打印全文
Processo nº 71/2023
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação do Ministério Público e em audiência colectiva no Tribunal Judicial de Base responderam, A (甲), e B, (1° e 2ª) arguidos com os restantes sinais dos autos.

A final, realizado o julgamento decidiu-se:
- condenar o (1°) arguido A, como autor material da prática em concurso real de 1 crime de “detenção ilícita de estupefacientes para consumo agravado”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e 3, e art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 7 anos e 6 meses de prisão, e 1 outro crime de “detenção indevida de utensílio”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 5 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos e 9 meses de prisão; e,
- condenar a (2ª) arguida B, como co-autora material da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 6 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 797 a 808 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Do assim decidido, recorreram os ditos (2) arguidos – A e B – para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 18.05.2023, (Proc. n.° 237/2023), negou provimento aos recursos; (cfr., fls. 924 a 941).

*

Ainda inconformados, vêm agora os mesmos arguidos recorrer para esta Instância.

Em abreviada síntese que se nos mostra adequada, diz o (1°) arguido A que o Acórdão recorrido padece dos vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro na aplicação do direito” e “excesso de pena”; (cfr., fls. 958 a 987-v).

Por sua vez, imputa a (2ª) arguida B ao mesmo Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a sua absolvição; (cfr., fls. 950 a 957-v).

*

Em Resposta, foi o Ministério Público de opinião que se devia negar provimento aos recursos; (cfr., fls. 991 a 998-v).

*

Oportunamente, nesta Instância, e em sede de vista, juntou a Exma. Representante do Ministério Público douto Parecer considerando também que os recursos não mereciam provimento; (cfr., fls. 1014).

*

Adequadamente processados os autos, e nada obstando, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como “provados” os factos como tal elencados no seu Acórdão e que foram confirmados pelo Acórdão ora recorrido do Tribunal de Segunda Instância, e que, mais adiante, se fará adequada referência; (cfr., fls. 800 a 802-v e 933-v a 935-v).

Do direito

3. Dois são os recursos pelos (1° e 2ª) arguidos A e B trazidos do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que, negando provimento aos (anteriores) recursos que interpuseram do Acórdão do Tribunal Judicial de Base, confirmou a decisão que os condenou nos termos atrás já relatados; (cfr., pág. 2 deste aresto).

Atentas as conclusões produzidas a final das suas motivações de recurso, (que, com excepção das questões de conhecimento oficioso, limitam o “thema decidendum” do Tribunal), entende o (1°) arguido A que o Acórdão recorrido padece dos vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, considerando que se devia dar aplicação ao preceituado no art. 11° da Lei n.° 17/2009, (com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016), pedindo, também, subsidiariamente, a redução da pena que lhe foi aplicada.

Por sua vez, alega a (2ª) arguida B que a decisão recorrida padece do vício de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo, a final, a sua absolvição.

Sem mais demoras, passa-se expor a solução que se nos mostra adequada para as referidas “questões” decidindo-se – para já – do mérito dos recursos pelos ditos (1° e 2ª) arguidos trazidos a este Tribunal de Última Instância.

Claro sendo que sem uma boa “decisão sobre a matéria de facto” (totalmente) inviável é uma sã “decisão de direito”, há que começar pelos “vícios” àquela imputados.

–– Quanto à assacada “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, vejamos.

Pois bem, repetidamente, tem este Tribunal considerado que este vício apenas ocorre “quando o Tribunal não emite pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo”.

Isto é, o aludido vício apenas existe se houver “omissão de pronúncia” sobre “factos relevantes”, e os “factos provados” não permitirem uma boa (e sã) aplicação do direito ao caso submetido a julgamento.

Importa pois (também) atentar que a dita “insuficiência” não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devem suportar a matéria de facto, em causa estando, antes, o “elenco” desta, que poderá ser “insuficiente”, (não por assentar em provas nulas ou deficientes, mas) por não encerrar o “imprescindível núcleo de factos” que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver.

O vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” traduzir-se-á, afinal, na “falta de investigação” e de “pronúncia” sobre os “elementos fácticos” que permitam a integração na previsão típica criminal por falência de matéria integrante do seu tipo “objectivo” ou “subjectivo”, ou, até, de uma qualquer circunstância modificativa agravante ou atenuante, sendo, por sua vez, de se considerar que inexiste qualquer “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” quando os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento; (sobre o vício e seu alcance, cfr., v.g., e entre outros, o Ac. deste T.U.I. de 27.11.2020 Proc. n.° 193/2020, de 05.05.2021, Proc. n.° 40/2021, de 30.07.2021, Proc. n.° 104/2021, de 04.11.2022, Proc. n.° 79/2022 e, mais recentemente, a Decisão Sumária de 21.06.2023, Proc. n.° 60/2023).

