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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
D, na qualidade de concessionária do arrendamento do terreno sito na Avenida do Comendador Ho Yin e Praça das Portas do Cerco, Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, a fls. XXX do Livro XXX, intentou acção declarativa com processo ordinário contra os ocupantes do terreno sito em Macau, assinalado com as letras A, B e C na planta n.º XXX/XXXX, emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro, pedindo a desocupação das barracas e espaços anexos constantes do terreno de que é concessionária.
E e mulher, F, na qualidade de ocupantes do terreno assinalado com as letras A, B e C na planta n.º XXX/XXXX contestaram e deduziram pedido reconvencional, pedindo a condenação da autora a pagar-lhes MOP$1,450,000.00, sendo MOP$1,250,000.00, por danos patrimoniais pela destruição das edificações existentes no terreno e outros bens no interior das mesmas e MOP$200,000.00 por danos não patrimoniais.
O Exm.º Juiz-Presidente do Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por sentença de 6 de Junho de 2007, julgou a acção procedente e a reconvenção parcialmente procedente, condenando a autora a pagar aos réus E e F “a indemnização do dano patrimonial, cujo montante se liquidará em execução de sentença”.
Na fundamentação jurídica, a sentença diz que não está determinado o dano sofrido pelos réus, não se sabendo que bens foram destruídos.
Em recurso interposto pela autora, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 2 de Abril de 2009, deu parcial provimento ao recurso, reduziu o âmbito da indemnização por dano patrimonial aos danos da demolição das edificações, a liquidar em execução de sentença, por considerar que a decisão de facto não incluía o recheio dos imóveis. Ou seja, manteve a condenação pelos danos da demolição das edificações e absolveu a autora dos danos relativos ao recheio dos imóveis.
Inconformados, recorrem os réus E e F para este Tribunal de Última Instância (TUI), formulando as seguintes conclusões úteis:
- Não mencionou a Autora no seu recurso para o douto TSI qualquer “recheio” das instalações;
- Existe nulidade do acórdão recorrido do Mmo TSI por “excesso de pronúncia” ou devido à “pronúncia sobre factos que as partes não alegaram”, ou como refere a lei “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

