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Processo nº 172/2020
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. “A”, sociedade registada e com sede nas Ilhas Virgens Britânicas e com os demais sinais dos autos, interpôs, no Tribunal Judicial de Base, recurso judicial da decisão de 20.06.2018 do Chefe do Departamento da Propriedade Intelectual da Direcção dos Serviços de Economia que recusou o seu pedido de registo da marca n.° N/117845; (cfr., fls. 2 a 9 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Oportunamente, proferiu o Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base sentença considerando que o dito recurso judicial não merecia provimento; (cfr., fls. 80 a 87).

*

Inconformada, a dita sociedade recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 23.04.2020, (Proc. n.° 929/2019), decidiu “conceder provimento ao recurso interposto pela recorrente A e, em consequência, revogar a sentença recorrida, determinando:
- Que seja dado como não provado o ponto 18º constante da sentença recorrida;
- Alteração da resposta dada ao ponto 21º da sentença recorrida para o seguinte:
“A marca “SPECK” da reclamante, com o texto “SPECK” (o apelido da família), é usada na actividade da reclamante e encontra-se registada na classe 7ª (e noutras classes) em diversas jurisdições, a saber, na União Europeia (enquanto marca comunitária), Estados Unidos da América, Japão, Noruega, Suíça, Austrália, Taiwan, Alemanha, Hong Kong e China.”;
- A concessão do registo da marca N/117845 a favor da recorrente A.
Custas pela recorrida em ambas as instâncias, fixando o valor da causa em 500 U.C.
(…)”; (cfr., fls. 253 a 271-v).

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Do assim decidido, e como parte contrária, veio a “B”, (com sede na Alemanha, e devidamente identificada nos autos), interpor recurso do referido Acórdão do Tribunal de Segunda Instância para este Tribunal de Última Instância.

Em sede das suas alegações, produz as seguintes conclusões:

