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Processo nº 81/2023
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão de 10.03.2023 proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR4-22-0212-PCC do Tribunal Judicial de Base decidiu-se – na parte que agora interessa – condenar os (3° e 5ª) arguidos, A, e B, com os restantes sinais dos autos, como co-autores materiais da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 7 anos e 6 meses e 7 anos de prisão, respectivamente; (cfr., fls. 3945 a 3976 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido, recorreram os ditos (2) arguidos para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 29.06.2023, (Proc. n.° 346/2023), negou provimento aos recursos; (cfr., fls. 4230 a 4244).

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Ainda inconformados, vêm agora os mesmos arguidos recorrer para esta Instância.

Em apertada síntese que se nos mostra adequada, diz o (3°) arguido A que o Acórdão recorrido padece do vício de “erro na aplicação do direito”, insistindo que a sua conduta não deve ser qualificada como a prática, em “co-autoria” (material), do dito crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” (pelo qual foi condenado), pugnando pela sua condenação como (mero) “cúmplice” de tal crime, com a consequente “atenuação especial da pena” aplicada; (cfr., fls. 4279 a 4299).

Por sua vez, imputa a (5ª) arguida B ao mesmo Acórdão recorrido os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “violação do princípio in dubio pro reo”; (cfr., fls. 4267 a 4271-v).

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Em Resposta, foi o Ministério Público de opinião que se devia negar provimento aos recursos; (cfr., fls. 4303 a 4305 e 4306 a 4309-v).

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Oportunamente, nesta Instância, e em sede de vista, juntou a Exma. Representante do Ministério Público douto Parecer considerando também que os recursos não mereciam provimento; (cfr., fls. 4321).

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Adequadamente processados os autos, e nada obstando, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como “provados” os factos como tal elencados no seu Acórdão e que foram totalmente confirmados pelo Acórdão ora recorrido do Tribunal de Segunda Instância, e que, mais adiante, se fará adequada referência; (cfr., fls. 3953 a 3960 e 4231-v a 4237-v).

Do direito

3. Dois são os recursos pelos (3° e 5ª) arguidos A, e B trazidos do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que, negando provimento aos (anteriores) recursos que interpuseram do Acórdão do Tribunal Judicial de Base, confirmou a decisão que os condenou nos termos atrás já relatados.

Vejamos então se tem os (3° e 5ª) arguidos ora recorrentes razão.

–– Pois bem, antes de mais, julga-se adequada uma “nota preliminar”.

É a seguinte.

Analisados os autos, verifica-se que os presentes autos tratam de “duas situações – ou ocorrências – distintas”.

Uma, relacionada com a conduta dos 1° a 4° arguidos, no qual intervém o 3° arguido, ora recorrente, e em que foram acusados e condenados pela prática do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” em “comparticipação criminosa”.

E, uma outra, que (apenas) diz respeito à 5ª arguida, ora também recorrente, e que, (se bem ajuizamos), não apresenta nenhum “elemento de conexão” com a conduta dos referidos 1° a 4° arguidos.

Por motivos que nos são estranhos e que se desconhecem, procedeu-se a Inquérito, deduzindo-se, oportunamente, uma só “acusação” relativamente a todos os 5 arguidos, procedendo-se, posteriormente, à subsequente (normal) tramitação processual dos presentes autos com a realização da audiência de discussão e julgamento e com a decisão do Tribunal Judicial de Base e, após o seu recurso, com o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que deu origem à presente lide recursória.

Não se ignora (ou olvida) que a “matéria” em questão relativamente a todos os (5) arguidos, (todos eles naturais do Vietnam), diz respeito ao seu envolvimento na prática do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” com recurso ao envio de encomendas postais do exterior contendo estupefaciente para Macau.

Porém, (ainda que assim seja), e sem prejuízo do muito respeito por opinião em sentido distinto, não vislumbramos motivos justificativos para a referida “tramitação em processo único”, (com uma suposta, ou implícita, “apensação de processos” que, ainda que de forma irregular, foi, exactamente, o que efectivamente acabou por ocorrer, cfr., art. 15° do C.P.P.M.).

Seja como for, confrontando-nos agora com os referidos “recursos”, atento a todo o processado, e visto que no que diz respeito à aludida “conexão” e “apensação processual” nada foi requerido, e, muito menos, foi, ou vem agora, alegado ou impugnado, mais não se mostra de, por ora, dizer sobre este aspecto.

Passa-se, então, e sem mais demoras, para a apreciação dos recursos trazidos à nossa decisão.

–– Do recurso do (3°) arguido A.

Bate-se este recorrente pela qualificação da sua conduta como a prática do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” em questão como mero “cúmplice”, e não como “co-autor”, (com os restantes 1°, 2° e 4° arguidos dos autos).

Ora, em face do que resultou “provado” e está, por motivos não haver para qualquer alteração, não se mostra viável tal pretensão.

Com efeito, tratando de idêntica matéria e questão, já teve este Tribunal oportunidade de consignar que:

“O crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” reconduz-se à categoria dos designados “crimes de perigo abstracto” e “de perigo comum”.
Nos “crimes de perigo abstracto”, a Lei basta-se com a aptidão (genérica) de determinadas condutas para constituírem um perigo que atinja determinados bens e valores, baseando-se na suposição legal de que determinados comportamentos são geralmente perigosos para esses bens e valores.
Por sua vez, fala-se em “crime de perigo comum” face à multiplicidade de bens jurídicos que se pretende salvaguardar.
No caso, a “saúde pública”, como bem jurídico complexo que primacialmente visa proteger “bens jurídicos pessoais”, como a integridade física e a vida dos consumidores, tutelando também valores como a tranquilidade, a liberdade individual e a estabilidade familiar.
Qualificam-se, outrossim, como tipos de ilícito “exauridos”, “excutidos” ou de “empreendimento”, e em relação aos quais se considera que o “resultado típico” alcança-se logo com o que normalmente configura a realização inicial do iter criminis, (uma mera tentativa), precisamente porque, já aí, antes de se verificar qualquer lesão efectiva, verificado – consumado – está o perigo dessa lesão.
A tutela penal é, deste modo, antecipada, sendo, assim, o crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” punido como um “processo”, e não, apenas, como o “resultado de um processo”.
Nesta conformidade, e face ao espectro de condutas elencadas no art. 8° da Lei n.° 17/2009, a “distinção” entre comportamentos subsumíveis às categorias da “autoria” ou da “cumplicidade” tende a esbater-se, pois que qualquer “contacto” ou “proximidade com o produto estupefaciente”, (afastada estando uma situação de “detenção para consumo”), pode integrar, (ou tem a potencialidade de integrar), por si só, a tipicidade do ilícito em causa.
A actuação do “cúmplice” não pode ir além do (mero) auxílio, (material ou moral).
Isto é, o cúmplice limita-se a favorecer um facto alheio sem tomar parte nele”; (cfr., v.g., o Ac. de 30.10.2020, Proc. n.° 127/2020 e de 11.03.2022, Proc. n.° 8/2022).

Ora, no caso dos autos, e relativamente à “intervenção” do ora recorrente, “provado” está – nomeadamente – que:

