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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A (1.º), B (2.º) e C (3.º), intentaram acção declarativa com processo ordinário contra D (1.ª), E (2.ª), F (3.ª), G (4.º) e H (5.º).
O Ex.mo Juiz-Presidente do Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base julgou a acção parcialmente procedente e decidiu:
- Declarar resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o 1.º autor e a 1.ª ré;
- Condenar a 1.ª ré a pagar ao 1.º autor a quantia de MOP$12.047.680,00 (dobro do sinal prestado no contrato-promessa) e juros vencidos e vincendos à taxa legal desde 1 de Junho de 2001, da qual se desconta o capital mutuado pelo 3.º autor, ainda não amortizado, acrescido de juros à taxa acordada;
- Julgar improcedentes os demais pedidos dos autores;
- Absolver dos pedidos os 2.º, 3.º, 4.º e 5.º réus.
Em recurso interposto pelo 1.º autor, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), negou provimento ao recurso, mas reconheceu o direito de retenção ao 1.º autor da fracção XXX para habitação e 1/82 da fracção XX/X, para estacionamento, ambas do prédio urbano sito na [Endereço (1)], em Macau, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX, até que seja satisfeito o crédito do 1.º autor a que se refere a sentença de 1.ª instância.
Recorrem, agora, para este Tribunal de Última Instância (TUI), os 3.º e 4.º réus, do Acórdão do TSI, apenas na parte em que este reconheceu o referido direito de retenção ao 1.º autor.
Para tal, a 3.ª ré formulou as seguintes conclusões:
I. Antes da entrada em vigor do actual Código Civil, o beneficiário da promessa de transmissão que obteve a tradição da coisa não gozava do direito de retenção sobre a coisa, sendo apenas admitida a possibilidade de o crédito do mesmo ser pago pelo valor daquela com preferência sobre os outros credores comuns.
II. A promessa objecto dos presentes autos foi celebrada em 14 de Agosto de 1992 e, nessa data, o 1º autor obteve a tradição dos imóveis.
III. Não tendo o legislador atribuído eficácia retroactiva à norma prevista na alínea f) do n° 1 do artigo 745º do actual Código Civil, a mesma não é aplicável ao contrato em causa.
IV. O acórdão recorrido, ao aplicar o disposto na alínea f) do n° 1 do artigo 745º do actual Código Civil, viola o disposto no artigo 11º do actual Código Civil segundo o qual a lei só dispõe para o futuro.
V. E, ao não aplicar o disposto no artigo 2º da Lei n° 20/88/M, de 15 de Agosto, faz uma errada aplicação da lei.
O 4.º réu formulou as seguintes conclusões:
I. Se nas conclusões formuladas em recurso o recorrente de decisão do tribunal “a quo” formula pedido de que lhe deve ser reconhecido um direito real de garantia - direito de retenção - para assegurar um crédito, qual seja, de celebração do contrato prometido - que se julga extinto por impossibilidade de cumprimento, tanto no tribunal “a quo”, como no tribunal “ad quem”, o tribunal “ad quem” está impedido de lhe reconhecer direito de retenção para garantia de qualquer outro crédito, e o acórdão que assim o fizer padece de nulidade por condenar em objecto diverso do pedido - outra interpretação faz indevida aplicação dos arts. 563.°, n.º 3, por remissão do n.° 2 do art. 631.° do C.P.C., e 571.°, n.º 1, al. e), por remissão do art. 633.°, n.° 1, do CPC.
II. O 1.° A. nos pedidos que formulou nos autos nunca pretendeu ser reconhecido como possuidor em nome próprio dos imóveis que lhe foram traditados em consequência da celebração do contrato promessa entre ele e a l.ª R. pelo que lhe não pode ser concedida qualquer espécie de tutela possessória relativamente aos mesmos imóveis.
III. Havendo o contrato-promessa com “traditio” dos imóveis seu objecto sido celebrado na vigência do anterior Código Civil o promitente-comprador não goza do direito de retenção especial, consagrado no actual Código Civil de 1999, na al. f) do n.° 1, do art. 745.°.
