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Processo nº 153/2020
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), B (乙), C (丙) e D (丁), propuseram acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra os herdeiros incertos de E ou E1 e demais interessados incertos, pedindo, a final, que fossem declarados titulares do domínio útil do imóvel situado na [Rua(1)] n.° 21, na Taipa, (anteriormente com o n.° 16 da mesma Rua), descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.° XXXX a fls. XXX-v do Livro BXX; (cfr., fls. 2 a 12 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, por sentença da Mma Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base de 18.01.2019, decidiu-se absolver os interessados incertos da instância por ilegitimidade, julgando-se improcedente a acção e absolvendo-se os herdeiros incertos de E ou E1 do pedido pelos AA. deduzido; (cfr., fls. 637 a 645).

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Em sede do recurso que do assim decidido apresentaram os AA., proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 29.04.2020, (Proc. n.° 559/2019), onde, confirmando integralmente a decisão recorrida, negou provimento ao recurso; (cfr., fls. 714 a 737).

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Ainda inconformados, vêm os AA. recorrer para este Tribunal de Última Instância; (cfr., fls. 744 a 788).

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Adequadamente processados os autos, e nada obstando, cumpre conhecer.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal Judicial de Base deu como assente a seguinte matéria de facto (que foi confirmada pelo Tribunal de Segunda Instância):

“- Existe o prédio urbano, objecto da presente acção, sito na [Rua(1)] nº21 tinha anteriormente o nº16 da mesma Rua. (alínea A) dos factos assentes)
- Alteração do número policial ocorreu por deliberação de 23 de Maio de 1934 da então Comissão das Ilhas conforme a Acta nº20 da referida comissão cuja certidão se juntou sob designação de documento nº1 e que à semelhança dos demais aqui se dá por integralmente reproduzido – doc. 1. (alínea B) dos factos assentes)
- O aludido prédio tem a área de 49 metros quadrados e os limites assinalados na planta cadastral nºXXXXXXXX, conforme a NE com a [Rua(1)] nº23 (nº4789), a SE com a [Rua(2)] nº14 (nºXXXXX), a SW com a [Rua(1)] nº19 (nºXXXX) e [Rua(3)] nº1 (nºXXXXX) e a NW com a [Rua(1)], cfr. Planta cadastral junta sob designação de documento nº2 – doc. 2. (alínea C) dos factos assentes)
- O aludido prédio, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nºXXXX a fls. XXXv do Livro BXX, conforme certidão do registo predial junta sob designação de documento nº3 – doc. 3. (alínea D) dos factos assentes)
- Com inscrição do domínio directo a favor da RAEM conforme resulta da apresentação nº221 de 3 de Maio de 1898 – (cfr. doc. 3). (alínea E) dos factos assentes)
- O terreno onde se encontram implantado o prédio com o número 21 (antigo número 16), acha-se inscrito no livro de registos de Foros, modelo vinte e um (M/21) sob número 79, a favor de E ou E1, conforme certidão da Direcção dos Serviços de Finanças junta como documento nº4 (doc. 4). (alínea F) dos factos assentes)
- O prédio em causa nos presentes autos está omisso na matriz. (alínea G) dos factos assentes)
- Os Autores são filhos de F, aliás F1, também conhecido por F2 ou F3 e de F4, também conhecida por F5, conforme certidões de nascimento juntas sob designação de documento nº5, nº6, nº7 e nº8 – doc. 5, 6, 7 e 8. (alínea H) dos factos assentes)
- A Autora A nasceu no dia 9 de Janeiro de 1951 – cfr. doc. 5. A Autora B nasceu no dia 20 de Novembro de 1952 – cfr. doc. 6. O Autor C nasceu no dia 19 de Agosto de 1954 – cfr. doc. 7. A Autora D nasceu no dia 26 de Agosto de 1957- cfr. doc. 8. (alínea I) dos factos assentes)
- O pai dos Autores, F, aliás F1, também conhecido por F2 ou F3 era casado com a senhora G, ou G1 – cfr. doc. 11. (alínea J) dos factos assentes)
- O pai dos Autores, F, aliás F1, também conhecido por F2 ou F3, faleceu em 17 de Dezembro de 1959, conforme certidão de óbito e da pública-forma do assento de óbito juntas como documentos nº9 e 10 – docs. 9 e 10. (alínea K) dos factos assentes)
- A senhora G, ou G1 faleceu em 5 de Julho de 1967, conforme pública-forma da certidão narrativa de óbito junta sob designação de documento nº11 – doc. 11. (alínea L) dos factos assentes)
- A mãe dos ora Autores, F4, também conhecido por F5, faleceu no dia 22 de Março de 2015, conforme certidão de óbito junta como documento nº12 – doc. 12. (alínea M) dos factos assentes)

