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Processo n.º 57/2023
Recurso Civil
Recorrente: A
Recorrida: B
Data da conferência: 8 de Setembro de 2023
Juízes: Song Man Lei (Relatora), José Maria Dias Azedo e Sam Hou Fai

Assuntos: - Título executivo
- Documento particular
- Compensação

SUMÁRIO
1. Ora, nos termos da al. c) do art.º 677.º do CPC, podem servir de base à execução “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”, sendo que pelos títulos executivos se determinam o fim e os limites da acção executiva (art.º 12.º n.º 1 do CPC).
2. Para que um documento particular constitua título executivo, é necessário que esteja assinado pelo devedor e que tal documento importe constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético (art.º 689.º n.º 1 do Código de Processo Civil) ou de obrigações de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto.
3. São tidos como requisitos da compensação:
- Reciprocidade de créditos;
- Validade e exigibilidade;
- Fungibilidade e homogeneidade; e
- Declaração compensatória.
4. Para que haja compensação, o credor invocado pelo compensante deve ser judicialmente exigível, para além da verificação dos outros requisitos.
5. Diz-se judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à acção de cumprimento e à execução do património do devedor (art.º 807.º do Código Civil).
6. Não se deve admitir a invocação de um crédito que poderá existir, mas não existe ainda no momento em que se pretende exercer o direito de compensação, não sendo bastante invocar um crédito eventual, futuro e incerto.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
B intentou uma acção executiva ordinária para pagamento de quantia certa contra A, ambas melhor identificadas nos autos, alegando que é legítima titular de um documento particular, datado de 14 de Dezembro de 2021, que importa o reconhecimento de obrigações pecuniárias no montante de HKD$10.671.604,00, equivalente a MOP$10.991.752,12.
Tal documento particular, invocado como título executivo, refere-se à carta enviada pela Executada à Exequente junta aos autos (fls. 52 e 53).
Por despacho proferido a fls. 59 e verso dos autos, a Mma. Juíza do Tribunal Judicial de Base decidiu indeferir liminarmente o requerimento inicial, por falta de título executivo.
Dessa decisão interpôs a Exequente recurso para o Tribunal de Segunda Instância que, proferindo o acórdão no Processo n.º 757/2022 a conceder provimento ao recurso, revogou o despacho recorrido, “o qual deve ser substituído por outro que decida como houver por conveniente sem que haja o indeferimento liminar pelo motivo invocado”.
Inconformada, vem agora a Executada A recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:
1. O presente recurso foi interposto do acórdão do TSI de 16/02/2023, que revogou o despacho de fls. 59 e v. do TJB, de 08/04/2022, nos termos do qual fora declarado não existir título executivo válido.
2. O Acórdão Recorrido não contém uma única indicação dos factos relevantes para fundamentarem a sua decisão, nem faz uma análise crítica das provas, não cumprindo com o seu dever de fundamentação de facto.
3. Ao omitir, de forma absoluta, os fundamentos de facto da decisão, o Acórdão Recorrido incorre em nulidade de sentença, nos termos do disposto do art. 571.º, n.º 1, al. b) do CPC.
4. O Acórdão Recorrido incorre também no vício de excesso de pronúncia.
5. O TJB indeferiu o requerimento executivo com base na inexistência de um título executivo válido.
6. Estando em causa um documento particular, releva o disposto na alínea c) do art. 677.º do CPC, pelo que, a questão está em saber se a Notificação importa ou não a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, nos termos do artigo 677.º, al. c) do CPC.
7. A Notificação não contém qualquer constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária, justamente porque a mesma contém e consiste numa declaração de compensação de créditos, consubstanciadora, ipso facto, de uma causa de extinção das obrigações além do cumprimento.
8. A Recorrente, com a Notificação, rejeita a existência de uma qualquer dívida para com a Recorrida.
9. Questão inteiramente distinta é a que se prende com a averiguação dos requisitos da aplicação do instituto da compensação, a qual tem natureza declarativa e não executiva e é por isso totalmente estranha à que foi suscitada e resolvida pelo Despacho de Indeferimento.
10. O TSI nunca se poderia ter debruçado sobre a questão da existência ou não do direito de compensação, que extravasa os seus poderes de cognição.