«A. É certo que o Tribunal de Última Instância apenas decide em matéria de direito, mas o Tribunal a quo (o TSI), na decisão em apreço, não só aplicou mal os dispositivos legais que invoca, como também alterou a matéria de facto à revelia e em contradição flagrante com a prova nos autos.
B. O Tribunal a quo entende que não existe qualquer elemento nos autos que permita dar como provado o ponto 18 da sentença anterior (“A requerente sabe da existência do acordo de exclusiva utilização da marca “SPECK” pelas referidas quatro sociedades da família Speck e sabe que se encontra pendente litígio quanto a esta matéria nos tribunais da Alemanha.” ), a prova consta dos próprios autos e foi até submetida pela própria Recorrida A.
C. A fls. 68 do processo administrativo a A juntou o acordo de aquisição da marca XXXXXXXXX em Hong Kong, do qual consta (cláusula 4.2(d)), a referência ao litígio entre a Recorrente e a Recorrida sobre a marca “”, com o compromisso da C de assistir a Recorrida em opor-se ao mesmo, isto é, em impedir que a Recorrente use a marca (em Hong Kong).
D. A partir do momento em que Recorrida celebrou este o contrato com a C – a 14 de Março de 2016 – já sabia que havia uma disputa sobre o uso da marca “SPECK” com a Recorrente.
E. Também no artigo 9.º da petição de 23 de Julho de 2018, a Recorrida alega uso da marca desde 2005 (?!?) através da empresa associada D, até ter adquirido a marca a 14 de Março de 2016, sendo que antes dessa data a marca pertencia à C.
F. A Recorrida “adquiriu” a marca em Hong Kong, ao fim de 10 anos como agente licenciado, quando existia litígio sobre esta questão e considerando que a “adquiriu” da C quando esta tinha expurgado o apelido “Speck” no nome, é óbvio que a Recorrida tinha conhecimento do ponto 18. da sentença proferida em primeira instância.
G. A própria Recorrida afirma operar em parceria com a D, ambas têm o mesmo administrador, o Sr. E – pessoa que assinou a procuração da Recorrida, o contrato de cessão de marca com a C e ainda o relatório de contas de 2018 da D
H. Não faz qualquer sentido aceitar que a A tem como seu o “uso” da D desde 2005 (porque são empresas associadas ...) mas que selectivamente desconhecia por completo o litígio que arrastava as empresas Speck na Alemanha desde 2006 ...
I. O conceito de bonus pater familias serve para definir o padrão de cautela na apreciação da prova e determina que não se pode aceitar como fidedigno o uso da marca (de Hong Kong) pela empresa associada D desde 2005 para depois entender que a A desconhecia em absoluto o processo que corre termos desde 2006 na Alemanha e que qual é parte a empresa C.
J. O acordo de cessão da marca (Hong Kong) foi assinado a 14 de Março de 2016, i. e., decorridos menos de 2 meses sobre a sentença que, na Alemanha, condenou (a C) a suspender de imediato o uso da marca “Speck”.
K. O bonus pater familias concluiu necessariamente que a cessão em Hong Kong foi feita como consequência da decisão judicial na Alemanha e para furtar a C aos seus efeitos, tendo a A sido constituída pelo Sr. E (dono da D) em conluio com a C.
L. A Recorrida não só sabia do litígio na Alemanha, como só assim se explica o seu contributo para a cessão de marca a uma empresa que continuava a afirmar que as bombas e compressores eram feitos na Alemanha.
M. Consta também dos autos (ora resubmetido como Doc. 4) que a D continuava a 21 de Julho de 2016 (4 meses depois da cessão e 6 meses depois da sentença de Nuremberga) afirmava que as suas bombas Speck eram originais e provenientes da Alemanha.
N. Não é necessário que uma entidade seja parte num acordo para que possa afirmar o conhecimento – ou desconhecimento – do mesmo, pois atendendo ao meio comercial onde está inserida, a Recorrida tem completo conhecimento das grandes operações, fusões ou cisões que vão sendo realizadas, dado o limitado número de operadores existentes no mercado e atendendo à elevada especificidade dos produtos que comercializa.
O. Sendo “Speck” do nome de família que operava nesta indústria específica durante mais de 100 anos (ponto 19 da sentença), não é credível que alguém proceda à aquisição ou utilização desta marca sem que seja feita uma análise prévia e exista total conhecimento da realidade que envolve a empresa, nomeadamente, situação financeira, fiscal, administrativa e contenciosa.
P. O juiz deve considerar na decisão a proferir “os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outras que as partes tenham oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa”, (n.º 3 do artigo 5.º do CPC), pelo que, ao determinar como não provado o ponto 18º da sentença, o Tribunal a quo não realizou uma apreciação global de toda a documentação nos autos, decidindo em contradição com os fundamentos de facto.
Q. Precipitando-se, fiado nas intenções da Recorrida, entendeu o Tribunal “(…), não somos capazes de. encontrar naquele documento, nem nos outros documentos juntos aos autos, qualquer elemento probatório pertinente que permita demonstrar que a marca em causa se encontra registada [sic] na Classe 7 ou noutras Classes e estava a ser usada nas actividades da Recorrida, em Macau [sic].”
R. Tal prova existe e foi junta aos autos pela própria DSE conforme se pode ler pelo ofício a fls. 47 dos autos, remetida a 12 de Outubro de 2018 sob a referência 62053/DPI e que contém em anexo a “pesquisa actualizada efectuada no ficheiro informático da DSE” e do qual constam claramente as marcas registadas N/121251 e N/121252 nas Classes 7 e 11 a favor da Recorrente incluindo a palavra “Speck”.
S. Os elementos dessas marcas N/121251 e N/121252 constam também do processo administrativo (fls. 22 a 26 e ainda lista junta como doc. 11 na exposição suplementar a fls. 29 dos autos), que é remetido ao Tribunal por conter elementos de informação suficientes para bem esclarecer o Tribunal (artigo 278.º, n.º 2 do RJPI).
T. Estamos sem dúvida perante um caso de manifesta contradição da decisão com os respectivos fundamentos – o que determina a respectiva nulidade – artigo 571.º, n.º 1, al. C) do CPC.
U. O Tribunal a quo andou mal, novamente, ao não determinar a concorrência desleal por parte da Recorrida, ancorando-se no seguinte:
a) a Recorrente não chegou a efectuar o pedido de registo de marca na RAEM antes do pedido de registo da marca apresentado pela Recorrida;
b) a Recorrente não logrou demonstrar o exercício de actividade comercial ou económica em Macau.
V. O registo da marca N/121251 na Classe 7 a favor da Recorrente ocorreu em 28/05/2018, por pedido apresentado em 20/03/2017.
W. Nos autos foi decidido (pela DSE e pelo TJB) que existia concorrência desleal em virtude do propósito da A de se aproveitar de reputação alheia, sendo citada sentença proferida no caso n.º CV2-14-0054-CRJ onde esta entendeu que a concessão do registo à Recorrida “(…) estava a introduzir na ordem jurídica de RAEM um elemento de confusão e de aproveitamento de reputação alheia (…)”, “a atribuir-lhe um instrumento de disputa de clientela que poderá fazer com quem os usa consiga vitórias não devidas ao mérito próprio, mas ao mérito alheio”.
X. Depois destas decisões, um volt-face, no acórdão em recurso a Recorrente passa a estar sujeita a um registo de marca ou à existência de actividade económica em Macau, não sendo muito claro este novo posicionamento jurisprudencial que é confuso, mal enquadrado e mal fundamentado.
Y. Pois a previsão legal é clara, tal como vertida no RJPI: “O reconhecimento de que o requerente [neste caso, a A] pretende fazer concorrência desleal ou que este é possível independentemente da sua intenção.” (artigo 9.º, n.º 1, al. c) do RJPI).
Z. No dispositivo legal em questão não resulta qualquer referência à presença no mercado de ambas as partes, Recorrida e Recorrente, pois a norma em questão não contém qualquer requisito ou expressão nesse sentido (muito pelo contrário, está subentendido que o requerente ainda vai iniciar a sua actividade em Macau) e poderá até ser aplicada não existindo qualquer reclamação.
AA. O Acórdão do TSI (n.º 715/2010) respeita as circunstâncias que não se verificam no presente caso, porquanto a Recorrida nada tem registado, estando apenas em discussão se a respectiva marca deve ou não ser registada ab inítio (e não cancelada a posteriori, como no processo n.º 715/2010).
BB. Por outro lado, o Acórdão (n.º 715/2010) também é citado para restringir o âmbito do artigo 8.º da Convenção de Paris (“O nome comercial será protegido em todos os países da União, sem obrigação de registo, quer faça ou não parte de uma marca de fábrica ou de comércio”), quando esta norma da Convenção contempla qualquer condição ou requisito para que a firma num país da Convenção seja também protegida em Macau.
CC. Existem mais razões para não seguir a doutrina do Acórdão n.º 715/2010, em primeiro no caso de 2010, estava em questão o pedido de cancelamento de uma firma em uso há vários anos.
DD. Depois, a própria jurisprudência do Acórdão n.º 715/2010 referiu outro requisito que não se encontra preenchido, afirmando que se deve aplicar a Convenção SE não existir “(…) qualquer finalidade desonesta a elas subjacente e sem possibilidade de deslocar clientela (…)”
EE. Ou seja, segundo o TSI, o artigo 8.º da Convenção de Paris não deve ser usado para impugnar ou cancelar denominações sociais que tenham surgido honestamente, por puro acaso, sem qualquer intervenção desonesta e sem o propósito de desviar clientela.
FF. Nenhum destes epítetos pode ser aplicado à Recorrida A, porquanto a própria revelou que, de 2005 a 2016, usou a marca sob licença de um titular (C), que continuou a manufacturar as bombas na Alemanha e procedeu a várias alterações no registo como imperativo do litígio pendente na Alemanha, tendo adquirido a marca em 2016 nestas condições e apenas para Hong Kong.
GG. Sendo claro que a A enquanto agente licenciado, procurou aproveitar-se, em Macau do bom nome e a reputação inerentes à família Speck e sem mais (porque a Recorrida nunca produziu estas produtos e só adquiriu a respectiva marca em 2016 em Hong Kong) procurou tirar proveito da reputação e clientela alheias.
HH. Andou mal novamente o Tribunal a quo, ao não aplicar correctamente o artigo 8.º da Convenção de Partis, ao exigir requisitos (concorrência no mercado) que não constam da Convenção ao citar jurisprudência (Acórdão 715/2010) destinada a um caso completamente distinto (em que se solicitava ao Tribunal o cancelamento de uma firma em Macau quando no presente caso se peticionava a sua protecção) ao aplicar essa jurisprudência de forma selectiva, “esquecendo” o requisito da ausência de intenção desonesta ou do propósito de desviar clientela.
II. Também não se aceita o entendimento do Tribunal a quo que condiciona a protecção de uma marca notória à efectiva concorrência ou presença no mercado [de Macau] (?!?), pois não só este requisito não tem qualquer previsão legal como mais uma vez é a própria Recorrida que oferece a prova dessa presença e reputação.
JJ. A C foi condenada pelo Tribunal de Nuremberga (Alemanha) a cessar imediatamente o uso de marca “”, estando sujeita à penalidade de 250,000.00 EUR por cada infração a decisão judicial (cfr. Doc. n.º 4 junto aos autos de processo administrativo pela ora Recorrente, a 26 de Abril de 2017).
KK. Desde 20 de Janeiro de 2016 que a C (então titular da marca em Hong Kong) estava impedida de manufacturar bombas e compressores sob a marca “Speck” na Alemanha (as mesmas bombas e compressores que a ora Recorrida vendia em Hong Kong sob licença, pois a Recorrida nunca fabricou bombas e compressores de água “Speck”.).
LL. É certo que a ora Recorrida adquiriu a marca “Speck” em Hong Kong a 14 de Março de 2016 (pouco depois da referida sentença judicial e precisamente por causa da mesma) mas nunca manufacturou essas bombas em Hong Kong (basta ler a carta de 21 de Julho de 2016, ora junta como Doc. 4).
MM. Todos os documentos juntos pela Recorrida nos autos (em particular a fls. 23 (pela F), 25 (pela G) e 29 (pela H)) relativos à procura de bombas Speck com origem na Alemanha (onde continuam a ser fabricadas, conforme a Recorrida):
i) Não respeitavam a bombas manufacturadas pela C (dada a decisão da Alemanha que o proibia);
ii) Não respeitavam a bombas fabricadas pela Recorrida, que só era titular da marca em Hong Kong
NN. No âmbito dos direitos de autor, a Recorrente também discorda do acórdão preferido e das conclusões no mesmo, que seguem um conhecido “atalho”:
“(…) se o alegado desenho foi introduzido na marca, aquele já perdeu autonomia, e o que interessa agora é uma tarefa de comparação das marcas em si (…)” (sic).
OO. Esta afirmação é deveras confusa, pois (i) o próprio Tribunal a quo concluira que não existia uma marca da Recorrente em Macau e (ii) não procedeu a qualquer confronto entre as marcas da Recorrente que da Recorrida.
PP. Só se pode considerar esta afirmação como respeitante à incorporação da obra [o desenho] numa marca titulada pelo mesmo autor dos direitos de autor, mas o próprio Tribunal concluiu que a Recorrente não era titular de uma marca em Macau ...
QQ. O certo é que não existe qualquer normativo em Macau que impeça o autor de uma obra de obter a dupla proteção, i.e, de proteger a mesma como marca registada e mantendo a obra original sujeita a direito de autor – e se a lei não prevê essa limitação, não compete ao Tribunal criar a mesma.
RR. O Acórdão citado apenas manifesta que não é necessário procurar uma solução jurídica em sede de direito de autor se a mesma se obteve em sede de registo de marca (o que não foi ocaso)
SS. Está em causa um mero saneamento processual, pelo qual se abstém de analisar todos os argumentos invocados por uma parte se a tutela das respectivas pretensões foi obtida através de um argumento procedente.
TT. O que determina claramente a verificação do vício da nulidade do Acórdão, na modalidade de omissão de pronúncia prevista no artigo 571.º, n.º 1, al. d) do CPC:
“Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”»; (cfr., fls. 295 a 330).