Da Base Instrutória:
- O pai dos Autores, F, aliás F1, também conhecido por F2 ou F3, casou com a Senhora G, ou G1, segundo as tradições e costumes chineses. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- O que consta da certidão do registo predial constante de fls. 617 a 626. (resposta ao quesito 1º-A da base instrutória)
- Por altura do casamento com a Senhora G ou G1, o pai dos Autores adquiriu o nº21 da [Rua(1)] por contrato verbal ao seu anterior proprietário. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- O pai dos Autores passou a residir no número 21 (artigo n°16) da [Rua(1)] desde que se casou com a Senhora G ou G1. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- Não obstante ser casado com a Senhora G ou G1, o pai dos ora Autores mantinha uma relação com a mãe dos ora Autores, a Senhora F4, também conhecida por F5. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Tendo sido nessa casa que os Autores nasceram e passaram a sua infância. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- E onde reside o Autor C, com a autorização e concordância dos outros irmãos, aqui também Autores, que o visitavam e ali fazendo refeições e dormindo ocasionalmente. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- O pai dos, enquanto vivo, e os ora Autores depois da morte do seu pai, ocuparam-se da realização das obras manutenção e reparação que se mostravam necessárias no prédio, nomeadamente, pintura do interior e exterior e reparação de algumas torneiras e portas, substituição de fechaduras e torneiras. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Os Autores, pelo menos, desde 1977, pagaram as taxas telefónicas e depois as contas relativas aos serviços telefónicas para o exterior. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- Pagando o pai dos Autores e depois os ora Autores as despesas inerentes ao consumo de água e electricidade do imóvel. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
- … e bem assim como o foro e contribuição predial, pagos pelo menos desde 1946, ainda pelo pai dos ora Autores, até 1982. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- Foram os Autores que solicitaram a colocação de um toldo no imóvel e entre 1971 a 1978 procederam ao pagamento da taxa devida. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- … e nele recebem a sua correspondência pessoal. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- Nunca F, aliás F1, também conhecido por F2 ou F3, e nem os Autores, foram abordados por quem quer que seja reclamar quaisquer direitos sobre o aludido prédio. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- Os AA. e seus pai sempre exercitando todos os actos referidos de forma a serem conhecidos por todos. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- Quer os comerciantes, quer os moradores dos prédios vizinhos, viam o pai dos Autores e estes como donos e legítimos proprietários do nº21 da [Rua(1)]. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- … sem oposição de quem quer que seja. (resposta ao quesito 16º da base instrutória)
- Desde que adquiriu o imóvel ao seu anterior proprietário que o pai dos Autores, F, aliás F1, também conhecido por F2 ou F3, e depois da morte deste, os AA., sempre praticaram os actos supra aludidos na íntima convicção de que fruíam o referido prédio porque o mesmo lhe pertencia e em relação ao seu domínio útil. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)”; (cfr., fls. 638 a 640 e 715 a 717).

Do direito

3. Pelos atrás identificados AA. vem interposto o presente recurso do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou, integralmente, a sentença do Tribunal Judicial de Base que julgou improcedente a acção que aí propuseram pedindo que fossem declarados “titulares do domínio útil do imóvel situado na [Rua(1)] n.° 21, na Taipa, (…)”.

Em sede das suas alegações de recurso produzem os ora recorrentes as conclusões seguintes:

“I. Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância proferido nos presentes autos, que negou provimento ao recurso interposto pelos os ora Recorrentes da decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.
II. No seu recurso para o Venerando Tribunal de Segunda Instância, os Recorrentes alegaram ter havido contradição entre os fundamentos da sentença da Primeira Instância e a decisão aí tomada uma vez que, por um lado, concluiu-se pela existência do corpus e do animus dos Recorrentes sobre o imóvel aqui em causa mas, por outro lado, entendeu-se que a posse era precária julgando-se improcedente a acção e o recurso.
III. O Tribunal a quo entendeu não haver a contradição invocada porquanto, após sintetizar o que foi dito na fundamentação da sentença proferida em primeira instância, conclui que “Obviamente a fundamentação nestes termos redigida não esta em contradição com a fundamentação de improcedência da acção”.
IV. Salvo o devido respeito, que é muito, a sintetização efectuada pelo Tribunal de Segunda Instância não coincide exactamente com a fundamentação do Tribunal Judicial de Base.
V. É que, a Sentença proferida em primeira instância afirma – para que dúvidas não existam que «Analisados esses actos praticados (…) pelos Autores, não se vê diferença entre estes e os que o proprietário praticaria. Portanto, dúvidas não havemos que existe o elemento “corpus”. No que tocante ao elemento “animus” também se acha verificado a partir dos factos provados. (…) Daí se podemos concluir que (…) os Autores se consideram a si mesmos como legítimos adquirentes do prédio e por essa razão exercia e exerciam os poderes de facto sobre o prédio. Pelo que, há de considerar que existe animus possidendi por parte dos Autores.»
VI. Porém, num “volte face” inesperado, entendeu aquele Tribunal que a posse dos Autores apenas poderia ser adquirida por “inversão do título da posse” contra a Sra. G ou contra eventuais herdeiros que a mesma pudesse ter deixado, vindo assim a julgar improcedente a acção.
VII. O Tribunal a quo, por sua vez, entendeu confirmar a decisão da 1.ª instância, de acordo com o entendimento de que não havia contradição por se considerar que o animus de possuidor não se verificava por se limitarem a suceder numa certa quota parte da posse não sendo os únicos compossuidores.
VIII. Sucede que, nunca é demais relembrar que o Tribunal de Primeira Instância foi claro ao afirmar que «há de considerar que existe animus possidendi por parte dos Autores», não resultando de parte alguma que o animus possidendi dos Recorrentes recaísse apenas sobre parte do prédio ou que a Senhora G (que faleceu em 1967) tivesse deixado sucessores.
IX. Tendo o Tribunal entendido que existe animus possidendi por parte dos Recorrentes, nunca poderia ter decidido como decidiu, não sendo de aceitar a decisão proferia pelo Tribunal de Segunda Instância que julgou improcedente o Recurso nesta parte.
X. Existe, pois, uma inequívoca contradição entre os fundamentos e a decisão, o que, de acordo com o artigo 571.º, n.º 1, alínea c), ex vi artigo 633.º, n.º 1 do CPC, determina a nulidade do Acórdão recorrido pelo que, nos termos do artigo 651.º, n.º 1 do CPC, deverá este Venerando Tribunal de Última Instância suprir a nulidade e declarar em que sentido a decisão deve considerar-se modificada.
Sem conceder,
XI. A decisão recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do preceituado nos artigos 1175.º, 1179.º, 1187.º, 1190.º e 1212.º do Código Civil de Macau.
XII. Quer a 1.ª, quer a 2.ª instância, consideraram verificados todos os pressupostos da posse que têm sido elencados quer na doutrina, quer na jurisprudência: o corpus, o animus, a reiteração dos actos reveladores dessa posse e a publicidade dos mesmos.
XIII. Mas ambos os Tribunais afastaram a aquisição da propriedade do imóvel por usucapião, baseados no entendimento de que os Recorrentes não são os únicos possuidores e que, por isso, a sua posse, é precária.
XIV. Salvo devido respeito, esta decisão foi tomada com total desconsideração daquilo que ficou devidamente provado: que os Recorrentes têm o corpus mas também que sempre praticaram todos os actos materiais sobre o prédio na convicção de que o fruíam porque o mesmo lhe pertencia e em relação ao seu domínio útil (cfr. Resposta ao quesito 17º).
XV. Ou seja, provou-se que os Recorrentes têm animus possidendi.
XVI. Provou-se ainda que os Recorrentes nunca foram abordados por quem quer que seja a reclamar quaisquer direitos sobre o aludido prédio (resposta ao quesito 13º da Base Instrutória), sendo vistos por todos como donos e legítimos proprietários do n.º 21 da [Rua(1)].
XVII. Os factos provados permitiam com certeza julgar que os Recorrentes praticaram reiteradamente e com publicidade diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito e que o fazem há muito mais de 20 anos.
XVIII. Uma posse adquirida por via de sucessão não pode, obviamente, ser uma posse vazia, incondicional e eterna e, no limite, o possuidor estará sempre sujeito à perda da posse, nos casos actualmente elencados pelo artigo 1192.º do CC.
XIX. O Tribunal a quo caiu no facilitismo de confirmar, de forma sumária, que se os Autores não estavam sozinhos na posse, então “se limitam a exercer a posse precária sobre a quota-parte adquirida mortis causa e possuída pela co-possuidora G e com a tolerância dessa (…)”.
XX. E se assim podia ter sido até à morte da Senhora G, em 1967, o que dizer depois da morte desta, momento a partir do qual, conforme resultou provado, ninguém mais, para além dos ora Recorrente, exerceu qualquer acto possessório sobre o prédio, não o reclamando dos Autores, não pedindo aos Autores que lhes pagasse rendas?
XXI. A posse vem exercendo uma função pacificadora e de segurança, uma vez que, pelo decurso do tempo, a situação provisória que é a posse pode transformar-se na situação definitiva que é, nomeadamente, a propriedade.
XXII. Ora, mesmo que se admita que a Senhora G continuou a posse do seu falecido marido, a verdade é que mais ninguém, para além dos ora Recorrentes, exerceu a quota-parte da posse que àquela eventualmente competia, durante quase 53 anos.
XXIII. Se os Recorrentes demonstraram à saciedade que, mesmo em vida da Senhora G, foram eles que sempre exerceram os direitos e deveres associados a essa posse, já nem precisam de, neste ponto, ir tão longe, uma vez que, em virtude de essa actuação se ter prolongado até aos dias de hoje, quase 53 anos após a morte da pretensa compossuidora, acabarão por obter o mesmo efeito prático.
XXIV. De acordo com a matéria de facto alegada e provada, os Autores nunca actuaram com animus de detentores mas sim com animus de possuidores sobre o prédio.
XXV. Ora, tendo em conta a factualidade provada – em especial que os Autores sempre agiram na íntima convicção de que fruíam o prédio porque o mesmo lhes pertencia – não restam dúvidas de que a prática reiterada dos actos materiais exigida pela alínea a) do artigo 1187.º se mostra preenchida.
XXVI. E sendo posse exercida de forma pública, pacífica, contínua e de boa-fé é susceptível de lhes ser atribuído um título originário de aquisição – a usucapião
XXVII. Pelo que, ao invés de ter enveredado pela decisão em crise, nada impediria o douto Tribunal a quo, e nem o Tribunal de Primeira Instância, terem antes concluído que, a partir da morte da Senhora G, os Recorrentes passaram a exercer sobre todo o prédio, uma posse pública, pacífica e de boa-fé, por um período de mais 57 anos e que tal posse é posse boa para usucapião, e isto na medida em que, tal decisão se trata apenas e tão só de aplicação do direito aos factos, e deve ser feita independentemente da construção jurídica aventada pelos Autores nos seus articulados.
XXVIII. A decisão recorrida deverá, pois, ser revogada por errada interpretação e aplicação do preceituado nos artigos 1175.º, 1179.º, 1187.º, 1190.º e 1212.º do Código Civil, e substituída por outra que declare o direito em conformidade.
Sem conceder,