In casu, e analisando o teor do Acórdão do Tribunal Judicial de Base e o agora recorrido, do Tribunal de Segunda Instância, e ponderando no que alegado vem, cremos ser evidente que não ocorre o “vício” em questão, pois que não se incorreu em omissão de investigação e (expressa e adequada) pronúncia relativamente a todos os “factos objecto do presente processo”, tendo os Tribunais em questão apurado e decidido tudo o que quanto ao dito “objecto” lhes cabia decidir.

Vejamos.

A “matéria” que o ora recorrente considera estar em falta tem a ver com a “circunstância” de ser, ou não, (ele), “toxicodependente”, e de, “padecer, ou não, de depressão”; (o que poderia implicar uma diferente qualificação jurídica da sua conduta e, eventualmente, uma outra pena mais leve).

Pois bem, no que toca à aludida “depressão”, cabe dizer que antes da realização da audiência de discussão e julgamento no Tribunal Judicial de Base, foi o ora recorrente submetido a dois exames médicos (da especialidade), concluindo-se que o mesmo “não padecia de nenhuma doença do foro psicológico”, e que a “depressão” que (alegadamente) sofria não estava em nada relacionada com a sua “conduta (criminal)” dos autos, tendo, antes, origem no facto de se encontrar em reclusão – ou seja, em prisão preventiva – no Estabelecimento Prisional de Coloane; (cfr., os relatórios de fls. 705 e 727).

Assim, e em face do teor dos referidos relatórios de tais exames, e do que no Acórdão do Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância se decidiu e fez constar sobre tal “questão”, mais não se mostra necessário dizer para, nesta parte, se concluir da total inexistência do imputado vício de “insuficiência”.

No que diz respeito à sua alegada “toxicodependência”, cabe dizer que se compreende (perfeitamente) o ponto de vista (e objectivo) do ora recorrente.

Porém, nenhuma razão lhe assiste.

Com efeito, este Tribunal de Última Instância já teve oportunidade de considerar que:

“O (comprovado) estado de "toxicodependência" do arguido pode viabilizar a consideração de que a "ilicitude dos factos" se mostra "consideravelmente diminuída" para efeitos do art. 11° da Lei n.° 17/2009, com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016”; e que,
“Se o Tribunal omite pronúncia sobre a alegada "toxicodependência do arguido", incorre em "insuficiência da matéria de facto provada para a decisão" que dá lugar ao reenvio do processo para novo julgamento”; (cfr., v.g., o Ac. de 27.11.2020, Proc. n.° 193/2020).

Contudo, também já tivemos oportunidade de consignar que “O (mero) "hábito de consumo de drogas" e que se pode também apelidar de "consumo habitual", (ou "com – alguma – regularidade"), por contraposição a um "consumo pontual", (ou ocasional), não se equipara a uma situação de "consumo continuado e prolongado" que origina no consumidor um "síndrome de dependência", (vulgo, "toxicodependência"), ou "vício bioquímico", que se caracteriza por um comportamento que cria uma "relação de dependência com a droga"”, (cfr., v.g., o Ac. de 31.07.2020, Proc. n.° 51/2020 e também o atrás citado).

Ora, no caso dos presentes autos, provado está que o ora recorrente consome o estupefaciente apreendido nos autos – “marijuana” – “uma, ou duas vezes por semana”, (cfr., facto provado referenciado com o n.° 13), sendo, (exactamente), o que igualmente declarou na Polícia Judiciária após a sua detenção, (cfr., fls. 100 a 102), o mesmo sucedendo aquando do seu primeiro interrogatório judicial perante o Mmo Juiz de Instrução Criminal; (cfr., fls. 150 a 151-v).

E, perante esta “matéria de facto provada”, (e que não se mostra de alterar), possível não se apresenta pois considerar como verificado tal “estado de toxicodependência”, evidente se nos apresentando assim que a “questão” da alegada “insuficiência” sobre o mesmo mais não é do que uma “falsa questão”, da mesma nada podendo resultar para uma eventual alteração do que decidido foi em sede da matéria de facto, o que, atenta a quantidade de “marijuana” apreendida, (140 gramas), implica, também, o total afastamento de uma eventual aplicação do art. 11° da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), como pelo ora recorrente era igualmente pretendido.

Continuemos, (passando-se agora para o outro “vício” assacado à “decisão da matéria de facto”).

