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Processo nº 92/2023
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em sede dos Autos de Inquérito no Ministério Público registado com o n.° 1219/2023, deduziu a Ilustre Procuradora-Adjunta acusação contra, A (甲), 1° arguido, (e outros 3 co-arguidos, B 乙, C 丙 e D 丁, todos), devidamente identificado(s) nos autos, imputando, (na parte que agora interessa), àquele 1° arguido, ora recorrente, a prática:

►como autor material e na forma consumada de:
- 1 crime de “promoção ou fundação de uma associação ou sociedade secreta”, p. e p. pelos art°s 1°, n.° 1, 2°, n.° 1, 3° e 5° da Lei n.° 6/97/M;
- 5 crimes de “corrupção passiva para acto ilícito”, p. e p. pelo art. 337°, n.° 1 do C.P.M.;
- 1 crime de “prevaricação”, p. e p. pelo art. 333°, n.° 1 do C.P.M.;
- 4 crimes de “favorecimento pessoal praticado por funcionário”, p. e p. pelo art. 332° do C.P.M.;
- 1 crime de “falsificação praticada por funcionário”, p. e p. pelo art. 246°, n.° 1, 244°, n.° 1, al. a), e 245° do C.P.M.;
- 1 crime de “abuso de poder”, p. e p. pelo art. 347° do C.P.M.;
- 1 crime de “violação de segredo de justiça”, p. e p. pelo art. 335°, n.° 1 do C.P.M.;
- 1 crime de “acesso indevido”, p. e p. pelo art. 38°, n.° 2 da Lei n.° 8/2005;
- 2 crimes de “inexactidão dos elementos”, p. e p. pelo art. 27°, n.° 1 da Lei n.° 11/2003 e art. 323°, n.° 1 do C.P.M.;
- 1 crime de “riqueza injustificada”, p. e p. pelo art. 28°, n.° 1 da Lei n.° 11/2003;

►como co-autor material com a arguida B e na forma consumada de:
- 4 crimes de “corrupção passiva para acto ilícito”, p. e p. pelo art. 337°, n.° 1 do C.P.M.;
- 5 crimes de “prevaricação”, p. e p. pelo art. 333°, n.° 1 do C.P.M.;
- 2 crimes de “abuso de poder”, p. e p. pelo art. 347° do C.P.M.;
- 1 crime de “violação de segredo de justiça”, p. e p. pelo art. 335°, n.° 1 do C.P.M.;
- 2 crimes de “acesso indevido”, p. e p. pelo art. 38°, n.° 2 da Lei n.° 8/2005;
- 1 crime de “obtenção, utilização ou disponibilização ilegítima de dados informáticos”, p. e p. pelo art. 5°, n.° 2, e 12°, n.° 1 da Lei n.° 11/2009;

►como co-autor material com as arguidas B e D e na forma consumada de:
- 11 crimes de “corrupção passiva para acto ilícito”, p. e p. pelo art. 337°, n.° 1 do C.P.M.;
- 20 crimes de “prevaricação”, p. e p. pelo art. 333°, n.° 1 do C.P.M.;
- 1 crime de “favorecimento pessoal praticado por funcionário”, p. e p. pelo art. 332° do C.P.M.;

►como co-autor material com os arguidos B e C e na forma consumada de:
- 3 crimes de “corrupção passiva para acto ilícito”, p. e p. pelo art. 337°, n.° 1 do C.P.M.;
- 3 crimes de “favorecimento pessoal praticado por funcionário”, p. e p. pelo art. 332° do C.P.M.;
- 2 crimes de “abuso de poder”, p. e p. pelo art. 347° do C.P.M.;
- 1 crime de “violação de segredo”, p. e p. pelo art. 348° do C.P.M.;
- 1 crime de “violação de segredo de justiça”, p. e p. pelo art. 335°, n.° 1 do C.P.M.;
- 3 crimes de “acesso indevido”, p. e p. pelo art. 38°, n.° 2 da Lei n.° 8/2005;
- 5 crimes de “obtenção, utilização ou disponibilização ilegítima de dados informáticos”, p. e p. pelo art. 5°, n.° 2, e 12°, n.° 1 da Lei n.° 11/2009;

►como co-autor material com os arguidos C e D e na forma consumada de:
- 2 crimes de “prevaricação”, p. e p. pelo art. 333°, n.° 1 do C.P.M.;

►como co-autor material com os arguidos B, C e D e na forma consumada de:
- 1 crime de “corrupção passiva para acto ilícito”, p. e p. pelo art. 337°, n.° 1 do C.P.M.;
- 3 crimes de “prevaricação”, p. e p. pelo art. 333°, n.° 1 do C.P.M.; (cfr., fls. 5728 a 5826-v do processo principal, cuja cópia se encontra junta aos presentes autos, e que, como as que se vierem a referir, dão-se aqui como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Requerida e aberta a instrução, (a pedido da 4ª arguida D), procedeu-se, oportunamente, ao debate instrutório, proferindo-se posteriormente despacho onde, (no que agora releva), decidiu-se pronunciar o dito arguido A, ora recorrente, pelos mesmos crimes que lhe tinham sido imputados em sede da acusação pública atrás já referidos; (cfr., fls. 48-v a 145).

*

Remetidos os autos para julgamento, proferiu o Mmo Juiz a quem os mesmos foram distribuídos despacho convidando o Ministério Público a se pronunciar sobre o “estatuto processual” dos arguidos; (cfr., fls. 6190 do processo principal).

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Seguidamente, consignou o que segue:

“Por não haver no caso qualquer questão preliminar ou consequente que seja imediatamente conhecida pelo Tribunal, nos termos dos artigos 38º, n.º 4, e 36º, al. 3), ponto 4 da Lei de Bases da Organização Judiciária vigente e dos artigos 15º, 16º e 17º do Código de Processo Penal, o TSI constitui o Colectivo ampliado para julgar, em primeira instância, em processo comum criminal, os quatro arguidos, A, B, C e D, que foram pronunciados em Agosto de 2023, cujos factos criminosos que lhes foram imputados e os respectivos articulados da incriminação (que aqui se dão por integralmente reproduzidos) constam do despacho de pronúncia de fls. 6027v. a 6124 dos autos.
O local, data e hora da realização da audiência de julgamento serão designados pelo Exmo. Sr. Presidente do TSI, e todos os sujeitos do processo terão de comparecer atempadamente à audiência.
O caso encontra-se em fase de julgamento, nos termos dos artigos 179º, n.º 1, e 186º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, e do especial disposto no art.º 29º da Lei n.º 6/97/M, aplico oficiosamente a medida de prisão preventiva ao arguido A que foi pronunciado pela prática do crime de promoção ou fundação de associação ou sociedade secreta mencionado no n.º 1 do art.º 2º da lei supracitada, e aos outros três arguidos, B, C e D, que foram pronunciados pela prática do crime de participação ou apoio a associação ou sociedade secreta mencionado no n.º 2 do art.º 2º da mesma lei, uma vez que os crimes relacionados com associação ou sociedade secreta que lhes foram imputados são crimes graves, verificam-se fortes indícios da criminalidade, as circunstâncias da prática de crimes são igualmente graves, sendo necessário aplicar aos referidos arguidos a medida de prisão preventiva para excluir o perigo de perturbação da ordem pública (nota: a “ordem pública” aqui mencionada consiste na ordem constituída conjuntamente por todos os princípios e normas jurídicos aplicados em Macau) provocado pelos crimes relativos a associação ou sociedade secreta praticados pelos mesmos (cfr. o art.º 188º, al. c) do Código de Processo Penal), além disso, é de salientar que, como resultado do art.º 29º da lei supracitado, o Tribunal não necessita de ouvir os arguidos antes da aplicação da medida de prisão preventiva (cfr. o art.º 179º do Código de Processo Penal). Ora, fica prejudicado o conhecimento do recurso interposto em 4 de Setembro de 2023 pela arguida D contra a decisão proferida em 11 de Agosto de 2023 pela Juíza de instrução quanto à matéria de prisão preventiva (visto que, nos termos do art.º 87º do Código de Processo Civil por remissão do art.º 4º do Código de Processo Penal, Tribunal não deve realizar actos inúteis).
Passe imediatamente o mandado de detenção do Recorrente A para a execução da medida de prisão preventiva que lhe foi imposta (no momento da detenção do Recorrente, proceda à notificação do mesmo do conteúdo da pronúncia).
Após a designação da data da audiência de julgamento pelo Exmo. Sr. Presidente do TSI, execute os artigos 295º, n.ºs 2 e 3, e 296º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Posteriormente, os autos serão remetidos aos Juízes do Colectivo, cujo conteúdo existente irá com vista aos referidos Juízes.
(…)”; (cfr., fls. 146 a 146-v e 28 a 30 do Apenso).