“ 4.
Num dia incerto, os 1º, 2º, 3º e 4º Arguidos chegaram a um acordo em Macau com um indivíduo desconhecido para, dividindo tarefas entre si, levantarem um pacote postal na Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações de Macau que continha estupefacientes, a seguir, adquiriram e detiveram os aludidos estupefacientes destinados ao fornecimento ou à venda a outras pessoas com vista a obter benefícios pecuniários.
5.
Em 22 de Janeiro de 2022, o referido pacote postal que continha estupefacientes, foi enviado da Holanda cujo destino era Macau.
6.
O nome do receptor do pacote em apreço era “C”; o endereço do receptor era “Endereço(1)]”; o número de telefone do receptor era “+853XXXXXXXX” (i.e. o número de telefone utilizado pelo 1º Arguido (XXXXXXXX)); com o n.º CCXXXXXXXXXNL. (Vide fls. 2735 dos autos)
7.
Em 14 de Fevereiro de 2022, por volta das 12:19, o 1º Arguido recebeu uma SMS da Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações de Macau através do número de telefone supramencionado: “A Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações comunica a V. Ex.ª para se dirigir pessoalmente, munido do documento de identificação válido, à Direcção dos Serviços de Correios – Área de Encomendas na entrada da Caixa Económica Postal, situada na Rua da Sé – a fim de levantar o pacote postal n.º CCXXXXXXXXXNL(B1311). Ligue para mais informações: 83968514.”. (Vide fls. 3804 dos autos, anexo 128)
8.
A seguir, o 1º Arguido comunicou aos 2º, 3º e 4º Arguidos que o pacote tinha chegado a Macau.
9.
Na mesma data, por volta das 13:35, o 1º Arguido ligou para 83968514, dizendo fraudulentamente ao trabalhador da Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações que o pacote continha chocolate, e perguntando ao referido trabalhador se o pacote poderia ser entregue a seu domicílio, por seu turno, o trabalhador respondeu-lhe que o pacote não seria entregue ao domicílio e teria de ser levantado pessoalmente na Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações mediante exibição do documento de identificação e da SMS de aviso de levantamento de encomenda. (Anexo 128)
(…)
12.
Assim, os 1º, 2º, 3º e 4º Arguidos acordaram que, na tarde do mesmo dia, se encontrariam no exterior da entrada da Sede dos Correios, sita no Largo do Senado, e que, em primeiro lugar, os 2º, 3º e 4º Arguidos responsabilizar-se-iam pela observação das situações da área circundante e do interior da Área de Encomendas da Sede dos Correios na entrada do Edifício da Caixa Económica Postal, situado na Rua da Sé, e, depois, o 1º Arguido dirigir-se-ia sozinho à Área de Encomendas para levantar o pacote, enquanto os 2º, 3º e 4º Arguidos ficariam a “vigiar” o local em causa para apoiarem o 1º Arguido.
(…)
14.
Depois da chegada ao local combinado, por volta das 13:47 do mesmo dia, o 2º Arguido (usando o telemóvel n.º XXXXXXXX) ligou para o telemóvel n.º XXXXXXXX do 1º Arguido, perguntando-lhe se já tinha partido para o local em causa, e, por seu turno, o 1º Arguido respondeu-lhe afirmativamente. Ora, o 2º Arguido mandou o 1º Arguido para apagar todos os números de telefone e mensagens, dizendo-lhe: Agora entra lá e depois chama o mano “E1” (ora 4º Arguido) para perguntar dentro dos Correios. Entra primeiro nos Correios para perguntar e depois saio dali e levo-os para dentro. O 1º Arguido disse: Quando “A1” (ora 3º Arguido) sai, vocês entram. (Vide anexo 132)
15.
No mesmo dia, por volta das 13:53, o 3º Arguido chegou ao local combinado, encontrando-se com os 2º e 4º Arguidos.
16.
Em seguida, o 3º Arguido encaminhou para um lugar próximo à Área de Encomendas da Sede dos Correios na entrada do Edifício da Caixa Económica Postal, situado na Rua da Sé, a fim de observar as situações da área circundante e do interior da Área de Encomendas, e depois regressou ao Largo do Senado, juntando-se com os 2º e 4º Arguidos.
17.
Na mesma data, por volta das 14:04, o 2º Arguido ligou novamente para o 1º Arguido, dizendo-lhe: Olhamos da entrada para dentro 6 metros, vemos directamente o armazém onde se levanta a coisa. Eu, “A1” (ora 3º Arguido) e o mano “E1” (ora 4º Arguido) estamos no exterior da entrada. Agora, o mano “A1” diz que vai outra vez. Está a entrar lá. O 1º Arguido disse ao 2º Arguido que estava a aguardar o táxi para ir ao lugar próximo à Sede dos Correios. (Vide anexo 132)
18.
Na mesma data, por volta das 14:22, o 1º Arguido também chegou ao exterior da entrada da Sede dos Correios, encontrando-se com os 2º, 3º e 4º Arguidos.
19.
Na mesma data, por volta das 14:24, os 1º, 2º, 3º e 4º Arguidos mantiveram certa distância entre si, caminhando da Santa Casa da Misericórdia, Travessa do Roquete, até às proximidades da Área de Encomendas da Sede dos Correios na entrada do Edifício da Caixa Económica Postal, situado na Rua da Sé.
(…)
22.
Posteriormente, os 2º, 3º e 4º Arguidos vaguearam em torno da Área de Encomendas, olhando por todos os lados como “vigilância”.
(…)
25.
Na mesma data, por volta das 14:40, o 3º Arguido ligou (com o seu telemóvel n.º XXXXXXXX) para o 2º Arguido. O 2º Arguido disse logo ao 3º Arguido: O “mano F1” (ora 1º Arguido) acabou de me telefonar, dizendo que os Correios não o deixaram levantar o pacote e exigiram o nome e o passaporte da mana “C1”. O 3º Arguido respondeu-lhe: “Chama ele (ora 1º Arguido) vir cá para fora.”. A seguir, o 3º Arguido ligou novamente para o 2º Arguido; na chamada, o 2º Arguido perguntou ao 3º Arguido se o 1º Arguido tinha saído para fora; e, por seu turno, o 3º Arguido respondeu: “Ainda não, estou sentado em baixo da rampa.”. (Vide anexo 69)
(…)
28.
No mesmo dia, por volta das 14:43, o 1º Arguido levantou o pacote postal n.º CCXXXXXXXXXNL(B1311), assinando o respectivo documento para constar. (Vide fls. 3089 a 3092 dos autos)
29.
O 1º Arguido levou o pacote e saiu do Edifício da Caixa Económica Postal, caminhando em direcção à Rua da Sé.
30.
Os 2º, 3º e 4º Arguidos que ainda estavam nas proximidades do local em causa, também pretendiam abandonar o lugar ao ver que o 1º Arguido tinha levantado com sucesso o pacote.
31.
Os agentes da Polícia Judiciária que estavam a realizar a perseguição e vigilância nas proximidades do local em causa, interceptaram o 1º Arguido e encontraram na posse do mesmo um pacote postal, um telemóvel e um Título de identificação de trabalhador não residente cujo titular era “G”. O telemóvel e o Título de identificação de trabalhador não residente em apreço eram instrumentos do crime utilizados pelo 1º Arguido. (Apreendidos aos autos)
(…)
34.
Em seguida, os 2º, 3º e 4º Arguidos também foram interceptados pelos agentes da PJ e em cada um deles foi encontrado um telemóvel. Os telemóveis em apreço eram instrumentos do crime utilizados pelos 2º, 3º e 4º Arguidos. (Apreendidos aos autos)
(…)
61.
Visando à obtenção de benefício ilegítimo, os 1º, 2º, 3º e 4º Arguidos tinham perfeito conhecimento da natureza dos estupefacientes “MDMA” em apreço, mas ainda agiram, em comum acordo e em conjugação de esforço, dividindo tarefas entre si, ao praticar a aquisição e detenção dos referidos estupefacientes para serem entregues a outras pessoas”; (cfr., factos n°s 4 a 9, 12, 14 a 19, 22, 25, 28 a 31, 34 e 61, a fls. 3953-v a 3959-v e 29 a 49 do Apenso).

Ora, perante a atrás retratada “factualidade dada como provada” – cuja “decisão” e respectiva “fundamentação” não vem impugnada, nenhuma censura nos merecendo também – e tendo presente o que atrás se consignou relativamente à distinção entre as condutas subsumíveis à “(co-)autoria” e “cumplicidade”, (especialmente, relativamente à prática do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” agora em questão e que se continua a ter por inteiramente adequado), vista cremos que está a solução para o presente recurso.

De facto, da aludida factualidade dada como provada se constata que, in casu, não só houve um “acordo claro e assumido” entre os 1° a 4° arguidos, como houve, também, uma (efectiva) “conjunção de vontades e esforços” em conformidade com o (dito) acordo (e plano) que, através de uma “actuação concertada e conjunta” dos ditos arguidos, foi levado a cabo, e que, efectivamente, concretizaram, efectuando, (com sucesso), o levantamento da encomenda postal enviada do exterior e que continha o estupefaciente que, em consequência da intervenção dos agentes da Polícia Judiciária, veio a ser apreendido nos autos.