–– Da apreciação por nós efectuada, somos pois de opinião que também não existe o pela (2ª) arguida B apontado vício de “erro notório na apreciação da prova”.

Com efeito, e como, igualmente, (e de forma repetida), temos afirmado:

“O “princípio da livre apreciação da prova” significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam (ou hierarquizam) o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” e “lógica” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo consagra-se um modo não (estritamente) vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante, pautado pela “razão”, pela “lógica” e pelos ensinamentos que se colhem da “experiência comum”, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da “legalidade da prova” e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção, e, de acordo com ela, determina os factos que considera “provados” e “não provados”.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado elemento ou conjunto de provas, em detrimento de outro ou outras, às quais não reconheça (nomeadamente) credibilidade.
O “acto de julgar”, é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera “opção voluntarista” sobre a certeza de um facto e contra a dúvida, (nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade), mas a conformação intelectual do conhecimento do facto – dado objectivo – com a certeza da verdade alcançada, (dados não objectiváveis).
Para a dita operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao “princípio in dubio pro reo”).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção.
O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos “traços do depoimento”, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza, ou sua falta, (que se revelam v.g., por gestos, comoções e emoções, voz etc…).
Por sua vez, importa ainda ter em conta que quando a atribuição de credibilidade, (ou falta de credibilidade), a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na “imediação” e na “oralidade”, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica sendo inadmissível face às regras da experiência comum, pois que, a censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, estar-se-ia a substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão…”; (cfr., v.g., entre outros, os Acs. deste T.U.I. de 02.07.2021, Proc. n.° 97/2021, de 11.03.2022, Proc. n.° 12/2022, de 27.07.2022, Proc. n.° 71/2022 e de 03.03.2023, Proc. n.° 97/2022).

De facto, não se pode olvidar que é na audiência de julgamento que se produzem e avaliam (todas) as provas, (cfr. art. 336° do C.P.P.M.), sendo da análise (global) do seu conjunto e no uso dos seus poderes de “livre apreciação da prova” conjugados com as regras da experiência, (cfr. art. 114° do mesmo código), que os julgadores adquirem a “convicção” sobre os factos objecto do processo.

Assim, visto estando que o “erro notório na apreciação da prova” só ocorre quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou quando se violam as “regras sobre o valor da prova vinculada”, as “regras de experiência” ou as “legis artis”, tendo de ser um “erro ostensivo”, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, e que o mesmo nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que o recorrente entende adequada, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que o Tribunal devia ter dado relevância a determinado meio de prova – sem “especial valor probatório” – para formar a sua convicção (e assim dar como assente determinados factos), visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da “livre apreciação da prova” e da “livre convicção” do Tribunal.

In casu, tendo presente o teor da decisão do Tribunal Judicial de Base, (em especial, a “fundamentação” exposta em sede da “exposição dos motivos de convicção” no que toca à “decisão da matéria de facto”, cfr., fls. 802-v e segs.), e ponderando, igualmente, no que pela ora recorrente vem alegado, evidente se nos apresenta que inexiste o imputado “erro”.

De facto, insiste a recorrente em afirmar que “desconhecia que o produto em questão era estupefaciente”, e, mais concretamente, “marijuana”, (“Canábis”).

Ora, tal, para já, sem prejuízo do muito respeito devido a outro entendimento, (e como se nos apresenta evidente), não se mostra de acordo com as (normais) normas ou regras de experiência (da vida).

Sendo a recorrente natural das Filipinas, um país que igualmente – e infelizmente – há muitos anos se debate com o “problema do tráfico e consumo de droga”, e tendo a mesma, à data da prática dos factos, cerca de 50 anos de idade, razoável não se mostra tal “posição”, (de alegado desconhecimento ou ignorância sobre o “tipo” e “natureza” do produto nos autos apreendido).

Por sua vez, importa ter presente que, em processo penal, o arguido tem direito ao silêncio, e até a declarar o que por bem entender, negando os factos, (e até mesmo a mentir …); (cfr., sobre o silêncio do arguido, a recente Decisão Sumária deste T.U.I. de 04.07.2023, Proc. n.° 64/2023).

Porém, como se apresenta da mesma forma claro e de fácil compreensão, não basta “negar os factos” para se evitar a sua prova e uma (eventual) decisão condenatória pelos mesmos.

Com efeito, há que dizer que não se mostra nada credível a versão – do desconhecimento – apresentada, até porque, hoje em dia, qualquer pessoa sabe (e pode) introduzir o nome “Mango Haze” – e outros, com os quais, era comercializado o “produto” (e que era do conhecimento da ora recorrente) – no descritor de um motor de busca, (v.g., de um mero telemóvel), e, de imediato lhe é fornecida detalhada informação sobre a “espécie de marijuana” em questão, com as suas “qualidades” (e “potencialidades” e com abundantes fotos a cores…).