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Inconformado com o assim decidido – que lhe decretou a aplicação da “medida de coacção de prisão preventiva” – traz o referido arguido A o presente recurso para, na sua motivação, e a final, apresentar as conclusões seguintes:

“a) O Recorrente A interpôs o presente recurso contra o “despacho” proferido em 8 de Setembro de 2023 pelo Mm.º Juiz do processo que ordenou a aplicação da medida de “prisão preventiva”, ora “despacho recorrido”.
b) O “despacho recorrido” padece do vício de “erro na aplicação da lei”, merecendo ser revogado.
Conforme os seguintes fundamentos:
c) Em 8 de Setembro de 2023, o Mm.º Juiz do processo proferiu despacho: “Remete-se o processo ao Ministério Público para se pronunciar sobre a aplicação das medidas de coacção aos quatro arguidos.”
d) O Digno Delegado do Procurador emitiu imediatamente o “parecer”.
e) O Recorrente A foi notificado da “pronúncia” e do “despacho” que ordenou a aplicação da medida de “prisão preventiva”.
f) Por fim, o Mm.º Juiz do processo só proferiu despacho em 11 de Setembro de 2023:
“Ao arguido no caso A é aplicada a medida coactiva de prestação do Termo de Identidade e Residência (deste modo, solicita-se ao Estabelecimento Prisional de Macau que preste auxílio na aplicação da aludida medida). Mais se solicita ao Estabelecimento Prisional de Macau que forneça o endereço do escritório e o número de telefone do advogado Dr. E ao sobredito arguido, por ter sido designado o referido advogado como defensor oficioso do arguido.
Seja comunicada a Sr.ª F, esposa do arguido A, da parte do conteúdo do despacho de fls. 6193 a 6193v. relativa à aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao referido arguido (junto se envia a cópia de fls. 6203).”
g) O Mm.º Juiz do processo aplicou ao Recorrente A a medida de “prisão preventiva” após o término das fases do inquérito, da acusação, da instrução (11 de Agosto de 2023) e da distribuição do processo.
h) Portanto, o momento da aplicação da medida de “prisão preventiva” ao Recorrente A é diferente do acostumado noutros processos, ou seja, a medida é geralmente aplicada na fase do inquérito.
i) À luz do “despacho de pronúncia” notificado ao Recorrente A, ele foi pronunciado: pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um “crime de promoção ou fundação de associação criminosa”, p. e p. pelos artigos 1º, n.º 1, e 2º, n.ºs 1, 3 e 5, todos da Lei n.º 6/97/M, de 30 de Julho;
Ademais, incluindo:
a) Contra o Recorrente A:
- Pela prática de cinco “crimes de corrupção passiva para acto ilícito”; um “crime de prevaricação”; quatro “crimes de favorecimento pessoal praticado por funcionário”; um “crime de falsificação praticada por funcionário”; um “crime de abuso de poder”; um “crime de violação de segredo de justiça”; um “crime de acesso indevido”; dois “crimes de inexactidão dos elementos”; e um “crime de riqueza injustificada”.
b) Contra o Recorrente A e a arguida B, como co-autores materiais:
- Pela prática de quatro “crimes de corrupção passiva para acto ilícito”; cinco “crimes de prevaricação”; dois “crimes de abuso de poder”; um “crime de violação de segredo de justiça”; dois “crimes de acesso indevido”; e um “crime de obtenção, utilização ou disponibilização ilegítima de dados informáticos”.
c) Contra o Recorrente A e as arguidas B e D, como co-autores materiais:
- Pela prática de onze “crimes de corrupção passiva para acto ilícito”; vinte “crimes de prevaricação”; e um “crime de favorecimento pessoal praticado por funcionário”.
d) Contra o Recorrente A e os arguidos B e C, como co-autores materiais:
- Pela prática de três “crimes de corrupção passiva para acto ilícito”; três “crimes de favorecimento pessoal praticado por funcionário”; dois “crimes de abuso de poder”; um “crime de violação de segredo”; um “crime de violação de segredo de justiça”; três “crimes de acesso indevido”; e cinco “crimes de obtenção, utilização ou disponibilização ilegítima de dados informáticos”.
e) Contra o Recorrente A e os arguidos C e D, como co-autores materiais:
- Pela prática de dois “crimes de prevaricação”.
f) Contra o Recorrente A e os arguidos B, C e D, como co-autores materiais:
- Pela prática de um “crime de corrupção passiva para acto ilícito”; e três “crimes de prevaricação”.
j) No “despacho recorrido”, o Mm.º Juiz do processo aplicou ao Recorrente A a medida de “prisão preventiva” por este ter sido pronunciado no “despacho de pronúncia” pela prática “do crime de promoção ou fundação de associação ou sociedade secreta mencionado no n.º 1 do art.º 2º” da Lei n.º 6/97/M, e nos termos do disposto no art.º 29º da mesma Lei: “Se o crime imputado for um dos previstos nos artigos 2º, 3º, 7º, alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 10º e n.º 2 do artigo 13º, o juiz deve aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva.”
k) Como o Mm.º Juiz do processo salientou no “despacho recorrido”: “Aplica-se a medida de prisão preventiva ao arguido A e aos três arguidos no caso B, C e D que foram pronunciados pela prática do crime de participação e apoio a associação ou sociedade secreta mencionado no n.º 2 do art.º 2º da mesma Lei, uma vez que os crimes relacionados com associação ou sociedade secreta que lhes foram imputados são crimes graves, verificam-se fortes indícios da criminalidade, as circunstâncias da prática de crimes são igualmente graves, sendo necessário aplicar aos referidos arguidos a medida de prisão preventiva para excluir o perigo de perturbação da ordem pública (nota: a “ordem pública” aqui mencionada consiste na ordem constituída conjuntamente por todos os princípios e normas jurídicos aplicados em Macau) provocado pelos crimes relativos a associação ou sociedade secreta praticados pelos mesmos (cfr. o art.º 188º, al. c) do Código de Processo Penal), além disso, é de salientar que, como resultado do art.º 29º da lei supracitado, o Tribunal não necessita de ouvir os arguidos antes da aplicação da medida de prisão preventiva (cfr. o art.º 179º do Código de Processo Penal).”
l) Todavia, face ao âmbito de aplicação da Lei n.º 6/97/M, como preceitua expressamente o n.º 1 do art.º 1º da lei que alude: “Para efeitos do disposto na presente lei, considera-se associação ou sociedade secreta toda a organização constituída para obter vantagens ou benefícios ilícitos cuja existência se manifeste por acordo ou convenção ou outros meios, nomeadamente pela prática, cumulativa ou não, dos seguintes crimes: (…).” (Negrito e sublinhado nosso)
m) Dos artigos 7º a 53º do “despacho de pronúncia” proferido contra inclusivamente o Recorrente A constam os factos relativos “à parte da associação criminosa” a constituir pelos arguidos (ora Recorrente, B, C e D).
n) O “despacho de pronúncia” usou o artigo 47º para pronunciar os arguidos (ora Recorrente A, B, C e D) pelo cometimento dos crimes previstos na Lei n.º 6/97/M, de 30 de Julho, nomeadamente: contra o Recorrente pela prática do “crime de promoção ou fundação de associação criminosa”, p. e p. pelos artigos 1º, n.º 1, e 2º, n.ºs 1, 3 e 5, todos da supracitada lei; e contra os arguidos B, C e D pela prática do “crime de participação ou apoio a associação criminosa”, p. e p. pelos artigos 1º, n.º 1, e 2º, n.º 2 da mesma lei.
o) Os factos constantes do “despacho de pronúncia” serão provados na audiência de julgamento.
p) Embora entenda o Mm.º Juiz do processo que há fortes indícios de que o Recorrente A cometeu os crimes que lhe foram imputados pelo “despacho de pronúncia”, quais crimes imputados pelo “despacho de pronúncia” servem para constituir os crimes pressupostos previstos no art.º 1º da Lei n.º 6/97/M?
q) Os crimes imputados, em co-autoria material e em consumação, ao Recorrente A e aos demais arguidos que se encontram em prisão preventiva, não se subsumem aos crimes taxativamente indicados nas alíneas a) a v) do n.º 1 do art.º 1º da Lei n.º 6/97/M.
r) Assim sendo, segundo o “princípio da legalidade” e o princípio de “nullum crimen, nulla poena sine praevia lege poenali”, o “despacho recorrido” que aplicou, nos termos do art.º 29º da Lei n.º 6/97/M, a medida de “prisão preventiva” ao Recorrente A, padece do vício de “erro na aplicação da lei”, merecendo ser revogado.