*

Após resposta da recorrida (“A”) pugnando pela confirmação do Acórdão recorrido, (cfr., fls. 369 a 377), e, adequadamente processados, vieram os autos à conferência.

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Cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Em sede da sentença pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base proferida considerou-se como “provada” a seguinte matéria de facto:

“1º
A, supra identificada submeteu no dia 24 de Novembro de 2016 um pedido de registo de marca relativamente ao seguinte sinal:
.
O pedido do registo foi publicado no BORAEM n.º 3-II Série de 18/01/2017.

O registo foi pedido para assinalar produtos da classe 7ª, em particular, conforme consta do respectivo pedido de registo, “bombas, bombas centrífugas, peças e acessórios relacionados com bombas ou bombas centrífugas, motores para bombas ou bombas centrífugas, acoplamentos de eixos e acessórios de transmissão para accionamento de máquinas de bombas e de bombas centrífugas” (“泵、離心泵、與泵及離心泵相關的零件及配件、泵及離心泵的馬達和發動機、泵及離心泵的機器傳動用聯軸節和傳動機件。” - original em chinês).

O referido pedido foi publicado, nos termos do artigo 211.º do RJPI, no Boletim Oficial n.º 3/2017, II Série, no dia 18 de Janeiro de 2017.

B, sociedade comercial com sede na Alemanha com actividade no sector da engenharia mecânica, dedicando-se ao fabrico de bombas e compressores apresentou reclamação em 20/03/2017 contra o referido pedido de registo, tendo a reclamação sido publicada no BORAEM n.º 23-II Série de 07/06/2017.

A Reclamante tem a sua origem na sociedade I, fundada por J, pai do fundador da Reclamante (K), em 1936, e com actividade, desde a sua fundação, no fabrico de bombas e compressores.