In casu, e provado estando nos presentes autos que era a ora recorrente a (encarregada de) “processar a aquisição da marijuana” – a pedido e sob indicação do 1° arguido A – com a ajuda da sua irmã no Canadá, e em que se acertavam os “tipos” de “marijuana”, suas quantidades e preços, como dizer – e pretender convencer – que nunca se apercebeu do que estava a comprar, ignorando do que se tratava, (sendo de salientar que idêntica “aquisição” já tinha ocorrido antes, e que “situações” destas não são propriamente “novas”, tendo ocorrido várias vezes em Macau, com oportuna divulgação da detenção e condenação dos autores envolvidos em todos os meios de comunicação social)?

Assim, evidente é que não se verifica nenhum “erro”, (muito menos “notório”), apresentando-se a decisão proferida em perfeita sintonia com as “regras da experiência” e a própria “normalidade e lógica das coisas”, sendo igualmente de se consignar também que nenhuma violação ao princípio “in dubio pro reo” ocorre, pois que o mesmo só actua em caso de “dúvida insanável”, “razoável” e “motivável”, definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”, pelo que para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não basta que tenha havido “versões dispares” ou mesmo “contraditórias”, sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não no do recorrente – (alguma) dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”, (neste sentido, e com maior desenvolvimento, vd., v.g., os Acs deste T.U.I. de 02.07.2021, Proc. n.° 97/2021, de 11.03.2022, Proc. n.° 12/2022 e de 14.04.2023, Proc. n.° 29/2023-I).

Dest’arte, vista está a solução para esta questão pela recorrente trazida a este Tribunal de Última Instância.

–– Relativamente à questão da “pena”, visto estando que não padece a “decisão da matéria de facto” de qualquer “vício”, não se justificando igualmente a “aplicação do art. 11°”, como pelo recorrente A era pretendido, (e tendo-se presente o estatuído no art. 390°, n.° 1, al. g) do C.P.P.M., quanto ao crime de “detenção indevida de utensílio”), vejamos.

Mostra-se de se começar por referir que ao crime pelo qual foi o 1° arguido, ora recorrente condenado, cabe a pena (abstracta) de 5 a 15 anos de prisão, (cfr., art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009 com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016), e que, como sabido é, a “determinação da medida concreta da pena”, é tarefa que implica a ponderação de vários aspectos.

Desde logo, importa atentar que nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Sobre a matéria preceitua também o art. 65° do mesmo código que:

“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da determinação da pena”.

Por sua vez, nos termos do art. 66° do C.P.M.:

“1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta;
e) Ter o agente sido especialmente afectado pelas consequências do facto;
f) Ter o agente menos de 18 anos ao tempo do facto.
3. Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à atenuação prevista neste artigo”.

Porém, e como temos vindo a considerar, “A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais” – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020-I, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020-I e de 23.09.2020, Proc. n.° 155/2020, de 27.11.2020, Proc. n.° 193/2020, de 23.06.2021, Proc. n.° 84/2021, de 11.03.2022, Proc. n.° 8/2022, de 18.05.2022, Proc. n.° 52/2022, de 21.09.2022, Proc. n.° 78/2022, e mais recentemente, a Decisão Sumária de 21.06.2023, Proc. n.° 60/2023).

Com efeito, a figura da “atenuação especial da pena” surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.

E, atento o que se deixou exposto, e tendo presente a “factualidade” dada como provada, fora de questão está uma “atenuação especial da pena” ao abrigo do referido art. 66° do C.P.M., pois que tendo presente a “globalidade” da matéria de facto dada como provada, e na ausência de qualquer “circunstância” (especialmente relevante) que permita considerar a “situação” em questão como “excepcional” ou “extraordinária”, vista está a solução, pois que não se vê margem para qualquer “redução da mesma pena”.

Na verdade, a “factualidade provada” revela que a conduta pelo ora recorrente levada a cabe não foi um “caso único”, não se podendo assim desconsiderar as “quantidades” e “natureza” do estupefaciente que a mesma envolveu na sua globalidade, (só desta vez foram apreendidas 140 gramas de flor de “marijuana”), (muito) fortes sendo as necessidades de prevenção criminal, isto, sem se olvidar que, tanto quanto resulta dos autos, é o ora recorrente que assume o papel – principal – de “protagonista”, a ele se devendo a conduta (criminal) desenvolvida pela 2ª arguida, (B) – a quem dava instruções e pagava para que esta, com a ajuda da sua irmã, no Canadá, lhe adquirissem o estupefaciente, que, posteriormente era envidado para Macau – o que, como é óbvio, não pode ser descurado.