s) Pelo contrário, o art.º 193º do Código de Processo Penal dispõe especialmente na aplicação da medida de “prisão preventiva”.
t) Os crimes imputados pelo “despacho de pronúncia” ao Recorrente A e aos demais arguidos B, C e D não são acompanhados de agressão à vida, à integridade física ou à liberdade das pessoas, e não são crimes enumerados no n.º 3 do art.º 193º do aludido Código.
Nesta conformidade,
u) Devido à insatisfação dos pressupostos previstos no art.º 193º do Código de Processo Penal, o “despacho recorrido” que aplicou a medida de “prisão preventiva” ao Recorrente A, padece do vício de “erro na aplicação da lei”, merecendo ser revogado.
Ademais,
v) No que concerne aos pressupostos da aplicação da medida de “prisão preventiva” ao Recorrente A, o “despacho recorrido” citou o art.º 188º, al. c) do Código de Processo Penal, indicando: “(…), uma vez que os crimes relacionados com associação ou sociedade secreta que lhes foram imputados são crimes graves, verificam-se fortes indícios da criminalidade, as circunstâncias da prática de crimes são igualmente graves, sendo necessário aplicar aos referidos arguidos a medida de prisão preventiva para excluir o perigo de perturbação da ordem pública (nota: a “ordem pública” aqui mencionada consiste na ordem constituída conjuntamente por todos os princípios e normas jurídicos aplicados em Macau) provocado pelos crimes relativos a associação ou sociedade secreta praticados pelos mesmos (cfr. o art.º 188º, al. c) do Código de Processo Penal), (…).”
w) Com efeito, o art.º 188º do Código de Processo Penal preceitua concretamente as condições de aplicação das medidas.
x) O alegado “perigo de perturbação da ordem pública” é um facto oculto e inexistente que, porém, pode ocorrer.
y) Conforme a nota detalhada sobre a aludida disposição que está exposta pelo académico do Direito Processual Penal de Macau, Dr. Manuel Leal-Henriques, na sua obra (ANOTAÇÃO E COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DE MACAU, VOLUME II (Artigos 176º a 361º), Maio de 2014, CFJJ, p.p. 65 e 66).
z) De acordo com o facto alegado no art.º 14º do “despacho de pronúncia”, indica-se expressamente: “Pelo menos, de 2010 a 2021, os arguidos A, B e C constituíram conjuntamente uma associação criminosa liderada pelo arguido A e com o objectivo de obter vantagens ou benefícios ilícitos, que coadjuva especificamente os indivíduos investigados nos inquéritos a resolver os casos (“demolir os casos”), permitindo-lhes fugir da punição legal ou obter resultado que lhes favorece.”
aa) No facto alegado no art.º 16º do mesmo “despacho de pronúncia”, indica-se expressamente: “Pelo menos, de Maio de 2012 a Agosto de 2015, a arguida D, na qualidade de advogada, aderiu à aludida associação criminosa, tornando-se membro da mesma.”
bb) A defesa contra os factos imputados pelo “despacho de pronúncia” ao Recorrente A só terá lugar na audiência de julgamento, contudo, segundo o “princípio de presunção de inocência”, o “princípio de imediação” e o “princípio do contraditório”, face aos artigos 14º e 16º do “despacho de pronúncia”, pelo menos, a partir de 2021, a “associação criminosa” em apreço já não existe.
cc) Por cima, o Recorrente A começou a gozar a licença sem vencimento de longa duração por dois anos, a partir de 7 de Fevereiro de 2022.
dd) Mais, como aponta claramente o “despacho recorrido”: “O caso encontra-se em fase de julgamento, (…).”
ee) O pior é que o Exmo. Sr. Presidente do Tribunal de Segunda Instância já designou a data para a audiência de julgamento.
ff) Portanto, não se verifica qualquer “perigo de perturbação da ordem ou tranquilidade pública, ou perigo de continuação da actividade criminosa.”
gg) Não há prova suficiente e manifesta que demonstre que ainda existe a “associação criminosa” abordada no caso e, pelo contrário, de acordo com o “despacho de pronúncia”, a “associação criminosa” já não existe, pelo que o “despacho recorrido” que aplicou a medida de “prisão preventiva” ao Recorrente A, padece do vício de “erro na aplicação da lei”, merecendo ser revogado.
hh) No presente caso, a Mm.ª Juíza do TSI, Dr.ª Chao Im Peng, é a magistrada de instrução que procedeu ao primeiro interrogatório judicial dos arguidos B e C, e, mais tarde, da arguida D.
ii) A Mm.ª Juíza do TSI, Dr.ª Chao Im Peng, também procedeu às “Declarações para memória futura” das testemunhas G e H, e, por fim, ao “Debate instrutório”.
jj) Todavia, o Recorrente A ficou detido desde 8 de Setembro de 2023, foi-lhe aplicada a medida de “prisão preventiva” e foi encaminhado para o Estabelecimento Prisional de Macau, mas nunca se realizou o “Primeiro interrogatório judicial” ou “Primeiro interrogatório não judicial” do Recorrente.
kk) O Recorrente A foi notificado do “despacho” proferido em 20 de Setembro de 2023 pela Mm.ª Juíza do TSI, Dr.ª Chao Im Peng, que declarou o “impedimento”.
ll) O Mm.º Juiz do processo não procedeu ao “Primeiro interrogatório judicial” ou “Primeiro interrogatório não judicial” do Recorrente A, antes da prolação do “despacho recorrido”, pelo que tal despacho padece do vício de “erro na aplicação da lei”, merecendo ser revogado.
mm) O pior é que o Recorrente A nunca recebeu a “acusação”; a par disso, dos autos não consta o termo da notificação do Recorrente feita por edital e/ou anúncio, verificando-se a violação dos artigos 1º e 7º do Código de Processo Penal, em suma, sendo violadas as regras gerais sobre “notificações”, merecendo a revogação.
nn) Enfim, o “despacho recorrido” aponta expressamente: “(…), além disso, é de salientar que, como resultado do art.º 29º da lei supracitado, o Tribunal não necessita de ouvir os arguidos antes da aplicação da medida de prisão preventiva (cfr. o art.º 179º do Código de Processo Penal).”
oo) Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 179º do Código de Processo Penal: “A aplicação referida no número anterior é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido (…).”
pp) Todavia, o Mm.º Juiz do processo não ouviu o Recorrente A sobre a medida de coacção a aplicar e/ou aplicada, nem lhe pediu para se pronunciar sobre o assunto, mesmo que no “despacho recorrido” não tenha sido assinalada qualquer “impossibilidade” ou “inconveniência” da audição prévia do Recorrente.
qq) Outrossim, o Mm.º Juiz do processo também não ouviu o defensor do Recorrente à dada altura, advogado Dr. E, sobre a medida de coacção a aplicar e/ou aplicada, nem lhe pediu para se pronunciar sobre o assunto.
rr) Pelo contrário, antes da prolação do “despacho recorrido”, o Mm.º Juiz do processo apenas pediu ao Ministério Público para se pronunciar sobre a aplicação da medida de coacção aos quatro arguidos.
ss) O “despacho recorrido” violou o “princípio do contraditório” do Direito Processual Penal, merecendo ser revogado.
tt) No entanto, conforme as práticas judiciais, a nulidade pela violação do “princípio do contraditório” depende da “arguição”. (Ac. do TSI de 02.03.2006, Proc.º n.º 62/2006) (Ac. do TSI de 13.12.2007, Proc.º n.º 633/2007)
uu) O Recorrente A apresentou tempestivamente em 18 de Setembro de 2023 ao Mm.º Juiz do processo do TSI a “arguição”, ao abrigo do n.º 1 do art.º 110º do Código de Processo Penal. (Vide anexo 1)
vv) Porém, o prazo para interposição de recurso contra o “despacho recorrido” vai terminar brevemente e o Mm.º Juiz do processo do TSI ainda não respondeu à “arguição” apresentada pelo Recorrente A.
ww) Por conseguinte, o Recorrente A recorreu do “despacho recorrido” com base no mesmo fundamento (violação do “princípio do contraditório”), requerendo ao Mm.º Juiz que revogue o “despacho recorrido”.
Pelo exposto, o “despacho recorrido” padece do vício de aplicação da lei, nomeadamente a violação do “princípio da legalidade” e do princípio de “nullum crimen, nulla poena sine praevia lege poenali”; violação do art.º 188º, al. c) do Código de Processo Penal; violação do “Primeiro interrogatório judicial de arguido detido” e do “Primeiro interrogatório não judicial de arguido detido” previstos nos artigos 128º e 129º do Código de Processo Penal; violação das “Regras gerais sobre notificações” previstas no art.º 100º do Código de Processo Penal; e violação do “princípio do contraditório” previsto no n.º 2 do art.º 179º do Código de Processo Penal, por isso, deve o “despacho recorrido” ser revogado”; (cfr., fls. 3 a 21 e 4 a 18 do Apenso).

