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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 23 de Julho de 2009, concedeu parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido A, da decisão do Tribunal Colectivo do Tribunal Criminal, que o condenou na pena de 14 (catorze) anos de prisão como autor, pela prática de um crime de homicídio, previsto e punível pelo artigo 128.º do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática de um crime de coacção consumada, previsto e punível pelo artigo 148.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão pela prática de um crime de uso de arma proibida previsto e punível pelo artigo 262.º, n.º 1 do Código Penal e, em cúmulo jurídico, na pena única de 15 (quinze) anos e 6 (seis) meses de prisão.
O TSI apenas alterou o decidido na 1.ª Instância, considerando o crime de coacção apenas na forma de tentativa, reduzindo a punição, para 4 (quatro) meses de prisão, e em consequência, o cúmulo jurídico, que fixou na pena única de 15 (quinze) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
  Inconformado, interpõe o arguido recurso para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo:
a) Em face de falta de fundamentação seja revogada a decisão ora recorrida e absolvido o recorrente, ou, se assim não for entendido,
b) Seja dado como verificado o vício de erro notório na apreciação da prova e se determine o reenvio do processo para novo julgamento a fim de sanar tal vício.
E formula as seguintes conclusões:
1ª É admissível o presente recurso para essa Alta Instância.
2.ª Imputa o recorrente ao Acórdão explicitado pelo Tribunal de Segunda Instância o vício de falta de fundamentação e o vício de erro notório na apreciação da prova constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
3.ª Face às disparidades do depoimento da testemunha ocular e das declarações prestadas pelo arguido e entre estas e a matéria provada, ter-se-à que concluir pela verificação de erro notório na apreciação da prova quando se dá por demonstrado que o arguido, ora recorrente teve a intenção de matar a malograda vítima.
4.ª Os elementos de prova que se colocam em causa e ora se discutem estão bem explanados no acórdão do tribunal colectivo, na parte concernente à convicção do tribunal.
5.ª Verifica-se erro notório na apreciação da prova que deverá determinar a anulação do julgamento e o reenvio para novo julgamento para que o vício seja sanado.
6.ª O enunciar de mero princípios de meros conceitos genéricos continua a não constituir fundamentação suficiente.
7.ª Não tendo o Tribunal Colectivo concretizado tais princípios e conceitos genéricos à luz do presente caso, continua a verificar-se falta de fundamentação pois não é devidamente esclarecido.
Na resposta à motivação do recurso o Ex.mo Delegado do Procurador defendeu a rejeição do recurso.
No seu parecer, a Ex.ma Procuradora-Adjunta considera que, quanto à falta de fundamentação, o recorrente não indicou a norma violada, nem o sentido em que o tribunal recorrido interpretou a norma nem o sentido em que ela deveria ser interpretada, pelo que o recurso deve ser rejeitado, nos termos do artigo 402.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Assim, não se entendendo, considera a Ex.ma Procuradora-Adjunta, que não se verifica a ilegalidade apontada, nem o vício de erro notório na apreciação da prova.