II – Os factos
Os factos considerados provados pelos Tribunais de 1.ª e Segunda Instâncias, são os seguintes:
- A Autora é concessionária do terreno sito na Avenida do Comendador Ho Yin e Praças das Portas do Cerco, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n° XXXXX, a fls. XXX do livro X-XX, com a área de 748m2, o qual se encontra devidamente assinalado com a letra “A” na planta n° XXX/XXXX emitida pela DSCC em 5 de Novembro de 2001, nos termos do contrato de concessão publicado no B.O. n° 17/2004 de 28/4/2004 que aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea A) da Matéria de facto assente).
- De acordo, no entanto, com o disposto no n° 2 da cláusula 6ª do respectivo contrato de concessão por arrendamento, à Autora compete proceder à desocupação do terreno assinalado com as letras “A”, “B” e “C” na referida planta (alínea B) da Matéria de facto assente) .
- Os Réus ocupam os terrenos em causa recusam-se a proceder à sua desocupação (alínea C) da Matéria de facto assente).
- G foi autorizado pela Comissão de Terras, através da licença para ocupação temporária de terrenos n° XXX de 1964, emitida a 22 de Dezembro de 1964, a ocupar, entre 23 de Novembro e 31 de Dezembro de 1964, o terreno, com a área de 1133mq, situado nos aterros ao Norte da Província e confrontado a Norte e Sul, com ruas novas sem designação, a Leste com terreno do Estado e a Oeste com o prolongamento da Rua dos Currais, destinado à construção das instalações provisórias da vacaria “H” (alínea D) da Matéria de facto assente).
- O terreno ora em causa encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° XXXXX, a fls. XXX do Livro X-XX, não havendo inscrição de propriedade activa, pois a inscrição que ali consta, de 09/12/1940, de concessão por arrendamento foi cancelada porque “declarada nula e de nenhum efeito, revertendo o terreno ao território” pelo despacho n° XXX/XXXXX/XX de 16/11 (do Secretário Adjunto para as Obras Públicas e Transportes) (alínea E) da Matéria de facto assente).
- O Réu I é filho de J e neto de G (alínea F) da Matéria de facto assente).
- O Réu K é filho de G (alínea G) da Matéria de facto assente).
- O Réu L é filho de G (alínea H) da Matéria de facto assente).
- O Réu M é filho de G (alínea I) da Matéria de facto assente).
- G faleceu no dia 2 de Março de 1987 (alínea J) da Matéria de facto assente) .
- Após ter caducado a licença a que se alude em D) G permaneceu no local (Resposta ao quesito 1° da Base Instrutória).
- E ai, não se limitou à construção das instalações provisórias da vacaria para que lhe foi dada licença acabada de referir, tendo construído, no ano de 1964, uma outra vacaria, tendo passado a explorar as duas simultaneamente (Resposta ao quesito 2°da Base Instrutória).
- No mesmo terreno, também no ano de 1964, construiu uma casa de dois andares, que sempre foi designada por n° XX da Rua dos Currais em tijolo e cimento (Resposta aos quesitos 3° e 4° da Base Instrutória).
- Tendo o G aí habitado com a sua família, e trabalhado na exploração das duas vacarias, comportando-se como verdadeiro proprietário das duas vacarias e da casa (Resposta ao quesito 5° da Base Instrutória).
- Para esse efeito o G solicitou à Companhia de Electricidade de Macau o fornecimento de energia eléctrica àquele local, com subsequente instalação de contador eléctrico (Resposta ao quesito 6° da Base Instrutória).
- G outorgou nos contratos para fornecimento de água e electricidade, e pagou as respectivas facturas (Resposta ao quesito 7° da Base Instrutória).
- Após O falecimento de G, os Réus, I e K sucederam-lhe no negócio, tendo aí continuado a mesma actividade de criação de vacas leiteiras, em nome de duas empresas: “N” do Réu I, e a “O” em nome de K (Resposta ao quesito 8° da Base Instrutória).
- O Réu P (filho do Réu M), por volta do ano de 1987 passou a residir ali (Resposta ao quesito 10° da Base Instrutória).
- A exploração das vacarias terminou com a morte da última vaca, em 2004 (Resposta ao quesito 11° da Base Instrutória).
- Tendo o P ali permanecido depois disso, na qualidade de filho do Réu M, habitando a casa com a sua família, e usando o local para exercício da sua actividade profissional (Resposta ao quesito 12° da Base Instrutória).
- P é construtor civil e construiu no terreno, em 1994, uma oficina onde costuma trabalhar diariamente, que serve também de armazém de materiais de construção (Resposta ao quesito 13° da Base Instrutória).
- P continua, até hoje, a usar a oficina e armazém que havia construído (Resposta ao quesito 14° da Base Instrutória).
- Na habitação passou a residir um empregado seu, que guarda as edificações e faz a segurança do local (Resposta ao quesito 15° da Base Instrutória).
- No local foi também construído pelo P, em 1994, um armazém (Resposta ao quesito 16° da Base Instrutória).
- Esta ocupação do terreno foi feita de forma ininterrupta (Resposta ao quesito 17° da Base Instrutória).
- Sem oposição de ninguém (Resposta ao quesito 18° da Base Instrutória).
- À vista de toda a gente (Resposta ao quesito 19° da Base Instrutória).
- Na convicção de não lesarem direitos de terceiros (Resposta ao quesito 20° da Base Instrutória).
- Comportando-se o G e, após o seu falecimento, os Réus I e K como proprietários das empresas a que se alude no quesito n° 8 (Resposta ao quesito 21° da Base Instrutória).
- Desde o início da década de 60 do século passado e até 1991 Q ocupou a parte do terreno em causa assinalada no documento de fls. 70 (Resposta ao quesito 22° da Base Instrutória).
- Em 1991 os Réus E e F celebraram com Q o acordo de fls. 73 (Resposta ao quesito 23° da Base Instrutória).
- E partir daí passaram a ocupar o terreno com o intuito de aí criar vacas (Resposta ao quesito 24° da Base Instrutória).
- Cuja produção de leite serviu de suporte à leitaria “R” da qual é proprietária a Ré F (Resposta ao quesito 25° da Base Instrutória).
- A actividade pecuária cessou em 1996 (Resposta ao quesito 26° da Base Instrutória).
- Os Réus E e F continuaram a ocupar o terreno até 6 de Janeiro de 2005 (Resposta ao quesito 27° da Base Instrutória).
- Sempre sem oposição de ninguém (Resposta ao quesito 28° da Base Instrutória).
- E à vista de toda a gente (Resposta ao quesito 29° da Base Instrutória).
- Em 06 de Janeiro de 2005, várias pessoas munidas de diverso equipamento pesado, incluindo graus, escavadoras, forçaram a entrada no recinto do terreno em causa e aí demoliram várias instalações aí existentes (Resposta ao quesito 30° da Base Instrutória).
- As demolições foram efectuadas a mando da Autora (Resposta ao quesito 31° da Base Instrutória).
- Na altura foram destruídas várias instalações dos Réus I e K (Resposta ao quesito 33° da Base Instrutória).
- Foram destruídas as edificações que serviam de armazém e oficina pertencentes aos Réus E e F (Resposta ao quesito 34° da Base Instrutória).
- A fim de dar cumprimento ao encargo mencionado no parágrafo B) do rol dos factos assentes, a autora entrou em contacto com os ocupantes das barracas (Resposta ao quesito 37° da Base Instrutória).
- Os Réus sabem que o terreno no qual implantaram as suas barracas não lhes pertence (Resposta ao quesito 38° da Base Instrutória).

III – O Direito
1. A questão a resolver
Trata-se de saber se o Acórdão recorrido incorreu em nulidade, por excesso de pronúncia, ao ter-se pronunciado sobre questão alegadamente não suscitada pela autora, recorrente no recurso para o TSI.