Os quatro filhos de J, a saber, L, M, N e K (este último, fundador da Reclamante), eram sócios da referida I e, subsequentemente, fundaram outras sociedades familiares com actividade, igualmente, no fabrico de bombas e compressores:
(i) O (fundada por L);
(ii) P (fundada por M); e
(iii) B1 (ou seja, a Requerente) (fundada por K).

O filho N não constituiu uma nova sociedade, mantendo-se na administração da sociedade fundada pelo pai, a referida I.

A marca “”, com o texto “SPECK” (o apelido da família), era usada, por comum acordo, pelas referidas quatro sociedades, isto é, pela sociedade fundada por J e pelas três sociedades fundadas pelos seus filhos.

Do referido acordo, constava também que só estas quatro sociedades podiam usar a marca “” e o nome “SPECK” (o apelido da família), estando vedada a transferência para terceiros de quaisquer direitos sobre a marca e nome - acordo esse que foi confirmado por escrito (Doc. 1 junto em suporte de papel a fls. 15 a 18 do processo administrativo apenso).
10º
A marca “” encontrava-se também registada em Hong Kong, sob o n.º XXXXXXXXX, desde 24 de Maio de 1994, a favor da I. (Doc. 2 junto em suporte de papel a fls. 19 a 21 do processo administrativo apenso).
11º
12º
A marca “” encontra-se igualmente registada a favor da Reclamante, a qual usa efectivamente a marca para identificar os seus produtos (Docs. 2, 3 e 4 junto sem suporte de papel mas em suporte magnético no CD junto a fls. 37 do processo administrativo apenso).
No entanto, no decurso de 2006, foi iniciado um processo de insolvência na Alemanha relativo à sociedade I, no âmbito do qual o respectivo administrador de insolvência autorizou individualmente (a 28 de Julho de 2006), o registo da marca “” em Hong Kong para a sociedade “C”.
13º
Subsequentemente, a 24 de Junho de 2008, a sociedade “C” cedeu a referida marca a favor de outra sociedade denominada “C” que, por sua vez, cedeu recentemente a marca de Hong Kong para a Requerente do registo.
14º
Actualmente, encontra-se pendente nos tribunais da Alemanha um processo judicial entre a Reclamante e a “C”, a respeito, nomeadamente, do uso e cessão não autorizada da marca em causa.
15º
A marca da Reclamante tem sido difundida em vários países no segmento específico de produção de bombas e compressores.
16º
Ora, os produtos para os quais a Requerente reclama são os produtos que a requerente e as referidas sociedades familiares comercializam há mais de 80 anos.
17º
A Reclamante apresentou pedidos de registo da marca “” nas classes 7 e 11, aos quais foram atribuídos, respectivamente, os números N/121251 e N/121252, no dia 20 de Março de 2017.
18º
A Requerente sabe da existência do acordo de exclusiva utilização da marca “” pelas referidas quatro sociedades da família Speck e sabe que se encontra pendente litígio quando a esta matéria nos tribunais da Alemanha.
19º A actividade da família Speck na produção de bombas e compressores remonta há mais de 100 anos e tem assinalado tais produtos com a marca “”.
20º
Actualmente, a Reclamante exerce a sua actividade com vendas em vários países e regiões.
21º
A marca “” da Reclamante, com o texto “SPECK” (o apelido da família), é usada na actividade da Reclamante e encontra-se registada na classe 7 (e noutras classes) em diversas jurisdições, a saber, na União Europeia (enquanto marca comunitária), Estados Unidos da América, Japão, Noruega, Suíça, Austrália, Taiwan, Alemanha, Macau, Hong Kong e China (Doc. 11 junto sem suporte de papel mas em suporte magnético no CD junto a fls. 37 do processo administrativo apenso).
22º
A “C” em 28 de Julho de 2006 alterou a respectiva firma para “C1” e, a 27 de Outubro de 2006, alterou novamente a respectiva firma para “C2”.
23º
Dois anos depois, a 24 de Abril de 2008, a C2 (inicialmente denominada “C”) transferiu o registo da marca “” em Hong Kong para a “Q”, a qual, a 22 de Dezembro de 2011, alterou a respectiva firma para “C”.
24º
Foi a sociedade “C” (anteriormente denominada “Q”) que cedeu o registo da marca de Hong Kong à ora Requerente.
25º
Antes de a recorrente pedir o registo da marca “SPECK” junto da D.S.E., não existia na RAEM qualquer sinal idêntico ou semelhante, já anteriormente registado.
26º
A Recorrente não criou a marca registanda e copiou-a da marca das sociedades da família SPECK”; (cfr., fls. 81 a 85 e 259 a 261-v).

Do direito

3. Insurgindo-se contra o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, pede a ora recorrente, “B”, a sua revogação – inversão – para ficar a valer a decisão do Tribunal Judicial de Base de 22.03.2019 que confirmou a decisão da Direcção dos Serviços de Economia que tinha recusado o pedido de registo da marca n.° N/117845 pela ora recorrida “A” aí apresentado.

Ora, analisados os autos, e ponderando sobre as razões que levaram as Instâncias recorridas a decidir como (efectivamente) decidiram – o Tribunal Judicial de Base, no sentido da recusa do pela ora recorrida pretendido registo da marca “SPECK” dada a constatada “concorrência ilegal”, e o Tribunal de Segunda Instância, no sentido da sua “inexistência”, e sendo, essencialmente, esta a questão a decidir, vejamos.