11. Ao pronunciar-se, nas palavras do TSI, sobre “os requisitos para que pudesse ser invocada a compensação” do crédito da Executada, aqui Recorrente, o Acórdão Recorrido conheceu de uma questão da qual o TSI não podia ter tomado conhecimento, incorrendo em nulidade de sentença por excesso de pronúncia, nos termos do disposto do artigo 571.º, n.º 1, al. d) do CPC.
12. O Acórdão Recorrido incorre ainda no vício de omissão de pronúncia.
13. O Acórdão Recorrido não faz uma única menção, ao longo da sua fundamentação, acerca da validade da Notificação enquanto título executivo, tão-somente se pronunciando acerca da existência ou não do direito de crédito da Executada, aqui Recorrente.
14. A única questão submetida à apreciação do TSI era a seguinte: a Notificação tem ou não validade formal enquanto título executivo?
15. Ao não se pronunciar sobre a validade formal do título executivo, objecto do Despacho de Indeferimento e bem assim do recurso interposto no TSI, o Acórdão Recorrido enferma do vício de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 571.º, n.º 1, al. d) do CPC.
16. O Acórdão Recorrido incorre no vício de erro notório de apreciação da prova.
17. O TSI baseou fundamentalmente a sua convicção no teor da Notificação de Compensação cuja autoria, teor e assinatura não foram colocados em causa.
18. Estabelecida a autenticidade da assinatura, do contexto do documento, e bem assim da declaração nele contida, o facto a que a respectiva declaração respeita tem de se considerar provado plenamente ao abrigo do disposto no n.º l do artigo 370.º do CC.
19. Não existindo nem se reconhecendo a existência de uma obrigação na Notificação, nos termos do artigo 677.º do CPC, a pretensão da Recorrida terá necessariamente de naufragar – como determinou, e bem, o TJB.
20. O Acórdão Recorrido faz referência a apenas um dos fundamentos invocados pela Recorrente como fonte do seu contracrédito, ou seja, os danos causados pela conduta da Recorrida que gera na Recorrente responsabilidade solidária e que vêm sendo discutidos nos tribunais de Macau.
21. Omite, porém, por completo, tudo o mais que na Notificação a Recorrente invocou sobre o seu contracrédíto, que constitui fundamento totalmente distinto daquele que, no Acórdão Recorrido, o TSI identifica como sendo o fundamento do contracrédito invocado pela Recorrente.
22. O Acórdão Recorrido enferma de erro notório ou manifesto na apreciação da prova, violando nomeadamente as regras sobre o valor da prova vinculada (artigo 558.º, n.º 2 do CPC) e o disposto no artigo 370.º, n.º 1 do CC.
23. O Acórdão Recorrido incorre no vício de oposição entre os fundamentos e a decisão.
24. O Acórdão Recorrido não nega a existência de uma declaração de compensação de créditos, antes afirma inequivocamente que o crédito do compensante, aqui Recorrente, não existe, ou não reúne os necessários requisitos.
25. É patente, ao longo de toda a fundamentação de Direito, que o TSI considera existir uma declaração de compensação de créditos por parte da aqui Recorrente, só não considera é existir o contracrédito a que se arroga a Recorrente.
26. Se a declaração de compensação de créditos, na óptica do TSI, existe, a conclusão que deveria ter tirado aquele Tribunal devia ter sido oposta à que tomou, que foi a revogação do Despacho de Indeferimento com fundamento na ausência de um crédito compensatório.
27. O Acórdão Recorrido encontra-se inquinado de vício de nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do disposto no artigo 571.º, n.º 1, al. c) do CPC.
28. O Acórdão Recorrido incorre, finalmente, em erro de direito.
29. Os requisitos do instituto da compensação, encontram-se, ao contrário do que defende o Acórdão Recorrido, plenamente preenchidos, na sua vertente formal.
30. O Acórdão Recorrido aprecia a questão com base numa descrição factual errada dos termos da Notificação.
31. A Recorrente invocou um crédito com origem no incumprimento do contrato de promoção por parte da Recorrida, de 1 de Junho de 2017, que originou danos reputacionais (reputational damages ou danos morais) e danos patrimoniais (compensatory damages).
32. Os factos em que assenta o incumprimento são aqueles que são objecto de uma investigação pelas autoridades do Interior da China e de Macau (que, como agora se sabe, conduziram ao processo-crime CR2-22-0147-PCC).
33. O valor do crédito é ilíquido mas superior a HKD10.671.604,00.
34. Nem a falta de título executivo, nem a iliquidez do contracrédito, são obstáculos à eficácia da compensação de créditos, algo que, a própria jurisprudência de Macau vem confirmando.
35. Errou, pois, o TSI ao julgar que não se verificavam os requisitos para que pudesse ser invocada a compensação por parte da Recorrente. Todos os requisitos legais da compensação encontravam-se preenchidos e o Acórdão Recorrido aplicou mal o artigo 838.º do CC, o que redundou em erro de direito.

