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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 2 de Julho de 2009, rejeitou o recurso interposto pela arguida A, da decisão do Tribunal Colectivo do Tribunal Criminal que a condenou na pena de 8 (oito) anos e 1 (um) mês de prisão e na multa de MOP$5.000,00 (cinco mil patacas), ou em alternativa a esta, em 33 (trinta e três) dias de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punível pelo art. 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro.
Inconformada, interpõe recurso para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões:
- O tribunal a quo e o tribunal recorrido não consideraram de forma suficiente a afirmação da recorrente de que levara os estupefacientes para Macau sem a intenção de os vender, nem a possibilidade de os mesmos servirem para consumo próprio, revelada pela quantidade e unidade de espécie dos estupefacientes levados, pelos instrumentos acompanhados, bem como pelos outros factos.
- A recorrente tinha apenas 19 anos ao cometer o crime, pelo que tinha pouca experiência social. É delinquente primário, e já se mostrou arrependida sinceramente, apercebendo-se do mal que os estupefacientes trouxeram para a sociedade e para ela própria (pode-se tirar essa conclusão através do grande volume de cartas escritas pela recorrente ao tribunal). E atendendo ao facto de a recorrente ter levado os estupefacientes apenas para consumo próprio, a pena de prisão de 8 anos e 1 mês é demasiado pesada para um jovem como a recorrente.
- De acordo com o artigo 40.°, n.° 1 do CPM, a finalidade de punição consiste não apenas na qualificação do crime e na determinação da pena, mas também na salvaguarda dos bens jurídicos da sociedade e do agente, incluindo os interesses públicos, a segurança social e a paz social. Por outro lado, também o interesse dos criminosos. Ou seja, não só determinar a pena concreta em função do grau e gravidade do crime, mas também e o mais importante, educar o próprio criminoso para o mesmo não voltar a cometer crimes e no futuro poder reinserir-se na sociedade. Pelo que uma pena de prisão de longa duração será desfavorável à reintegração da recorrente, e por consequente não poderá realizar a finalidade de punição, violando assim o disposto nos n.°s 1 e 2 do artigo 40.° do CPM, isto é, o objectivo de reinserção da recorrente e o princípio de que em qualquer das situações a pena não pode ultrapassar o grau de culpa.
- A determinação da medida de pena prevista no artigo 65.° do CPM é a reflexão do princípio de que a pena não pode ultrapassar a culpa, e também o mesmo espírito do artigo 40.°, n.° 2 do CPM, ou seja, quando houver circunstâncias concretas que mostrarem mais favoráveis à recorrente, deve fazer a atenuação especial da pena nos termos do artigo 66.° do CPM, e só assim é que se pode reflectir e garantir os bens jurídicos do agente. Face uma moldura penal cujo limite mínimo é de 8 anos, atendendo à natureza do crime que a recorrente cometeu, há espaço para atenuar a pena.
- Visto que o tribunal a quo e o tribunal recorrido não consideraram todas as circunstâncias de atenuação especial da pena, foi violado o disposto no artigo 40.°, n.°s 1 e 2 e nos artigos 65.° e 66.° do CPM. Por não ter ponderado todas as circunstâncias favoráveis à recorrente, existe vício na determinação da medida de pena, pelo que a pena assim determinada é demasiado pesada, constituindo fundamento de recurso previsto no n.° 1 do artigo 400.° do CPM.
- Atendendo aos factos contados pela recorrente, os fundamentos jurídicos por ela alegados e a situação económica dela, a pena deve ser reduzida para 7 anos de prisão efectiva e MOP 3,000 de multa.
Na resposta à motivação do recurso o Ex.mo Delegado do Procurador defendeu a rejeição do recurso.
No seu parecer, a Ex.ma Delegada do Procurador manteve a posição já assumida.

II – Os factos
As instâncias consideraram provados e não provados os seguintes factos:
- Em 4 de Dezembro de 2007, pelas 17H55, a arguida, A, foi interceptada por um verificador alfandegário no posto alfandegário das Portas do Cerco.
- Foi revistada a arguida e foram-lhe encontrados os seguintes objectos:
a. Na mala de mão foi encontrado uma caixa de cigarros, dentro da qual havia um saco plástico transparente constante de 27 comprimidos de ecstasy (vide o auto de apreensão a fl. 9).
b. Num saco de papel de cor castanha clara foi encontrado um saco para guardar pensos higiénicos, no qual havia um saco plástico transparente de cor azul contendo 60 comprimidos de ecstasy (vide o auto de apreensão a fl. 9).
c. Na mala de mão havia algumas folhas de papel de alumínio e um saco plástico transparente (vide o auto de apreensão a fl. 8).
- Os comprimidos pesam, na totalidade, 8,420 gramas. Após o exame laboratorial, revelaram ter metanfetamina com peso líquido de 0,816 gramas, representando 1,90% e 12,99% do peso total. (sic)
- Verificaram-se traços de metanfetamina no saco plástico transparente referido.
- A substância de Metanfetamina está abrangida na Tabela II-B do Decreto-Lei n° 5/91/M, de 28 de Janeiro.
- Os comprimidos mencionados foram entregues à arguida pelo seu namorado, B, num dia incerto em Novembro de 2007, pelas 20H00, em Gongbei de Zhuhai, para a venda a outrem.
- A arguida veio a Macau em 4 de Dezembro de 2007 trazendo com ela os referidos comprimidos.
- A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente.
- Conhecia bem a característica e natureza dos referidos estupefacientes.
- Ela recebeu, deteve e transportar para Macau os ditos estupefacientes, não para consumo próprio mas para entregar ou vender a terceiros.
- A arguida estava ciente de que a sua conduta era proibida e punida pela lei.
- A arguida era empregada de mesa antes de ser presa, auferindo um salário mensal de RMB 1.000.
- É solteira e não tem ninguém a seu cargo.
- Confessou todos os factos e manifestou arrependimento sincero. É primária.
Factos não provados: Nenhum.