E, nesta conformidade, atento o “nível” (e intensidade) da participação do ora recorrente no “projecto criminoso” em questão, e, presentes estando todos os elementos “objectivos” e “subjectivos” do crime pelo qual foi o mesmo condenado, mais não se mostra necessário dizer para se decidir pela improcedência do recurso (por este 3° arguido) apresentado.

–– Do recurso da (5ª) arguida B.

Aqui, e da análise e reflexão que nos foi possível efectuar, cremos que outra se nos mostra dever ser a solução.

Eis o porque deste nosso ponto de vista.

Comecemos por atentar na “decisão da matéria de facto” e sua “fundamentação”.

Pois bem, em relação à ora recorrente, deu-se como “provado” o que se passa a transcrever (na sua íntegra):

“ 36.
A 5ª Arguida B é residente do Vietname.
37.
Num dia incerto, a 5ª Arguida chegou a um acordo em Macau com “D1” e outros indivíduos desconhecidos para levantar um pacote postal na Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações de Macau, enviado por “Correio Rápido”, que continha estupefacientes, a seguir, adquiriu e deteve os aludidos estupefacientes, entregando-os a outras pessoas com vista a obter benefícios pecuniários.
38.
Em 5 de Abril de 2022, um pacote postal que continha estupefacientes, foi enviado do Vietname por “Correio Rápido” cujo destino era Macau.
39.
O nome do receptor do pacote em apreço era “H1”; o endereço do receptor era “[Endereço(2)]” (i.e. o domicílio da 5ª Arguida em Macau: [Endereço(2)]); o número de telefone do receptor era “853XXXXXXXX” (i.e. o número de telefone utilizado por “D1” (XXXXXXXX)); com o n.º ETXXXXXXXXXVN. (Vide fls. 3411 e 3416 dos autos)
40.
Em 20 de Abril de 2022, a Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações remeteu pela primeira vez a notificação da chegada de encomenda ao receptor do pacote em apreço e, posteriormente, procedeu à entrega do pacote, mas o resultado foi infrutífero. (Vide fls. 3310 dos autos)
41.
Em 26 de Abril de 2022, por volta das 18:11, “D1” recebeu uma SMS da Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações através do número de telefone utilizado pelo mesmo: “Comunica-se a V. Ex.ª para se dirigir pessoalmente, munido do documento de identificação válido, ao Centro de Levantamento de Correio Rápido – EMS (Quiosque), até 9 de Maio, a fim de levantar a encomenda n.º ETXXXXXXXXXVN, enviada por Correio Rápido, que estava depositada no supracitado centro desde 19 de Abril”. (Vide fls. 3304, 3306 e 3410 dos autos)
42.
Em 29 de Abril de 2022, por volta das 12:14, um indivíduo do sexo masculino, sob orientações de “D1”, ligou para o telefone n.º 2859XXXX da Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações com o telemóvel n.º XXXXXXXX supramencionado, perguntando se o pacote poderia ser “entregue” a seu domicílio, por seu turno, o trabalhador da Direcção dos Serviços de Correios respondeu-lhe que o pacote estava no Posto de Correios situado na “Avenida de Almeida Ribeiro” por antes não haver ninguém o receber, podendo o receptor levantar o pacote mediante exibição do documento de identificação. (Vide anexo 93 dos autos)
43.
Na mesma data, por volta das 12:40, o referido indivíduo do sexo masculino ligou novamente para o telefone n.º 2859XXXX da Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações com o telemóvel n.º XXXXXXXX supramencionado, onde o trabalhador dos Correios disse que o nome do receptor do pacote “era dificilmente legível” (i.e. o nome do receptor “H1” era dificilmente legível) e que o levantamento do pacote seria efectuado mediante a exibição do aviso de levantamento de encomenda, do número de contacto do receptor do pacote e do documento de identificação do representante do receptor do pacote, para efeitos de verificação. (Vide anexo 93 dos autos)
44.
Depois de terem tomado conhecimento do problema da legibilidade no nome do receptor do pacote, a 5ª Arguida, “D1”, entre outros indivíduos desconhecidos, por meio desconhecido, pediram logo ao emissor do pacote que alterasse o nome do receptor para “B” (ora 5ª Arguida), a fim de garantir o levantamento do pacote pela 5ª Arguida. (Vide fls. 3414 e 3415 dos autos)
45.
Assim, a 5ª Arguida, “D1”, entre outros indivíduos desconhecidos, acordaram que, na tarde do mesmo dia, a 5ª Arguida, levando consigo o telemóvel de n.º XXXXXXXX em apreço, se dirigiria à Sede dos Correios para levantar o pacote que continha estupefacientes.
46.
Na mesma data, por volta das 14:20, a 5ª Arguida, levando consigo o aludido telemóvel, o Passaporte n.º XXXXXXXX cujo titular era ela própria, e uma “factura de energia eléctrica caducada”, entrou no Centro de Levantamento de Correio Rápido – EMS da Sede dos Correios, no 3º andar do Edifício da Caixa Económica Postal, sito na Rua da Sé, para tratar das formalidades do levantamento do pacote.
47.
A 5ª Arguida exibiu ao trabalhador do referido Centro a SMS de aviso de levantamento de encomenda enviada para o telemóvel supramencionado e uma “factura de energia eléctrica caducada” de que constava o endereço do receptor do pacote ([Endereço(2)]), pedindo o levantamento do pacote postal n.º ETXXXXXXXXXVN. (Vide fls. 3410 e 3412 dos autos)
48.
O nome do receptor do pacote e o nome do titular do documento exibido pela 5ª Arguida eram diferentes, a par disso, alegou a 5ª Arguida que tinha o número de telefone do receptor do pacote, pelo que, no mesmo dia, por volta das 14:29, conforme as regras do levantamento de pacote, o trabalhador do Centro em apreço ligou para o número do telefone do receptor do pacote (XXXXXXXX), por seu turno, a 5ª Arguida atendeu à chamada com o telemóvel supramencionado e exibiu ao referido trabalhador, a pedido do mesmo, o Passaporte em apreço. (Vide fls. 3410 e 3413 dos autos, anexo 93)
49.
A 5ª Arguida levantou o pacote postal n.º ETXXXXXXXXXVN, assinando o respectivo documento para constar.
50.
Na mesma data, por volta das 14:30, a 5ª Arguida levou o pacote e saiu do Edifício da Caixa Económica Postal, caminhando da Avenida de Almeida Ribeiro para o átrio da China Plaza onde estavam os elevadores de carga.
51.
Os agentes da PJ que estavam a realizar a perseguição e vigilância nas proximidades do local em causa, interceptaram a 5ª Arguida e encontraram na posse da mesma um pacote postal, dois telemóveis e um saco de plástico transparente que continha pós brancos. Os telemóveis e o saco de plástico em apreço eram instrumentos do crime utilizados pela 5ª Arguida. (Apreendidos aos autos)
52.
Os agentes da PJ encontraram no pacote em apreço (sendo uma caixa de cartolina rectangular, acompanhada duma etiqueta com informações sobre o pacote e com o n.º ETXXXXXXXXXVN) quatro recibos postais relativos ao pacote em causa e doze tigelas plásticas de cup moodle com nova embalagem (apreendidos aos autos), tigelas essas continham objectos suspeitos de serem estupefacientes:
1. Duas tigelas plásticas de cup moodle (com massa de arroz, saquetes plásticos da cor cinzenta e tampa de papel de cup moodle) que continham um saco de plástico transparente em cada uma delas e esses sacos de plástico continham 28 e 29 comprimidos azuis da forma triangular, respectivamente;
2. Cinco tigelas plásticas de cup moodle (com massa de arroz e tampa de papel de cup moodle) que continham um saco de plástico transparente em cada uma delas e esses sacos de plástico continham objectos cristalizados brancos;
3. Cinco tigelas plásticas de cup moodle (com massa de arroz e tampa de papel de cup moodle) que continham um saco de plástico transparente com sinal vermelho em cada uma delas e esses sacos de plástico continham objectos cristalizados brancos.
53.
Para efeitos de dissimulação, no pacote em questão foram colocados ainda um saco de ananás seco, duas caixas de rebuçados de amendoim e um saco de melão seco. Tais objectos eram instrumentos do crime utilizados pela 5ª Arguida.
54.
Na tarde do mesmo dia, os agentes da PJ encontraram no domicílio da 5ª Arguida, sito no [Endereço(2)], uma palhinha cor-de-rosa modificada e duas palhinhas verdes modificadas. (Apreendidas aos autos)
55.
As aludidas palhinhas eram utensílios postos pela 5ª Arguida no seu domicílio e disponibilizados a outras pessoas para consumo de droga.
56.
Na tarde do mesmo dia, a Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações de Macau foi notificada pelo Serviço de Correios do Vietname de que o nome do receptor do pacote postal n.º ETXXXXXXXXXVN passava de “H1” para “B” (ora 5ª Arguida). (Vide fls. 3410, 3414 e 3415 dos autos)
57.
Feito o exame laboratorial, verificou-se que nas doze tigelas plásticas de cup moodle:
1. Em duas delas foram colocados dois sacos de plástico transparentes que continham 28 e 29 comprimidos azuis, respectivamente, comprimidos esses continham a substância “MDMA” descrita na Tabela II-A, mencionada no art.º 4º da Lei n.º 17/2009 (com a redacção introduzida pelas Leis n.ºs 4/2014, 10/2016, 10/2019 e 22/2020), de peso bruto de 12,58g e 13,006g, e, conforme a análise quantitativa, com conteúdo de pura “MDMA” de 3,56g e 3,72g e do grau de pureza de 28,3% e 28,6%, respectivamente. (Materiais n.ºs Tox-V0153 e Tox-V0154 enviados a exame, mencionados no relatório do exame laboratorial)
2. Em cinco delas foram colocados cinco sacos de plástico transparentes que continham objectos cristalizados brancos, objectos esses continham a substância “Metanfetamina” descrita na Tabela II-B, mencionada no art.º 4º da Lei supracitada, de peso bruto total de 49,019g, e, conforme a análise quantitativa, com conteúdo de pura “Metanfetamina” de 38,9g na totalidade e do grau de pureza de 79,4%. (Material n.º Tox-V0155 enviado a exame, mencionado no relatório do exame laboratorial)
3. Em cinco delas foram colocados cinco sacos de plástico transparentes com sinal vermelho que continham objectos cristalizados brancos, objectos esses continham a substância “Ketamina” descrita na Tabela II-C, mencionada no art.º 4º da Lei supracitada, de peso bruto total de 48,299g, e, conforme a análise quantitativa, com conteúdo de pura “Ketamina” de 41,7g na totalidade e do grau de pureza de 86,4%. (Material n.º Tox-V0156 enviado a exame, mencionado no relatório do exame laboratorial)
58.
Feito o exame laboratorial, verificou-se que uma palhinha cor-de-rosa modificada e uma das palhinhas verdes modificadas encontradas no domicílio da 5ª Arguida continham vestígios da substância “Metanfetamina” descrita na Tabela II-B, mencionada no art.º 4º da Lei supracitada. (Materiais n.ºs Tox-V0159 e Tox-V0160 enviados a exame, mencionados no relatório do exame laboratorial)
(…)
62.
Visando à obtenção de benefício ilegítimo, a 5ª Arguida tinha perfeito conhecimento da natureza dos estupefacientes “MDMA”, “Metanfetamina” e “Ketamina”, mas ainda adquiriu e deteve os aludidos estupefacientes para serem fornecidos ou vendidos a outras pessoas”; (cfr., factos n°s 36 a 58 e 62, a fls. 3956-v a 3959-v e 40 a 49 do Apenso).