Contra-alegou a Exequente, pugnando pelo não provimento do recurso e pela manutenção da decisão do Tribunal de Segunda Instância (fls. 141 a 146 dos autos).

2. Direito
Ao acórdão recorrido foram imputados os seguintes vícios:
- Absoluta falta de fundamentação de facto;
- Excesso de pronúncia;
- Omissão de pronúncia;
- Erro notório de apreciação da prova;
- Oposição entre os fundamentos e a decisão; e,
- Erro de direito.
Há que resolver as questões suscitadas no presente recurso, sendo de adoptar, para maior facilidade de exposição, uma apreciação dos vícios e erros apontados por uma ordem distinta daquela que foi indicada pela recorrente.

2.1. Da falta de fundamentação de facto
Alega a recorrente que o acórdão recorrido não contém uma única indicação dos factos relevantes para fundamentarem a sua decisão nem faz uma análise crítica das provas, omitindo de forma absoluta os fundamentos de facto da decisão, pelo que incorre em nulidade de sentença, nos termos do art.º 571.º, n.º 1, al. b) do CPC.
Ora, a norma referida impõe ao tribunal o dever de especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Como se sabe, “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade do n.º 2 do art. 668.º. (…)”1
Não se deve ignorar que a questão de falta, ou não, de fundamentação, geradora de nulidade da sentença, deve ser apreciada em cada caso concreto, nomeadamente quando está em discussão um despacho de indeferimento liminar.
É certo que no acórdão ora recorrido não foi feita uma selecção da matéria de facto relevante para a decisão, mas isso justifica-se pela própria natureza do despacho de indeferimento liminar.
No caso vertente, a Exequente deu à execução um documento particular, datado de 14 de Dezembro de 2021, que se traduzia numa notificação efectuada pela Executada (ora recorrente) à Exequente.
O Tribunal Judicial de Base proferiu o despacho de indeferimento liminar de fls. 59, por considerar que o referido documento particular não consubstanciava um título executivo ao abrigo dos art.ºs 677.º e 12.º do CPC.
Chamado a pronunciar-se sobre a questão, o Tribunal de Segunda Instância considerou que tal documento particular não podia configurar uma compensação válida por não se poder compreender qual o crédito que a executada teria sobre o exequente, a sua natureza, data de vencimento ou se tal crédito é líquido ou ilíquido. Daí decorreria que através desse documento se teria de retirar que a Executada reconhecia devedora da quantia peticionada pela Exequente, pelo que deveria ser revogado o despacho de indeferimento liminar proferido pelo Tribunal Judicial de Base.
A lei prevê a possibilidade de indeferimento liminar do requerimento inicial de execução, já que nos termos do n.º 1 do art.º 695.º do CPC, não havendo fundamento para indeferir liminarmente ou determinar o aperfeiçoamento desse requerimento, o juiz ordena a citação do executado para pagar ou nomear bens à penhora.
“O indeferimento liminar imediato é reservado para os casos em que seja manifesta a falta insuprível de pressuposto processual de conhecimento oficioso (…) ou a actual inexistência da obrigação exequenda por causa oficiosamente cognoscível.”2
Em regra geral, a petição é liminarmente indeferida quando for inepta e diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir – art.ºs 394.º n.º 1, al. a) e 139.º n.º 2, al. a) do CPC.
No caso de acção executiva, tais normas devem ser interpretadas com a devida adaptação.
Assim, “As disposições têm de ser adaptadas, tendo em vista que na acção executiva, como já se disse, à causa de pedir corresponde, para este efeito, o título executivo.
Assim, será inepto o requerimento inicial: (…)
b) Quando não haja título ou este seja ininteligível;”3
Ora, tendo sido proferido um despacho de indeferimento liminar da acção de execução por se entender que o documento apresentado não consubstancia um título executivo para efeitos do art.º 677.º do CPC, não há quaisquer outros factos que importem para a decisão.
No nosso caso concreto, não se afigura essencial a selecção da matéria de facto.
O único problema consiste então em saber se o documento particular dado à execução pode ou não actuar enquanto título executivo para efeitos dos art.ºs 12.º e 677.º do CPC.
Está em discussão uma questão de qualificação do documento dado à execução, não existindo quaisquer outros elementos de facto relevantes que devam ser tidos em consideração.
Destarte, não parece que haja qualquer falta de fundamentação de facto.