*

Em resposta, produz a Ilustre Procuradora-Adjunta do Ministério Público as seguintes conclusões:

“1. Nas alegações do recurso, de antemão, entendeu o Recorrente A que os crimes que lhe tinham sido imputados não se subsumiam aos crimes taxativamente indicados nas alíneas a) a v) do n.º 1 do art.º 1º da Lei n.º 6/97/M (Lei da Criminalidade Organizada), pelo que o acto em suspeito praticado pelo mesmo não constituía crime de associação ou sociedade secreta, p. e p. pelo art.º 2º da mesma lei (estamos convictos de que o Recorrente pretendia manifestar essa ideia, embora esta não tenha sido expressamente revelada), apontando que o despacho recorrido padecia do vício de erro na aplicação da lei por ter aplicado a medida de coacção de prisão preventiva ao Recorrente, ao abrigo do art.º 29º da lei supracitada.
2. Finda a leitura do texto do art.º 1º da Lei n.º 6/97/M (Lei da Criminalidade Organizada), pelo termo “nomeadamente” empregado no texto do referido artigo, constata-se que as actividades de associação criminosa indicadas nas alíneas a) a v) do n.º 1 do art.º 1º da lei em apreço são apenas exemplos enumerados e não todos os crimes indicados de forma taxativa.
3. Em suma, considera-se “associação ou sociedade secreta toda a organização constituída para obter vantagens ou benefícios ilícitos cuja existência se manifeste por acordo ou convenção ou outros meios”, e das alíneas a) a v) apenas constam os exemplos comuns dos “meios de manifestação” de acordo com o legislador. Mesmo que não se verifique qualquer um dos exemplos, como o presente caso, ainda se pode concluir que o acto praticado pelo Recorrente A constitui o crime em causa por o acto ter revelado a organização da associação criminosa.
4. Conforme tanto o art.º 29º da Lei da Criminalidade Organizada como o art.º 186º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, a aplicação de medida de coacção tem como pressuposto a existência de fortes indícios da criminalidade. Vejamos os indícios da criminalidade revelados no caso.
5. Nos termos do disposto nos artigos 186º e 188º do Código de Processo Penal, impõe-se ao agente a prisão preventiva quando houver fortes indícios de prática de crime punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos; se verificar o perigo de fuga, de perturbação do decurso do processo ou de perturbação da ordem ou tranquilidade públicas; e outras medidas de coacção menos gravosas não forem suficientes para prevenirem, adequada e proporcionalmente, qualquer uma das situações indicadas no art.º 188º.
6. Na verdade, conforme os elementos constantes dos autos, sobretudo as declarações dos arguidos, os depoimentos das pessoas suspeitas de serem corruptores e das demais testemunhas arroladas nos autos, os registos de comunicações entre os suspeitos, os documentos e dados informáticos encontrados no domicílio e no local de trabalho do Recorrente A e dos demais arguidos, e os registos documentais fornecidos pela Administração, pelos bancos e por demais entidades particulares, em conjugação com a análise objectiva do Comissariado contra a Corrupção, averigua-se que as provas são compatíveis com os factos criminosos expostos no despacho de pronúncia, pelo que se conclui indubitavelmente que há “fortes indícios” de que o Recorrente A praticou os crimes imputados pelo despacho de pronúncia, mormente o “crime de promoção ou fundação de associação criminosa”.
7. Os crimes supramencionados não só reúnem os pressupostos exigidos pelo art.º 186º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, assim como o “crime de associação ou sociedade secreta” é o crime que, nos termos do art.º 29º da Lei n.º 6/97/M (Lei da Criminalidade Organizada), em caso da sua verificação, o juiz deve aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva.
8. Quando a legislação exige imperativamente que, em caso de verificação de fortes indícios da prática dos actos previstos no art.º 2º da mesma lei (Lei da Criminalidade Organizada), ao agente é obrigada a aplicação da medida de prisão preventiva, presumindo-se a verificação dos elementos consagrados no art.º 188º do Código de Processo Penal e não sendo necessária a confirmação.
9. Deste modo, entendemos que é improcedente esta parte do recurso interposto pelo Recorrente A.
10. Embora o Recorrente A tenha invocado que, segundo a pronúncia, pelo menos, a partir de 2021, a associação criminosa em causa já não existe, pelo que não se verifica qualquer perigo de perturbação da ordem ou tranquilidade pública, ou perigo de continuação da actividade criminosa, não concordamos com isso.
11. É de salientar que uma boa parte das provas no caso é depoimentos das pessoas suspeitas de serem corruptores ou das pessoas que os arguidos, incluindo o Recorrente A, conhecem, por isso, a posição das aludidas pessoas como depoentes não está completamente firme em comparação com as pessoas que não tenham relação de interesses com os arguidos.
12. Nesta conformidade, a libertação do Recorrente A é facilitá-lo a contactar e convencer as testemunhas, de modo a afectar a uniformização e neutralidade dos depoimentos, verificando-se assim o perigo de perturbação do decurso do processo referido na alínea b) do art.º 188º do Código de Processo Penal.
13. Além do mais, como afirma o Mm.º Juiz do processo do TSI, o Recorrente A foi suspeito da prática do crime de associação criminosa, que, no fundo, causou perigo de perturbação da ordem pública.
14. O Recorrente A alegou firmemente que, pelo menos, a associação criminosa já não existia a partir de 2021 e, em consequência, também não se verificavam os respectivos perigos. Tese essa não merece razão nenhuma, já que o despacho de pronúncia empregou a expressão – a associação criminosa foi constituída “pelo menos, no período de 2010 a 2021” – por a ocorrência dos factos criminosos imputados aos arguidos ser concentrada no período entre 2010 e 2021, a par disso, empregou o termo “pelo menos” para demarcar a duração da associação criminosa. De facto, isto é meramente uma forma de expressão para garantir a aplicação da produção de prova, com mais flexibilidade, durante a audiência de julgamento, não correspondendo evidentemente à afirmação de que a associação deixe de existir a partir de 2021.
15. Justamente, pelo contrário, nos autos não há indício nenhum de que a associação em causa deixou de existir a partir de 2021. Não obstante, como referiu o Recorrente A, desde 2022, ele abandonou temporariamente o posto de trabalho que lhe permitisse a prática das actividades criminosas e previu que regressaria ao trabalho em 2024, mas, conforme os registos de comunicações, os demais arguidos mantiveram em contacto com o Recorrente, a fim de prosseguir o exercício das actividades em questão. Daí se vislumbra que a base da associação ainda existe, podendo essa associação continuar o seu funcionamento efectivo em qualquer momento.
16. Com efeito, a associação criminosa em causa, desde a sua formação até ao funcionamento, manipulou cuidadosamente todos os detalhes, obteve reiteradamente benefícios durante vários anos, bem como indulgenciou os seus membros, incluindo o Recorrente A, a praticarem livremente as respectivas actividades, não só perturbando a ordem pública e a paz social, mas também elevando o perigo de continuação de actividades criminosas.
17. Ademais, pela atitude não cooperativa adoptada pelo Recorrente A na fase do inquérito no caso, mormente, o Recorrente, depois de ser notificado para realizar o interrogatório, prometeu a sua comparência para o efeito, mas, enfim, não apareceu, averigua-se a existência do perigo de fuga do mesmo.
18. Como é de meridiana clareza, com a pleno preenchimento dos requisitos legais, se não se aplicar imediatamente a medida de prisão preventiva ao Recorrente A, a validade do processo do caso será dificilmente garantida, sobretudo obstruirá a execução da futura sentença condenatória. É possível prever que a aplicação da medida de coacção menos gravosa ao Recorrente A não será suficiente para prevenir, adequada e proporcionalmente, qualquer uma das situações indicadas no art.º 188º do Código de Processo Penal.
19. Assim sendo, entendemos que também é improcedente esta parte do recurso interposto pelo Recorrente A.
20. Por fim, o Recorrente A ainda entendeu que ele não foi interrogado nem notificado do conteúdo da acusação antes do despacho recorrido ter tomado a decisão de aplicação da medida de prisão preventiva, bem como invocou a irregularidade do processo por não ter sido ouvido antes da prolação do despacho recorrido.
21. No que concerne à irregularidade do processo invocado pelo Recorrente A, devido à falta da audição do mesmo antes da prolação do despacho recorrido, como foi referido pelo Recorrente, ele tinha apresentado ao TSI a sua arguição e, por seu turno, o Mm.º Juiz do processo do TSI, tendo ouvido o Ministério Público, em 29 de Setembro de 2023, proferiu o despacho que negou provimento à arguição, por conseguinte, fica prejudicado o conhecimento desta parte do recurso.
22. Quanto à questão colocada pelo Recorrente A no que respeita à falta do interrogatório ou da notificação da acusação antes da aplicação da medida, desde logo, antes da prolação do despacho recorrido, não havia condições objectivas para interrogar o Recorrente A ou o notificar do despacho de pronúncia. Aliás, o Recorrente A, sendo nosso ex-colega, ou o seu defensor devia saber que nunca existe legislação que disponha que a aplicação da prisão preventiva ou das demais medidas de coacção tem como pressuposto o interrogatório ou a notificação da decisão de pronúncia. Não temos ideia nenhuma sobre qual o sentido de o Recorrente expor esses argumentos.
23. Assim sendo, entendemos que esta parte do recurso interposto pelo Recorrente A é igualmente improcedente”; (cfr., fls. 31 a 36 e 19 a 27 do Apenso).