XXIX. O Tribunal de 1.ª instância, ao decidir como decidiu, proferiu uma verdadeira decisão surpresa e o Tribunal a quo ao confirmar a decisão baseou-se no entendimento de que o pedido dos Recorrentes na presente acção foi o de aquisição derivada, de uma aquisição da posse por via hereditária.
XXX. O pedido dos Recorrente foi apenas um: o reconhecimento do direito de propriedade através da usucapião. O meio para o alcançar é que pode ser diferente: ou considerando apenas a posse em nome próprio, ou somando-lhe a posse do seu falecido pai.
XXXI. Ainda que se tenha somado à posse exercida em nome próprio pelos Recorrentes à posse que foi exercida pelo seu pai, o efeito prático é completamente irrelevante.
XXXII. Ora, assim vistas as coisas, não nos parece ser possível que o Tribunal a quo admita, como fez, que a decisão do Tribunal Judicial de Base estaria limitada por um pedido alcançável apenas por uma sucessão na posse.
XXXIII. Se é verdade que os Recorrentes alegaram a existência de sucessão na posse, nos termos do artigo 1179.º do Código Civil (anterior 1255.º), não pode afirmar-se que essa era o seu pedido: esse era um dos meios para alcançar o seu pedido – a tal alegação de direito a que o juiz, nos termos do artigo 567.º do CPC, não estava vinculado.
XXXIV. Independentemente da configuração que possam ter delineado para a acção, os factos apontam num só sentido … a de que exerceram uma posse perfeita, em nome próprio, boa para usucapir.
XXXV. E não deixará de ser surpresa a decisão em que (i) se considera que os Autores exerceram poderes de facto sobre o prédio, (ii) se admite que não existe diferença entre os actos praticados pelos Recorrentes e os actos que um proprietário normal praticaria; (iii) se prova que os Recorrentes se consideram a si mesmo como legítimos adquirentes do prédio e têm animus possidendi (cfr. decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base), e, a final, se julga improcedente o pedido (por se entender que não se inverteu o titulo da posse em relação a uma alegada herdeira, que só estava em condições de ser sucessível por via de remissão para o Código Civil Chinês de 1930).
XXXVI. A possibilidade de a Senhora G ter sucedido na posse nunca foi aventada antes da sentença final, e revelou-se decisiva para virar do avesso uma acção de usucapião em que a posse – com corpus e animus – ficou mais do que provada.
XXXVII. Nunca os Recorrentes foram confrontados com essa possibilidade durante o processo e nunca lhes foi dada a possibilidade de poderem vir a suprir quaisquer insuficiências apontadas na decisão final vendo o seu pedido naufragar por “(…) falta de alegação dos factos da inversão do título”, o que foi uma verdadeira decisão surpresa.
XXXVIII. A proibição de decisão surpresa é um corolário do princípio do contraditório previsto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC e que se traduz em facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre todas as questões, de direito ou de facto, que em cada momento se mostram em discussão nos autos, o que inclui, necessariamente, aquelas questões que o juiz pondere decidir com base em fundamentos que não tenham sido previamente considerado pelas partes. (vide José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1.º, 3.ª edição, 2014, Coimbra Editora, pág. 9).
XXXIX. Na génese da proibição da decisão surpresa está essencialmente em causa (i) evitar que seja tomada qualquer decisão com fundamento que as partes não tenham sequer equacionado como solução ou que (ii) tenha sido invocado por uma das partes e a outra não tenha podido exercer o seu direito de contraditório.
XL. E a verdade é que em momento algum dos presentes autos se suscitou a aplicação do Código Civil Chinês de 1930 para daí retirar a qualidade de herdeira de G, falecida há mais de 53 anos, período durante o qual nunca ninguém abordou os Recorrentes para reclamar quaisquer direitos sobre o prédio (cfr. resposta ao quesito 13º da base instrutória)!
XLI. Antes de proferir a decisão, e se entendesse verdadeiramente que os Recorrentes não praticaram reiteradamente, com publicidade, actos matérias correspondentes aos exercício do direito de propriedade – o que não se compreende pois o Tribunal teve por provado que os Recorrentes praticaram diversos actos materiais sobre o prédio na intima convicção que o referido prédio lhe pertencia (cfr. resposta ao quesito 17º) e que não se vislumbra diferença entre os actos por si praticados e os actos praticados por um proprietário praticaria – o Tribunal deveria ter concedido oportunidade aos ora Recorrentes de se pronunciarem sobre a questão suscitada e, se fosse caso disso, a aperfeiçoar o seu articulado.
XLII. Ainda a sustentar o que se tem vindo a dizer, há que invocar o princípio da cooperação do tribunal com as partes.
XLIII. O Tribunal a quo não tomou nenhum dos aludidos caminhos proferindo uma decisão surpresa em violação do princípio do contraditório e da cooperação e do seu poder-dever de convidar os Recorrentes a se pronunciarem sobre questões nunca antes suscitadas e se fosse caso disso a vir aos autos suprir eventuais insuficiências da sua alegação inicial, proferindo assim uma decisão, para além de inesperada, injusta ...
XLIV. Pois que a Sra. G, falecida há mais de 53 anos, não deixou herdeiros, facto que, apesar de não ter sido expressamente alegado, resulta implícito da demais factualidade apurada já que nunca ninguém apareceu a reclamar quaisquer direitos sobre o imóvel.
XLV. Mas mais, o convite à alegação e prova deste facto, para além de evitar a tomada de uma decisão manifestamente injusta, impunha-se por uma questão de economia processual.
XLVI. Com efeito, aquilo que ficou por discutir nesta acção, obrigará a apresentação de uma nova, onde 99,9% dos factos a alegar e provar serão os discutidos na presente sede.
XLVII. No caso concreto, os factos alegados pelos Recorrentes eram, no seu conjunto, suficientes à procedência das suas pretensões, e nessa medida permitiram que outros factos, não alegados mas também essenciais a essa procedência, fossem adquiridos por complementaridade, através do mecanismo processual previsto no art. 5.º, n.º 3 do CPC.
XLVIII. E é aqui que nos surge um poder-dever que vincula a actividade do juiz, qual seja, o convite ao aperfeiçoamento dos articulados.
XLIX. A petição dos Recorrente era clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir. E mesmo que tivessem invocado que o seu pai faleceu no estado de casado com pessoa diversa de sua mãe, não deixaram de alegar que ao longo de muito mais de 20 anos praticaram sobre o prédio diversos actos materiais, com publicidade, na convicção de que o mesmo lhe pertencia.
L. Porém, se há um entendimento de que foram omitidos factos que a decisão recorrida julgou relevantes e/ou essenciais para o reconhecimento do seu direito, deveria ter sido determinado que os Autores aperfeiçoassem a petição inicial, suprindo as omissões detectadas, sendo que só depois é que poderia extrair as consequências de tal omissão caso as insuficiências não fossem convenientemente supridas. Só assim se garantiria um processo justo e equitativo.
LI. O processo civil não se compadece com espartilhos formais e dessa forma, afigura-se que ocorreu in casu, efectivamente, “a omissão de um acto (…) que a lei” prescreve, a qual pode “influir no exame ou na decisão da causa”, o mesmo é dizer que, face ao artigo 147.º n.º 1 do CPC, estamos na presença de uma nulidade processual, e que desde já se invoca.
LII. Salvo devido respeito, que é muito, a decisão recorrida limitou a tarefa do douto Tribunal de Primeira Instância à cega aplicação do direito aos factos alegados pelas partes, olvidando-se, no entanto, que a tarefa dos Tribunais vai muito para além disso e, ao abrigo de um conjunto de regras e princípios, culmina no objectivo último de fazer Justiça, o que neste caso, não sucedeu!
LIII. E dessa forma, impõe-se a anulação da decisão recorrida, devendo este Venerando Tribunal mandar baixar o processo, de modo a que os ora Recorrentes possam ter a oportunidade de corrigir as “insuficiências” de alegação que eventualmente se entenda terem existido, repondo-se assim a justiça formal e material”; (cfr., fls. 744 a 788).