Nesta conformidade, ponderando no que até aqui se expôs, na referida moldura penal – 5 a 15 anos de prisão – atentos os critérios para a determinação da medida da pena previstos nos transcritos art°s 40° e 65° do C.P.M., no que vem sendo entendido pelos Tribunais de Macau em matéria de pena em processos análogos, apresenta-se-nos evidente que o Tribunal a quo não deixou de ponderar, adequadamente, em todas as circunstâncias relevantes para efeitos de fixação da pena em questão.

Importa pois ter presente que, (nomeadamente), em “matéria de pena”, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena, (alterando-a), apenas e tão só, quando detectar desrespeito, incorrecções ou distorções dos princípios e normas legais pertinentes no processo de determinação da sanção, pois que o recurso não visa, nem pretende eliminar, a imprescindível margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de julgamento.

Com efeito, de forma repetida e firme temos vindo a entender que “Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”; (cfr., v.g., os Acs. de 27.04.2018, Proc. n.° 27/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 68/2019, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020(I), de 23.06.2021, Procs. n°s 72/2021(I) e 84/2021, de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022, 12/2022 e 14/2022, de 18.05.2022, Proc. n.° 52/2022 e de 15.03.2023, Proc. n.° 30/2023).

*

–– Aqui chegados, uma derradeira nota se mostra adequada.

É a seguinte.

Em sede de exame e despacho preliminar, (cfr., art. 407° do C.P.P.M.), e acautelando-se uma possível “alteração da qualificação jurídico-penal” da conduta pelo recorrente A desenvolvida e dada como provada, alterando-se a sua qualificação para a prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da já referida Lei, foi tal possibilidade consignada no dito despacho, e, em obediência do “princípio do contraditório”, do mesmo foram o aludido recorrente e Ministério Público oportunamente notificados; (cfr., fls. 1014-v).

Pronunciando-se sobre tal possibilidade, pugnou o recorrente no sentido de não se dever efectuar a dita “requalificação”, considerando o Ministério Público que a mesma devia ocorrer porque legal e adequada.

Podendo este Tribunal alterar – oficiosamente – a “qualificação jurídico-penal” efectuada, obviamente, sem prejuízo e no integral respeito do estatuído no art. 399° do C.P.P.M., (como igualmente se consignou no aludido despacho liminar), vejamos.

Pois bem, nos termos do art. 25° do C.P.M.:

“É punível como autor quem executar o facto, por si ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.

Atento o estatuído neste comando legal, tem-se considerado que são requisitos essenciais para que ocorra “comparticipação criminosa” sob a forma de “co-autoria”, a existência de (uma) “decisão” e “execução conjuntas”.
O “acordo” pode ser tácito, bastando-se com a consciência/vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado crime.
No que respeita à “execução”, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes a atingir o resultado final, importando, apenas, que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do objectivo em vista; (cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 22.07.2011, Proc. n.° 29/2011 e de 30.10.2020, Proc. n.° 127/2020).

Ora, in casu, resulta claramente da matéria de facto dada como provada que foi por “iniciativa”, “sugestão” e “coordenação” do ora recorrente, que a (2ª) arguida, B, levou a cabo a sua conduta de “aquisição de estupefaciente” (com a sua irmã no Canadá), “determinando-a à prática dos factos” pelos quais até foi (ela) condenada como “co-autora de 1 crime de tráfico ilícito de estupefacientes”.

E, nesta conformidade, provado igualmente estando que “agiram em conjugação de vontades e esforços”, evidente se nos apresenta que correcta não está então a “qualificação jurídico-penal efectuada”, (com recurso ao preceituado no art. 14°, n.° 2 e 3), devendo, pois, ficar o dito recorrente condenado como co-autor de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo dito art. 8°, n.° 1, não se alterando a sua pena por respeito ao preceituado no referido art. 399° do C.P.P.M..

Dest’arte, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixaram expostos, em conferência, acordam negar provimento aos recursos apresentados, alterando-se a qualificação jurídico-penal da conduta do recorrente A que passa a ficar condenado como co-autor de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” nos exactos termos consignados.

Custas pelos recorrentes com a taxa de justiça (individual) que se fixa em 12 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor da recorrente B no montante de MOP$3.500,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 29 de Setembro de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 71/2023 Pág. 20

Proc. 71/2023 Pág. 21