2.2. Da oposição entre os fundamentos e a decisão
Na óptica da recorrente, o acórdão recorrido padece de uma oposição entre os fundamentos e a decisão, que fundamenta um vício de nulidade da sentença nos termos do art.º 571.º n.º 1, al. c) do CPC, dado que, ao considerar que existia uma declaração de compensação de créditos por parte da recorrente, deveria o Tribunal recorrido ter tomado uma posição oposta à que tomou.
Não se afigura assistir razão à recorrente.
Na verdade, o vício imputado consiste num “caso de contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, ou seja, por exemplo, de a fundamentação apontar no sentido da condenação, mas terminar pela absolvição do réu.
Se a partir dos factos o juiz aplica ou interpreta mal a lei, não há nulidade da sentença, mas erro de julgamento.”4
É assim uma oposição “que se verifica no processo lógico, que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas, este extrai a decisão a proferir. Não é, por isso, relevante, para este efeito, a contradição que se diga existir entre os factos que a sentença dá como provados e outros já apurados no processo. Poderá haver nesse caso erro de julgamento, mas não nulidade da decisão.”5
Ressalvando sempre melhor opinião, apresenta-se claro que o acórdão recorrido não padece de um vício de contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, pois aceitando-se ou não o raciocínio ali exposto, a verdade é que a fundamentação é clara no sentido da revogação do despacho de indeferimento liminar proferido pelo Tribunal Judicial de Base, decisão que veio efectivamente a ser tomada.
Assim, improcede o vício apontado.

2.3. Do erro notório na apreciação da prova
Defende ainda a recorrente que há um erro notório na apreciação da prova, com violação das regras sobre o valor da prova vinculada (art.º 558.º n.º 2 do CPC) e o disposto no art.º 370.º n.º 1 do Código Civil, uma vez que do documento dado à execução resultaria claramente a existência do contracrédito que justificou a declaração compensatória proferida naquele documento.
Desde logo, é de frisar que o Tribunal de Última Instância tem poderes de cognição bastante limitados em sede de matéria de facto, conforme resulta do art.º 649.º n.º 2 do CPC.
Por outro lado, não resulta do acórdão recorrido que o Tribunal de Segunda Instância tenha apreciado provas nem feito a selecção da matéria de facto, daí que não se vislumbra a verificação do vício imputado.
No caso vertente, não se vê como foi violado o disposto no n.º 2 do art.º 558.º do CPC, pois não está em causa qualquer facto para cuja existência ou prova a lei exige alguma formalidade especial.
Quanto à norma contida no n.º 1 do art.º 370.º do Código Civil, segundo o qual o documento particular cuja autoria seja reconhecida “faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor”, é de constatar no acórdão recorrido que o Tribunal se limita a analisar a questão de compensação alegada pela recorrente, considerando que, com base nas declarações da recorrente, não se verificam os requisitos para que pudesse ser invocada a compensação, entendimento este contrário à posição de primeira instância.
De todo o modo, e repetindo, está aqui em causa apenas um problema de qualificação como título executivo do documento particular dado à execução, pelo que a própria natureza da vexata quaestio afasta qualquer possibilidade de um erro na apreciação da prova.