III - O Direito
1. As questões a resolver
A recorrente vem pedir, agora, a redução da pena a que foi condenada. Mas não suscitou a questão no recurso para o TSI, que, aliás, manteve a referida pena. Por se tratar de questão nova, que não é de conhecimento oficioso, dela não conheceremos, visto que o recurso para o TUI tem por objecto a decisão do TSI, que não apreciou a questão por não lhe ter sido colocada.
Por outro lado, a questão suscitada no recurso para o TSI, não a voltou a recorrente a suscitá-la agora, pelo que não cabe, obviamente, apreciá-la.
Nada havendo a conhecer, impõe-se a rejeição do recurso.
Não obstante, importa conhecer de uma questão, que é esta: já após condenação da arguida e até da apreciação do seu recurso para o TSI, entrou em vigor um diploma legal – Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto - que pune o tráfico de estupefacientes e que revogou a lei ao abrigo da qual a arguida foi condenada.
Ora, de acordo com o n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal:
“Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se já tiver havido condenação transitada em julgado”.
Como a condenação da arguida ainda não transitou em julgado, cabe apurar qual dos dois regimes penais é “concretamente se mostrar mais favorável ao agente”, porque esse será o aplicado.

2. Aplicação da lei penal no tempo. Critérios
Quando a lei impõe a aplicação do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, quer dizer que “a um critério de comparação em abstracto das leis concorrentes, deve preferir-se um critério que atenda à particular configuração do caso concreto em ordem à determinação da lei mais favorável”1.
Isso “pressupõe que o tribunal realize todo o processo de determinação da pena concreta ... face a cada uma das leis, a não ser, como é óbvio, que seja evidente, numa simples consideração abstracta, que uma das leis é claramente mais favorável que a outra”2. O que sucederá, por exemplo, quando o mínimo da penalidade de uma das leis for superior ao máximo da penalidade da outra lei.
Tem-se discutido se, no confronto entre os regimes aplicáveis, a ponderação deve ser unitária ou diferenciada3. No caso dos autos essa questão não se põe, pelo que não a abordamos aqui.

3. A pena da arguida de acordo com a Lei n.º 17/2009
A Lei n.º 17/2009 tem uma estrutura semelhante ao diploma que veio substituir, o Decreto-Lei n.º 5/91/M. No que respeita às disposições penais contém basicamente tipos de ilícito. Não estão em causa alterações relativas a causas de justificação ou a condições de punibilidade.
Os tipos que se referem ao tráfico ilícito de estupefacientes estatuem o seguinte:
“Artigo 8.º
Trafico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas
  1. Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser a venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos.
  2. Quem, tendo obtido autorização mas agindo em contrário da mesma, praticar os actos referidos no número anterior, é punido com pena de prisão de 4 a 16 anos.
  3. Se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na Tabela IV, o agente é punido com pena de prisão:
  1) De 6 meses a 5 anos, no caso do n.º 1;
  2) De 1 a 8 anos, no caso do n.º 2”.
“Artigo 10.º
Agravação
  As penas previstas nos artigos 7. º a 9. º são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo se o agente:
  1) Praticar os factos por intermédio de associação criminosa ou de sociedade secreta;
  2) For médico, farmacêutico, ajudante técnico de farmácia ou técnico de saúde e com a sua actuação não prosseguir fins terapêuticos;
  3) Estiver incumbido da prevenção ou repressão dos crimes de produção, de tráfico ou de consumo de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas;
  4) Por funcionário de justiça ou trabalhador a prestar serviço nos serviços prisionais, nos serviços de reinserção social, nos serviços de correios, nos estabelecimentos de educação ou nas entidades publicas ou privadas do sistema de acção social, sendo o facto for praticado no exercício das suas funções;
  5) Detiver, ameaçar com ou fizer uso de arma ou utilizar máscara ou disfarce;
  6) Corromper, alterar ou adulterar, por manipulação ou mistura, plantas, substâncias ou preparados, de forma a aumentar o perigo para a vida ou para a integridade física de outrem;
  7) Fizer da prática do crime modo de vida;
  8) Entregar ou tentar entregar as plantas, as substâncias ou os preparados a menores, a doente mental manifesto ou a pessoas que se encontrem entregues ao seu cuidado para tratamento, educação, instrução, vigilância ou guarda;
  9) Distribuir ou tentar distribuir as plantas, as substâncias ou os preparados por grande número de pessoas;
  10) Praticar os factos em instalações de serviços ou instituições de tratamento de consumidores, de reinserção social ou de acção social, em estabelecimento prisional, instalação policial ou de segurança pública, estabelecimento de educação, ou em outros locais especialmente destinados à prática de actividades educativas, desportivas ou recreativas por menores”.
“Artigo 11.º
Produção e tráfico de menor gravidade
  1. Se a ilicitude dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstancias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados, a pena é de:
  1) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos nas tabelas I a III, V ou VI;
  2) Prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV.
  2. Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo a presente lei, da qual faz parte integrante”.