Por sua vez – e para além de em (manifesta) “contradição” com o que se declarou provado nos pontos n°s 54 e 55 – deu-se, simultaneamente, como “não provado” que: “A 5ª Arguida deteve ainda palhinhas como utensílios disponibilizados a outras pessoas para consumo de droga”; (cfr., fls. 3960 e 50 do Apenso, sendo porém de notar que, a final, acabou absolvida do crime de “detenção de utensilagem” do art. 15° da Lei n.° 17/2009, pelo qual tinha sido acusada).

Justificando a sua “convicção”, assim consignou o Tribunal Judicial de Base no seu Acórdão, (que, como se viu, foi integralmente confirmado pelo Tribunal de Segunda Instância):

“A 5ª Arguida B exerceu o direito ao silêncio na audiência de julgamento.
Na audiência de julgamento, os investigadores da PJ, I (壬), J (癸), K (甲甲), L (甲乙) e M (甲丙), alegaram sobre as medidas de investigação adoptadas no caso:
(…)
- Quanto à 5ª Arguida, conforme as informações obtidas pela PJ, ela é a namorada dum indivíduo chamado D1, embora não conheça os 1º a 4º Arguidos. Segundo a escuta do telemóvel do utente “D1”, constata-se que ele coabita com a 5ª Arguida numa fracção situada no [Endereço(2)]. Além do mais, “D1” tem o hábito de consumo de estupefacientes. Conforme a escuta, ele consome estupefacientes com frequência, juntamente com seus parceiros, bem como indicia que este e seus parceiros traficam estupefacientes.
(…)
O quarto investigador K (甲甲), responsável pela investigação do caso da 5ª Arguida, alegou:
- Em 27 de Abril de 2022, esta Divisão foi comunicada pela Divisão de Investigação Tecnológica que “D1” tinha recebido duas SMS da Sede dos Correios em 26 de Abril de 2022, pelas 18:11, pelas quais foi avisado o levantamento dum pacote postal junto à Sede dos Correios (encomenda n.º ETXXXXXXXXXVN, enviada por Correio Rápido). Assim, a PJ realizou o exame preliminar do pacote em questão (encomenda n.º ETXXXXXXXXXVN, enviada por Correio Rápido), averiguando que o pacote pesava 3,14kg, a franquia era de cerca de MOP488,00, o receptor era “H1”, o número de contacto do receptor era XXXXXXXX, o endereço do receptor era [Endereço(2)]. Na opinião da PJ, o pacote em causa era duvidoso.
- Em 29 de Abril de 2022, à tarde, esta Divisão foi comunicada pela Sede dos Correios que um indivíduo do sexo feminino chegou ao Centro de Levantamento de Correio Rápido – EMS da Sede dos Correios para levantar o pacote n.º ETXXXXXXXXXVN. O investigador encontrou no local em causa um indivíduo do sexo feminino (5ª Arguida B) que estava a tratar das formalidades do levantamento do pacote. O trabalhador da Sede dos Correios, usando o telefone da Sede dos Correios, ligou para o número de contracto (853-XXXXXXXX) constante do pacote e, a seguir, o telemóvel da 5ª Arguida começou a tocar. Depois da 5ª Arguida ter atendido à chamada telefónica e do trabalhador da Sede dos Correios ter verificado os dados, o pacote em causa foi entregue à 5ª Arguida. Os agentes desta Divisão interceptaram a Arguida aquando da saída da Sede dos Correios com o pacote levantado. Feita a investigação preliminar, constata-se que um dos telemóveis encontrados na posse da 5ª Arguida é compatível com os elementos obtidos nas escutas, por conseguinte, a 5ª Arguida e o pacote postal em questão foram levados ao posto da PJ para investigação.
- Na captura da 5ª Arguida, a PJ encontrou na posse da mesma um telemóvel cujo número era compatível com o número do telemóvel que estava sujeito à escuta ou com o número de IMEI. Conforme os elementos obtidos nas escutas, antes da 5ª Arguida se dirigir à Sede dos Correios, um indivíduo do sexo masculino que falava chinês ajudou-a a telefonar para a Sede dos Correios, pedindo informações sobre as formalidades e os documentos necessários para levantamento de encomenda. Na altura, através da aludida chamada telefónica, ouviu-se que a 5ª Arguida estava a conversar com um outro vietnamita. Posteriormente, a 5ª Arguida foi interceptada pelos agentes da PJ depois do levantamento do pacote junto à Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações. A seguir, os agentes da PJ procederam à revista do pacote em causa e nele encontraram doze tigelas de cup moodle; das quais dez continham um saco de plástico transparente em cada uma delas e esses sacos de plástico continham objectos cristalizados brancos; cada saco, incluindo o saco de embalagem, pesava cerca de 10g, no total 10 sacos (pesavam cerca de 100g); e as restantes duas tigelas de cup moodle continham 28 e 29 comprimidos azuis da forma triangular, respectivamente, no total 57 comprimidos (pesavam cerca de 26g), suspeitos de serem substâncias psicotrópicas sob controlo em Macau, pelo que os objectos supramencionados foram apreendidos e submetidos ao exame laboratorial.
O 5º investigador L (甲乙) alegou que tinha efectuado o procedimento de reconhecimento fotográfico com a 5ª Arguida B, no qual a referida arguida afirmou claramente que seu namorado era o indivíduo do sexo masculino, de nacionalidade vietnamita, chamado D (ora indivíduo do sexo masculino envolvido no caso). Além disso, o investigador também procedeu à investigação no [Endereço(2)]. A 5ª Arguida e seu namorado D coabitavam num dos quartos da fracção em apreço. Mais, os agentes da PJ encontraram nesse quarto 5 priscas de cigarro queimadas e 3 palhinhas modificadas (suspeitas de serem utensílios para consumo de estupefacientes), pelo que os aludidos objectos foram apreendidos e submetidos ao exame laboratorial. O teste da 5ª Arguida apresentou resultado negativo para estupefacientes.
(…)
No tocante à 5ª arguida, segundo o registo de escuta no proc. n.º CR4-22-0212-PCC (anexo 93, correspondente ao arquivo de escuta n.º 36-10863/2021/MP), “D1” disse a um indivíduo feminino, escutado no arquivo n.º 36-10863/2021/MP, que uma outra encomenda estava a ser enviada para Macau, a qual se relacionava a drogas.
No tocante à arguida, segundo as informações do “Sistema de Videovigilância da Cidade de Macau”, o vídeo de vigilância e o processo de levantamento da encomenda em causa (n.º ETXXXXXXXXXVN), oferecidos pela Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações, em conjugação com as informações de escuta, verifica-se que, naquele dia, o funcionário dos correios confirmou que o número de telemóvel exibido pela 5ª arguida B era exactamente o número registado para a recepção da encomenda em causa (n.º 853-XXXXXXXX, ou seja, arquivo de escuta n.º 22-10863/2021/MP), e depois, a arguida B conseguiu levantar a encomenda. Além disso, quando a Polícia deteve a 5ª arguida B, o telemóvel encontrado dela era o telemóvel escutado no arquivo n.º 22-10863/2021/MP.