II – Os factos
As instâncias consideraram provados e não provados os seguintes factos:
Desde dia não apurado, o sogro B do ofendido C teve conflito de dívida com o arguido A.
Para resolver o conflito em causa, tendo o arguido A negociado com C , mas não teve nenhum resultado.
Na madrugada do dia 22 de Agosto de 2007, o arguido A teve um encontro com C através de D.
Posteriormente, C conduziu o seu carro particular de matrícula n.º MH-XX-XX até ao Karaoke “E” sito no Bairro da Areia Preta e levando o arguido A, F e G.
Ao conduzir nas proximidades do Posto Operacional do Corpo de Bombeiros na Areia Preta, o arguido A, que ficou sentado no banco de trás do carro, pediu para sair do carro para retirar em casa dele o computador portátil.
Saído do carro, o arguido A regressou à sua casa sita na [Endereço (1)] para munir-se de uma faca e a trazer consigo.
Posteriormente, C conduziu o seu carro para voltar a levar o arguido A.
Quando o carro passou pela Escola Secundária “Hou Kong”, o arguido A, que ficou sentado no banco de trás do carro, exigiu várias vezes a C a chamar a comparência do sogro dele para resolver o conflito de dívida.
Respondendo C: “Se ele fosse o teu sogro, ias tu chamá-lo para sair fora da casa?”
Quando o carro aproximava-se do semáforo do Jardim de Vasco da Gama, o arguido A estava a segurar a referida faca na mão, apontando-a com força para a barriga de C e dizendo-lhe: “Chamas o teu sogro para sair fora da casa rapidamente!”
Irritado, C respondeu-lhe: “Ou me matas, não vou chamar o meu sogro para sair.”
Perante tal situação F e G, que ficavam sentados dentro do carro, aconselharam de imediato o arguido A a guardar bem a faca, a qual acabou de ser guardada pelo mesmo.
Por volta de 4h20m do mesmo dia, C conduziu o seu carro até a proximidades do Mercado Municipal da Horta e Mitra e estacionando o seu carro na Rua de Henrique de Macedo à frente do Restaurante H, saíram do carro C , o arguido A, F e G .
Logo a seguir, C e F, em conjunto com I e J que vieram ambos de seguida de motociclo, andaram a pé na Rua de Henrique de Macedo à direcção da Rua de Chan Loc, seguidos pelo arguido A e G.
Ao virarem para a escada da Rua de Chan Loc, o arguido A, que ficava de trás, andou de súbito para frente para aproximar-se de C e espetou, com força e rapidez, na barriga deste com a referida faca munida na mão.
Depois de ter sido espetado, C andou num lugar perto da porta de um restaurante denominado “甲甲” apanhou uma garrafa de cerveja em cima da mesa e atirando-a contra o arguido A, e chegou a cair no chão por debilidade e fraqueza do corpo.
Às 5h05m do mesmo dia, C foi transportado numa ambulância para a urgência do Centro Hospitalar de Conde São Januário e foi confirmada a morte às 5h15m (cfr. Certidão de óbito a fls. 260 a 261 dos autos).
O acto praticado pelo arguido A com detenção de faca contra C, produzindo-lhe directa e necessariamente as lesões corporais descritas no relatório da autópsia do cadaver a fls. 679 a 686 dos autos (cfr. o referido relatório) e causou-lhe a morte por motivo destas múltiplas lesões de órgãos abdominais combinadas com o choque hemorrágico.
Depois de ter espetado a faca a C, o arguido A virou-se para trás e pondo-se, de seguida, em fuga do local da ocorrência.
Ao atravessar o cruzamento entre a Rua da Colina e a Rua de Horta e Costa, o arguido A limpou as manchas de sangue deixadas na faca com lenços de papel, deixando a faca no chão de uma tendinha fechada.
Pelas 5h30m do dia 22 de Agosto de 2007, agentes de PJ descobriram uma faca de talho no total 39,5cm de comprimento, com lâmina de 24,5cm, com largura de 4,2cm e com cabo de 15cm (cfr. O auto de apreensão a fls. 44 e o auto de exame directo a fls. 462) e alguns lenços de papel manchados com sangue.
Depois de efectuado o exame laboratorial, verificaram-se que as manhas deixadas na lâmina da referida faca têm o DNA de C e a fita de pano enrolada no cabo da faca tem o DNA do arguido A.
A referida faca de talho foi retirada pelo arguido A da casa dele, sendo um instrumento utilizado no momento de espetar a C.
O arguido A utilizou a referida faca de talho para espetar, com força, na barriga de C com a intenção de matá-lo.
O arguido A retirou da casa dele a referida faca de talho e trouxe consigo a mesma faca, tinha o objectivo de utilizá-la para praticar tal acto agressivo contra C.
O arguido A agiu livre, voluntária e conscientemente praticando com dolo a referida conduta.
O arguido A sabia perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Antes de preso, o arguido era comerciante, auferindo um salário mensal no valor de MOP$20.000 a MOP$30.000.
O arguido é divorciado e ficando a seu cargo a mãe.
O arguido confessou alguns factos e não é primário.
Factos não provados: Nenhum ficou por assinalar.
Juízo de Factos:
Sintetizadas as declarações prestadas pelo arguido na audiência de julgamento, a narração clara da ocorrência do caso feita pelas testemunhas G e J na audiência de julgamento, as declarações prestadas pelas testemunhas D, N, L, M, 3 agentes da PJ, 1 guarda da PSP e 1 bombeiro na audiência de julgamento, o relatório da autópsia do cadáver (fls. 260 a 261 e fls 679 a 686 dos autos), o exame laboratorial (fls. 693 a 708 dos autos), o auto de exame direito (fls. 462 dos autos), as fotografias (fls. 16 a 32, fls. 46 a 51, fls. 159 a 162, fls. 244 a 255 e fls. 463 dos autos), o relatório social do arguido (fls. 939 a 943 dos autos) e outras provas documentais, este Tribunal Colectivo formulou um juízo sobre os factos.
  
