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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, Investigador Principal aposentado da Polícia Judiciária, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 17 de Janeiro de 2008, que determinou o cancelamento da licença de uso e porte de arma de defesa.
Por acórdão de 20 de Novembro de 2008, o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) concedeu provimento ao recurso e anulou o despacho recorrido.
Inconformado, interpõe o Secretário para a Segurança recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI).
Termina a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:
a) O regime geral que regulamenta o uso e porte de arma de defesa pessoal na RAEM, aprovado pelo DL n.o 77/99/M, prevalece, enquanto repositório de cláusulas de ordem pública geral, relacionadas com segurança pública, sobre qualquer estatuto pessoal, nomeadamente o da Lei n.° 5/2006.
b) O douto Acórdão omitiu a apreciação da bondade do fundamento que consubstancia a invocação do n.o 4 do art. 15.° da Lei n.o 5/2006, como um dos fundamentos, a par do art. 31.° do RAM, para o cancelamento da licença de uso e porte de arma do requerente.
c) Desprezando tal apreciação, o TSI jamais poderia alcançar uma correcta aplicação da lei, omissão que inquina o douto Acórdão ora recorrido, sendo causa de sua nulidade - art. 668.°, n.o 1, alínea d) do Código do Processo Civil, aplicável ex-vi art. 1.° do CPAC.

A Ex.ma Procuradora-Adjunta emitiu douto parecer em que se pronuncia pela procedência do recurso, na parte em que se alega nulidade, por omissão de pronúncia, por entender que o Acórdão recorrido considerou que os factores relativos à revelação de incapacidade física e/ou psíquica não constituíram fundamento para o cancelamento da licença, quando não foi assim.

II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
A) Já na situação de aposentado da PJ ao recorrente foi emitido o cartão constante de fls 34, pelo qual se assegura que o “portador ... tem o direito ao uso e porte de arma de defesa, independentemente de licença”.
B) Nada consta em seu desabono do respectivo registo biográfico em termos de sanções disciplinares.
C) Foi classificado em 1996 em 1997 com a classificação de “Bom”; em 1998 com “Muito Bom”; em 2002, 2003, 2004 com “Bom”, “Satisfaz” em 2004 e 2005.
D) Da prova produzida nos autos resultou que o recorrente lidou com investigação de casos criminais de alguma gravidade e relacionados com a criminalidade organizada, se tem manifestado receoso e intimidado, por causa disso.
E) Mostra-se pessoa idónea, calma, não agressiva, bondosa.
F) Em 17 Janeiro de 2008 o Secretário para a Segurança proferiu o seguinte despacho, referindo-se a recurso intentado pelo Investigador Aposentado A:
“O recorrente impugna o despacho do Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, que lhe cancelou a licença de uso e porte de arma, prevalecendo-se da falta de fundamentação e de erro nos pressupostos de facto como causa da sua invalidade jurídica.
Em presença do respectivo processo administrativo contacto de elementa probatórios bastantes e uma motivação conforme os seguintes legais (sic).
Com efeito, a fundamentação do acto há-de ser assente em factos adquiridos no processo, por forma a que o administrado perceba o circunstancialismo em que a sua pretensão é denegada, bem como o respectivo suporte legal. Não é o caso do despacho impugnado, do qual não se vislumbram os factos que motivam a solução legal encontrada.
Assim, nos termos do artigo 161° do Código de Procedimento Administrativo REVOGO o despacho impugnado, todavia,
Considerando os elementos constantes do processo administrativo organizado no Corpo de Polícia de Segurança Pública, oriundo da Polícia Judiciária e que caracterizam a conduta do requerente como agressiva, referindo-o como protagonista em 8 queixas por uso abusivo da força e ainda num caso de ameaças; considerando ainda outras referências a envolvimentos e proximidade relacional com elemento conotados como o crime organizado, participando em algumas das suas iniciativas, como decorre da informação constante de fols. 34 a 39; considerando, por fim, que o requerente está aposentado e se entender que o uso e posse de arma não constitui mais-valia relevante para a sua segurança pessoal, na medida em que a tal basta a segurança que lhe proporcionam as autoridades em igualdade de circunstâncias com o comum dos cidadãos,
No uso dos poderes de tutela que me confere o artigo 4.° do Regulamento Administrativo n.° 6/1994 e bem assim a competência que me advém da Ordem Executiva n.o 13/2000, determino o cancelamento da licença de uso e porte de arma concedida ao recorrente, A o que faço nos termos gerais do artigo 31.° do Regulamento de Armas e Munições aprovado pelo DL n.° 77/99/M, com os efeitos do seu artigo 32.° e, ainda, com referência ao artigo 15.°, n.o 4 da Lei n.o 5/2006, disposição à qual se remetem, alias, as informações da Direcção da Polícia Judiciária.
Notifique o recorrente nos termos gerais do Código de Procedimento Administrativo, através do CPSP, dando ainda, conhecimento ao Tribunal de Segunda Instância para efeitos do disposto nos artigos 81°, n.°s 1 e 3 do CPAC”.
Este é o acto recorrido.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
A primeira questão a apreciar é a de saber se o Acórdão recorrido omitiu pronúncia quanto à invocação, pelo acto administrativo, do disposto no n.º 4 do artigo 15.º da Lei n.º 5/2006.
A segunda questão a conhecer consiste em decidir se à autorização para o exercício do direito de uso e porte de arma de defesa por parte do pessoal de investigação criminal da Polícia Judiciária (aqui se incluindo os aposentados) e à revogação da respectiva autorização são aplicáveis os artigos 27.º e 31.º do Regulamento de Armas e Munições, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 77/99/M.

2. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia ou erro de julgamento
A entidade recorrente interpõe recurso com fundamento em nulidade do Acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, por o Acórdão não ter apreciado as questões atinentes à invocação, pelo acto administrativo, do disposto no n.º 4 do artigo 15.º da Lei n.º 5/2006.
O Acórdão recorrido, na verdade, não apreciou tais questões, que o acto administrativo abordou, embora com uma singela referência.
Contudo, o Acórdão recorrido explica porque não aprecia tais questões. Segundo o mesmo Acórdão, o acto administrativo não se fundamentou nos factores previstos na norma mencionada, o que, já vimos, é inexacto.
Quando assim sucede, isto é, quando a sentença omite a pronúncia sobre uma questão, sobre a qual se devia pronunciar, explicando a razão para essa omissão, tem-se suscitado - sobretudo na jurisprudência - o problema de saber se existe nulidade da sentença por omissão de pronúncia ou se o vício é, antes, de erro no julgamento.
Tem-se entendido que o vício é de erro no julgamento (vício de substância) e não omissão de pronúncia (vício formal). Assim, decidiu, por exemplo, o Tribunal Superior de Justiça, no seu Acórdão de 18 de Dezembro de 1995, no Processo n.º 3461.
Concordamos com este entendimento.
O Acórdão recorrido incorreu, pois, em erro no julgamento quando decidiu que o acto administrativo não se fundamentou nos factores previstos no n.º 4 do artigo 15.º da Lei n.º 5/2006 para cancelar ao Inspector aposentado a licença 2 de uso e porte de arma de defesa.
Adiante voltaremos a esta questão.