A 5ª arguida foi submetida pela Polícia ao exame de urina no Centro Hospitalar Conde de São Januário, o resultado do exame toxicológico dela apresentou-se negativo.
***
Deste modo, segundo as regras de experiência, as declarações dos 5 arguidos prestadas na audiência (os 2º, 4º e 5ª arguidos exerceram o direito de silêncio), os depoimentos dos 5 investigadores da PJ, o depoimento duma testemunha de defesa, todas as provas documentais nos autos, incluindo as diligências instrutórias efectuadas pela Polícia, o auto de apreensão, o auto de exame toxicológico e o auto de exame de DNA, as provas são suficientes para o Tribunal dar assentes os respectivos factos.
(…)
No tocante à 5ª arguida
A 5ª arguida manteve silêncio. Contudo, a Polícia deteve-a em 29 de Abril de 2022 quando foi aos correios levantar drogas. De acordo com as informações de investigação, nomeadamente de escuta realizada a “D1”, na sua residência num apartamento do [Endereço(2)] (2ª fase), ele e vários companheiros têm sempre exercido actividades criminosas e vendido drogas a outrem em Macau. Além disso, “D1” tem o hábito de consumo de drogas, consumia drogas frequentemente com os companheiros. De facto, no apartamento em causa, a Polícia descobriu 5 cigarros queimados e 3 palhinhas adaptadas (suspeitas de ser instrumentos de consumo), que serviram de instrumentos de consumo de drogas pelos indivíduos no apartamento.
E mais, em 29 de Abril de 2022, à tarde (antes de levantar a encomenda), a Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações de Macau foi informada pelo órgão do serviço postal do Vietname de que, a pedido de D1, o nome do recebedor da referida encomenda n.º ETXXXXXXXXXVN foi alterado de “H1” em “B” (5ª arguida). E o telemóvel escutado no arquivo n.º 22-10863/2021/MP foi sempre utilizado pelo namorado (D) da 5ª arguida, mas quando a 5ª arguida foi detida, o telemóvel era registado para o levantamento da encomenda e estava guardado por ela, o recebedor da encomenda também foi alterado na 5ª arguida.
As provas acima analisadas demonstram que, quando a 5ª arguida morava com D1, devia saber que D1 e as outras pessoas consumiam drogas juntos, uma vez que, no apartamento deles foram descobertas umas palhinhas adaptadas, bem como vestígios de uso por uns indivíduos identificáveis.
Analisando as informações de escuta, em conjugação com as informações do “Sistema de Videovigilância da Cidade de Macau”, o vídeo de vigilância e o processo de levantamento da encomenda em causa, oferecidos pela Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações, o Tribunal Colectivo considera suficientemente verificado que, foi segundo a instrução do namorado D que a 5ª arguida B foi levantar a encomenda em causa. Importa assinalar que, D1 usava sempre o seu próprio telemóvel para contactar com outrem, mas deu o telemóvel à 5ª arguida exactamente antes de levantamento da encomenda, até alterou o nome do recebedor (H1) no nome dela B, essa alteração implica obviamente que D1 mandou directamente a 5ª arguida ir levantar a encomenda. Nessa circunstância objectiva, especialmente tendo em conta que o namorado se envolvia sempre em drogas, a 5ª arguida devia facilmente pensar na alta possibilidade de existência de drogas escondidas na encomenda, pelo que, quando foi levantar a encomenda para o namorado, foi extremamente possível saber bem que a encomenda continha drogas, mas adoptou uma atitude de condescendência e deixou o caso ocorrer. Deste modo, as provas são suficientes para dar assente a prática dos respectivos crimes pela 5ª arguida”; (cfr., fls. 3961 a 3966 e 53 a 70 do Apenso).

E, aqui chegados, quid iuris?

Ora, como atrás se disse, cremos que à arguida ora recorrente assiste razão.

Vejamos.

Sob a epígrafe “Requisitos da sentença” prescreve (actualmente) o art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M. que:

“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”; (redacção introduzida pela Lei n.° 9/2013).

E, relativamente à dita “fundamentação” já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de considerar que:

“A nova redacção do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M. ‘reforçou’ o dever de fundamentação, exigindo (agora) o ‘exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal’, suficiente (já) não sendo uma (mera) ‘enumeração dos elementos probatórios’ a que se atendeu com a afirmação (conclusiva) de que se lhes deu crédito, evidente sendo assim que o Tribunal deve, (na medida do possível, e ainda que de forma concisa), expor também os ‘motivos’ que o levaram a atribuir relevo e/ou crédito aos elementos probatórios de que se serviu para decidir a matéria de facto da forma que fez.
Porém, se é certo que com a nova redacção do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M. se pretendeu acabar com a chamada ‘fundamentação tabelar’, igualmente certo é que com a mesma não se quis introduzir a exigência de uma fundamentação ‘exaustiva’ relativamente a todos os ‘pontos’, ‘pormenores’ ou ‘circunstâncias’ da matéria de facto.
Não se pode esquecer que o comando em questão faz, (continua a fazer), referência a ‘uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa…’, não se podendo igualmente olvidar que a ‘fundamentação do Tribunal’ não é o segmento da sentença ou acórdão com o qual se tenta dar resposta a toda e qualquer (eventual e possível) questão (ou dúvida) que os sujeitos processuais possam (ou venham a) ter, (esgotando-se, em absoluto, o tema sobre eventuais e hipotéticas questões), destinando-se, antes, a expor e a permitir conhecer os ‘motivos que levaram o Tribunal a decidir (a matéria de facto) da forma como decidiu’, (acolhendo, ou não, uma ou mais versões apresentadas e discutidas em audiência de julgamento), devendo-se ter – sempre – em conta os ‘ingredientes do caso concreto’”; (cfr., v.g., o Ac. de 30.07.2021, Proc. n.° 104/2021).

In casu, em face do teor da “fundamentação” pelo Colectivo do Tribunal Judicial de Base exposta sobre as razões da sua convicção no que toca à conduta criminosa que à ora recorrente foi imputada na acusação pública deduzida e que agora foi confirmada pelo Acórdão agora recorrido, crê-se que a mesma não justifica nem esclarece de forma adequada (e suficiente) as “razões” pelas quais se decidiu considerar como “provada” a matéria de facto em que assenta a decisão da sua condenação como “co-autora” da prática do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, apresentando-se-nos, assim, e sem prejuízo do muito respeito por diverso entendimento, que correcto não está o que relativamente à mesma se decidiu.