IV. O direito genérico de retenção consagrado no art. 754.° do anterior Código Civil dependia da verificação cumulativa de três requisitos: 1) A detenção lícita de uma coisa que deve ser entregue a outrem; 2) Apresentar-se o detentor, simultaneamente, credor da pessoa com direito à entrega; 3) A existência de uma conexão directa e material entre o crédito do detentor e a coisa detida, quer dizer, resultante de despesas realizadas com ela ou de danos pela mesma produzidos. No caso “sub judice”, só se verifica o primeiro, já que relativamente ao segundo, a pessoa que tem direito à entrega, e que ainda não exerceu esse direito em virtude do presente litígio, é o seu actual proprietário, que não é devedor de qualquer prestação ao detentor da coisa, e relativamente ao terceiro, o crédito que se pretende garantir é a indemnização devida por outrem que não o credor da entrega da coisa pelo incumprimento do contrato promessa e consistente no pagamento do sinal prestado em dobro, não sendo pois despesas realizadas com a coisa retida ou de danos pela mesma produzidos.

II – Os factos
Os factos considerados provados pelos Tribunais de 1.ª e Segunda Instâncias, são os seguintes:
Matéria de Facto Assente:
A “D”, em chinês 丁, e em inglês D [alínea A)].
A “E”, em chinês 戊 e em inglês E, é uma sociedade comercial por quotas, matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e Automóvel de Macau sob o n° XXXX, e com o objecto de prestação de serviços de consultadoria para investimento, a construção de imóveis e a sua comercialização [alínea B)].
- A “F", no original em chinês 己 é uma sociedade comercial com sede na R. P. da China, que tem como objecto principal a venda por grosso e a retalho de material de aço inoxidável, material de construção, agulhas, artigos têxteis, matéria-prima e produtos petrolíferos [alínea C)].
- Existe um prédio urbano situado na [Endereço (1)], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n° XXXX a fls. XXX do Livro XXX, inscrito na matriz predial sob o n° XXXXX [alínea D)].
- Através de escritura pública realizada em 1 de Junho de 2001, a 1ª Ré, sociedade “D” declarou vender à 3ª Ré "F", entre outras, a fracção “X -XX” pelo preço de um milhão e duzentas mil patacas, sendo o seu valor fiscal de dois milhões e trinta e quatro mil e cem patacas; bem como dez oitenta e dois avos da fracção autónoma designada por XX/X do Rés do chão “X” para estacionamento pelo preço de seiscentas mil patacas, sendo o seu valor fiscal de um milhão duzentas mil e oitenta e sete patacas [alínea E)].
- O notário público que celebrou a escritura que se alude em E) expressamente advertiu os outorgantes nos seguintes termos: “Adverti o segundo outorgante, na qualidade em que este intervém, de que sobre todas as fracções objecto desta escritura, à excepção da fracção “XX/X”, está inscrita uma hipoteca voluntária a favor do [Banco (1)] com o fundamento de abertura de crédito em concessão de facilidades bancárias gerais, até ao valor global de HKD40,000,000.00, juros e despesas” [alínea F)].
- Através de escritura pública outorgada em 16/8/2001 a 3ª Ré vendeu a fracção “XXX”, bem como 1/82 avos da fracção “XX/X” ao 4º Réu, pelo preço, respectivamente de MOP$1,190,000.00 e de MOP$60,000.00 [alínea G)].
- Na Conservatória do Registo Predial, o direito de propriedade sobre a fracção “XXX” foi inscrito a favor da 1ª Ré em 11/1/1992; em 21/5/1992 foi inscrito uma hipoteca sobre o mesmo imóvel a favor do [Banco (1)]; em 1/6/2001 o direito de propriedade sobre a mesma fracção foi inscrito a favor da 3ª Ré, em 20/9/2001 o direito de propriedade sobre a fracção foi inscrito a favor do 4ª Réu [alínea H)].
Base Instrutória:
- Em 14 de Agosto de 1992, o 1º Autor A, como promitente-comprador, e a lª Ré, “D”, como promitente-vendedora, celebraram um contrato-promessa de compra e venda sobre a fracção XXX e o parque de estacionamento XXX (correspondente a 1/82 da fracção XX/X) do prédio referido em D), cujos termos constam do documento de fls. 95 e seguintes que aqui se dá por integralmente reproduzido (Resposta ao quesito 1º).