3. Direito ao uso e porte de arma de defesa
Previamente, há que decidir uma outra questão.
O recorrente do recurso contencioso é investigador aposentado da Polícia Judiciária.
O acto administrativo impugnado cancelou a licença de uso e porte de arma concedida ao recorrente, invocando normas de dois diplomas legais: o artigo 31.º do Regulamento de Armas e Munições, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 77/99/M, de 8 de Novembro e o artigo 15.º, n.º 4 da Lei n.º 5/2006, de 12 de Junho, Lei Orgânica da Polícia Judiciária.
O artigo 31.º do Regulamento de Armas e Munições dispõe o seguinte:
“Artigo 31.°
(Cancelamento das licenças)
As licenças a que se referem os artigos 27.°3 e 28.° podem ser canceladas sempre que ocorra comprovada modificação dos pressupostos da sua concessão, designadamente as relativas à necessidade, idoneidade e personalidade do seu titular, para além de razões de mera segurança e ordem públicas”.
O artigo 15.º, n.º 4 da Lei n.º 5/2006, Lei Orgânica da Polícia Judiciária, estatui o seguinte:
“Artigo 15.º
Uso e porte de arma
1. O pessoal referido no artigo 12.º da presente lei, bem como o pessoal de investigação criminal e auxiliar de investigação criminal, tem direito à detenção, uso e porte de arma de serviço, de calibre e tipo aprovados por despacho do Chefe do Executivo.
2. Após autorização do director, o pessoal referido no número anterior tem ainda direito ao uso e porte de arma própria de defesa, independentemente de licença, sendo, no entanto, obrigatório o seu manifesto, em conformidade com os trâmites legais.
3. O pessoal referido no n.º 1 conserva, após a sua aposentação, o direito ao uso e porte de arma de defesa, desde que nos últimos 5 anos de carreira não tenha sido punido com pena disciplinar de suspensão ou superior, cessando tal direito perante qualquer condenação, por sentença com trânsito em julgado, que revele indignidade ou falta de idoneidade moral.
4. Perdem ainda o direito ao uso e porte de arma de defesa o pessoal que a qualquer tempo revele incapacidade física e/ou psíquica para o efeito”.

O Acórdão recorrido considerou que o artigo 15.º da Lei Orgânica da Polícia Judiciária concede um direito de uso e porte de arma aos inspectores aposentados desta Polícia, sem prejuízo do seu cancelamento, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, pelo que não tem de ser chamado à colação o disposto no artigo 31.º do Regulamento de Armas e Munições, que não se aplica àquele pessoal.
Já para a entidade recorrente o disposto no artigo 31.º do Regulamento de Armas e Munições não só se aplica também aos inspectores da Polícia Judiciária, como prevalece sobre o seu estatuto pessoal, isto é sobre o disposto no 15.º da Lei Orgânica da Polícia Judiciária.
A razão está com o Acórdão recorrido.
O artigo 31.º do Regulamento de Armas e Munições aplica-se aos cidadãos em geral e, inclusive aos militarizados das Forças de Segurança de Macau, por força do n.º 5 do artigo 27.º.
Esse artigo 31.º estabelece as circunstâncias em que podem ser canceladas as licenças de uso e porte de arma de defesa e as licenças de uso e porte de arma de competição.
O direito de uso e porte de arma de defesa por parte do pessoal de investigação criminal da Polícia Judiciária está regulado no artigo 15.º da sua Lei Orgânica.
Ao contrário dos cidadãos em geral, este direito não depende de licença, como é expresso o n.º 2 do artigo 15.º, mas de mera autorização.
Em breve parêntesis lembramos que, em Direito Administrativo, a licença é um conceito diverso de autorização.
Como ensina MARCELLO CAETANO4 “Em sentido rigoroso, a autorização é o acto administrativo que permite a alguém o exercício de um seu direito ou de poderes legais. A entidade autorizada possui, pois, um direito ou certo poder mas o exercício deles está-lhe vedado antes que intervenha previamente o consentimento da Administração fundado na apreciação das circunstâncias de interesse público que possam tornar conveniente ou inconveniente esse exercício. Trata-se do condicionamento de um direito do particular ou do exercício da competência de um órgão ou agente da Administração (autorizações tutelares, delegações de poderes...).
A licença é o acto administrativo que permite a alguém a prática de um acto ou o exercício de uma actividade relativamente proibidos.
Diz-se relativa a proibição quando a lei admite que a actividade proibida seja exercida nos casos ou pelas pessoas que a Administração permita. Aqui, portanto, o administrado não tem direitos, visto que em princípio a actividade é proibida: mas a Administração pode conferir o poder de exercê-la, mediante licença”.
Assim, os dois diplomas legais mostram-se rigorosos.
Aos cidadãos em geral emitem-se licenças de uso e porte de arma de defesa, dado que a detenção e utilização destas armas é relativamente proibida.
Aos investigadores da Polícia Judiciária autoriza-se o uso e porte de arma própria de defesa, já que este é um direito de que eles gozam. Aliás, o n.º 2 do artigo 15.º da Lei Orgânica da Polícia Judiciária é expresso ao estatuir que eles não necessitam de licença para usar a arma, mas sendo obrigatório o manifesto desta, que é um documento identificando a arma.
Fechado o parêntesis, temos que tal autorização é da competência do Director da Polícia Judiciária e não do Comandante do Corpo de Polícia Segurança Pública.
Ao contrário do que sucede para os cidadãos em geral, o pessoal de investigação criminal tem direito ao uso e porte de arma de defesa bem como à detenção, uso e porte de arma de serviço, sem necessitar de demonstrar adequada idoneidade moral e civil ou a necessidade da arma para sua defesa pessoal ou de sua família e que possuem capacidade de manejo de arma de defesa, porque a lei certamente considera que estes requisitos são-no da condição de agente de investigação criminal.
Claro que este direito – que é conservado pelos aposentados, que nos últimos 5 anos de carreira não tenham sido punidos com pena disciplinar de suspensão ou superior – cessa em dois casos:
- Perante qualquer condenação, por sentença com trânsito em julgado, que revele indignidade ou falta de idoneidade moral (n.º 3 do artigo 15.º);
- Quando, a qualquer tempo, revele incapacidade física e/ou psíquica para o efeito.
Deste modo, o artigo 31.º do Regulamento de Armas e Munições não tem aplicação directa ao nosso caso. Bem andou o Acórdão recorrido ao decidir que as normas directamente aplicáveis são as do artigo 15.º da Lei Orgânica da Polícia Judiciária.