Pois bem, por várias vezes foi já esta Instância chamada a apreciar e decidir “questões análogas” à agora colocada (relacionada com o “direito de registo de uma marca”), e, como já tivemos oportunidade de considerar, em causa estando matéria própria do “Direito da Propriedade Industrial” (em grande parte) regulada pelo D.L. n.° 97/99/M que aprovou o “Regime Jurídico da Propriedade Industrial”, (R.J.P.I.), útil se mostra de atentar desde já que, em sede do seu preâmbulo, se consignou (nomeadamente) que:

“A propriedade industrial é assumida, no mundo contemporâneo, como um factor fundamental de promoção do desenvolvimento económico.
Efectivamente, ela contribui de forma decisiva para o estímulo da actividade inventiva, uma vez que, face à considerável mobilização de recursos que a investigação tecnológica implica, só a protecção assegurada pelo sistema da propriedade industrial tende a garantir a compensação económica adequada aos investimentos efectuados na busca de novos produtos e de novos processos.
Por outro lado, a propriedade industrial constitui um factor favorável à transferência de tecnologia, na medida em que os detentores de conhecimentos tecnológicos, no exterior, estarão muito mais abertos a efectuar essa transferência se existir em Macau um adequado sistema de protecção dos seus direitos de exclusividade sobre essa tecnologia.
(…)
Quanto às marcas e outros sinais distintivos, a sua importância também não pode ser contestada: elas tendem a garantir a identificação do produto com o produtor, significando essa identificação uma determinada garantia de qualidade ou de origem e, consequentemente, criam a segurança na manutenção das qualidades e características do produto. Estes sinais distintivos contêm em si, portanto, um factor muito relevante de estímulo à diferenciação das empresas pela qualidade e uma fonte de segurança dos consumidores.
(…)”.

Por sua vez, importa igualmente ter presente que no art. 1° deste referido R.J.P.I. se preceitua que:

“O presente diploma regula a atribuição de direitos de propriedade industrial sobre as invenções e sobre as demais criações e os sinais distintivos nele previstos, tendo em vista, designadamente, assegurar a protecção da criatividade e do desenvolvimento tecnológicos, da lealdade da concorrência e dos interesses dos consumidores”; (sub. nosso).

Daí que se diga que a “Propriedade Industrial” seja a área do Direito que garante a inventores ou responsáveis por qualquer produção do intelecto – nos domínios industrial, científico, literário ou artístico – o direito de obter, por um determinado período de tempo, uma recompensa resultante da sua criação ou manifestação intelectual.

Cabendo-nos agora apreciar de um – no caso, pela ora recorrida – reclamado (direito de) “registo de uma marca”, e decidir se (mais) acertada foi a sua “recusa” – pela D.S.E. e T.J.B. – ou a sua “concessão” – pelo T.S.I. – vejamos que solução adoptar.

Pois bem, como sabido é, nos termos do art. 197° do aludido R.J.P.I.: “Só podem ser objecto de protecção ao abrigo do presente diploma, mediante um título de marca, o sinal ou conjunto de sinais susceptíveis de representação gráfica, nomeadamente palavras, incluindo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, sons, a forma do produto ou da respectiva embalagem, que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas”; (sub. nosso).

E, assim, não obstante de um ponto de vista “económico”, a uma marca caiba essencialmente desempenhar as funções de “indicação da origem” dos produtos ou serviços, de “garantia de qualidade” e ainda a função “publicitária”, (cfr., v.g., Luís M. Couto Gonçalves in, “Direitos de Marcas”, pág. 15), atento ao preceituado no referido art. 197°, evidente se mostra de concluir que a “função jurídica” da marca – que é o que aqui nos interessa – é a de identificar a proveniência de um produto ou serviço ao consumidor para, assim, permitir a sua distinção de outros produtos ou serviços produzidos ou postos no mercado, devendo assim ser entendida como “um sinal distintivo na concorrência de produtos e serviços”; (cfr., v.g., O. Ascensão in, “Direito Comercial”, Vol. II, “Direito Industrial”, pág. 139, assim como, entre outros, os Acs. deste T.U.I. de 18.11.2020, Proc. n.° 174/2020, de 21.04.2021, Proc. n.° 42/2021 e de 17.06.2022, Proc. n.° 49/2022).

Feitas estas considerações, (digamos que, introdutórias), continuemos.

Analisando o pedido de registo de marca pela ora recorrida apresentado, assim considerou – na parte que agora interessa – a D.S.E.:

“(…)
53. (ii) Por outro lado, a Requerente, defende-se com a prioridade no pedido de registo. Com efeito: "o normal funcionamento do mercado aceita que o uso exclusivo de sinais distintivos seja garantido àquele que primeiro os ocupou, seja pelo registo, seja, em certos casos, pelo uso, mas já não aceita quando isso puder ser um factor de distorção da concorrência, pois, nesse caso, nas palavras de Oliveira Ascensão (Concorrência desleal, p.446) a lei repudia o direito ao primeiro ocupante. (…) Poderá aceitar-se no caso em apreço o referido critério do primeiro ocupante por não contender com as normas e os usos honestos da actividade económica nem distorcer a concorrência beneficiando ou prejudicando indevidamente, designadamente de forma parasitária? A Requerente do registo não criou o sinal registando, o qual é bem atreito a ser confundido ou associado à Reclamante. (…) Atribuir à Requerente o direito de marca sobre o sinal registando, que lhe atribui o exclusivo da exploração, afastando os demais concorrentes, será atribuir-lhe, em exclusivo, um instrumento de disputa de clientela que poderá fazer com quem os usa consiga vitórias não devidas ao mérito próprio, mas ao mérito alheio-a Reclamante."
54. As marcas (nominativas e mistas) estão registadas em nome das empresas "S" e "B" (a Reclamante) na Europa, na RPC e em nome da Requerente, em Hong Kong.
55. Julgamos, salvo melhor entendimento, que o uso da marca pela Requerente seja idóneo a criar confusão entre produtos que pretende assinalar e os da Reclamante, de tal forma que configure aproveitamento da reputação empresarial que a Reclamante aufere na área em que exerce a actividade comercial.
56. Com efeito, estamos a lidar com produtos que servem um segmento de mercado muito específico, produtos esses naturalmente associados à empresa alemã e não à Requerente, que pode determinar a confusão na mente dos consumidores que poderão pensar, ao ver a marca em crise o sinal nos produtos a assinalar que, a Requerente, da marca é uma licenciada/subsidiária da Reclamante em Macau”.