Ponderando no que decidido foi na sentença do Tribunal Judicial de Base e Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, assim como no que pelos AA., ora recorrentes, vem alegado, vejamos.

Pois bem, percorrendo as atrás transcritas “conclusões”, constata-se que, (sucintamente), entendem os recorrentes que:
- “X. Existe, pois, uma inequívoca contradição entre os fundamentos e a decisão, o que, de acordo com o artigo 571.º, n.º 1, alínea c), ex vi artigo 633.º, n.º 1 do CPC, determina a nulidade do Acórdão recorrido pelo que, nos termos do artigo 651.º, n.º 1 do CPC, deverá este Venerando Tribunal de Última Instância suprir a nulidade e declarar em que sentido a decisão deve considerar-se modificada”, (cfr., concl. I a X);
- “XI. A decisão recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do preceituado nos artigos 1175.º, 1179.º, 1187.º, 1190.º e 1212.º do Código Civil de Macau”, (cfr., concl. XI a XXVIII); e que,
- “XXIX. O Tribunal de 1.ª instância, ao decidir como decidiu, proferiu uma verdadeira decisão surpresa e o Tribunal a quo ao confirmar a decisão baseou-se no entendimento de que o pedido dos Recorrentes na presente acção foi o de aquisição derivada, de uma aquisição da posse por via hereditária”; (cfr., concl. XXIX a VIII).

–– Comecemos então por ver o que se consignou no Acórdão agora recorrido sobre a primeira das ditas “questões”.

Ora, sobre a invocada “contradição”, assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:

“3. Da nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão
Em síntese, para os recorrentes, os fundamentos do Acórdão da decisão de facto, onde se conclui pela existência tanto do corpus como do animus dos Autores e a decisão recorrida onde se afirma que há-de considerar que existe animus possidendi por parte dos Autores, estão em manifesta contradição com o não reconhecimento da posse exercida pelos Autores sobre o direito real do prédio em causa, conducente à improcedência do pedido dos Autores.
Na fundamentação da decisão de matéria de facto, diz o Colectivo que as provas produzidas levaram o Tribunal a formar uma convicção positiva quanto à matéria fáctica tanto “corpus” com “animus” do prédio pelo pai dos Autores e pelos Autores. – vide as fls. 633v dos p. autos.
Ao passo que na sentença recorrida, a Exmª Presidente do Colectivo fundamentou a improcedência do pedido dos Autores nos termos seguintes:
Com a morte do pai dos Autores, a posse exercida pelo pai deles passa para os seus sucessores desde o momento da morte, sem necessidade da apreensão material da coisa.
Na perspectiva dos Autores, a posse passou directamente para eles na qualidade dos herdeiros legítimos do seu pai.
Essa afirmação só é verdadeira se somente os Autores e mais ninguém têm a qualidade dos herdeiros.
Para responder a essa pergunta, urge aquilatar quem eram os herdeiros do pai dos Autores, de acordo com a lei de sucessão aplicável.
……
……na altura da sucessão, eram os seus herdeiros, para além dos Autores, filhos deles, mais a sua cônjuge sobreviva, a G.
……
Mesmo sem contar a meação do cônjuge, conforme o disposto do n°1 do art°1144° do mesmo Código, as partes da sucessão da cônjuge sobreviva e dos filhos são divididas em partes iguais.
Por isso, a sucessão da posse ocorreu em relação a todos os herdeiros legítimos do pai dos Autores, a posse continua nos seus sucessores no conjunto.
Assim, a continuação do exercício da posse pelos Autores, na qualidade dos herdeiros, não é de considerar como posse própria mas posse em conjunto em benefício a todos os herdeiros, incluindo a G.
Até à partilha, o prédio é o bem deixado pelo pai dos Autores, que se mantém em situação de comunhão. A essa comunhão é aplicável subsidiariamente o regime de compropriedade.
Dispõe-se o art°1403° do C.C. 66, que “1. Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. 2. Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta da indicação em contrário do título constitutivo.”
Por outro lado, preceitua-se o art°1406° do C.C. 66, “1. Na falta de acordo sobre uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. 2. O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título.”
Como a posse do pai, com a sua morte, transferiu-se, no conjunto, para os Autores e a G, qualquer deles podia usar a totalidade do bem. No entanto, o uso da coisa comum pelo qualquer dos herdeiros não constitui posse exclusiva sobre a totalidade do bem.
Nesse sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/04/2011, “Sendo o comproprietário possuidor em nome alheio, relativamente à parte da coisa que excede a sua quota, não pode adquirir, por usucapião, sem inverter o título de posse, que tem subjacente a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse, em nome próprio. A inversão por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía impões que o primeiro torne, directamente, conhecida da pessoa em cujo nome possuía, a sua intenção de actuar como titular do direito, sendo uma oposição categórica, traduzida em actos positivos, materiais ou jurídicos, mas inequívocos.”
Não sendo exclusivos os direitos dos Autores sobre a herança, a posse que os Autores têm exercido sobre a herança por uso ou fruição dele, desde o momento da morte do seu pai, é meramente posse precária, por tolerância do outro herdeiro, a não ser haver inversão do título da posse.
Nos autos, não foram demonstrados factos que sejam susceptíveis de integração da inversão do título da posse, através dos actos inequívocos de oposição, enquanto herdeiros da posse, contra a G, nem que foram alegados quaisquer factos que permitiram saber que houve alteração do intuito subjectivo de que a posse dos Autores passa a ser exclusiva, particularmente após a morte do G em 1969, pois, se a G deixasse herdeiros, eles também tem direito a suceder à sua parte.
Como a G era mulher do pai dos Autores e não era mãe dos Autores, a quota-parte do direito pertencente à G não se transferiu automaticamente para a esfera jurídica dos Autores, carece de haver novos factos para que se opere a modificação do elemento subjectivo.
Assim, não se pode considerar, mesmo com a prova do exercício dos actos materiais pelos Autores, que estes exerciam e exercem posse exclusiva sobre a totalidade do bem porque não houve oposição inequívoca por parte deles contra a outra herdeira ou os seus herdeiros que tinha direito na sucessão do imóvel deixado pelo F.
Dest’arte, sendo a posse dos Autores precária e não exclusiva, e na falta de alegação dos factos da inversão do título, essa posse não poderá conduzir a usucapião do direito real por parte dos Autores em relação ao prédio em apreço.
Nestes termos, julga-se improcedente o pedido dos Autores.

Sintetizando o que foi dito na fundamentação da sentença recorrida, verifica-se ser muito claro e coerente o raciocínio nela exposto, que é seguinte:
․O pai dos Autores adquiriu a posse;
․Com a morte do pai dos Autores, a posse passou a ser exercida pelos herdeiros, incluindo os Autores, sem necessidade da apreensão material da coisa;
․Não sendo os únicos herdeiros do seu pai, os Autores, limitaram-se a suceder uma certa quota-parte da posse adquirida pelo seu pai e transmitida mortis causa aos seus herdeiros, quais são os Autores e a Senhora G, cônjuge sobrevivo do seu pai;
․Estes não adquiriram ex novo a posse sobre a totalidade do domínio útil do prédio, mas sim somente sucederam uma certa quota-parte de um comunhão hereditário indiviso;
․Os Autores não são os únicos co-possuidores;
․Ao longo dos anos após a morte do pai dos Autores, não houve factos demonstrativos de que os Autores chegaram a inverter o título da posse contra a Senhora G, passando a exercer a posse como se fossem únicos e exclusivos possuidores; e
․Não cobrindo a totalidade do bem que pretenderam adquirir por usucapião, a posse que têm os Autores não poderá conduzir ao reconhecimento dos Autores com únicos e exclusivos titulares do direito real na sua totalidade.
Obviamente, a fundamentação nestes termos redigida não está em contradição com a decisão de improcedência da acção.
Improcede assim a arguição da nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão”; (cfr., pág. 35 a 40 do Ac. recorrido).

E, em face do que se deixou transcrito, cremos que razão não tem os AA., ora recorrentes, pois que, na verdade, (e como se nos parece que sem esforço se alcança), não existe a assacada “oposição entre os fundamentos e a decisão”.