Desde já, imperativo é notar que não se compreende a (total) “ausência” do indivíduo identificado como “D1” nos presentes autos, de nome “D”, considerado “namorado da recorrente”, (nada se sabendo em termos de “consequências jurídico-penais” relativamente à sua intervenção na matéria que levou à acusação e condenação da recorrente), cabendo salientar que assim sucede não obstante resultar (bastante) claro, (e assim constar do processo), que a mesma recorrente foi por aquele “instruída” para proceder ao levantamento da “encomenda postal” na qual se veio a verificar conter estupefaciente, (e apesar de das investigações encetadas se considerar igualmente indiciado que “consumia” e “traficava estupefaciente”).

Na verdade, qual a razão de o mesmo não ter sido acusado, (sendo de sublinhar até que a ora recorrente o foi como “co-autora”, cremos nós, precisamente, do dito “D1”)?

A par desta “(pouco compreensível) situação”, (e do atrás já referido quanto ao “despacho único de acusação” dos 5 arguidos dos autos, embora sem “conexão” entre a “conduta” dos 1° a 4° arguidos com a da “5ª arguida”, ora recorrente, mas sem que este “D1” aí figurasse), mostra-se-nos pois de dizer que lendo-se o teor da “fundamentação” atrás exposta, muitas – e, no mínimo, muito fortes – “dúvidas” nos ocorrem sobre (os “motivos” e) da (própria) convicção da transcrita “decisão da matéria de facto”.

Na verdade, “como”, (com base em que concreto “elemento de prova”), chegou o Tribunal à conclusão (e convicção) de que “provado” estava:
- que “Num dia incerto, a 5ª Arguida chegou a um acordo em Macau com “D1” e outros indivíduos desconhecidos para levantar um pacote postal na Direcção dos Serviços de Correios e Telecomunicações de Macau, enviado por “Correio Rápido”, que continha estupefacientes, a seguir, adquiriu e deteve os aludidos estupefacientes, entregando-os a outras pessoas com vista a obter benefícios pecuniários”, (cfr., facto provado n.° 37);
- que “Depois de terem tomado conhecimento do problema da legibilidade no nome do receptor do pacote, a 5ª Arguida, “D1”, entre outros indivíduos desconhecidos, por meio desconhecido, pediram logo ao emissor do pacote que alterasse o nome do receptor para “B” (ora 5ª Arguida), a fim de garantir o levantamento do pacote pela 5ª Arguida. (Vide fls. 3414 e 3415 dos autos)”, (cfr., facto provado n.° 44);
- que “Assim, a 5ª Arguida, “D1”, entre outros indivíduos desconhecidos, acordaram que, na tarde do mesmo dia, a 5ª Arguida, levando consigo o telemóvel de n.º XXXXXXXX em apreço, se dirigiria à Sede dos Correios para levantar o pacote que continha estupefacientes”, (cfr., facto provado n.° 45);
- que “Para efeitos de dissimulação, no pacote em questão foram colocados ainda um saco de ananás seco, duas caixas de rebuçados de amendoim e um saco de melão seco. Tais objectos eram instrumentos do crime utilizados pela 5ª Arguida”, (cfr., facto provado n.° 53); e ainda,
- que “Visando à obtenção de benefício ilegítimo, a 5ª Arguida tinha perfeito conhecimento da natureza dos estupefacientes “MDMA”, “Metanfetamina” e “Ketamina”, mas ainda adquiriu e deteve os aludidos estupefacientes para serem fornecidos ou vendidos a outras pessoas”; (cfr., facto provado n.° 62)?

Com efeito, repete-se, “de onde” e “como” extraiu o Colectivo de Juízes a “convicção” de que “provada” estava tal “factualidade”?

Especialmente, sabendo-se (e assente estando) que o telemóvel com o n.° XXXXXXXX era o utilizado pelo dito “D1”, e que, tanto quanto (objectivamente) resulta da prova produzida, que a arguida apenas o utilizou aquando do “levamento da encomenda” – que, de início, nem estava em seu nome, tão só passando a figurar como “destinatária”, “momentos” antes do seu levantamento, (absolutamente) nada existindo para se poder considerar que estivesse “envolvida” em tal mudança – como afirmar-se que:
- “o Tribunal Colectivo considera suficientemente verificado que, foi segundo a instrução do namorado D que a 5ª arguida B foi levantar a encomenda em causa. Importa assinalar que, D1 usava sempre o seu próprio telemóvel para contactar com outrem, mas deu o telemóvel à 5ª arguida exactamente antes de levantamento da encomenda, até alterou o nome do recebedor (H1) no nome dela B, essa alteração implica obviamente que D1 mandou directamente a 5ª arguida ir levantar a encomenda”; para, de seguida, como que dando um (grande) “salto”, concluir que:
- “Nessa circunstância objectiva, especialmente tendo em conta que o namorado se envolvia sempre em drogas, a 5ª arguida devia facilmente pensar na alta possibilidade de existência de drogas escondidas na encomenda, pelo que, quando foi levantar a encomenda para o namorado, foi extremamente possível saber bem que a encomenda continha drogas, mas adoptou uma atitude de condescendência e deixou o caso ocorrer”; afirmando, a final, que:
- “Deste modo, as provas são suficientes para dar assente a prática dos respectivos crimes pela 5ª arguida”?; (cfr., fls. 3966 e 69 a 70 do Apenso, com sub. nosso).

Ora, sob a epígrafe “Função das provas” prescreve o art. 334° do C.C.M. que “As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”.

E como também nota Rosa Vieira Neves, (in “A Livre Apreciação da Prova e a Obrigação de Fundamentação da Convicção”, 2011, pág. 17), a prova produzida pode ser analisada sob “três óticas” diferentes: como “actividade probatória”, como “meio de prova” e como “resultado daquela actividade”.

Parafraseando Paulo Sousa Mendes diríamos que a primeira traduz-se no “esforço metódico através do qual são demonstrados os factos relevantes para a existência do crime; a punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”.
A segunda, diz respeito aos “elementos com base nos quais os factos relevantes podem ser demonstrados”.
E, a terceira, com “a motivação da convicção da entidade decidente acerca da ocorrência dos factos relevantes, contanto que essa motivação se conforme com os elementos adquiridos representativamente no processo e respeite as regras da experiência, as leis científicas e os princípios da lógica”; (in “As Proibições de Prova no Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coordenação científica de Maria Fernanda Palma”, 2004, pág. 133).

Assim, de forma clara e evidente se nos apresenta de concluir que a “prova produzida” não é, pois, um “fim” em si mesmo, constituindo, apenas e tão só, um “meio” conducente a formar (e justificar) a valoração do julgador, devendo toda a “actividade probatória” e a sua “justificação” evidenciar, (demonstrando, objectiva e cabalmente), o “juízo”, e, (principalmente), o “percurso lógico” seguido para que aquela mesma “valoração” possa ser apreendida e compreendida não só pelas partes directamente interessadas e intervenientes no processo, mas, também, por toda a comunidade.

Como – se referiu e – prescreve o art. 111° do C.P.P.M.:

“1. Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicável.
2. Se tiver lugar pedido de indemnização civil, constituem igualmente objecto da prova os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil”.

Por sua vez, e incidindo sobre o tema, estatui igualmente o art. 112° do mesmo Código que: “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”, acrescentando-se no art. 114° que: “Salvo disposição legal em contrário, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Dest’arte, (como é sabido), e, pelo menos, por regra – cfr., o referido art. 114° do C.P.P.M. que consagra o “princípio da livre apreciação da prova” – ao julgador não são fornecidos “critérios legais” que se (pré)imponham à (sua) valoração da prova; (cfr., v.g., Jorge de Figueiredo Dias in, “Direito Processual Penal (lições coligidas)”, Secção de textos da F.D.U.C., 1988/9).

E, nesta conformidade, produzida a prova em sede de audiência de discussão e julgamento, e em resultando da sua (livre) apreciação, (em confronto com as “circunstancias concretas da situação” sub judice), ao Tribunal cabe decidir com base nas referidas “regras da experiencia” e de acordo com a “sua convicção”; (cfr., art. 114°).