*

Adequadamente processados os autos, urge decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

2. Vem interposto recurso de uma decisão judicial (interlocutória) que aplicou ao ora recorrente a “medida de coacção de prisão preventiva”.

–– Antes de mais, duas breves “notas preliminares”.

A primeira, para consignar que atento o “estatuto profissional” do arguido, ora recorrente – Procurador-Adjunto do Ministério Público – o “procedimento criminal judicial” a que atrás se fez referência teve lugar no Tribunal de Segunda Instância, a esta Instância cabendo assim conhecer do recurso da referida decisão; (cfr., art. 36°, n.° 3 e 44° da “Lei de Bases da Organização Judiciária”, com a redacção introduzida pela Lei n.° 4/2019, e art. 203° do C.P.P.M.).

A segunda, para se deixar igualmente consignado que, não obstante ter o ora recorrente arguido a “nulidade do despacho ora recorrido”, e de, sobre o mesmo ter recaído decisão julgando-a inverificada, tal não constitui óbice a que, com o presente recurso, volte a reclamar pela sua revogação, nesta sede voltando a colocar a antes já suscitada nulidade.

Isto visto e dito, vejamos.

2.1 Pois bem, como sabido é, as “medidas de coacção e de garantia patrimonial” são vulgarmente entendidas como “meios processuais” que tem como finalidade acautelar a eficácia do processo quer quanto ao seu normal prosseguimento quer quanto às decisões que nele vierem a ser proferidas.

São, também – normalmente – considerados como “pressupostos” da aplicação da “prisão preventiva” a um arguido – medida de coacção aplicada e ora contestada pelo recorrente – a existência de “fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos”, (cfr., art. 186°, n.° 1 al. a) do C.P.P.M.), e, além dos requisitos ou condições de “carácter geral” (não cumulativos) descritos nas “alíneas a) a c) do art. 188° do C.P.P.M.”, (ou seja, visando evitar a “fuga” ou o “perigo de fuga”, o “perigo de perturbação do processo, nomeadamente, para a aquisição e conservação ou veracidade da prova”, e, “em razão da natureza e circunstâncias do crime ou personalidade do arguido, o perigo de perturbação da ordem ou tranquilidade públicas ou da continuação criminosa”), os de “carácter específico” da “inadequação” ou “insuficiência” das restantes medidas de coacção referidas nos art°s 182° e segs. do mesmo Código, havendo sempre a necessidade de se fazer um juízo sobre a “adequação” e “proporcionalidade” da medida, consubstanciadas na justeza da prisão preventiva relativamente à gravidade do crime em questão e às sanções que, previsivelmente, venham a ser aplicadas ao caso, acautelando-se, sobretudo, a descoberta da verdade, através do normal desenvolvimento do processo, a par do restabelecimento da paz jurídica abalada pela prática do crime, (sendo, pois, meros instrumentos processuais da “eficácia do procedimento penal” e da “boa administração da justiça”), não se podendo, de maneira alguma olvidar que, a par de tais “valores”, em causa está também e igualmente a “protecção de direitos fundamentais” – como são os direitos à “liberdade” e à “segurança” – sendo, por isso, necessário fazer uma ponderação casuística dos interesses em conflito para determinar a respectiva prevalência e grau ou medida da sua restrição; (sobre a matéria, cfr., v.g., José António Barreiros in
“As medidas de coação e de garantia patrimonial no novo C.P.P.”, B.M.J. 371°-5, 1987; Jorge de Figueiredo Dias in, “Sobre os sujeitos processuais no novo C.P.P.”, Jornadas de Direito Processual Penal: O novo C.P.P., Coimbra, 1988; Odete Maria de Oliveira in, “As medidas de coação no novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal: O novo C.P.P., Coimbra, 1988; João Castro Sousa in, “Os meios de coação no novo código de processo penal”, Jornadas de Direito Processual Penal: O novo C.P.P., Coimbra, 1988; Teresa Pizarro Beleza in, “Apontamentos de direito processual penal”, Vol. II, Lisboa, 1993, e in “Prisão preventiva e direitos do arguido”, Que Futuro para o Direito Processual Penal?: Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do C.P.P. Português, Coimbra, 2009; José Manuel de Araújo Barros in, “Critérios da Prisão Preventiva”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.° 3, Ano 10, 2000; Maria João Antunes in, “O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coação”, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, pág. 1237 a 1268; Eduardo Maia Costa in, “Prisão preventiva: medida cautelar ou pena antecipada?”, Revista do Ministério Público, Ano 24, n.° 96, Lisboa, 2003; Luiz Roberto Cigona Faggioni in, “Prisão preventiva, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível e prisão decorrente de decisão de pronúncia: considerações”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 11, n.° 41, São Paulo, 2003; Fernando Gonçalves e Manuel João Alves in, “A Prisão Preventiva e as Restantes Medidas de Coação – A providência do Habeas Corpus em virtude de Prisão Ilegal”, Coimbra, 2003, e in “As Medidas de Coação no Processo Penal Português”, Coimbra, 2011; Frederico Isasca in, “A prisão preventiva e restantes medidas de coação”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Lisboa, 2004; João Luís de Moraes Rocha in, “Ordem Pública e Liberdade Individual – Um estudo sobre a prisão preventiva”, Coimbra, 2005; Marcellus Polastri Lima in, “A Tutela Cautelar no Processo Penal”, Rio de Janeiro, 2005; Carlos Alberto Simões de Almeida in, “Medidas cautelares e de polícia do processo penal em direito comparado”, Coimbra, 2006; Manuel Joaquim Braz in, “As medidas de coação no código de processo penal revisto”, C.J., Ano XXXII, tomo IV, 2007, pág. 5 a 11; Sónia Fidalgo in, “Medidas de coação: aplicação e impugnação: breves notas sobre a revisão”, Revista do Ministério Público, Ano 31, n.° 123, 2010; Stéphanie Mendes de Sousa in, “Presunção de inocência no processo penal português: em particular, na aplicação de medidas de coação, com especial relevância para a prisão preventiva”, Universidade Lusíada, 2010; Denis Aceti Brasil Ferreira in, “A prisão preventiva de ofício e o processo penal tipo acusatório”, 2014; Mariana Filipa Lopes Alves in, “Prisão Preventiva Ilegal e Respetivo Direito a Indemnização”. Universidade Católica, 2015; João Alves Manuel e Fernando Gonçalves in, “Crime: Medidas de Coação e Prova”, Coimbra, 2015; Eduardo Vera-Cruz Pinto in, “Prisão Preventiva e Presunção de Inocência”, Cadernos Jurídicos, São Paulo, Ano 17, n.° 43, 2016, pág. 29 a 36; José Tadeu da Costa Monteiro in, “Medidas de Coação Análise e Perspetivas”, Universidade Lusíada, 2017; Carlos Pinto de Abreu in, “Presunção de inocência, medidas de coacção, publicidade, dignidade e respeito”, Penal e Processo Penal, Vol. 2, n.° 2, 2017, pág. 59 a 79; Centro de Estudos Judiciários, “Medidas de Coação”, 2020; Paulo Maycon Costa da Silva in, “Enquadramento Jurídico-Constitucional da Prisão Preventiva”, Universidade de Coimbra, 2021).

Por sua vez, e como cremos que adquirido também está, a expressão “fortes indícios”, significa – essencialmente – que a prova recolhida tem de deixar uma clara e nítida impressão de responsabilidade do arguido, em termos de ser muito provável a sua condenação, equiparando-se a tais indícios os vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer que há crime e que é o arguido o seu responsável, pois que no momento da aplicação de uma medida de coacção (ou de garantia patrimonial) não se pode (ou deve) exigir uma “comprovação categórica”, (apodíctica e irrefutável), da existência dos referidos “pressupostos”, mas tão só, face ao estado dos autos e de outras circunstâncias, de uma “convicção segura e objectivável” (com os elementos recolhidos nos autos) de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado(s) crime(s).

Sobre estes “indícios”, ensinava Germano Marques da Silva que:

“Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.
(…) A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulta uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (…); não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.
A lei não se basta, porém, como um mero juízo subjetivo, mas antes exige um juízo objetivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação”; (in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., 2000, pág. 179).

Todavia, vem colhendo cada vez maior número de adeptos uma orientação mais exigente (e, quiçá, mais compatível com os princípios do processo penal, mormente os princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo), entendimento esse assente no critério de uma possibilidade “particularmente qualificada” ou uma “probabilidade elevada de condenação”, segundo a qual os indícios serão suficientes quando os vários elementos de prova disponíveis criem no juiz a convicção de uma alta probabilidade de o arguido, em julgamento, vir a ser condenado.