O que tão só (e apenas) sucedeu foi que em sede de “enquadramento jurídico da matéria de facto dada como provada” se concluiu que esta, ainda que, aparentemente – à “primeira vista” – pudesse conduzir a uma decisão de procedência do pedido deduzido, (dado que se provou a “posse” pelos AA. alegada), não permitia tal solução, por não serem eles os “únicos possuidores” do imóvel.

Isto mesmo foi, de forma clara, explicitado pelo Tribunal Judicial de Base na sua sentença, e, em sede do seu recurso, novamente esclarecido pelo Tribunal de Segunda Instância no Acórdão agora recorrido, não se podendo ter como séria a crítica que os recorrentes dirigem ao assim decidido.

Destinta, é, porém, (e certamente), a questão quanto ao “acerto da decisão proferida”.

Porém, esta “questão”, já nada tem a ver com a alegada “contradição”, constituindo, exactamente, a “segunda questão” pelos recorrentes colocada e que de seguida se passa a apreciar.

–– Pois bem, nesta parte, (quanto ao imputado “erro na aplicação do direito”), assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:

“4. Do erro na interpretação e na aplicação do preceituado nos artºs 1175º, 1179º, 1187º, 1190º e 1212º do Código Civil
Vieram os recorrentes defender que conforme alegaram na petição inicial, após a morte do seu pai e da Senhora G, eles passaram a exercer em nome próprio a condição de proprietários do domínio útil do prédio em questão e nessa qualidade praticaram actos materiais de posse que acabaram por demonstrar há posse boa para usucapir. Portanto, ao não interpretar a matéria de facto provada no sentido de que os Autores têm actuado como possuidores e não mero detentores, a sentença fez uma erra interpretação e aplicação do disposto nos artºs 1175º, 1179º, 1187º, 1190º e 1212º do Código Civil.
Não têm razão os recorrentes.
Foi dito na sentença recorrida que, sendo apenas alguns e não todos os possuidores do bem, os Autores são os únicos e exclusivos possuidores e se limitam a exercer a posse precária sobre a quota-parte adquirida mortis causa e possuída pela co-possuidora G e com a tolerância dessa, a posse, não cobrindo a totalidade do bem, reconhecida aos Autores, não lhes permite a adquirir por via de usucapião a totalidade do domínio útil do prédio em causa.
Não tendo exercido a posse sobre a totalidade do bem, naturalmente não podem os Autores adquirir, com fundamento nessa posse, a totalidade do direito real sobre o mesmo bem, por via de usucapião e ao abrigo do disposto no artº 1212º do CC.
Assim, bem andou o Tribunal a quo e nada há de censurar esta parte da sentença recorrida.
Improcede o assacado erro na interpretação e na aplicação dos normativos citados”; (cfr., pág. 40 a 41 do Ac. recorrido).

“Quid iuris”?

Aqui, e em nossa modesta opinião, cremos que tem os AA., ora recorrentes, razão.

Não se nega que o teor da petição inicial que apresentaram junto Tribunal Judicial de Base não foi muito claro (e feliz), especialmente no que toca às “razões” do pedido que deduziram, (bastando para tal ver que até invocaram o art. 1179° do C.C.M. que preceitua que “Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa”), o que, cremos nós, terá levado a que se tenha atribuído “excessivo relevo” ao instituto da “sucessão da posse” (previsto no referido art. 1179° do C.C.M.), e, assim, consequentemente, a um “desvio” na (procura da) “solução jurídica” para a situação sub judice.

Porém, e sem perder de vista o que efectivamente “provado” está, apresenta-se-nos que nada obsta a que se considere que os AA., ora recorrentes, demonstraram ter “posse boa e bastante” do domínio útil do prédio identificado nos autos para que se decida pela procedência do pedido que deduziram.

Passa-se a (tentar) expor este nosso ponto de vista.

Vejamos.

Desde já, importa ter presente, (e não olvidar), que, in casu, nenhuma dúvida existe que os AA. alegaram (nomeadamente) que:
“Mostram-se preenchidos os requisitos legais da usucapião do domínio útil do prédio em discussão nos presentes autos”; (cfr., art. 68° da p.i.), pedindo, a final, que:
“fossem declarados, para todos os efeitos legais, nomeadamente para a inscrição da titularidade junto da competente Conservatória do Registo Predial de Macau, como titulares do domínio útil sobre o prédio com entrada pelo n° 21 da [Rua(1)], Taipa, (…)”; (cfr., fls. 12).

E, nesta conformidade, (e como se deixou adiantado), motivos não nos parecem existir para que, atenta a “factualidade provada” que atrás se deixou retratada e ao “enquadramento jurídico” que a mesma justifica se não julgue procedente a acção – de usucapião – que propuseram.

Com efeito, nos termos do art. 1175° do C.C.M.: “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”; (sobre o tema, e “elementos” cfr., v.g., os Acs. deste T.U.I. de 06.06.2019, Proc. n.° 53/2019 e de 19.02.2020, Proc. n.° 83/2018).

Por sua vez, preceitua o art. 1187° do mesmo diploma legal que:

“A posse adquire-se:
a) Pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito;
b) Pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor;
c) Por constituto possessório;
d) Por traditio brevi manu; ou
e) Por inversão do título da posse”.

Estatui, também, o art. 1193° do mesmo C.C.M. que:

“1. O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.
2. Havendo concorrência de presunções legais fundadas em registo, a prioridade entre elas é fixada na legislação respectiva”.

