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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso extraordinário de fixação de jurisprudência
N.º 20 / 2009

Recorrente: Ministério Público
Recorrida: A






   1. Relatório
   O Ministério Público vem interpor o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência por considerar que o acórdão ora recorrido do Tribunal de Segunda Instância proferido em 19 de Março de 2009 no processo de recurso penal n.° 572/2008 está em oposição com outro acórdão do mesmo Tribunal de 30 de Outubro de 2008 proferido noutro processo de recurso penal n.° 450/2008.
   Para tanto, apresentou as seguintes conclusões no requerimento de interposição do recurso:
   “1. O acórdão recorrido e o acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal de Segunda Instância em 30-10-2008 e no processo n.. 450/2008, decidiram, relativamente à mesma questão de direito, em sentido contrário.
   2. A tese sufragada no acórdão recorrido é que o pagamento de subornos do corruptor activo ao corrompido não pode integrar o crime de branqueamento de capitais.
   3. Partindo desta premissa, não fez o Tribunal indagação sobre a verificação dos elementos constitutivos do crime de branqueamento de capitais.
    4. No acórdão fundamento o Tribunal de Segunda Instância entendeu que a entrega de subornos do corruptor activo ao corrompido pode integrar o crime de branqueamento de capitais, desde que se verifiquem os elementos constitutivos deste crime.
   5. Verifica-se, assim, a existência de dois acórdãos que assentam em soluções opostas sobre a mesma questão de direito.
   6. Tais decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação.
   7. O acórdão recorrido já transitou em julgado, sendo insusceptível de recurso ordinário, atento o disposto no art.. 390.. n.. 1, al. f) do CPPM.
   8. O acórdão fundamento é anterior ao recorrido e também já transitou em julgado.
   9. É de entendimento pacífico que o crime de corrupção activa se consuma logo que a proposta de suborno, ou a anuência à sua prévia solicitação, cheguem ao conhecimento do funcionário, não sendo necessário o efectivo pagamento.
   10. Todos os actos posteriores com vista à transferência e ocultação desse suborno integram já o crime de branqueamento de capitais, pelo que se torna pertinente a indagação dos elementos constitutivos deste crime.
   11. E são distintos os bens jurídicos protegidos pela punição dos crimes de branqueamento de capitais e de corrupção activa.
   12. O douto acórdão recorrido violou o disposto no art.. 3.., n..s 1 e 2 da Lei n.. 2/2006.
   13. Pelo exposto e para fixação da jurisprudência, deve decidir-se que ‘a entrega de subornos de corruptor activo ao corrompido pode integrar o crime de branqueamento de capitais, desde que se verifiquem os elementos constitutivos deste crime’.”
   
   Na resposta, a recorrida entende que não há oposição de decisões nos dois acórdãos em causa e que a tese defendida pelo recorrente não está presente em nenhum destes acórdãos, pugnando que o recurso seja rejeitado por não verificação do pressuposto da oposição de julgados entre os acórdãos.
   
   No parecer, o Ministério Público mantém a posição assumida no requerimento de interposição do recurso e conclui pela admissibilidade do recurso.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   O fundamento do recurso de fixação de jurisprudência, como um recurso extraordinário, está previsto no art.º 419.° do Código de Processo Penal (CPP), na redacção dada pelo art.º 73.° da Lei n.° 9/1999 com a rectificação publicada no Boletim Oficial da RAEM de 24 de Janeiro de 2000:
   “1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
   2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
   3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
   4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.”
   
   As condições cumulativas de admissibilidade e prosseguimento do recurso são:
   1. Dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas (art.º 419.°, n.° 1 do CPP);
   2. No domínio da mesma legislação (art.º 419.°, n.ºs 1 e 3 do CPP);
   3. O acórdão fundamento foi proferido antes do acórdão recorrido e transitou em julgado (art.º 419.°, n.ºs 1 e 4 do CPP);
   4. Do acórdão recorrido não é admissível recurso ordinário (art.º 419.°, n.° 2 do CPP);
   5. A orientação perfilhada no acórdão recorrido não está de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância (art.º 419.°, n.° 2 do CPP).
   
   Estão em causa dois acórdãos do mesmo Tribunal de Segunda Instância. O acórdão fundamento, do processo n.° 450/2008, foi proferido em 30 de Outubro de 2008, anterior ao acórdão ora recorrido, e já transitou em julgado em relação aos arguidos B e C, que estão relacionados com o crime de branqueamento de capitais objecto de discussão no presente recurso (fls. 8 dos autos).
   No acórdão recorrido do processo n.° 572/2008, a parte referente à arguida A não é admissível recurso ordinário face à moldura penal dos crimes imputados nos termos do art.º 390.°, n.° 1, al. f) do CPP na redacção dada pelo art.º 73.° da Lei n.° 9/1999.
   Estará-se perante a mesma questão de direito, isto é, a qualificação do crime de branqueamento de capitais.
   Inexiste jurisprudência fixada sobre a questão em causa.
   
   Fundamentalmente é de apreciar se existe oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.
   Só há oposição de acórdãos quando estes assentem em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito.
   