E, seguidamente, em “conclusão”, considerou que:

“(…)
C. Existe a possibilidade de ocorrerem actos de concorrência desleal, mesmo sem serem intencionais, entre a Reclamante e a Requerente, porque:
(i) O sinal registando pode levar o consumidor a pensar, erradamente, que os produtos assinalados por uma e outra marca provêm da mesma entidade ou de entidades diversas, mas negocialmente relacionadas.
(ii) Infere-se, assim que o sinal determinará, a favor da Requerente, desvio de clientela consumidora dos produtos a marcar com a marca da Reclamante que excede o limiar determinado pelas normas e pelos usos honestos da actividade económica.
Pelos factos expostos, salvo melhor opinião, a signatária considera a Reclamação procedente por puderem ocorrer actos de concorrência desleal, mesmo sem serem intencionais, o que constitui fundamento de recusa do pedido de registo, conforme a alínea c) do n.° 1 do artigo 9, aplicável ex vi alínea a) do n.° 1 do artigo 214 do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 97/99/M, de 13 de Dezembro”; (cfr., fls. 98 e 99 do P.A. em apenso).

Por sua vez, em sede do recurso judicial interposto do assim pela D.S.E. decidido, (e após seleccionar e elencar a “matéria de facto” que considerou provada e que atrás se deixou transcrita), assim ponderou o Tribunal Judicial de Base:

“Não tem razão a recorrente quando pretende que lhe seja atribuído o direito de marca sobre o sinal registando através da concessão do registo requerido.
É fundamento de recusa da concessão dos direitos de propriedade industrial o reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal ou que esta é possível independentemente da sua intenção (art. 9°, al. c) do RJPI).
A concorrência é a disputa de clientela. É desleal quando a disputa é exercida em contrário às normas e aos usos honestos da actividade económica, designadamente através de actos idóneos a criar confusão com a empresa, os produtos, os serviços ou o crédito dos concorrentes (arts. 158° e 159° do CComercial).
Ora, contendo a marca registanda um elemento essencial da firma da parte contrária que nenhuma ligação tem à requerente do registo (SPECK), não se vê como negar a possibilidade de confusão da marca registanda com a empresa da parte contrária por parte dos consumidores quando, no exercício da concorrência, a marca registanda for utilizada pelos concorrentes para assinalar produtos que a referida parte contrária também comercializa. É, pois, possível a ocorrência de concorrência desleal na modalidade de confusão dos consumidores devido à utilização do sinal registando para assinalar bens de comércio, pois que a clientela poderá orientar-se de forma não esclarecida na escolha que fizer entre os concorrentes que disputam tal clientela.
Mais. "O pedido de registo também é recusado sempre que a marca ou algum dos seus elementos contenha a firma … ou apenas parte característica … que não pertençam ao requerente ou que o mesmo não esteja autorizado a utilizar, se for susceptível de induzir o consumidor em erro ou confusão (art. 214°, n° 2, al. e) do RJPI). Isto é, independentemente da possibilidade de ocorrência de concorrência desleal, o registo de marca deve ser recusado quando o sinal se confunda com firma alheia. Estamos em sede de sinais distintivos do comércio (distintivos de comerciantes – firma – e distintivos de bens de comércio – marca). Para se manterem distintivos, os sinais não podem ser confundíveis, releve-se a tautologia, nem indevidamente associados. Embora este motivo de recusa não tenha sido ponderado no acto recorrido nem na discussão de requerente e reclamante, o mesmo releva autonomamente e também em sede de concorrência desleal atenta a natureza de plena jurisdição do presente recurso. Também por tal motivo o registo deve ser recusado, pois não se pode esquecer que a fima da RAEM só é protegida depois de registada (art. 20° do CComercial) mas a firma do exterior é protegida independentemente do registo na RAEM, desde que seja protegida na jurisdição de origem pertencente à União de Paris, o que é o caso da Alemanha.
VI – Decisão.
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
(…)”; (cfr., fls. 85 a 87).

E, em sede do recurso do assim decidido, (e como atrás se notou), nestes termos deliberou o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância:

“conceder provimento ao recurso interposto pela recorrente A e, em consequência, revogar a sentença recorrida, determinando:
- Que seja dado como não provado o ponto 18º constante da sentença recorrida;
- Alteração da resposta dada ao ponto 21º da sentença recorrida para o seguinte:
“A marca “SPECK” da reclamante, com o texto “SPECK” (o apelido da família), é usada na actividade da reclamante e encontra-se registada na classe 7ª (e noutras classes) em diversas jurisdições, a saber, na União Europeia (enquanto marca comunitária), Estados Unidos da América, Japão, Noruega, Suíça, Austrália, Taiwan, Alemanha, Hong Kong e China.”;
- A concessão do registo da marca N/117845 a favor da recorrente A.
(…)”; (cfr., fls. 253 a 271-v, pág. 37 e 38 do Ac. recorrido, salientando-se que relativamente à questão da referida “concorrência desleal” se considerou essencialmente o seguinte: “No fundo, o que está em causa é evitar o desvio, ou pelo menos risco de desvio, de clientela.
No caso vertente, provado está que a recorrida é detentora da marca “SPECK” em alguns países do mundo, mas ela não chegou a efectuar o registo desta marca na RAEM antes do pedido de registo da mesma marca apresentado pela recorrente.
Além disso, com base na factualidade dada como provada, não se logrou demonstrar o exercício pela recorrida de qualquer actividade económica ou comercial na RAEM, daí se conclui que não existe nenhuma concorrência entre a recorrente e a recorrida, muito menos desleal”; cfr., pág. 27 e 28 daquele Ac.).

Ora, sem prejuízo do muito respeito devido a outro entendimento – e independentemente da “solução” que se entenda dar à “matéria de facto do ponto 18°”, pois que se nos apresenta, no caso, irrelevante – cremos que motivos (legais) não existem para a “recusa do pedido de registo da marca” pela ora recorrida apresentado (na D.S.E.).

Passa-se a (tentar) explicitar este nosso ponto de vista.