Neste sentido cremos aliás que já se pronunciava o Prof. Figueiredo Dias que considerava que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição”; (in “Direito Processual Penal”, Vol. I, 1984, pág. 133, podendo-se, ainda sobre o tema ver, Castanheira Neves in, “Sumários de Processo Criminal”, lições policopiadas, 1968, pág. 38 a 39; Maria Thereza Rocha de Assis Moura in, “A prova por indícios no processos penal”, São Paulo, 1994; Roque de Brito Alves in, “Dos Indícios no Processo Penal”, Rio de Janeiro, 2003; Jorge Noronha e Silveira in, “O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, 2004, pág. 171; Dennis Otte Lacerda in, “Breve Perspectiva da Prova Indiciária no Processo Penal”, Curitiba, 2006; Julio César Cordón Aguilar in, “Prueba indiciaria y presunción de inocencia en el proceso penal”, Salamanca, 2011; Marta Sofia Neto Morais Pinto in, “A prova indiciária no processo penal”, Revista do Ministério Público, Ano 32, n.° 128, 2011; Thomas J. Gardner e Terry M. Anderson in, “Criminal Evidence: Principles and Cases”, 8ª ed., 2012; Ronald J. Allen e Alex Stein in, “Evidence, Probability, and the Burden of Proof”, Arizona Law Review, n.° 55, 2013; e Deltan Martinazzo Dallagnol in, “As lógicas das provas no processo: prova direta, indícios e presunções”, 2015).

Isto dito, vejamos o que nos dizem os presentes autos sobre a existência de tais “fortes indícios”.

Ora, em nossa opinião, é manifesta a sua existência.

Com efeito, (e como se deixou relatado), não se pode (desde já) olvidar que, tão só por assim se ter entendido, se veio a deduzir a “acusação pública” que atrás se fez referência, havendo, ainda, que se ter presente que tal “juízo acusatório” passou, (no caso, integralmente), pelo crivo da Instrução, onde, oportunamente, e encerrado o debate instrutório, se veio a proferir “despacho de pronúncia” que confirmou (em toda a sua extensão) o teor daquela, com a (total) manutenção dos crimes que ao ora recorrente antes tinham sido imputados.

E, nesta conformidade, (atentando, nomeadamente, na redacção do art. 265°, n.° 1 e 2, quanto ao “despacho de acusação”, e do art. 289°, n.° 2 e 3 do C.P.P.M., quanto ao “despacho de pronúncia”), clara se nos parece a solução a adoptar, muito mais não se mostrando necessário consignar sobre o “aspecto” em questão.

Porém, in casu, vale a pena consignar que uma outra “particularidade” se nos apresenta de notar.

É que – como se deixou relatado – a aplicação da prisão preventiva ora em questão foi objecto de decisão prolatada pelo Mmo Juiz a quem o processo foi distribuído para realização de “julgamento”, (cfr., art. 293° e segs. do C.P.P.M.), que, (como se alcança do próprio despacho recorrido), não deixou de proceder ao “saneamento do processo”, em sede do qual efectuou, certamente, uma nova análise sobre toda a matéria probatória criminalmente relevante e existente nos autos, assim como uma nova ponderação sobre “situação processual” do ora recorrente, (e restantes arguidos levados a julgamento).

Não se nega que, quiçá, (muito) vulgar não seja que uma decisão como a ora em questão (apenas) venha a ser tomada na fase processual a que se fez referência, (do julgamento).

Todavia, e ainda que tal aspecto podia ter sido objecto de apreciação e pronúncia (judicial) em momento anterior, tanto em sede de Inquérito, como na fase da Instrução, o certo é que, (por motivos que agora não relevam), não veio a ocorrer.

Contudo, (ainda que assim tenha sucedido), e, especialmente, em face do estatuído no art. 179°, n.° 1 do C.P.P.M. – onde se prescreve que “As medidas de coacção e de garantia patrimonial são aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito a requerimento do Ministério Público e depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o Ministério Público” – nada se nos mostra constituir legal “obstáculo” ou “impedimento” para que a medida de coacção em questão viesse a ser imposta na fase processual em que o foi, ou seja, de “julgamento”, (não sendo também de olvidar que, independentemente da sua adequação e justificação substancial, decisões similares são muitas vezes proferidas após a leitura da decisão final e perante eventual recurso da mesma pelo arguido).

Importa, é que, como medida “privativa da liberdade”, seja “adequada”, (e “necessária”), e “proporcional”.

E, quanto a isto, se bem ajuizamos, da (nova) análise que fizemos aos autos – cujo processo principal foi solicitado ao Tribunal de Segunda Instância para tal efeito, (e, também, do conhecimento que do mesmo processo possuímos a título oficioso em virtude da apreciação de idêntico recurso dos 2ª e 3° co-arguidos, e que foi decidido por Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 30.06.2023, Proc. n.° 56/2023), cumpre então dizer que da referida apreciação que nos foi possível fazer, assim nos parece ser a “situação” agora em causa no que toca à existência dos referidos “fortes indícios” da prática dos crimes pelos quais foi o ora recorrente “acusado” e pronunciado, assim como da “adequação” da medida à situação dos presentes autos; (aliás, e como se referiu, idêntica situação ocorreu com os aludidos co-arguidos do ora recorrente, nenhum motivo se vislumbrando para que agora se viesse a adoptar diverso entendimento).

2.2 Continuemos, (passando-se então a ponderar com mais pormenor dos ditos aspectos da “adequação” e “proporcionalidade”).

Vejamos.

Nos termos do art. 1° da Lei n.° 6/97/M, (também conhecida como a “Lei da Criminalidade Organizada”, e que foi objecto de alteração pelas Leis n°s 2/2006, 8/2017 e 16/2021):

“1. Para efeitos do disposto na presente lei, considera-se associação ou sociedade secreta toda a organização constituída para obter vantagens ou benefícios ilícitos cuja existência se manifeste por acordo ou convenção ou outros meios, nomeadamente pela prática, cumulativa ou não, dos seguintes crimes:
a) Homicídio e ofensas à integridade física;
b) Sequestro, rapto e tráfico internacional de pessoas;
c) Ameaça, coacção e extorsão a pretexto de protecção;
d) Exploração de prostituição, lenocínio, lenocínio de menor e pornografia de menor;
e) Usura criminosa;
f) Furto, roubo e dano;
g) Aliciamento ou instigação e auxílio à migração ilegal e invocação de casamento, união de facto, adopção ou contrato de trabalho simulados para obtenção de autorização de residência ou autorização especial de permanência na Região Administrativa Especial de Macau para outrem;
h) Exploração ilícita de jogo, de lotarias ou de apostas mútuas, e cartel ilícito para jogo;
i) Ilícitos relacionados com corridas de animais;
j) Usura para jogo;
l) Importação, exportação, compra, venda, fabrico, uso, porte e detenção de armas e de munições proibidas e substâncias explosivas ou incendiárias, ou de quaisquer engenhos ou artefactos adequados à prática dos crimes a que se referem os artigos 264.º e 265.º do Código Penal;
m) Ilícitos de recenseamento e eleitorais;
n) Especulação sobre títulos de transporte;
o) Falsificação de moeda, de títulos de crédito, de cartões de crédito e de documentos de identificação e de viagem;
p) Corrupção activa;
q) Extorsão de documento;
r) Retenção indevida de documentos de identificação e de viagem;
s) Abuso de cartão de garantia ou de crédito;
t) Operações de comércio externo fora dos locais autorizados;
u) Branqueamento de capitais;
v) Posse ilegal de meios técnicos susceptíveis de intromissão activa ou passiva nas comunicações das forças e serviços policiais ou de segurança.
2. Para a existência da associação ou sociedade secreta referida no número anterior não é necessário que:
a) Tenha sede ou lugar determinado para reuniões;
b) Os membros se conheçam entre si e se reúnam periodicamente;
c) Tenha comando, direcção ou hierarquia organizada que lhe dê unidade e impulso; ou
d) Tenha convenção escrita reguladora da sua constituição ou actividade, ou da distribuição dos seus lucros ou encargos”.

E, em face do “advérbio” – “nomeadamente” – ínsito no n.° 1 do art. 1° atrás transcrito, evidente se nos mostra de concluir desde já que o catálogo de crimes referidos nas diversas alíneas do mesmo preceito – “a” a “v” – é meramente “exemplificativo”, adequada não se mostrando, (como – bem – nota a Ilustre Procuradora-Adjunta), a consideração que o ora recorrente tece no sentido de não lhe poder ser imputado o crime de “associação ou sociedade secreta” dado que os restantes crimes que lhe são assacados não constituem nenhum dos que se encontram nas ditas alíneas previstos.

De facto, não se tratando de uma “enumeração taxativa”, patente está a total falta de valia de tal argumento.