- O preço acordado foi de HKD$5,837,060.00, ou seja, MOP$6,023,840.00 (Resposta ao quesito 2º ).
- O A pagou a totalidade do preço acordado (Resposta ao quesito 3º ).
- Tendo entregue à “E”, que deu quitação, e à “D”, que recebeu o pagamento, a quantia acordada por meio de seis cheques no valor de HKD$583,706.00 em 14/08/1992; HKD$583,706.00 em 08/01/1994; HKD$291,853.00 em 10/05/1994; HKD$3,502,236.00 em 28/07/1995; HKD$291,853.00 em 29/07/1995; e HKD$583,706.00 em 29/07/1995 (Resposta ao quesito 4º ).
- O promitente-comprador A para suportar o pagamento do preço dos imóveis pediu um empréstimo ao [Banco (2)] prometendo hipotecar a favor do mesmo Banco as fracções referidas em 1) (Resposta ao quesito 5º ).
- Para isso obteve a concordância da “D” (Resposta ao quesito 6º ).
- Para tanto foi celebrado o acordo tripartido de compra e venda, mútuo e hipoteca, cuja cópia consta a fls. 113 e 114 e que aqui se dá por integralmente reproduzido (Resposta ao quesito 7º ).
- Nos termos desse contrato o promitente-comprador das fracções em causa, A, prometeu hipotecar, em simultâneo com a outorga da escritura pública de compra e venda, as fracções autónomas objecto dos respectivos contratos, XXX e XXX a favor do C para garantia a este do reembolso da quantia mutuada de HKD$3,800,000.00 (Resposta ao quesito 8º ).
- O respectivo saldo devedor por reembolsar até 17/02/2006, pelo Autor A é de HKD$1,092,711.00 (cfr. fls. 601) (Resposta ao quesito 9º ).
- No âmbito desse acordo a “D” obrigou-se expressamente perante o Autor a só celebrar a escritura pública de venda em simultâneo com aquela hipoteca (Resposta ao quesito 10º ).
- Para assegurar a boa cobrança do crédito do Banco e o cumprimento das promessa de hipoteca, o devedor e promitente-comprador A juntamente com a promitente-vendedora D acordaram ainda com o C que os direitos resultantes dos contratos-promessa para o A ficavam na disponibilidade do “C” até à celebração da escritura pública de compra e venda e hipoteca (Resposta ao quesito 11º ).
- E que em caso de incumprimento dos contratos por parte dos promitentes-compradores o “C” poderia exigir a “D” a transmissão da titularidade dos imóveis (Resposta ao quesito 12º ).
- E que só por si o “C” poderia requerer a execução específica do contrato em caso de incumprimento por parte da “D” (Resposta ao quesito 13º ).
- Não foi realizada a escritura da compra e venda das referidas fracções (fracção autónoma e parque) (Resposta ao quesito 15º ).
- O Autor A foi deixando protelar o assunto convencido que cedo ou tarde, consumariam a transferência da propriedade a seu favor (Resposta ao quesito 16º ).
- A “D” havia já transmitido a posse da fracção autónoma e do lugar de estacionamento em causa ao Autor A, entregando-lhe as chaves da fracção autónoma e indicando o lugar de estacionamento que este passou logo a utilizar (Resposta ao quesito 17º ).
- Logo após a celebração do contrato-promessa, procedeu à substituição da fechadura da porta da fracção e mandou instalar uma porta de ferro para garantir a sua segurança (Resposta ao quesito 18º ).
- Procedeu depois à limpeza e ocupação das mesmas, fazendo os necessários contratos com a SAAM e a CEM, e passando também desde esse momento a assumir o pagamento das despesas de condomínio (Resposta ao quesito 19°).
- À vista de todos, sem violência e sem a oposição de ninguém, comportando-se relativamente às respectivas fracções como seu único e verdadeiro proprietário (Resposta ao quesito 20°).