4. Pronúncia final
Como dissemos em 2., o Acórdão recorrido não apreciou as questões atinentes à invocação, pelo acto administrativo, do disposto no n.º 4 do artigo 15.º da Lei n.º 5/2006, ou seja, saber se o funcionário revela incapacidade física e/ou psíquica para o efeito de uso e porte de arma de defesa. O que devia ter feito.
Sem nos comprometermos, agora, com qualquer interpretação da mencionada norma, mas face às várias soluções plausíveis da questão de direito, parece prudente que seja levada à matéria de facto do Acórdão do TSI a prolatar em execução do presente Acórdão, as informações do processo administrativo (fls. 34 a 39), a que se refere o acto administrativo.

IV – Decisão
Face ao expendido, concede-se provimento parcial ao recurso, revoga-se, em parte, o Acórdão recorrido, devendo o TSI, em nova pronúncia, apreciar as questões a que nos referimos no número anterior.
Custas pelo recorrido, pelo parcial decaimento, fixando a taxa de justiça em 3 UC.
Macau, 29 de Junho de 2009


Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai – Chu Kin

A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei

1 Tribunal Superior de Justiça, Jurisprudência, 1995, II Tomo, p. 906.
2 Veremos que, em bom rigor, não se tratava de licença, mas de mera autorização.
3 O artigo 27.º refere-se à concessão de licenças de uso e porte de arma de defesa aos cidadãos em geral, maiores de idade, que demonstrem adequada idoneidade moral e civil, que demonstrem a necessidade da arma para sua defesa pessoal ou de sua família e que possuam capacidade de manejo de arma de defesa.
A concessão é da competência do Comandante do Corpo de Polícia Segurança Pública.
4 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, I, 10ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 1980, p. 459 e 460.
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1
Processo n.º 9/2009