   
   Para o recorrente, no acórdão fundamento na parte respeitante aos arguidos B e C, o Tribunal de Segunda Instância entende que a entrega de subornos do corruptor activo ao corrompido pode integrar o crime de branqueamento de capitais, desde que se verifiquem os elementos constitutivos deste crime.
   Por outro lado, no acórdão recorrido, foi decidido absolver a arguida A dos crimes de branqueamento de capitais, tendo em conta que a arguida colaborou com o arguido D que foi condenado pelos crimes de corrupção activa. Ou seja, o mesmo tribunal considera que o pagamento de subornos do corruptor activo ao corrompido jamais pode integrar o crime de branqueamento de capitais.
   Concluiu assim, o recorrente, pela existência de dois acórdãos que assentam em soluções opostas em relação à mesma questão de direito e tomou posição de aderir à decisão do acórdão fundamento.
   
   No entanto, vistas bem as fundamentações dos dois acórdãos em causa, não parece que haja oposição das soluções adoptadas neles sobre a qualificação do crime de branqueamento de capitais.
   No acórdão fundamento e em relação à parte do recurso do arguido B, o Tribunal de Segunda Instância entende:
   – O crime de branqueamento de capitais e os crimes que o originam concorrem em acumulação real quando praticados pelo mesmo agente, o que é possível porque o crime-base e de branqueamento protegem bens jurídicos diversos;
   – Considerados os factos provados, o Tribunal de Segunda Instância entende que são claros no sentido de que, por conjugação de vontades e de esforços (de B, E e F), foram praticados actos com o objectivo de dissimular o pagamento de quantias não devidas por parte de B a F;
   – Os montantes em causa, por constituirem a concretização de uma promessa de pagamento no âmbito da prática de um crime de corrupção, não pode deixar de constituir “vantagens ilícitas”, verificados estão tanto os elementos objectivos e subjectivos do crime de branqueamento de capitais;
   – De facto, cometeu o arguido B, em co-autoria com F, o crime de branqueamento de capitais, pagos como recompensa de um crime de corrupção passiva cometido por este último (fls. 115 a 117 do acórdão).
   E na parte respeitante ao arguido C, o Tribunal de Segunda Instância limitou-se a remeter para as considerações feitas para o arguido B (fls. 158 do acórdão).
   
   No acórdão ora recorrido, ao apreciar o mesmo crime de branqueamento de capitais imputado à arguida A, questão levantada quer no recurso do Ministério Público, quer no da própria arguida, o Tribunal de Segunda Instância considerou o seguinte:
   – O art.º 3.º, n.º 1 da Lei n.º 2/2006 onde está previsto o crime em causa, regime aplicável à arguida A por ser concretamente mais favorável, exige que o crime antecedente (ao crime de branqueamento de capitais) seja punido com pena de limite máximo superior a 3 anos de prisão para que o próprio crime de branqueamento de capitais seja punível;
   – No caso concreto, resulta da factualidade provada que a arguida colaborou com o arguido D, de quem era secretária, na dissimulação das vantagens por este prometidas pagar a F por crimes de corrupção entre estes cometidos;
   – O arguido D foi condenado como autor de 8 crimes de corrupção activa para acto ilícito e 7 crimes de corrupção activa para acto lícito, crimes estes puníveis com pena de prisão de limite máximo não superior a 3 anos;
   – Assim, e face ao estatuído no referido art.º 3.º, n.º 1 da Lei n.º 2/2006, impõe-se concluir que afastada está a punibilidade da conduta da arguida (fls. 165 do acórdão).
   
   De facto, dispõe assim o art.º 3.º, n.º 1 da Lei n.º 2/2006:
   “Para efeitos deste diploma, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de facto ilícito típico punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos, assim como os bens que com eles se obtenham.”
   
   No acórdão de fundamento, o Tribunal de Segunda Instância entende que o crime de branqueamento de capitais e os crimes que o originam concorrem em acumulação real e manter a condenação dos arguidos B e C pela prática do crime de branqueamento de capitais, em co-autoria com F, por terem realizados actos tendentes a dissimular o pagamento de quantias não devidas respectivamente por parte dos dois arguidos a F.
   E no acórdão ora recorrido, a posição do Tribunal de Segunda Instância é a seguinte: Mesmo que a arguida A tenha colaborado com o outro arguido D para dissimular as vantagens por este prometidas pagar a F por crimes de corrupção entre estes cometidos, a imputação do crime de branqueamento de capitais à arguida não procede, face à norma constante do n.º 1 do art.º 3.º da Lei n.º 2/2006, precisamente porque os crimes antecedentes do branqueamento praticados pelo arguido D são puníveis apenas com pena de prisão de limite máximo não superior a 3 anos.
   Isto é, a razão de decidir absolver a arguida dos crimes de branqueamento de capitais pelo Tribunal de Segunda Instância no acórdão recorrido não é o pagamento de subornos do corruptor activo ao corrompido não integrar o crime de branqueamento de capitais, mas sim por restrição à criminalização prevista no referido n.º 1 do art.º 3.º da Lei n.º 2/2006, pois a lei só pune o acto de branqueamento de capitais se for grave o crime antecedente (ou seja, punível com pena de prisão superior a 3 anos).
   
   Assim, é manifesto que não há contradição entre os dois acórdãos em causa, em ambos o Tribunal de Segunda Instância limita-se a qualificar as condutas no crime de branqueamento de capitais, segundo os factos provados diferentes, com o entendimento sobre o crime até aparentemente convergente.
   Sem verificar este requisito de soluções opostas, não é admissível o presente recurso.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso.
   Sem custas por o recorrente estar legalmente isento das mesmas.
   
   Aos 17 de Julho de 2009



Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

Processo n.º 20 / 2009 10