Tratando do mesmo tema da “concorrência desleal” por este Tribunal foi nomeadamente considerado o que segue:

«3. Concorrência desleal
Dispõe o artigo 158.º do Código Comercial que “Constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência que objectivamente se revele contrário às normas e aos usos honestos da actividade económica”.
E acrescenta o artigo 159.º do mesmo Código:
“Artigo 159.º
(Actos de confusão)
1. Considera-se desleal todo o acto que seja idóneo a criar confusão com a empresa, os produtos, os serviços ou o crédito dos concorrentes.
2. O risco de associação por parte dos consumidores relativo à origem do produto ou do serviço é suficiente para fundamentar a deslealdade de uma prática”.

Ensina FERRER CORREIA1 que “… a defesa conferida pela proibição da concorrência desleal – nas diferentes formas que tal proibição reveste – é uma defesa complementar: complementar da legalmente assegurada pela tutela mais específica, mais rigorosa, mas por isso mesmo também mais circunscrita, desses vários elementos concretos (entre eles, os chamados sinais distintivos do comércio: marca, firma, nome e insígnia).2
Trata-se, pois, repetimos, de uma defesa complementar e, digamos, de segunda linha”.
Igualmente, explica CARLOS OLAVO3, referindo-se ao direito português, com normas semelhantes ao de Macau, que “… é hoje pacífico, quer na jurisprudência4, quer na doutrina5, que a protecção contra os actos de concorrência desleal tem, no nosso direito, um tratamento jurídico distinto da protecção dos direitos privativos da propriedade industrial, que permite considerá-la como constituindo um instituto autónomo.
Com efeito, enquanto que na violação de um direito privativo nos encontramos perante um ilícito meramente formal, independentemente da idoneidade ou inidoneidade do acto para provocar um qualquer prejuízo, no quadro da concorrência desleal o acto só terá a natureza de desleal quando possa originar um prejuízo a outra pessoa, através da subtracção da sua clientela, efectiva ou potencial”.
Referindo-se especificamente à possibilidade de concorrência desleal mediante a violação de sinais distintivos alheios não registados – que é o caso que nos ocupa – defende JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO6 que a “questão é particularmente relevante no domínio das marcas não registadas. A lei portuguesa silencia quanto a uma tutela geral, no domínio das marcas, da marca de facto, ao contrário do que acontece noutros países. Nesses, estabelecem-se critérios que balizam aquela protecção. Tudo isso falta no meio português, pelo que qualquer solução terá de ser procurada no âmbito da concorrência desleal.
O princípio geral, então, não pode deixar de ser o da liberdade. Tudo é livre, antes de o registo ter sido realizado. Se alguém não registou, podendo fazê-lo, não se pode queixar por outrem o ter ultrapassado nesse registo. O recurso à concorrência desleal não pode ser um sub-rogado, para obter o efeito que se não conseguiu ou não acautelou através da titularidade de um direito privativo.
Assim, nos termos do art. 171, caduca ao fim de seis meses o direito de prioridade no registo, baseado no pré-uso da marca.
Suponhamos que o usuário deixa passar o prazo. Aproveitando o facto, um concorrente pede o registo em seu benefício.
Poderá ser-lhe recusado com fundamento em concorrência desleal?
Se bastasse isso, a regra que estabelece a liberdade seria letra morta, praticamente. O registo só seria possível para quem ignorasse o pré-uso da marca e coincidisse na escolha da marca própria; e mesmo assim, com as limitações derivadas da novidade da marca.
Para o evitar, tem de acrescer algum elemento caracterizador da concorrência desleal, que permita falar de violação de normas e usos honestos.
O princípio é o da liberdade do uso por todos dos bens não reservados. A utilização de bens livres por terceiros tem de se presumir conforme aos usos honestos. Apenas se admite que circunstâncias particulares, como a constância e a difusão do uso, tornem a utilização por terceiros susceptível de indução em erro dos destinatários e, como tal, violadora das regras de leal concorrência.
Só se poderão pois excepcionar formas de deslealdade muito caracterizadas”»; (cfr., Ac. de 27.09.2018, Proc. n.° 36/2018, podendo-se, sobre o mesmo, tema ver também os Acs. de 18.09.2019, Proc. n.° 78/2016, de 31.07.2020, Proc. n.° 9/2018 e, mais recentemente, de 17.06.2022, Proc. n.° 49/2022).

Ora, tendo presente o entendimento que se deixou exposto, continuemos.

Pois bem, “acto de concorrência” é aquele acto susceptível de, no desenvolvimento de uma dada actividade económica, prejudicar um outro agente económico que, por sua vez, exerce também uma actividade económica determinada, prejuízo esse que se consubstancia num desvio de clientela própria em benefício do (ou de um) concorrente, existindo “concorrência” não apenas entre atividades económicas que estejam numa relação de total identidade, (substituição ou complementaridade), mas ainda entre todas aquelas que se “dirigem ao mesmo tipo de clientela”.

De facto, um “acto de concorrência”, é, assim, e antes de mais, um acto destinado à obtenção ou desenvolvimento de uma “clientela alheia”, assentando, pois, em duas ideias fundamentais: a “criação e expansão de uma clientela própria” e a “idoneidade para reduzir (ou mesmo suprimir) a clientela alheia”, (seja ela, real ou meramente possível).

Porém, e por princípio, a “concorrência” é algo de salutar para o próprio mercado.

Além do mais, permite a qualquer pessoa aproveitar a oportunidade de desenvolver uma actividade lucrativa, estimula a competição entre os diversos agentes, e contribui para a diversidade da oferta, viabilizando, também, a procura de novos e/ou melhores produtos ou serviços, a melhores preços, e, assim, um melhor relacionamento entre a oferta e a procura.

Daí que haja todo um conjunto de normas legais destinado a regular (e incentivar) a concorrência.