- Em finais de 2001, o Autor A efectuou diligências e soube que a fracção “X-XX” já havia sido vendido pela 1ª Ré à 3ª Ré, e por esta ao 4º Réu (Resposta ao quesito 21°).
- A “F” nunca pagou qualquer quantia a título de preço à “D” pelas fracções em causa (Resposta ao quesito 22º ).
- A “D” não teve qualquer intenção de vender as fracções em causa (Resposta ao quesito 23º ).
- A “D” tinha conhecimento perfeito sobre a existência do contrato-promessa com o Autor e de que este estava já na posse das fracções como se de seu verdadeiro proprietário se tratasse (Resposta ao quesito 25º ).
- A “F” e o G nunca se deslocaram ao imóvel antes da compra (Resposta ao quesito 27º ).
- O valor real das onze fracções autónomas desse edifício, aquando da celebração do contrato a que se alude em E), seria de, pelo menos, o triplo do valor declarado na escritura pública (Resposta ao quesito 29º ).
- As Rés efectuaram o pagamento do imposto de sisa no próprio dia de celebração da escritura pública (cfr. fls. 123) (Resposta ao quesito 36º ).
- A 2ª Ré “E” serviu apenas de intermediária na venda das fracções em causa (Resposta ao quesito 38º ).
- A sua actividade foi a de encontrar compradores para as fracções autónomas, redigir contratos promessa, receber os sinais e princípios de pagamento acordados, emitir os correspondentes recibos e entregá-los à 1ª Ré (Resposta ao quesito 39º ).
- A 2ª Ré cobrava uma comissão pelo desempenho destas funções (Resposta ao quesito 40º ).
- As quantias que lhe foram entregues, foram - no, em representação da 1ª Ré e, após o seu recebimento, a Ré “E” fez a entrega das mesmas à lª Ré (Resposta ao quesito 41°).”

III – O Direito
1. As questões a resolver
i) A primeira questão (colocada pelo 4.º réu) a abordar é a de saber se o Acórdão recorrido é nulo por condenar em objecto diverso do pedido. Alegadamente, segundo o 4.º réu, o 1.º autor, no recurso para o TSI, pretendia o reconhecimento do direito de retenção apenas como garantia da celebração do contrato prometido e não como garantia do cumprimento da obrigação de restituir o sinal em dobro, que foi aquilo que obteve do Tribunal de 1.ª Instância, confirmado pelo TSI. Ora, o TSI reconheceu o direito de retenção até que seja satisfeito o crédito respeitante à condenação no pagamento do sinal em dobro.
ii) No caso de a pretensão do 4.º réu - a que se refere a questão anterior - não proceder, examinar-se-á outra questão suscitada pelos 3.º e 4.º réus, que é uma matéria de aplicação de lei no tempo.
Tendo o contrato-promessa de compra e venda sido celebrado em 1992, entendem os réus, que não pode ser aplicada a alínea f) do n.º 1 do artigo 745.º do Código Civil, entrado em vigor apenas em 1 de Novembro de 1999 e que reconhece o direito de retenção sobre a coisa, ao beneficiário da promessa de transmissão de direito real que obteve a tradição da coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte.
iii) A entender-se que a alínea f) do n.º 1 do artigo 745.º do Código Civil vigente não se aplica ao caso dos autos, há que apurar – esta foi a tese do Acórdão recorrido – se na vigência do anterior Código Civil o promitente-comprador de imóvel que tivesse a tradição do mesmo, já beneficiava do direito de retenção pelo incumprimento da parte contrária, com fundamento na norma genérica do artigo 754.º do Código Civil anterior.

2. Nulidade do Acórdão recorrido
A primeira questão – atrás descrita – é manifestamente improcedente.
Ao contrário do que alega o 4.º réu, o 1.º autor, no recurso para o TSI, pretendia o reconhecimento do direito de retenção das fracções, não só para garantia da celebração do contrato prometido, mas, também como garantia do cumprimento da obrigação de restituir o sinal em dobro, se o TSI mantivesse a decisão da 1.ª Instância que condenou a 2.ª ré a pagar o sinal em dobro.
Isto é dito expressamente na conclusão XXXVI da alegação do recurso do 1.º autor para o TSI, que o 4.º réu transcreve na sua alegação de recurso para o TUI.