E, com especial relevo para o caso dos autos, importa ter ainda presente que nos termos do art. 1212 do indicado código: “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”, e que, em conformidade com o preceituado no seu art. 1221°: “Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa fé, e de 20 anos, se for de má fé, independentemente do carácter titulado ou não da posse”.

Isto dito e visto, (quanto ao conceito de “posse”, “formas da sua aquisição”, e seus “efeitos jurídicos” – “usucapião” – e, assim, no que toca aos requisitos legais para a procedência do pedido pelos AA. deduzido), debrucemo-nos sobre o que, (em relação aos mesmos), provado está, e que para o caso se apresenta com particular relevância.

Pois bem, in casu, pelos mesmos AA. foi (expressamente) alegado e, como se viu, provado também está que:

“- Os Autores são filhos de F, aliás F1, também conhecido por F2 ou F3 e de F4, também conhecida por F5, (…)
- O pai dos Autores, (…) era casado com a senhora G, ou G1 (…)
- O pai dos Autores, (…), faleceu em 17 de Dezembro de 1959, (…)
- A senhora G, ou G1 faleceu em 5 de Julho de 1967, (…)
- A mãe dos ora Autores, F4, também conhecido por F5, faleceu no dia 22 de Março de 2015, (…)
- O pai dos Autores, (…), casou com a Senhora G, (…)
- Por altura do casamento com a Senhora G (…), o pai dos Autores adquiriu o nº21 da [Rua(1)] por contrato verbal ao seu anterior proprietário. (…)
- O pai dos Autores passou a residir no número 21 (artigo n°16) da [Rua(1)] desde que se casou com a Senhora G (…)
- Tendo sido nessa casa que os Autores nasceram e passaram a sua infância. (…)
- E onde reside o Autor C, com a autorização e concordância dos outros irmãos, aqui também Autores, que o visitavam e ali fazendo refeições e dormindo ocasionalmente. (…)
- O pai dos, enquanto vivo, e os ora Autores depois da morte do seu pai, ocuparam-se da realização das obras manutenção e reparação que se mostravam necessárias no prédio, nomeadamente, pintura do interior e exterior e reparação de algumas torneiras e portas, substituição de fechaduras e torneiras. (…)
- Os Autores, pelo menos, desde 1977, pagaram as taxas telefónicas e depois as contas relativas aos serviços telefónicas para o exterior. (…)
- Nunca F, aliás F1, também conhecido por F2 ou F3, e nem os Autores, foram abordados por quem quer que seja reclamar quaisquer direitos sobre o aludido prédio. (…)
- Quer os comerciantes, quer os moradores dos prédios vizinhos, viam o pai dos Autores e estes como donos e legítimos proprietários do nº21 da [Rua(1)]. (…)
- … sem oposição de quem quer que seja. (…)
- Desde que adquiriu o imóvel ao seu anterior proprietário que o pai dos Autores, F, aliás F1, também conhecido por F2 ou F3, e depois da morte deste, os AA., sempre praticaram os actos supra aludidos na íntima convicção de que fruíam o referido prédio porque o mesmo lhe pertencia e em relação ao seu domínio útil. (…)”.

E, nesta conformidade, provado estando, (especialmente):
- que o pai dos AA., ora recorrentes, adquiriu (o domínio útil) do imóvel identificado nos autos por altura do seu casamento com G;
- que estes faleceram, respectivamente, em 17.12.1959 e 05.07.1967;
- que foi nesta casa que os AA. nasceram, passaram a sua infância, (e, abreviando), foram sempre vistos como donos e legítimos proprietários, praticando, enquanto tal, actos com a íntima convicção de que o (domínio útil do) imóvel lhes pertencia;
- cabe pois consignar que não se vê obstáculo – já que a dita facticidade se nos apresenta perfeitamente bastante – à procedência do pedido pelos mesmos deduzido.

É verdade, (e não se nega), que após o falecimento do seu pai, (em 17.12.1959), não passaram – de imediato – a ser os “únicos” (e “absolutos”) possuidores do imóvel, pois que tendo aquele falecido no estado de casado com a dita G, (mulher do pai), eram, certamente, no momento, (apenas) “compossuidores” do referido imóvel, o que naturalmente impedia o efeito (pelos AA.) pretendido, (e que, neste pormenor, foi devidamente assinalado pelo Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância nas suas decisões cuja referência se deixou feita).

Contudo, com o falecimento de G em 05.07.1967, e, inexistindo, com excepção dos próprios AA., qualquer outro herdeiro ou interessado, (ainda que incerto), dúvidas não parece que devam existir que, a partir de tal data, passaram os mesmos AA. a ser os “únicos possuidores” – relativamente a todo o imóvel – agindo, e sendo como tal vistos e reconhecidos, (por comerciantes e vizinhos), e, nesta conformidade, (e independentemente do demais), em face do “período de tempo” que desde tal data existe e se tem mantido esta “situação”, inegável se nos apresenta que verificados estão os pressupostos previstos nos atrás transcritos comandos legais – dos art°s 1175°, 1187°, al. a) e b), 1193°, n.° 1, 1212° e 1221°, 1ª parte, do C.C.M. – para que, na procedência do pedido que deduziram, sejam declarados titulares do domínio útil do imóvel em questão.

Dest’arte, (e prejudicada ficando a apreciação de qualquer outra questão), resta decidir como segue.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, julgando-se procedente o pedido pelos recorrentes deduzido.

Custas pelos recorridos.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 14 de Julho de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

Proc. 153/2020 Pág. 12

Proc. 153/2020 Pág. 13