III - O Direito
1. As questões a resolver
Trata-se de saber se o Acórdão recorrido julgou mal ao entender que o Acórdão de 1.ª Instância não enfermava de falta de fundamentação e de erro notório na apreciação da prova.

2. Vício das conclusões da motivação do recurso
No que se refere à falta de fundamentação do Acórdão de 1.ª Instância, o arguido, no presente recurso, apenas impugna a “ausência de qualquer argumento de facto e de direito” que “torna impossível descortinar os fundamentos em que se baseou a escolha e a medida da pena aplicada”.
Quanto a este fundamento, entende a Ex.ma Procuradora-Adjunta que o recorrente não indicou a norma violada, nem o sentido em que o tribunal recorrido interpretou a norma nem o sentido em que ela deveria ser interpretada, pelo que o recurso deve ser rejeitado, nos termos do artigo 402.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Ora, independentemente de saber se um hipotético vício das conclusões da motivação do recurso implica a imediata rejeição do recurso, nos termos do artigo 402.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, ou se, antes pelo contrário, deve o Tribunal, previamente, convidar o recorrente a aperfeiçoá-las, corrigindo o vício – questão que aqui não abordaremos, por desnecessário – não nos suscita qualquer dúvida que a norma violada, para o recorrente, é a do artigo 356.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que determina que a sentença condenatória especifique os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada, dada a referência da motivação aos termos previstos naquela norma.
Por outro lado, está implícito que o recorrente entende que o Acórdão de 1.ª Instância aplicou a mencionada norma, bastando-se com o “enunciar de meros princípios” e de “meros conceitos genéricos”, sendo que o sentido em que aquela norma deveria ser interpretada e aplicada, para o recorrente, consta da sua conclusão 6.ª : “O enunciar de mero princípios de meros conceitos genéricos continua a não constituir fundamentação suficiente”.
Pois bem, quando o Tribunal – apesar de insuficiências na redacção das conclusões da motivação do recurso – não tem dúvidas quanto às normas jurídicas que o recorrente julga violadas, bem como o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou aplicou a norma e o sentido em que ela devia ser interpretada e aplicada, deve conhecer-se do recurso e não rejeitá-lo, atento o princípio geral do direito processual da sanação oficiosa das irregularidades processuais e da falta de pressupostos processuais (artigo 6.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, entre outros).
Conheceremos, pois, da questão suscitada.

3. Fundamentos da medida da sanção aplicada
No presente recurso apenas está em causa o crime de homicídio, atenta a competência do TUI, estando, pois, excluídas as questões atinentes aos outros dois crimes pelos quais o recorrente foi condenado [artigo 390.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal].
Estatui o n.º 1 do artigo 356.º do Código de Processo Penal que “A sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada ...”.
O crime de homicídio é punido com a pena de prisão de 10 a 20 anos (artigo 128.º do Código Penal).
Logo, não existe qualquer possibilidade de escolha da sanção aplicada, pois esta é apenas uma, a pena de prisão.
Portanto, só estão em causa os fundamentos da medida da sanção aplicada.
O Tribunal aplicou a pena de 14 anos de prisão.
Pois bem, os fundamentos essenciais de qualquer medida de sanção, seja de prisão, seja de multa ou outra, são sempre os factos da causa. São estes que justificam, entre o mínimo e o máximo da sanção em causa, a medida concreta da sanção.
Ora, os factos provados e não provados, ficaram perfeitamente estabelecidos. Por eles se descortina o grau de ilicitude do facto, o modo da execução do crime e o intensíssimo dolo do arguido.
Sabemos também, pelos factos provados, que o arguido não era primário e que confessou apenas alguns factos.
Além disso, o Acórdão condenatório refere-se à perturbação da paz e tranquilidade públicas que a acção do arguido causou, à crueldade do arguido e à elevada gravidade dos seus actos.
Poder-se-ia ter ido mais longe? Provavelmente, poderia. Mas mais importante que grandes justificações sobre a medida da pena, é que a pena concreta seja justa. Ora, o arguido nem sequer põe em causa a justeza dos 14 anos de prisão, pela prática do crime de homicídio.
Afigura-se-nos que foi cumprido o comando legal.
Improcede a questão suscitada.