Todavia, e como também nota Figueiredo Dias, “a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo (possa a lei renunciar à motivação e ao controlo efetivos)”; (in “Direito Processual Penal”, Vol. I, 1974, pág. 202 e 203), pois que o referido “princípio da livre apreciação da prova” (também) comporta “limites”, (e reservas).

Com efeito, a “liberdade na apreciação da prova” não significa que se possa decidir consoante o “livre arbítrio”, (como se de um “acto de fé” se tratasse), e sem que aquela corresponda, e tenha, de forma objectiva e material, um “suporte probatório”, (mínima e razoavelmente consistente).

Como a propósito do referido princípio salientam M. Mimoso e B. Magalhães – em estudo sobre “Os Limites à Livre Apreciação da Prova; Erro sobre a Factualidade Típica” – a aludida “liberdade” “não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e imotivável. A valoração da prova para a convicção de condenação ou de absolvição tem de ser racional, objetiva e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos. Só assim permite ao julgador objetivar a apreciação dos factos para efeitos de garantir uma efetiva motivação da decisão. (…)”, notando-se, ainda, que esta livre apreciação da prova “sofre limitações que decorrem do grau de convicção exigido para a decisão, da proibição dos meios de prova, da observância da presunção de inocência e da salvaguarda do «princípio in dubio pro reo»”.

Por sua vez, (e como atrás se deixou adiantado), a “fundamentação da sentença” consiste, pois, na exposição dos “motivos de facto” – motivação sobre as “provas” e sobre a “decisão em matéria de facto”) – e de “direito” – ou seja, na enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas – que determinaram (“fundamentaram”) o “sentido” da decisão proferida, e que, como é evidente, não se pode impor apenas pela “autoridade” legalmente atribuída (e reconhecida) ao “órgão”, “instituição” ou “estatuto profissional” de quem a profere, mas, antes, pela “razão” que lhe subjaz, (cfr. v.g., Germano Marques da Silva in, “Curso de processo penal”, Vol. III, pág. 289), sendo, assim, a “fundamentação” também (absolutamente) indispensável para que se assegure o respeito pelo “princípio da legalidade da decisão judicial”, (concorrendo, também, a sua observância, para a “garantia e demonstração da imparcialidade” do seu autor).

Realiza, assim, a “fundamentação” das decisões “judiciais”, uma “dupla finalidade”: em projecção exterior, (“extraprocessual”), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; noutra perspectiva, (“intraprocessual”), a exigência de fundamentação viabiliza a (finalidade de) reapreciação das decisões dentro do sistema legal de recursos, facultando ao Tribunal superior o conhecimento das “razões”, do “modo”, assim como o “processo de formulação” do juízo lógico nela contido e que determinou o “sentido da decisão” para, em apreciação das ditas razões do decidido, formular o seu próprio juízo e decisão.

Verifica-se também desta forma que no que respeita à “fundamentação da decisão sobre a matéria de facto”, (a que se refere especificamente a exigência da parte final do art. 355°, n.° 2 do C.P.P.M.), o “exame crítico das provas” permite, (sendo esta a sua “função processual”), que o Tribunal de recurso reexamine a decisão para verificar da (eventual) (in)existência dos “vícios da matéria de facto” a que se refere o art. 400°, n.° 2 do mesmo Código, permitindo uma avaliação, (e como é desejável o mais segura e cabal possível), do “porquê” e do “processo lógico da decisão”, assim se demonstrando que se seguiu um “procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas”, não sendo a “decisão sobre a matéria de facto arbitrária”, ou “dominada por subjectivismos”, e afastada do sentido determinado pelas referidas “regras da experiência”.

In casu, (no que à ora recorrente diz respeito, e como já se referiu), da transcrita “fundamentação da convicção sobre a matéria de facto” não se encontra a (necessária) “sustentação probatória (suficiente)” que pudesse levar a uma (minimamente) segura conclusão e confirmação da “intervenção” da ora recorrente nos termos naquela descritos, ou seja, que participou, efectivamente, e de forma “voluntária, consciente e deliberada no projecto criminoso referente ao levantamento da encomenda postal remetida do Vietnam contendo estupefaciente”, (e que se encontra identificado e apreendido nos autos).

E, nesta conformidade, se a “decisão” proferida em sede da “matéria de facto dada como provada” relativamente à ora recorrente ocorreu ao arrepio de qualquer “suporte probatório” claro, concreto, objetivo e (minimamente) consistente e seguro, apresentando-se-nos, assim, que assentou numa “apreciação inadequada” – porque “arbitrária” – da “prova”, efectuada com recurso a “projecções de (meras) probabilidades”, em nada equivalentes a “presunções naturais” (ou judiciais), ou a “juízos de normalidade”, imperativo sendo concluir que se incorreu em “erro notório na apreciação da prova” por evidente desrespeito e violação do “princípio da presunção da inocência e in dubio pro reo”; (sobre esta “matéria”, seu sentido e alcance, cfr., v.g., e entre outros, os Acs. deste T.U.I. de 02.07.2021, Proc. n.° 97/2021, de 11.03.2022, Proc. n.° 12/2022, de 27.07.2022, Proc. n.° 71/2022 e de 03.03.2023, Proc. n.° 97/2022).

Com efeito, em sede do “processo civil”, e nas “situações” em que não se atinge um “juízo de certeza”, (e em que o Julgador se vê perante um impasse ou um “non-liquid”, tendo, mesmo assim, que decidir sob pena de “denegação de justiça”; cfr., art. 7°, n.° 2 do C.C.M.), são as mesmas solucionadas através das “regras de distribuição do ónus da prova”; (cfr., art°s 335° e segs. do mesmo C.C.M.).

Em “processo penal”, como são os presentes autos, e perante a impossibilidade de uma “certeza”, a Justiça encontra-se na alternativa de aceitar, com base numa (mera) “probabilidade”, ou “possibilidade”, o risco de “absolver um culpado” ou de “condenar um inocente”.

E, em face deste “dilema”, (e como já notava Cavaleiro de Ferreira), “a solução jurídica e moral só pode ser uma: deve aceitar-se o risco de absolvição do culpado e nunca o da condenação de um inocente”; (in “Curso de Processo Penal”, Vol. I, 1986, pág. 216).

Na verdade, entre o risco de condenar um inocente, e o (risco) de absolver um culpado, o “princípio in dubio pro reo” e da “presunção de inocência”, impõe, claramente, a opção de assumir o segundo, (sendo de arredar o primeiro).

Contudo, não se olvida também que a “verdade processual”, assente numa “reconstituição” – do passado, e, assim, tão só – na medida do que é “possível”, não constitui, (nem o podia ser), uma “verdade ontológica” ou “incontestável”, (e em que não se admite qualquer discussão).

Exigir-se, unicamente, e em todas e quaisquer circunstâncias, a “prova directa” sobre as (todas as) circunstâncias da prática e cometimento de um crime, implicaria, certamente, um grande fracasso na sua prevenção, investigação e punição.

Em causa estando “comportamentos humanos” da mais diversa natureza, (que podem ser motivados por múltiplas razões e pelas mais diversas intenções), não se mostra possível uma “certificação” segundo (rigorosas) regras e princípios “cientificamente” estabelecidos.

E, desta forma – e em conformidade com os “princípios gerais no que toca à produção de prova”, (essencialmente), nos prescritos art°s 111° a 114°, assim como no art. 321° do C.P.P.M. – não se nega, sendo, aliás, de salientar, que para tal “reconstituição”, igualmente relevantes são, para além dos meios de “prova directa”, toda e qualquer “prova indirecta”, incluindo-se os “procedimentos lógicos” de conhecimento (ou dedução) de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido, ou sejam, as “presunções”, (no art. 342° do C.C.M. definidas como “(…) as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”).

Importam, assim, e neste âmbito, (e quiçá, especialmente), as chamadas “presunções naturais” (ou “judiciais”), expressamente autorizadas pelo art. 114° do C.P.P.M. e que permitem ao Juiz extrair de um “facto conhecido”, ilações para, adquirir (e dar como adquirido), um “facto desconhecido”, (e que se diferenciam das “legais”, porque estabelecidas por Lei, e de que, v.g., são exemplos conhecidos, as regulamentadas no art. 100°, 1178° e 1184° do C.C.M. quanto à matéria da “morte presumida” e “presunções de posse”).