Por sua vez, importa ter presente que nos termos do art. 2° do mesmo diploma legal:

“1. Quem promover ou fundar uma associação ou sociedade secreta é punido com pena de prisão de 5 a 12 anos.
2. Quem fizer parte de uma associação ou sociedade secreta ou a apoiar, nomeadamente:
a) fornecendo armas, munições, instrumentos de crime, guarda ou locais para as reuniões,
b) angariando subscrições, exigindo ou concedendo fundos ou qualquer auxílio para que se recrutem novos membros, designadamente, aliciando ou fazendo propaganda,
c) tendo a guarda ou o controlo de livros, extractos de livros ou contas de associação ou sociedade secreta, de relação de membros ou de trajes especificamente adequados às cerimónias rituais da associação ou sociedade,
d) participando em reuniões ou cerimónias rituais de associação ou sociedade secreta, ou
e) utilizando senhas ou códigos de qualquer natureza, característicos de associação ou sociedade secreta, é punido com pena de prisão de 5 a 12 anos.
3. Quem exercer funções de direcção ou chefia em qualquer grau em associação ou sociedade secreta, nomeadamente utilizando senhas, códigos ou numerais característicos dessas funções, é punido com pena de prisão de 8 a 15 anos.
4. A pena prevista no n.º 1 é agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo se o recrutamento, o aliciamento, a propaganda ou a exigência de fundos se dirigirem a menores de 18 anos.
5. Se os crimes previstos nos números anteriores forem praticados por funcionário, as respectivas penas são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.

E nesta conformidade, estando o ora recorrente (acusado e) pronunciado pelo crime de “promoção ou fundação de uma associação ou sociedade secreta”, ao qual cabe a moldura penal aplicável de 5 a 12 anos de prisão, indiscutível se nos apresenta assim que, in casu, verificado está o pressuposto da existência de “fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos”; (cfr., art. 186°, n.° 1, al. a) do C.P.P.M.).

Aqui chegados, em boa verdade, tão só “duas questões” importa (ainda) apreciar e decidir: tem pois a ver com a – atrás já referida – “adequação e proporcionalidade da medida de coacção aplicada”, e com a “falta da prévia audiência” do recorrente.

Comecemos pela primeira.

Pois bem, temos para nós que sábias são as palavras de H. Jescheck no sentido de que o “direito penal não só restringe a liberdade, mas que também cria liberdades”, pois que também prossegue fins individuais de liberdade e de segurança do indivíduo enquanto pessoa humana.

Subscrevemos, também, inteiramente, o entendimento no sentido de que numa “sociedade moderna”, (e principalmente, nos dias de hoje), o direito penal e processual penal é o “espelho” do seu grau de desenvolvimento, (de civilização), e de respeito pelos direitos fundamentais.

Com efeito, princípios – “fundamentais” – como o da “legalidade”, “tipicidade”, “lealdade processual” e “presunção de inocência”, constituem, sem dúvida, (entre outros), os “alicerces” sobre os quais se deve erguer todo (e qualquer) sistema jurídico penal e processual penal.

Em suma, em geral, e no que toca à “presunção de inocência”, cabe acentuar ser o mesmo um princípio que é um corolário do “primado da lei”, da “supremacia da lógica e da razão”, do “direito justo” e do “processo equitativo”.

Na verdade, o princípio (iluminista) da “presunção de inocência”, (feliz, e oportunamente renascido na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1879, depois de já ter estado em vigor no direito romano), e, também consagrado na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, (cfr., art°s 28° e 29°), tem aplicação directa (e imediata), e potencialidade expansiva na organização e no funcionamento dos Tribunais; (cfr., a Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 11°, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cfr., art. 6°, assim como o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, cfr., art. 14°, parágrafo 2°, ao qual expressamente se refere o art. 40° da dita Lei Básica).

Da mesma forma, não se pode perder de vista que a “eficácia”, não é o “valor absoluto”, e que o poder, (todos eles), tem limites, pois que como já notou Germano Marques da Silva, “a convicção íntima não é por si critério de verdade”, não sendo igualmente de se olvidar que, como também salienta Figueiredo Dias, o direito processual penal é “direito constitucional aplicado”; (in “Direito Processual Penal”, Vol. I, Coimbra, 1974, pág. 74).

E, abreviando, (para não nos alongarmos sobre a questão), temos pois como adequado que, no que toca ao “princípio da adequação”, o mesmo exige que qualquer medida de coacção a aplicar ao arguido, seja, no caso concreto, idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso, e, por isso, há de ser – casuisticamente – escolhida em função da cautela e da finalidade a que se destina.

Por sua vez, impõe, igualmente, o “princípio da proporcionalidade”, que a medida de coacção a aplicar deva ser proporcionada à gravidade do crime e à sanção que, previsivelmente, venha a ser aplicada ao arguido em razão da prática do(s) crime(s) indiciados no processo.

Ora, no caso dos autos, a decisão agora recorrida explicitou (essencialmente) a seguinte fundamentação:

“O caso encontra-se em fase de julgamento, nos termos dos artigos 179º, n.º 1, e 186º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, e do especial disposto no art.º 29º da Lei n.º 6/97/M, aplico oficiosamente a medida de prisão preventiva ao arguido A que foi pronunciado pela prática do crime de promoção ou fundação de associação ou sociedade secreta mencionado no n.º 1 do art.º 2º da lei supracitada, e aos outros três arguidos, B, C e D, que foram pronunciados pela prática do crime de participação ou apoio a associação ou sociedade secreta mencionado no n.º 2 do art.º 2º da mesma lei, uma vez que os crimes relacionados com associação ou sociedade secreta que lhes foram imputados são crimes graves, verificam-se fortes indícios da criminalidade, as circunstâncias da prática de crimes são igualmente graves, sendo necessário aplicar aos referidos arguidos a medida de prisão preventiva para excluir o perigo de perturbação da ordem pública (nota: a “ordem pública” aqui mencionada consiste na ordem constituída conjuntamente por todos os princípios e normas jurídicos aplicados em Macau) provocado pelos crimes relativos a associação ou sociedade secreta praticados pelos mesmos (cfr. o art.º 188º, al. c) do Código de Processo Penal), além disso, é de salientar que, como resultado do art.º 29º da lei supracitado, o Tribunal não necessita de ouvir os arguidos antes da aplicação da medida de prisão preventiva (cfr. o art.º 179º do Código de Processo Penal). (…)”; (cfr., pag. 7 deste aresto).

Visto que no presente veredicto já se fez referência ao preceituado no art. 186°, n.° 1, al. a) do C.P.P.M., importa, então, (agora), ter presente que nos termos do invocado art. 29° da Lei n.° 6/97/M:

“Se o crime imputado for um dos previstos nos artigos 2.º, 3.º, 7.º, alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 10.º e n.º 2 do artigo 13.º, o juiz deve aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva”; (em sentido idêntico ao aqui preceituado, cfr., o art. 193°, n.° 1 do C.P.P.M., onde se prescreve que “Se o crime imputado tiver sido cometido com violência e for punível com pena de prisão de limite máximo superior a 8 anos, o juiz deve aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva”).

Ora, não se ignora a “polémica” que o preceituado no(s) transcrito(s) comando(s) tem suscitado.

Com efeito, enquanto autores (e decisões judiciais) existem que consideram que com o preceituado no referido normativo se prevê um certo número de “crimes incaucionáveis”, outras opiniões consideram tal entendimento (totalmente) inadmissível; (sobre o tema, e especialmente, relativamente ao art. 193° do C.P.P.M., cfr., v.g., Figueiredo Dias, Maria João Autunes e Alberto Mendes, nas suas Comunicações apresentadas aquando das “Jornadas do Novo C.P.P.M.” organizadas pelo então Centro de Formação de Magistrados e pela Faculdade de Direito da Universidade de Macau em Janeiro de 1997; L. Henriques in, “Anotação e Comentário ao C.P.P.M.”, Vol. II, pág. 77 e segs., onde se faz uma súmula das razões históricas da questão; Miguel Ângelo L. Manero Lemos no seu interessante trabalho com o título “Os «crimes incaucionáveis» no C.P.P.M.”, Estudos em Homenagem ao prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, pág. 461 a 476, podendo-se, também, e entre outros, ver os Acs. do T.S.J. de 27.07.1998, Proc. n.° 882/1998; e de 13.01.1999, Proc. n.° 952/1998, assim como os Acs. do T.S.I. de 21.09.2000, Proc. n.° 135/2000; de 07.12.2000, Proc. n.° 192/2000; de 29.03.2001, Proc. n.° 55/2001; de 26.04.2001, Proc. n.° 56/2001; de 26.07.2001, Proc. n.° 139/2001; de 13.09.2001, Proc. n.° 163/2001; de 07.02.2002, n.° 11/2002; de 29.07.2004, Proc. n.° 166/2004; de 03.02.2005, Proc. n.° 14/2005; de 11.10.2012, Proc. n.° 745/2012; de 07.02.2013, Proc. n.° 54/2013; de 30.07.2013, Proc. n.° 485/2013; de 25.09.2014, Proc. n.° 556/2014; de 16.02.2017, Proc. n.° 95/2017).

Pois bem, reconhece-se que a expressão “crimes incaucionáveis”, (ou mesmo, “crimes tendencialmente incaucionáveis”), tem, em si, uma (certa) “carga negativa” que pode provocar (certo tipo de) reacções…

Compreende-se, perfeitamente.