4. Insuficiência da fundamentação prevista na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 356.º do Código de Processo Penal
De qualquer modo, ainda que a sentença condenatória não tivesse cumprido, com rigor, a determinação legal, resta saber qual seria a consequência jurídica de tal violação legal.
Tanto em processo penal, como em processo civil, a sentença é nula se houver omissão total dos fundamentos de direito (só estes estão em causa, neste momento). É o que resulta, respectivamente, da alínea a) do artigo 360.º do Código de Processo Penal e da alínea b) do n.º 1 do artigo 571.º do Código de Processo Civil.
Em processo civil, é pacífico que a mera insuficiência da fundamentação jurídica não gera nulidade da sentença, nem comporta qualquer sanção. Trata-se de mera irregularidade, sem consequência específica. A sentença é, então, apreciada pelo seu mérito intrínseco. Se, apesar de mal fundamentada, a decisão estiver conforme com a correcta aplicação do direito, esta será mantida. Se não, será revogada. O inverso também é verdadeiro: se a sentença, apesar de conter suficiente fundamentação jurídica, aplicar mal o direito, ela será revogada.
Ou seja, em processo civil, só a total falta de fundamentação jurídica gera nulidade.
E em processo penal, qual a consequência da insuficiente fundamentação de direito, em particular no que concerne à violação da primeira parte do n.º 1 do artigo 356.º do Código de Processo Penal?
A sentença não é nula, dada a taxatividade dos fundamentos de nulidade de sentença previstos no artigo 360.º do Código de Processo Penal.
Especificamente, que a nulidade só ocorre no caso de omissão dos elementos mencionados no artigo 360.º do Código de Processo Penal, e não já no de insuficiência dos mesmos elementos, pronunciam-se LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS1
Estes mesmos Autores entendem que a falta dos elementos previstos no artigo 356.º, n.º 1, constitui mera irregularidade2.
Tal irregularidade estaria sujeita ao regime do artigo 361.º, n.º 1, alínea b) – por se tratar de erro cuja eliminação não importaria modificação essencial da sentença – e do artigo 361.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, consistindo em correcção da sentença pelo TSI.
E tal correcção não teve lugar porque o Acórdão recorrido considerou não ter havido insuficiente fundamentação.
Improcede a questão suscitada.

5. Erro notório
Por fim, invoca o recorrente o vício do erro notório da apreciação da prova.
Baseia-se nas “disparidades do depoimento da testemunha ocular e da declaração prestada pelo arguido e entre estas e a matéria provada” na parte em que se entendeu que o arguido tinha como objectivo a morte da vítima.
Não se detecta qualquer erro notório na apreciação da prova. O que temos é a livre apreciação da prova por parte do Tribunal.
Na verdade, tem-se entendido haver erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto uma conclusão inaceitável, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou quando se violam as regras da experiência ou as legis artis na apreciação da prova. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores.
Não invoca o recorrente nenhuma circunstância que se possa qualificar como integrando o erro notório.
Quando o tribunal dá como provada a intenção de matar tem em conta um conjunto de circunstâncias, que não se podem reduzir a declarações de testemunhas ou arguidos. Entram, também, aqui as regras da experiência, o exame da agressão e da parte do corpo da vítima atingida, a arma utilizada, o parecer pericial médico.
Improcede, assim, o vício suscitado.

IV – Decisão
Face ao expendido, rejeitam o recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 6 UC. Nos termos do art. 410.º n.º 4 do Código de Processo Penal, pagará 3 UC pela rejeição do recurso.
Macau, 23 de Setembro de 2009.
   Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código de Processo Penal de Macau, 1997, p. 753.
     2 LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código..., p. 753. No mesmo sentido, PAULA MARQUES CARVALHO, Manual Prático de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 2007, p. 365.
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1
Processo n.º 25/2009