Partindo-se de um facto conhecido, (certo), e das regras da experiência, conclui-se que esse facto “denuncia a existência de outro facto (desconhecido)”; (cfr., v.g., Florence Haret in, “Por um conceito de presunção”, Revista da Faculdade de Direito da Univ. de S. Paulo, 2009, pág. 725 a 744; Vaz Serra in, “Direito Probatório Material”, B.M.J. 112°-190, e, com desenvolvimento sobre a evolução da matéria e seu regime legal, Carlos A. Dabus Maluf in, “As Presunções na Teoria da Prova”, Revista da Faculdade de Direito da Univ. de S. Paulo, Vol. LXXIX, pág. 207).

É o que por exemplo sucede quando “provado” está que o veículo conduzido pelo arguido deixou na via em que seguia um extenso “rasto de travagem” de mais de “50 metros” e, com base neste “facto adquirido” se conclui que o mesmo seguia com uma velocidade “não inferior a 30k/h”, e, nesta conformidade, inadequada – e, especialmente, “excessiva” – para o “local”, (perto de uma escola e de uma passagem para peões), e que, foi assim, em consequência de tal “velocidade” imprimida ao veículo que não lhe tenha sido possível abrandar e travar a marcha do veículo de forma a evitar o embate ocorrido na dita passadeira.

Assim, e na convicção determinada pelas “regras da experiência” de que certos factos são a “normal”, “típica” e lógica consequência de outros, nada obsta que perante “factos” precisos e conhecidos, (v.g., o referido “rasto de travagem”), se adquira e declare a realidade de outro(s) não demonstrado(s), (sobre a “velocidade” do veículo), assentando o valor da sua “credibilidade”, (convicção), na força da “conexão causal” entre os “factos” em questão.

É claro – não se nega – que se podia, (eventualmente), considerar também que, tendo a ora recorrente 31 anos de idade à data dos factos, “deveria” saber que “estranha”, (“duvidosa”), era a situação de “levantar uma encomenda a pedido de um terceiro”, sabendo-se, como se sabe, porque amplamente divulgado nos meios de comunicação social, ser este um “meio” bastante utilizado para o tráfico de estupefacientes.

Poder-se-ia até dizer que, consumindo o seu namorado estupefaciente na casa em que habitavam (juntos), e, assim, devendo saber que este consumia estupefaciente, “poderia” ter também calculado que a “encomenda” cujo levamento lhe foi pedido e efectuou “poderia” conter estupefaciente…

Porém, tratando-se, como é o caso, de matéria de prova em “processo penal”, necessária é uma segura e consistente comprovação da existência dos factos “para além de toda a dúvida razoável” – “beyond reasonable doubt” – sendo de se exigir especiais cautelas, e de se considerar que nem todas as “ilações” são possíveis e permitidas, pois que esta, (a ilação assente numa presunção natural ou judicial), não pode formular-se sem as (mínimas) exigências de uma (minimamente) “relativa” e “razoável segurança”, havendo que existir, (e ser revelado), o “percurso intelectual e lógico que levou ao resultado declarado”, não podendo haver uma “relação sem conexão directa” ou demasiado “longínqua” entre o “facto conhecido”, (a “causa”), e o “facto adquirido”, (o “efeito”); (cfr., v.g., sobre o tema, Euclides Dâmaso Simões in, “Prova indiciária”, Revista Julgar, n.° 2, 2007, pág. 203 e segs.; José Santos Cabral in, “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Revista Julgar, n.° 17, 2012, pág. 13; Marta Morais Pinto in, “A prova indiciária no processo penal”, Revista do Ministério Público, n.° 128, 2011, pág. 185 a 222; Paulo de Sousa Mendes in, “A prova penal e as regras da experiência”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Figueiredo Dias”, Vol. III, pág.1002).

A existência de “espaços vazios” – ou “pontos negros” e não compreensíveis – no “percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência”, determina um “corte na continuidade do raciocínio” e retira o “juízo” do domínio da “presunção justa” (e adequada), remetendo-o para o campo da “mera possibilidade” assente em arbitrariedades e dominado por (simples) “impressões pessoais e subjectivas”, desprovidas de adequado valor probatório, e, por isso, inaptas e irrelevantes, (para a formação da convicção).

Com efeito, (e tal como cremos que justo e correcto não é condenar-se quem quer que seja pela prática como co-autor de 1 crime de “roubo”, se provado apenas estiver que foi surpreendido a conduzir o veículo utilizado no transporte dos seus actores), não se pode pois olvidar que o “princípio da presunção da inocência” e “in dubio pro reo” exigem que a utilização de uma presunção (judicial) para determinar a “culpa” pela prática de um ilícito criminal seja (particularmente) sólida, (consistente), e bem fundamentada; (evitando-se decisões assentes em meras conjecturas pessoais e subjectivas, e não se dando assim qualquer margem para a possível ocorrência do “erro judiciário”).

Na situação dos presentes autos, defensável se nos apresentaria considerar que se podia (eventualmente) chegar ao “juízo” (da suposta normalidade) pelas Instâncias recorridas efectuado quanto à conduta da ora recorrente, se, claro e (seguramente) adquirido estivesse “factualidade” (suficiente) que demonstrasse, (v.g.), que a mesma tinha conhecimento (pessoal e directo) que o dito “D1” recebia, regularmente, “encomendas postais” vindas do Vietnam, e que as mesmas continham “estupefaciente”, sendo esta a forma de aquele se abastecer do mesmo.

Aí, razoável, (e diríamos até, lógico), seria considerar, (como “muito provável”), que sabia, ou devia saber, (ou admitir), que a “encomenda” em causa nos autos, igualmente proveniente do Vietnam, e tendo como destinatário o referido “D1”, seria “idêntica” às outras, (anteriores, sendo mais uma “daquelas”), e, então, que também continha, (ou podia conter), estupefaciente.

Porém, a “situação” em apreciação dos presentes autos não se apresenta com estes contornos, e, (como da própria “fundamentação” pelo Tribunal exposta resulta), de todo o material probatório existente e produzido, nenhum elemento de “prova segura” e consistente relativamente a tais “aspectos” existe, (seja ela “directa”, ou “indirecta”), tendo-se acabado por “aderir” à acusação pública contra a recorrente deduzida, considerando-se, indevidamente, que (tão só) por a recorrente “dever saber” que o namorado (D1), consumia estupefaciente, (apenas) porque habitavam a mesma casa, “devia”, também assim, igualmente, saber, ou admitir, (ou presumir), que a encomenda em causa cujo levantamento efectuou continha estupefaciente, desta forma chegando-se ao “juízo condenatório proferido”, o que se nos apresenta constituir uma “conclusão” resultante de um “juízo meramente subjectivo”, sem o (mínimo e) necessário apoio ou (directa) “relação” – de “causa” e “efeito” – com (qualquer outra) factualidade provada ou regra de experiência ditada pela normalidade das coisas.

Dest’arte, mostra-se-nos pois que à luz do “princípio da presunção da inocência” e “in dubio pro reo” se incorreu em “erro notório na apreciação da prova”, e, in casu, mostrando-se ainda de considerar que a totalidade desta não se apresenta de forma alguma suficiente para um (outra) decisão condenatória da ora recorrente, impõe-se conceder provimento ao seu recurso, absolvendo-se a mesma da imputada prática como co-autora do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” pelo qual foi condenada.

Aqui chegados, e outra questão não havendo a apreciar, resta deliberar como segue.

Decisão

4. Em face do exposto, em conferência, acordam:
- negar provimento ao recurso do (3°) arguido A, confirmando-se o Acórdão recorrido na parte em questão; e,
- conceder provimento ao recurso da (5ª) arguida B, revogando-se o Acórdão recorrido no que lhe diz respeito, e absolvendo-se a mesma do crime pelo qual foi condenada.

Custas pelo (3°) arguido A, com taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.

Honorários aos Exmos. Defensores dos 3° e 5ª arguidos no montante de MOP$3.500,00.

Registe e notifique.

Passem-se os competentes mandados de soltura da (5ª) arguida B.

Oportunamente, nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 29 de Setembro de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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