Porém, por sua vez, e no que diz respeito à “concorrência desleal”, é a mesma particularmente nociva para o mercado (e mesmo para a própria concorrência), na medida em que, além do mais, perturba e adultera o funcionamento do mercado, gera “comportamentos parasitários” que a mera oportunidade de negócios não pode permitir, desincentiva o esforço de desenvolvimento e a criação de novos produtos para evitar que outros tirem proveito desse esforço, deslocando o proveito comercial do mérito próprio para o aproveitamento e exploração do mérito alheio, agravando as condições em que a procura consegue satisfazer as suas necessidades através do mercado; (cfr., v.g., Ana Clara Amorim in, “A Concorrência Desleal à luz da jurisprudência do S.T.J.: revisitando o tema dos interesses protegidos”, Revista Electrónica de Direito, Junho 2017, n.° 2, pág. 7, que considera que, “No modelo profissional, a disciplina da Concorrência Desleal visa garantir as posições adquiridas pelos agentes económicos nas suas relações recíprocas”, podendo-se também ver Vanessa Adelaide F. N. Amarantes Pereira in, “Trade Dress e a Concorrência Desleal”, Univ. de Aveiro, 2009, e Fernando A. M. G. Villas Boas in, “Concorrência desleal: Os actos de agressão e a visão europeia”, U.C.P., 2022).

Visa-se, assim, e como se viu, impedir “actos contrários aos usos honestos do comércio”, repudiados pela boa consciência dos agentes do mercado e capazes de causar prejuízos a concorrentes, em resultado não das competências próprias, mas do “aproveitamento”, “usurpação” ou “clonagem de competências alheias”, (ou, para usar a expressão de O. Ascensão, que um concorrente se “enfeite com as penas alheias de maneira a fazer-se passar por outro, levando a uma confusão no respeitante ao estabelecimento ou aos produtos”, in “Concorrência Desleal”, pág. 15).

E, quando tal se verificar em – termos “contrários às normas e usos honestos” (de qualquer ramo de atividade) – dá-se um acto de “concorrência desleal”, que é “ilícito”, na medida em que constitui um “abuso da liberdade de concorrência”, (valendo assim a pena salientar que o conceito de “concorrência desleal” é um conceito normativo destinado a emprestar a determinados “actos” ou “comportamentos” a natureza de “ilícitos” contra o são e regular funcionamento da concorrência entre os agentes do mercado).

Patrício Paúl – in “Concorrência desleal e direito do consumidor”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Vol. I – defende uma “classificação que atende ao conteúdo do acto de concorrência desleal praticado”, em resultado da qual agrupa os actos de concorrência desleal nos seguintes tipos (principais): “actos de aproveitamento”, “actos de agressão” e “actos de indução do público em erro ou de falsa apresentação própria”.

Na verdade, o que se censura são os “meios” utilizados para actuar no mercado, e não os “concretos resultados” que derivam dessa actuação, pretendendo-se tutelar é a confiança legítima de todos os agentes do mercado de que as actuações concorrenciais se pautarão pela boa fé.

Por sua vez, (e como igualmente já se deixou referido), importa ter presente que o tratamento jurídico da protecção dos “direitos privativos da propriedade industrial”, (como, v.g., de uma “marca registada”), é diferente da protecção contra os “actos de concorrência desleal”, constituindo esta um “instituto autónomo”, (embora ambas tenham como escopo comum garantir a “lealdade da concorrência”).

Com efeito, a violação de direitos privativos constata-se “objectivamente”, (só por si), não significando necessariamente “concorrência desleal”.

Para que esta exista, e como se viu, é preciso que se verifiquem os “pressupostos” que a caracterizam, sendo pois necessário que o acto de concorrência seja “contrário às normas e usos honestos, referentes a qualquer ramo da actividade económica”.

Ora, no caso, e como da “matéria de facto dada como provada” se colhe, não obstante os dados relativos à “origem” e “antiguidade” da “marca” da ora recorrente, o certo é que, a mesma, para além de (ainda) não estar registada em Macau, não constitui uma “marca notória” nem de “prestígio”, não se conhecendo, localmente, qualquer actividade económica pela dita recorrente exercida e associada à referida marca.

Assim, sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento, e em nossa opinião, razoável se nos apresenta o raciocínio pelo Tribunal de Segunda Instância efectuado no sentido de que, se, in casu, (localmente), nem sequer “concorrência” existe, claro se mostra também que não ocorre qualquer “deslealdade” – “concorrência desleal” – para efeitos de recusa do pedido de registo da marca pela ora recorrida pretendida.

Com efeito, e como se apresenta evidente, (e se deixou adiantado), a “concorrência” não é susceptível de ser definida em “abstracto”, só o podendo ser em “concreto”, em face da “situação”, “posicionamento” e “actividade comercial” em questão, pois que interessa saber se a actividade de um agente económico, “atinge”, (ou não), a “actividade do outro”.

E, assim – e como igualmente nota Patrício Paúl in, “Breve análise do regime de concorrência desleal no novo C.P.I.”, pág. 3 a 6, também citado por Vanessa Adelaide F. N. Amarantes Pereira in, ob. cit., pág. 33, que considera que – “duas empresas, com actividades iguais, podem não estar em ‘concorrência’ se, actuando apenas num âmbito local ou regional, a sua distância geográfica não permitir que disputem a mesma clientela” – vista cremos estar a solução para o presente litígio.

Dest’arte, impõe-se a decisão que segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, com a taxa de justiça de 12 UCs.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 26 de Abril de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 FERRER CORREIA, Propriedade Industrial, Registo do nome de estabelecimento, Concorrência desleal in «Estudos Jurídicos II – Direito Civil e Comercial, Direito Comercial, Direito Criminal», Coimbra 1969, p. 235.
2 Mario Rotondi, Diritto Industriale, pág. 420 (apud Ferrara, loc cit.)
3 CARLOS OLAVO, A Concorrência Desleal, em Concorrência Desleal, Textos de Apoio, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1996, p. 329 e 330
4 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Novembro de 1951, Bol. Min. Just., n.º 22, pág.347.
5 Cfr. Prof. A. Ferrer Correia, «Propriedade Industrial, Registo do nome de estabelecimento, Concorrência desleal» in «Estudos Jurídicos II – Direito Civil e Comercial, Direito Comercial, Direito Criminal», Coimbra 1969, págs. 235 e segs., Patrício Paul, «Concorrência Desleal», 1965, págs. 43 e segs.
6 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Concorrência Desleal, Coimbra, Almedina, 2002, p. 437 e 438.
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