2.4. Do excesso de pronúncia e da omissão de pronúncia
Na tese da recorrente, o acórdão recorrido padece de excesso de pronúncia, que implica a nulidade da sentença de acordo com o disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC, na medida em que teria averiguado os requisitos de aplicação do instituto da compensação, discussão que teria “natureza declarativa e não executiva, sendo totalmente estranha à que foi suscitada e resolvida pelo despacho de indeferimento”.
As nulidades referidas na al. d), que abrange omissão de pronúncia e excesso de pronúncia, “relacionam-se com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 563.º: o juiz tem de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e só se pode ocupar das questões suscitadas pelas partes, salvo quando a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras questões”.
Nessa matéria, é de recordar que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Última Instância, “os tribunais de recurso só podem pronunciar-se sobre as questões suscitadas pelo recorrente, salvo as de conhecimento oficioso.
Quando conhecem, indevidamente, de questões não suscitadas pelo recorrente na sua alegação de recurso, incorrem os tribunais de recurso em nulidade de acórdão, por excesso de pronúncia [artigos 633.º, 571.º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, 563.º, n.º 3, 589.º, n.ºs 2, 1ª parte e 3 do Código de Processo Civil]”.6
A este respeito, são questões “(…) todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes.”7
Por isso, não pode “o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art. 660-2), é nula a sentença em que o faça.”8
Ora bem, salvo o muito respeito por opinião diferente, não se verifica no caso presente caso qualquer excesso de pronúncia.
Na verdade, o Tribunal de Segunda Instância limitou-se a apreciar a questão subjacente ao despacho de indeferimento liminar proferido pelo Tribunal Judicial de Base, decidindo por sua vez que o documento particular dado à execução era um título executivo suficiente.
É certo que na fundamentação dessa decisão, o Tribunal de Segunda Instância examinou o documento particular e o alcance da compensação aí efectuada, mas note-se que o fez sempre na perspectiva da qualificação de tal documento como título executivo.
Pelo que pode haver um erro de julgamento, mas não um erro de actividade, sendo que apenas este último implica a nulidade do acórdão assim viciado:
“Importa, na verdade, distinguir cuidadosamente as duas espécies: erros de actividade e erros de juízo.
O magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afectam o fundo ou o mérito da decisão; os da segunda categoria são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade de julgador.
Assentemos, pois, nisto: por vícios da sentença entende a lei os erros materiais e os erros formais, que se corrigem pelos meios facultados pelos arts. 667.º e 669.º. Contrapõem-se aos erros substanciais, contra os quais se há-de reagir por via de recursos (arts. 677.º e segs.).”9
É de julgar improcedente o vício de excesso de pronúncia.

Subsidiariamente, alega a recorrente que o acórdão recorrido incorre ainda no vício de omissão de pronúncia porque não faz uma única menção acerca da validade do documento particular dado à execução enquanto título executivo, que é a única questão submetida à apreciação do Tribunal de Segunda Instância.
Ora, nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC, é nula a sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
Quanto às questões a resolver na sentença, decorre do art.º 563.º do CPC que o juiz deve resolver todas as questões suscitadas pelas partes, devendo ocupar-se apenas dessas questões, salvo questões de conhecimento oficioso.
E só a omissão de pronúncia sobre questões que o juiz tem a obrigação de conhecer determina a nulidade da sua sentença.
Lido o acórdão recorrido, é de afirmar que o Tribunal de Segunda Instância tomou posição sobre a questão que lhe foi posta em recurso, ou seja, a questão de saber se o documento particular apresentado pela Exequente à execução era um título executivo suficiente.
Com efeito, constata-se no acórdão posto em causa que, após a analise sobre a questão de compensação, da qual tirou a conclusão quanto à não verificação dos requisitos para que pudesse ser invocado o instituto, afirma o Tribunal recorrido que, enfermando o despacho de primeira instância de erro na aplicação do direito, há que “ser revogado e substituído por outro que decida como houver por conveniente desde que não seja a rejeição da execução pelo motivo dele constante”, isto é, por falta de título executivo.
E afinal foi determinado o seguinte:
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se o despacho recorrido o qual deve ser substituído por outro que decida como houver por conveniente sem que seja o indeferimento liminar pelo motivo indicado.”
Assim, não há uma omissão de pronúncia, o que se diz sem prejuízo da fundamentação seguida pelo Tribunal de Segunda Instância para chegar à conclusão a que chegou no acórdão recorrido.