Diz tal conclusão XXXVI:
“Constitui, pois um direito de sequela conferindo ao titular do direito de retenção (ao promitente-comprador), a faculdade de não abrir mão da coisa, enquanto se não extinguir o seu crédito - à celebração do contrato prometido ou, se assim não se entender, o que no caso vertente não se concede, até ao cumprimento da obrigação de restituição do sinal em dobro”.
Logo, o TSI não condenou em objecto diverso do pedido.

3. Aplicação da lei no tempo em matéria de contratos
A alínea f) do n.º 1 do artigo 745.º do Código Civil actualmente vigente, entrado em vigor apenas em 1 de Novembro de 1999, reconhece o direito de retenção sobre a coisa, ao beneficiário da promessa de transmissão de direito real que obteve a tradição da coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte.
O Código Civil de 1966, vigente antes de 1 de Novembro de 1999, não reconhecia este direito de retenção ao promitente-comprador de imóvel.1
Quid juris, a alínea f) do n.º 1 do artigo 745.º do Código Civil vigente aplica-se ao caso dos autos?
Os factos pertinentes são os seguintes:
O contrato-promessa de compra e venda, pelo qual o 1.º autor prometeu comprar e a 2.ª ré prometeu vender as fracções, com pagamento integral do preço, foi celebrado em 1992.
A tradição das fracções para o promitente-comprador verificou-se na mesma ocasião.
Por escritura pública, de Junho de 2001, a 1.ª ré vendeu à 3.ª ré as fracções.
Por escritura pública, de Agosto de 2001, a 3ª ré vendeu ao 4.ª réu as fracções.
O Tribunal de 1.ª Instância decidiu declarar resolvido o contrato-promessa, por entender que a 1.ª ré incumpriu culposamente o contrato-promessa celebrado com o 1.º autor, transmitindo a propriedade das fracções para outrem. Esta decisão não foi objecto de recurso e transitou em julgado.
O Direito:
O preceito pertinente é o do artigo 11.º do Código Civil, onde se dispõe:
“Artigo 11.º
(Aplicação das leis no tempo. Princípio geral)
  
  1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
  2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
O Código Civil entrou em vigor em 1 de Novembro de 1999, como se disse. Só se aplica para o futuro, como menciona o n.º 1 artigo 11.º, e nenhuma norma atribuiu eficácia retroactiva ao artigo 745.º, que reconhece o direito de retenção ao promitente-comprador.
Mas a norma realmente relevante é a do n.º 2 do artigo 11.º, que contém dois comandos:
1.ª parte – Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos;
2.ª parte - Quando a lei dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
A interpretação das normas sobre aplicação da lei no tempo suscita inúmeros problemas. O nosso enfoque limitar-se-á ao domínio dos contratos, e em especial, às normas jurídicas imperativas que disciplinam este sector do Direito, ficando, pois, de fora, as questões atinentes às normas legais supletivas dos contratos.
No que concerne ao direito de retenção não estão em causa nenhumas condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos nem os efeitos de tais condições.
A validade formal ou substancial do contrato não está em causa. Se estivesse (forma do contrato, capacidade, vícios de consentimento), claro que a lei aplicável só poderia ser a vigente à data da respectiva celebração. Da mesma forma que quanto aos efeitos da invalidade do contrato só poderiam ser os previstos na lei do facto, isto é, da celebração do contrato2.
A norma relevante para o nosso caso é a segunda do n.º 2 do artigo 11.º:
Quando a lei dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Estão em causa as situações jurídicas constituídas na vigência da lei antiga que subsistem quando entra em vigor a nova lei.
Nestas situações, “ Se, porém, tratando-se do conteúdo do direito, for indiferente o facto que lhe deu origem, a nova lei é já aplicável”3.
Explica J. BAPTISTA MACHADO4:
“É fácil descortinar a ratio legis que está na base desta regra da aplicação imediata: por um lado, o interesse na adaptação à alteração das condições sociais, tomadas naturalmente em conta pela LN5, o interesse no ajustamento às novas concepções e valorações da comunidade e do legislador, bem como a exigência de unidade do ordenamento jurídico, a qual seria posta em causa, e com ela a segurança do comércio jurídico, pela subsistência de um grande número de SsJs6 duradoiras, ou até de carácter perpétuo, regidas por uma lei há muito ab-rogada”.