2. Nulidade de acórdão. Excesso de pronúncia.
É sabido que os tribunais de recurso só podem pronunciar-se sobre as questões suscitadas pelo recorrente, salvo as de conhecimento oficioso.
Quando conhecem, indevidamente, de questões não suscitadas pelo recorrente na sua alegação de recurso, incorrem os tribunais de recurso em nulidade de acórdão, por excesso de pronúncia [artigos 633.º, 571.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, 563.º, n.º 3, 589.º, n. os 2, 1.ª parte e 3 do Código de Processo Civil].
O objecto do recurso é limitado pelo próprio recorrente, como resulta do artigo 589.º, n. os 2, 1.ª parte e 3 do Código de Processo Civil], sendo, aliás, uma decorrência do princípio dispositivo.
Por força de tal limitação do objecto do recurso pelo recorrente, é seguro que vigora no processo civil, em matéria de recursos, o princípio da proibição da reformatio in mellius, que pode ser formulado da seguinte forma: o recorrente não pode obter no recurso mais do que aquilo que pediu no recurso interposto1.
Por isso, quando o tribunal de recurso concede mais do que aquilo que o recorrente pede no recurso, incorre a decisão em nulidade, por excesso de pronúncia.
Ora, a autora, na alegação de recurso para o TSI, quanto à condenação por danos patrimoniais constante da sentença de 1.ª instância, apenas se refere aos danos das edificações, sustentando que as mesmas não tinham qualquer valor patrimonial. Nunca menciona o recheio, que constava do pedido reconvencional.
Ou seja, a autora/recorrente nunca pretendeu que o TSI a absolvesse do pedido reconvencional na parte respeitante ao recheio das edificações. Apenas quis tal absolvição quanto à condenação a indemnizar pela destruição das edificações.
Na verdade, no quesito 34.º da base instrutória perguntava-se :”
“34.º
E foram destruídas totalmente as edificações que serviam de armazém e oficina pertencentes aos réus E e F com todo o recheio?
O Tribunal Colectivo deu como provado o seguinte:
“Quesito 34.º
Provado que foram destruídas as edificações que serviam de armazém e oficina pertencentes aos réus E e F”.

É, assim, indiscutível que o que ficou provado restringiu o âmbito da alegação da reconvenção em dois segmentos: por um lado, não deu como provada que a destruição das edificações foi total e, por outro, não deu como provada a destruição do recheio de tais edificações.
  Ora, o Exm.º Juiz-Presidente do Tribunal Colectivo, na sentença, condenou a autora a pagar aos réus E e F “a indemnização do dano patrimonial, cujo montante se liquidará em execução de sentença”.
Na fundamentação jurídica, a sentença diz que não está determinado o dano sofrido pelos réus, não se sabendo que bens foram destruídos.
Aparentemente, o Exm.º Juiz-Presidente do Tribunal Colectivo não se deu conta da discrepância entre o pedido/causa de pedir e o que se deu como provado no julgamento da matéria de facto. Porque se tivesse atentado em tal discrepância, certamente não teria dito que não se sabia que bens foram destruídos (porque o Tribunal Colectivo foi claro ao considerar que não se provou a destruição do recheio) e teria julgado improcedente o pedido de indemnização por danos patrimoniais, na parte atinente ao recheio das instalações. E não o fez2.
Seja como for, no recurso para o TUI não está em apreciação a sentença de 1.ª instância. A questão deveria ter sido suscitada no recurso para o TSI, por aquela a quem prejudicava, a autora, e não o foi.
O que temos que ter em conta é que:
- A autora, recorrente no recurso para o TSI, não suscita, nesse recurso, nenhuma questão quanto ao recheio das instalações;
- Esta questão não era do conhecimento oficioso do Tribunal;
- Por conseguinte, o TSI não poderia dela conhecer.
Tendo-o feito, incorreu o Acórdão em nulidade, por excesso de pronúncia.

IV – Decisão
Face ao expendido, dão provimento ao recurso e declaram nulo o Acórdão recorrido na parte em que julgou procedente o recurso da autora e reduziu o âmbito da indemnização por dano patrimonial aos danos da demolição das edificações, a liquidar em execução de sentença.
Custas pela autora.
Macau, 23 de Setembro de 2009.
   Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

1 Sobre estas questões, M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 2.ª edição, 1997, p. 460, 461, 465 e 466.
2 Acrescente-se, em breve parêntesis, que também não se detecta pronúncia, na sentença de 1.ª instância, quanto ao pedido reconvencional de indemnização por danos não patrimoniais (omissão de pronúncia), sendo este lapso menos relevante, no que concerne à justiça material da decisão, por a alegação de facto, em que se baseia o pedido, ter sido considerada não provada no julgamento da matéria de facto. Mas os interessados não suscitaram a questão, que não é de conhecimento oficioso.
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1
Processo n.º 29/2009