2.5. Do erro de direito
Resta apreciar o erro de direito quanto à qualificação do documento particular enquanto título executivo.
O documento n.º 4 indicado como título executivo, que é uma declaração unilateral emitida pela ora recorrente, tem o seguinte teor (fls. 52 a 53 dos autos):
«CARTA DE NOTIFICAÇÃO DE COMPENSAÇÃO

Assunto: Quarta Renovação de Acordo de Promoção do Jogo (o “Acordo”) entre A (“A1”) e B (“B1”), datado de 1 de Junho de 2017

Exmos Senhores,

De acordo com os termos do Acordo e o Anexo A do Acordo, existe valores a pagar por A1 para B1 no montante de HKD10,671,604.00, baseado em 42.5% de ganho/perdas do jogo atribuídos ao B1 no mês de Novembro 2021. Estes valores são devidas no 15 de Dezembro de 2021.

Recentes acontecimentos envolvendo B1 e as investigações que estão a decorrer contra B1 na China Continental e em Macau causaram que o Acordo fosse suspenso. Esta situação, o que consitui uma violação material do Acordo, causou danos consideráveis à A1, quer em termos de danos compensatórios quer em danos de reputação originados pela violação do Acordo pelo B1. A1 espera vir a ter danos materiais signativas.

Mais, A1 está a enfrentar e possa vir a enfrentar no futuro reclamações de terceiros onde é considerada conjunta e solidariamente responsável com a B1. A violação do Acordo por parte da B1 fará que seja impossível que o A1 possa utilizar eficazmente o direito de regresso contra a B1, se A1 for considerado responsável e obrigado a indemnizar os requerentes, o que por si só dá direito a A1 a indemnização por danos compensatórios.

Artigo 838º do Código Civil de Macau autoriza compensação de créditos. De acordo com o direito de compensação, é desde já informado de que a nossa A1 vai reter e aplicar o montante de HK10,671,604.00 contra B1 que é reponsável pela dívida pela violação do Acordo.»