Tudo está em saber, então, e é aqui que se suscitam as maiores dúvidas, se quando a lei dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstrai ou não dos factos que lhes deram origem. Se abstrai, aplica-se a lei nova. Se não abstrai aplica-se a lei antiga.
Nesta matéria, “... a atitude aconselhável - na ausência de qualquer prescrição legislativamente reguladora do problema, ou manifestando-se dúvidas justificadas sobre o seu sentido, ou sobre a suficiência do seu fundamento prático-normativo – é a de ponderar o tipo concreto de concorrência de normas no tempo perante o qual se encontra o decidente e tentar compatibilizar praticamente os dois objectivos teoreticamente contrários: o da garantia da estabilidade das situações envolvidas e o da excogitação, para cada situação decidenda, da solução normativamente mais adequada”7.
Assim, por exemplo, celebrado um casamento na vigência da lei antiga, se a lei nova previr deveres de cooperação, de assistência, de contribuir para os encargos da vida familiar, não previstos na lei antiga, é manifesto que se aplica a lei nova, não podendo os cônjuges invocar a lei vigente à data da celebração do casamento para se eximirem aos deveres previstos na lei nova. Isto porque o que está em causa é o conteúdo da relação jurídica, sem relação com o facto que lhe deu origem (segunda parte do n.º 2 do artigo 11.º do Código Civil).
Da mesma forma, se uma nova lei introduzir o divórcio num ordenamento jurídico, ela aplica-se aos casamentos celebrados na vigência da lei antiga, sendo certo que quanto aos fundamentos de divórcio relativos a factos praticados pelos cônjuges, a nova lei só se aplicará aos factos praticados depois da sua entrada em vigor8.
Em matéria de contratos, a doutrina defende, em termos gerais, a aplicação da lei antiga, em homenagem ao princípio da autonomia da vontade.9
Mas mesmo aqueles que defendem esta teoria, na interpretação da segunda parte do n.º 2 do artigo 11.º do Código Civil, têm que conceder que, em muitos casos, se tem de aplicar a lei nova. É o caso, por exemplo, de FERNANDO JOSÉ BRONZE10, que opina que “Excepcionalmente, e sempre que exigências de ordem pública o determinem, pode, contudo, ter de privilegiar-se, em relação, nomeadamente, a contratos duradouros, o prescrito pela lei nova ... Pense-se em todos aqueles critérios inovadoramente instituídos pelo legislador e v. gr. colimados à protecção da parte socialmente mais fraca da relação contratual.”.
Por outro lado, no que se refere às disposições de carácter imperativo ou proibitivo da lei nova, que respeitam à violação do contrato, há-de aplicar-se, em princípio, a lei nova aos factos ocorridos na sua vigência11.
Por exemplo, celebrado um contrato de arrendamento na vigência da lei antiga, os direitos das partes fixados imperativamente na lei (por exemplo, os fundamentos de resolução do contrato por parte do senhorio) são, em nossa opinião, em regra, regulados pela lei nova, por ser irrelevante, para este efeito, a data da celebração do contrato. Isto quanto aos factos ocorridos na vigência da lei nova, bem entendido12.
A mesma ideia é defendida por ANTUNES VARELA13 relativamente aos efeitos da violação de contrato-promessa de compra e venda:
“É perfeitamente defensável a ideia – diferente – de que à violação ou infracção do contrato – não exclusivamente subordinada à vontade presumível das partes, mas também ao comando imperativo da lei – se aplique antes a norma vigente à data em que a violação ou infracção é cometida”.
É também esta a solução de direito transitório, estabelecida pelo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 39/99/M, para uma matéria respeitante ao regime dos contratos em que existe sinal14, em que o novo Código inova, a do direito à indemnização pelo dano excedente, previsto no n.º 4 do artigo 436.º: no que toca aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do Código há lugar a esta indemnização se o incumprimento ocorrer já na vigência da lei nova.
