (igualmente) não existe na medida em que a dita deliberação não envolve qualquer “interesse antagónico” entre a sociedade e os sócios designados para tratar das acções judiciais e da actualização de informações e dados da sociedade junto das entidades bancárias de Macau.

Dest’arte, e tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao presente recurso, declarando nula a deliberação da R. sobre o “ponto 1.1 da ordem de trabalhos”.

Pelos seus decaimentos pagarão recorrente e recorrida as respectivas custas.

Registe e notifique.

Oportunamente, comunique aos processos no Tribunal Judicial de Base registados como CV1-17-0016-CAO e CV1-17-0026-CAO, enviando-se cópia do presente aresto.

Macau, aos 21 de Junho de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 E não pelo sócio E e pelo não sócio庚G, pessoa da sua confiança como vem alegado visto que, segundo a cópia da certidão do registo comercial junta a fls 26 a 29, o sócio E deixou de exercer as funções de gerente do grupo A, em 5 de Março de 2009.
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