Da leitura do documento transcrito resulta duas ideias essenciais: i) a recorrente reconhece que existe valores a pagar para B1 no montante de HKD10,671,604.00, que são devidos no dia 15 de Dezembro de 2021; ii) a recorrente vai reter e aplicar tal montante contra B1 que é responsável pela dívida por violação do Acordo que causou danos consideráveis à recorrente, exercendo o direto de compensação de créditos.
Ora, nos termos da al. c) do art.º 677.º do CPC, podem servir de base à execução “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”, sendo que pelos títulos executivos se determinam o fim e os limites da acção executiva (art.º 12.º n.º 1 do CPC).
Tanto o Tribunal Judicial de Base como o Tribunal de Segunda Instância chegaram a examinar a questão de saber se o documento dado à execução pode ser qualificado, ao abrigo da lei, como um título executivo.
O Tribunal Judicial de Base considerou que não, por entender que através do documento em causa, a executada não constituiu a dívida com o valor de HKD10.671.604,00 nem reconheceu tal dívida após o exercício do direito de compensação.
O Tribunal de Segunda Instância, pelo contrário, acabou por considerar que do documento ressaltava um reconhecimento de dívida da Executada perante a Exequente, o qual não era prejudicado por uma insuficiente declaração de compensação.
Constata-se no acórdão recorrido o seguinte:
«São apontados pela Doutrina10 como requisitos da compensação os seguintes:
- Reciprocidade de créditos: Reciprocidade de créditos significa que as duas pessoas a que alude o preceito sejam reciprocamente credores e devedores um do outro e não terceiros, isto é, estas duas pessoas são credor e devedor da parte a quem opõem o seu crédito;
- Validade e exigibilidade: Daqui resulta que o devedor-credor que pretende exigir judicialmente a compensação – o compensante – possa nesse momento impor à parte contrária a realização coactiva do seu crédito e que não lhe possa ser oposta por esta (parte contrária) qualquer excepção, peremptória ou dilatória, de direito material, sem prejuízo do que se estabelece para a prescrição no artº 841º do C.Civ.
- Fungibilidade e homogeneidade: Isto significa que as prestações têm de ser do mesmo género, espécie ou qualidade e respeitar a coisas fungíveis11.
- A declaração compensatória: O declarante tem de declarar à outra parte a vontade de compensar.
Por fim consagra-se que o crédito do compensante pode ser ilíquido, mas isto não significa que não tenha de ser exigível, ou seja, como já referiu que o compensante esteja em condições de exigir judicialmente o seu crédito, sem prejuízo da iliquidez.
Também não é necessário que as dívidas sejam de igual montante – cf. nº 2 do artº 838º C.Civ. – dando-se a compensação apenas na parte correspondente.
Ora, no caso dos autos pergunta-se qual é o crédito que a executada tem sobre o exequente?
Qual é a natureza da prestação – vg. monetária, artigos de que espécie -?
Quando é que esse crédito se venceu?
Esse crédito é líquido ou ilíquido e neste último caso como proceder à liquidação?
Ora, o que resulta do documento dado à execução como título executivo é que nenhuma destas questões pode ser respondida.
Em síntese o que a executada ali declara é que reconhece ser devedora da quantia que indica mas admitindo que eventualmente possa vir a ser responsabilizada pelo pagamento de créditos decorrentes da situação da exequente relativamente aos quais possa poder vir a exercer o direito de regresso contra esta, para a eventualidade desse facto – eventual, futuro e incerto – vir a acontecer e a agora exequente não estar em condições de lhe pagar, declara reter este valor para futura e eventual compensação.
Daqui resulta que o crédito que a executada pretende ver compensado não existe, não é exigível judicialmente, nem tão pouco passível de ser reconhecido judicialmente neste momento, não sabemos a sua origem, nem o valor, nem a espécie, nem a qualidade, etc..
Ou seja, não se verificam os requisitos para que pudesse ser invocada a compensação, enfermando o despacho recorrido de erro na aplicação do direito, havendo em consequência que ser revogado e substituído por outro que decida como houver por conveniente desde que não seja a rejeição da execução pelo motivo dele constante. »
Afigura-se-nos ser de acolher o entendimento do Tribunal de Segunda Instância sobre a não verificação dos requisitos da compensação e a qualificação do documento particular dado à execução.
Ora, a compensação “é exactamente o meio de o devedor se livrar da obrigação, por extinção simultânea do crédito equivalente de que disponha sobre o seu credor.
Logo que se verifiquem determinados requisitos, a lei prescinde do acordo de ambos os interessados, para admitir a extinção das dívidas compensatórios, por simples imposição de um deles ao outro. Diz-se, quando assim é, que as dívidas (ou os créditos) se extinguem por compensação legal (unilateral).”12
Quanto aos requisitos da compensação, dispõe o art.º 838.º do Código Civil o seguinte:
“1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio da compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos cumulativos:
a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.
2. Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente.
3. A iliquidez da dívida não impede a compensação.”
No caso ora em discussão, é verdade que houve a declaração compensatória, sendo que, na transcrita carta de notificação de compensação dirigida à Exequente, a recorrente declarou expressamente a sua vontade de compensar.
No entanto, e tal como afirma o Tribunal recorrido, não se demonstra nos autos que o crédito que a recorrente pretende ver compensado seja já judicialmente exigível.
Na verdade, para que haja compensação, o credor invocado pelo compensante deve ser judicialmente exigível, para além da verificação dos outros requisitos.
Para mostrar o seu crédito contra a Exequente, na referida carta a recorrente invoca a violação material por parte da Exequente do Acórdão de Promoção do Jogos, provocada pelo seu envolvimento nas investigações criminais, que causou “danos consideráveis” à recorrente e que “fará que seja impossível que o A1 possa utilizar eficazmente o direito de regresso contra a B1, se A1 for considerado responsável e obrigado a indemnizar os requerentes, o que por si só dá direito a A1 a indemnização por danos compensatórios”.
Mesmo admitindo a violação do Acórdão indicada e a possibilidade de a recorrente não vir a obter indeminização por danos compensatórios alegados, certo é que, por ora, não está em causa nenhum crédito “exigível judicialmente”.
Na verdade, “para que o devedor se possa livrar da obrigação por compensação, é preciso que ele possa impor nesse momento ao notificado a realização coactiva do crédito (contra crédito) que se arroga contra este.”
Ora, diz-se judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à acção de cumprimento e à execução do património do devedor (art.º 807.º do Código Civil).
Assim é que se fala na exigibilidade e exequibilidade do contracrédito do compensante.13
No nosso caso concreto, cremos que, no momento em que foi declarada a compensação, o contracrédito invocado pela recorrente nem sequer existe, e muito menos se pode falar na sua realização coactiva.
Salvo o muito respeito por opinião diversa, afigura-se-nos que não se deve admitir a invocação de um crédito que poderá existir, mas não existe ainda no momento em que se pretende exercer o direito de compensação, não sendo bastante invocar um crédito eventual, futuro e incerto.
De facto, na carta de notificação não foi invocado o reconhecimento judicial dos danos alegados pela recorrente nem indicado o montante mais ou menos concreto sobre tais danos, pelo que não é de concluir pela existência, exigibilidade e inexequibilidade do contracrédito invocado pela recorrente.
É verdade que pode haver a chamada compensação voluntária, contratual ou convencional, caso em que, havendo acordo das partes, a extinção das dívidas (ou créditos) opera-se “mesmo sem a verificação de alguns dos requisitos exigidos para a compensação legal”.14
No caso não estamos perante essa situação, pois não houve acordo de ambas as partes quanto à compensação, o que resulta expressamente do documento 5 junto aos autos pela Exequente (fls. 56 e verso), em que, acusando a recepção da carta de notificação enviada pela recorrente, a Exequente interpelou o pagamento imediato da quantia de HKD$10.671.604,00, por entender não haver no momento qualquer dívida da sua parte à recorrente, pelo que não havia lugar à aplicação do art.º 838.º do Código Civil nem a nenhuma compensação.
Assim, é de concluir pela não verificação de todos os requisitos para que se possa operar a compensação invocada pela recorrente.
Daí que se deve admitir como título executivo o documento particular dado à execução pela Exequente, em que se constata o reconhecimento por parte da ora recorrente de uma dívida com o montante determinado, conforme a disposição na al. c) do art.º 677.º do CPC.

3. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.

                 8 de Setembro de 2023
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai
1 Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 140.
2 José Lebre de Freitas, A Acção Executiva – à luz do Código Revisto, 3.ª Edição, pág. 141.
3 Eurico Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3.ª Edição, pág. 239.
4 Viriato de Lima, Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum, 3.ª Edição, pág. 569.
5 Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, 3.ª Edição, pág. 194.
6 Cfr. Ac. do TUI proferido no Processo n.º 32/2009.
7 Antune Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122.º, pág. 112.
8 José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª Edição, pág. 705.
9 José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, págs. 124 e 125.
10 Veja-se Código Civil de Macau Anotado e Comentado Jurisprudência, Livro II Direito das Obrigações, Volume X, anotações ao artº 838º, sendo que o elenco de requisitos que se segue é um resumo da nossa responsabilidade do que ali melhor se desenvolve.
11 Cf. artº 197º do C.Civ.
12 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7 edição, pág. 197.
13 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, pág. 204.
14 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, pág. 198.
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Processo n.º 57/2023