Aliás, a questão não é nova, e foi já objecto de grande, e prolongado, debate; (cfr., v.g., para além de L. Henriques in, ob. cit., os Acs. do T. Constitucional de Portugal de 28.01.1987, Proc. n.° 175/86 e de 06.01.1988, Proc. n.° 186/85, podendo-se, ainda, v.g., ver os Acs. do S.T.J. de 03.12.1986, Proc. n.° 038615; de 16.03.1988, Proc. n.° 039453; de 12.04.1989, Proc. n.° 039814; e de 05.08.1992, Proc. n.° 0037945; Ho Chi Un in, “A natureza da medida da prisão preventiva no C.P.P. português”, Administração, n.° 84, 2009, pág. 355 a 362, o texto introdutório do próprio Decreto-Lei n.° 78/87 de 17.02 que aprovou o C.P.P. português, revogando o Decreto-Lei n.° 16489, de 15.02.1929, que se refere à matéria, e, mais recentemente, sobre a evolução histórica do “instituto”, Paulo J. R. Camoesas in, “Prisão preventiva: medida de coacção de última ratio”, U.A.L., 2020).

Por sua vez, mostra-se de recordar também que aquando da elaboração do C.P.P.M., foi, igualmente, a mesma “questão” objecto de preocupação do legislador local.

Com efeito, no Relatório Preliminar datado de Julho de 1996 da “Comissão de Justiça e Segurança” da então Assembleia Legislativa de Macau, consignou-se, expressamente, (relativamente ao art. 193°) que:

“O Código português inverteu o sistema anteriormente vigente de definição de crimes relativamente aos quais era obrigatória a prisão preventiva, os chamados crimes incaucionáveis.
Assim, actualmente, não existindo casos de inadmissibilidade legal de liberdade provisória, é livre a valoração quanto à aplicação da medida adequada, apenas se exigindo uma fundamentação suplementar para a não aplicação da prisão preventiva quanto a certos crimes.
O legislador de Macau entendeu, igualmente, acentuar o carácter subsidiário da prisão preventiva, ao enunciar apenas os casos em que o juiz «deve» aplicar esta medida de coacção.
Não obstante, não foi consagrada nenhuma obrigação adicional de motivação para os casos em que entenda não aplicar a prisão preventiva, o que fragiliza o sentido normativo da imposição de um dever neste contexto”.

Em face do assim explicitado, que dizer?

Ora, sem prejuízo do muito respeito por opinião diversa, (e, seja-nos permitido repetir, não sendo este o local para longas considerações sobre a “questão”), afigura-se-nos de considerar que se deve ter como legítima a liberdade (e vontade legislativa) do legislador para que, relativamente a um “certo tipo de criminalidade” – e no intuito de melhor tutelar a segurança da sociedade e dos seus cidadãos, (tentando conferir uma maior eficácia à função jurisdicional, e adoptando uma solução que apenas dá uma “orientação”) – estipule em acto normativo que “deve” o Tribunal aplicar a prisão preventiva aos seus (respectivos) arguidos, isto, sem prejuízo de se dever respeitar e acautelar (sempre), os princípios fundamentais e critérios nesta matéria relevantes e que se prendem com a sua adequação, (necessidade), perante a “situação concreta”.

In casu, no que toca à “gravidade” da situação, cremos que a mesma “entra pelos olhos dentro”, bastando atentar para os “tipos” e “números” de crimes cuja prática – em “concurso efectivo” – é imputada ao ora recorrente.

Com efeito, existe nos presentes autos um grande acervo de elementos probatórios (de diferente natureza) que, globalmente analisados e ponderados, criam, (inegavelmente), uma (muito) forte e consistente convicção de que, o ora recorrente, através do uso abusivo das suas funções e competências de Magistrado do Ministério Público, interferia e adoptava “soluções processuais” (favoráveis a terceiros) a troco de vantagens económicas, fazendo-o, de forma concertada e por um período de vários anos em conjunto com outras pessoas, (os restantes 3 co-arguidos do processo, de entre os quais, figura um Advogado), cabendo-lhes, essencialmente, os “contactos”, “propostas” e “acompanhamento” posterior das situações, onde, normalmente, se incluía o recebimento das vantagens.

E, desta forma, (e, independentemente do demais), sendo de salientar que, muito especialmente, em virtude do conhecimento que sobre a “matéria” (e de “situações”) como a ora em causa o recorrente possuiu devido ao seu exercício profissional, evidente se nos apresenta que presente está o pressuposto da “alínea b) do art. 188°” do C.P.P.M., sendo, igualmente de se considerar que, atenta a sua “conduta” anterior à sua detenção, recusando, depois de notificado, a colaborar para, em declarações, esclarecer o sucedido, colocando-se, antes em “paradeiro desconhecido”, torna, também, bastante evidente, o seu “perigo de fuga”.

Por fim, e como cremos que sem esforço também se alcança, não se pode olvidar que não se trata esta de uma “situação única”, (nova), pois que, muito infelizmente, e em tempos não muito remotos, outra sucedeu nos Serviços do Ministério Público, o que, a olhos vistos, evidencia a “gravidade” do que em causa está, e que, como se nos apresenta natural, não deixa de ter o seu reflexo e impacto em sede da solução que, no caso, se nos mostra como a “adequada”, sendo, assim de confirmar, também nesta parte, a decisão recorrida.

2.3 Passemos então para a questão da “falta da prévia audiência do ora recorrente”.

Pois bem, nos termos do art. 179°, n.° 2 do C.P.P.M.:

“A aplicação referida no número anterior é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial”.
In casu, considerando aplicável o art. 29° da Lei n.° 6/97/M, (atrás transcrito), entendeu o Tribunal a quo que “necessária” não era a prévia audição do arguido; (sobre a matéria, e do mesmo T.S.I., vd., v.g., os Acs. de 29.11.2001, Proc. n.° 218/2001; de 11.04.2002, Proc. n.° 223/2001 com decl. de voto; de 23.10.2003, Proc. n.° 231/2003 com decl. de voto; de 29.01.2004, Proc. n.° 308/2003; de 12.02.2004, Proc. n.° 11/2004 com decl. de voto; de 03.02.2005, Proc. n.° 14/2005; de 02.03.2006, Proc. n.° 62/2006; de 23.03.2006, Proc. n.° 64/2006; de 13.12.2007, Proc. n.° 633/2007 com decl. de voto; de 12.06.2008, Proc. n.° 339/2008; de 03.03.2011, Proc. n.° 119/2011 com decl. de voto; de 06.10.2016, Proc. n.° 671/2016 com decl. de voto; e de 12.01.2017, Proc. n.° 958/2016 com decl. de voto).

Ora, não nos parece que assim deva ser.

Em nossa opinião, o preceituado no referido “art. 29°” não dispensa – de forma “automática” e “absoluta” – o dever que sobre o Tribunal recai de ouvir e de conceder ao arguido oportunidade para se pronunciar antes da decisão de aplicação de uma medida de coacção (de prisão preventiva).
Com efeito, tal normativo não “anula”, nem muito menos faz “tábua raza”, do “princípio do contraditório” em processo penal.

Porém, na situação em causa, em face de tudo quanto se deixou exposto, verificados estando os pressupostos da prisão preventiva do arguido ora recorrente, e decretada já estando a sua aplicação, cremos que afastada estava a (posterior) necessidade, ou conveniência, da sua audição, (após a sua detenção).

E, assim, (ainda que com fundamentação não totalmente coincidente), vista está a solução para o presente recurso.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos que se deixaram expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 08 de Novembro de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator) [Não obstante termos relatado o acórdão que antecede, outra solução se nos apresentava preferível para a questão da “falta da prévia audiência do recorrente”.
De facto – e como nos anos que servimos no Tribunal de Segunda Instância já vínhamos entendendo – se obrigatória é a constituição de arguido logo que lhe tenha que ser aplicada uma medida de coacção, (cfr., art. 47°, n.° 1, al. b) do C.P.P.M.), e, se em virtude de tal “qualidade”, e em qualquer fase do processo, o mesmo goza (em especial) do direito a “estar presente nos actos processuais que directamente lhe disserem respeito”, assim como do de ser “ouvido pelo juiz sempre que ele deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte”, (cfr., art. 50°, n.° 1, al. a) e b) do mesmo C.P.P.M.), natural se mostra de concluir que tal “estatuto” terá que acarretar um (efectivo) “conteúdo útil”, mais adequado se nos parecendo, assim, que se tivesse optado pela emissão de um mandado de – captura e – detenção do arguido, (cfr., art. 237° do dito C.P.P.M.), para, após a sua execução, ser o mesmo (de imediato) interrogado, decidindo-se, posteriormente, (no integral respeito do “princípio do contraditório”, dos direitos que, como arguido, lhe assistiam, e da “igualdade de armas”), da pelo Ministério Público proposta aplicação da medida de coacção de prisão preventiva].
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 92/2023 Pág. 20

Proc. 92/2023 Pág. 21