“Mapa da quantidade de referência de uso diário
N.º
Plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV de consumo mais frequente
Tabela
Quantidade de referência de uso diário 【com notas】
1.
Heroína (diacetilmorfina)
I-A
0,25g【Notas 1 e 2】
2.
Metadona
I-A
0,1g【Nota 2】
3.
Morfina
I-A
0,2g
4.
Ópio (suco)
I-A
1g【Nota 3-(2)】
5.
Cocaína (cloridrato)
I-B
0,2g【Notas 2 e 4】
6.
Cocaína (éster metílico de benzoilecgo-nina)
I-B
0,03g【Notas 2 e 4】
7.
Canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas)
I-C
1g【Notas 1】
8.
Canabis (resina)
I-C
0,5g【Notas 3-(3) e (4)】
9.
Canabis (óleo)
I-C
0,25g【Nota 3-(5)】
10.
Fenciclidina (PCP)
II-A
0,01g【Nota 3-(1)】
11.
Lisergida (LSD)
II-A
0,0002g【Nota 1】
12.
MDMA
II-A
0,15g【Notas 3-(1) e (6)】
13.
Anfetamina
II-B
0,2g【Nota 1】
14.
Metanfetamina
II-B
0,2g【Nota 1】
15.
Tetraidrocanabinol (Delta-9-THC)
II-B
0,05g
16.
Ketamina
II-C
0,6g【Nota 3-(1)】

A arguida detinha 87 comprimidos, que se veio a revelar conterem 0,816 gramas de metanfetamina, com destino a venda.
Face à lei anterior não havia dúvidas que, face à quantidade de estupefaciente, ela praticou o crime previsto e punível pelo art. 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, cuja penalidade era de 8 a 12 anos de prisão e multa.
Porém, face à Lei n.º 17/2009, a arguida praticou, antes, um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punível pelos artigos 8.º e 11.º, n.os 1, alínea 1) e 2.
É que a lei (artigo 11.º, n.º 1) estatui que é este o crime praticado quando a ilicitude dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstancias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados.
E, no n.º 2 do mesmo artigo 11.º considera que na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade da substância ou preparado encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo a presente lei.
Pois bem, se bem que a ponderação da ilicitude seja feita pelo tribunal, o legislador fornece um padrão ou critério de avaliação (da ilicitude consideravelmente diminuída) que só deve ser afastado pelo juiz, se houver factos que, pela sua gravidade, minimizem tal padrão, o que no caso não sucede.
Ora, a quantidade de referência de uso diário anexo à lei, para a metanfetamina, é de 0,2 gramas, pelo que, até 1 grama, é de considerar que a ilicitude dos factos se mostra consideravelmente diminuída, sendo, pois, o crime praticado o mencionado tráfico de menor gravidade, cuja penalidade varia entre 1 e 5 anos de prisão.
Quanto à fixação da medida concreta da pena, ponderando a juventude da arguida (19 anos de idade, à data dos factos), o facto de ser primária e de ter confessado os factos. Mas não esquecendo que a quantidade de estupefaciente na sua posse (0,816 gramas) quase atinge o máximo previsto para o tipo em questão, afigura-se ajustada uma pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, o que é, manifestamente, mais favorável à arguida, que a pena aplicada face à lei antiga, pelo que o regime que se lhe aplicará é o constante da lei nova.

IV – Decisão
Face ao expendido, rejeitam o recurso.
Nos termos do artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal, aplicam concretamente o regime penal mais favorável à arguida, pelo que, como autora de um crime consumado, previsto e punível pelos artigos 8.º e 11.º, n.os 1, alínea 1) e 2 da Lei n.º 17/2009, condenam a arguida na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC. Nos termos do art. 410.º n.º 4 do Código de Processo Penal, pagará 3 UC pela rejeição do recurso.
Fixam em mil patacas os honorários devidos à Exm.ª Defensora Oficiosa.
Macau, 23 de Setembro de 2009.
   Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

     1 M. A. LOPES ROCHA, Aplicação da lei criminal no tempo e no espaço, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, p. 95.
     2 A.TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2008, p. 247.
     3 A. TAIPA DE CARVALHO, Sucessão..., p. 248 e segs.
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1
Processo n.º 27/2009