Não é difícil aplicar os princípios que se extraem dos exemplos mencionados ao caso dos autos.
A celebração do contrato-promessa de compra e venda e a tradição das fracções para o promitente-comprador ocorreram na vigência da lei antiga.
Mas o incumprimento da promitente-vendedora ocorreu na vigência da lei nova, em Junho de 2001, quando a 1.ª ré vendeu à 3.ª ré as fracções antes prometidas vender ao 1.º autor.
Ora, de acordo com a alínea f) do n.º 1 do artigo 745.º do Código Civil actual, o direito de retenção da coisa, de que goza o promitente-comprador de imóvel que obteve a sua tradição, refere-se ao conteúdo do direito do promitente-comprador, e só nasce com o incumprimento do contrato imputável à outra parte.
Retomando uma ideia atrás defendida por FERNANDO JOSÉ BRONZE, está-se, manifestamente, perante uma disposição destinada a defender a parte mais fraca da relação15, o promitente-comprador de imóvel que obteve a tradição da coisa (muitas vezes por ter pago a totalidade do preço, como aconteceu no caso).
E o direito de retenção previsto na lei é conferido por norma imperativa.
Ora, sendo o incumprimento do contrato por parte da promitente-vendedora, de Junho de 2001, nesta data já vigorava a lei nova, o novo Código, pelo que este é aplicável, nesta parte ao caso dos autos.
Em resumo, para os efeitos que aqui relevam é inteiramente desinteressante a data da celebração do contrato-promessa e da tradição das fracções, porque o que está em causa é o conteúdo de direito originado por facto ocorrido na vigência da lei nova.
Ao caso dos autos, aplicava-se, pois, o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 745.º do Código Civil actualmente vigente, pelo que os recursos são improcedentes.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento aos recursos.
Custas pelos recorrentes.
Macau, 05 de Dezembro de 2008.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai – Chu Kin

1 Neste sentido, o Acórdão deste TUI, de 1 de Dezembro de 2004, no Processo n.º 42/2004.
2 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. I, 4.ª ed., p. 61.
3 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código..., vol. I, 4.ª ed., p. 61.
4 J. BAPTISTA MACHADO, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, Casos de Aplicação Imediata, Critérios Fundamentais, Coimbra, Livraria Almedina, 1968, p. 96.
5 Abreviatura de Lei Nova.
6 Abreviatura de Situações Jurídicas.
7 FERNANDO JOSÉ BRONZE, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 773.
8 MÁRIO DE BRITO, Código Civil Anotado, edição do autor, 1968, Volume I, p. 29 e 30.
Já se uma lei nova vier a elevar a idade para contrair casamento, é evidente que não se aplica aos casamentos celebrados antes da sua entrada em vigor, por estarem em causa as condições de validade substancial do acto (primeira parte do n.º 2 do artigo 11.º do Código Civil).
9 Entre outros, J. BAPTISTA MACHADO, Sobre a Aplicação..., p. 103 e segs.
10 FERNANDO JOSÉ BRONZE, Lições .., p. 788 e nota (61).
11 Contra, J. BAPTISTA MACHADO, Sobre a Aplicação..., p. 103 e segs., em particular p. 112 a 121.
12 Mesmo não havendo normas de direito transitório aplicáveis, como sucede presentemente quanto aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do novo Código (artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto).
13 ANTUNES VARELA, anotação jurisprudencial, em Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128.º, p. 142 e 143.
14 Como se sabe, no contrato-promesa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor (artigo 435.º do Código Civil).
15 Ideia esta que perpassa pelo regime do contrato-promessa, designadamente, quando no n.º 2 do artigo 820.º, se concede a execução específica ao promitente-adquirente que obteve a tradição de prédio ou fracção autónoma, ainda que tenha havido convenção em contrário relativamente à possibilidade de execução específica. Cfr., sobre este mecanismo de tutela dos interesses do promitente-adquirente, o texto do Coordenador da Comissão que elaborou o projecto de Código Civil, a p. XXII, nota 13 da Nota Justificativa constante do texto do Código Civil, publicado pela Imprensa Oficial de Macau, 1999.
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Processo n.º 41/2008