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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.º 26 / 2009

Recorrente: A







   1. Relatório
   A e outros quatro arguidos foram julgados no âmbito do processo n.º CR1-02-0037-PCC (anterior PCC-079-02-2) do Tribunal Judicial de Base. Por acórdão de 6 de Junho de 2003, a arguida A foi condenada pela prática dos seguintes crimes:
   - um crime de tráfico de drogas previsto e punido pelo art.º 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M na pena de nove anos de prisão e multa de oito mil patacas, convertível em 53 dias de prisão;
   - um crime de detenção indevida de utensilagem para consumo de drogas previsto e punido pelo art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M na pena de seis meses de prisão;
   - um crime de detenção de drogas para consumo previsto e punido pelo art.º 23.º, al. a) do Decreto-Lei n.º 5/91/M na pena de 50 dias de prisão.
   Em cúmulo jurídico, foi condenada pela pena única de nove anos e três meses de prisão e multa de oito mil patacas, convertível em 53 dias de prisão.
   Notificada do acórdão condenatório, a arguida A recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 16 de Julho de 2009 proferido no processo n.º 405/2009, foi o recurso rejeitado por manifesta improcedência.
   Vem agora a arguida recorrer para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões na sua motivação de recurso:
   “1. Segundo o acórdão recorrido, quer na transacção de drogas feita pelos arguidos, quer na busca junto da residência dos arguidos B e C, não foi verificado imediatamente no local da ocorrência do facto, qualquer vestígio ou indício que a recorrente tenha participado no acto de tráfico de droga do presente processo.
   2. Segundo os factos provados no acórdão recorrido, provou-se que a recorrente tinha fornecido droga à arguida C, enquanto nos factos não provados, indicou-se que não se conseguiu provar que a recorrente tenha fornecido droga à arguida C e ao menor.
   3. Retirou-se das provas produzidas na audiência de julgamento e dos factos provados e não provados, uma conclusão logicamente inaceitável, resultando assim a contradição.
   4. De acordo com o acórdão recorrido, a recorrente foi condenada pela prática do crime de tráfico, contudo, uma vez que existe o “vício da contradição insanável da fundamentação” previsto no art.º 400.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, deve o acórdão ser declarado revogado.
   5. A recorrente acha que não deve ser condenada pela prática do crime de tráfico conforme os dados constantes dos autos.
   6. Caso o supracitado argumento não for entendido pelo Tribunal,
   7. Todas os estupefacientes encontrados, tanto na quantidade, como no peso e pureza, são diminutos.
   8. Mas no acórdão recorrido, totalmente não se indicou qual a parte dos estupefacientes que a recorrente detinha servia para o consumo pessoal e, qual a parte servia para a finalidade da venda.
   9. Pelo que, do acórdão recorrido, totalmente não se conseguiu provar que a recorrente tenha cometido o crime de tráfico de droga previsto no art.º 8.º, n.º 1 do D.L n.º 5/91/M.
   10. Mesmo que os meritíssimos juizes do Tribunal de Segunda Instância considerem como provada a violação da lei pela recorrente, enquanto a recorrente, por sua vez, considera que o seu acto só veio a cometer o crime de consumo, previsto no art.º 23.º do D.L n.º 5/91/M.
   11. Se não for assim entendido, tendo em consideração a quantidade de drogas encontradas, a recorrente considera que ela só cometeu o crime de tráfico de quantidades diminutas previsto no art.º 9.º, n.º 1 do D.L n.º 5/91/M.
   12. Pelo que, no acórdão recorrido, a condenação da recorrente pela prática do crime de tráfico previsto no art.º 8.º, n.º 1 do D.L n.º 5/91/M, padece dos vícios de “erro notório na interpretação da lei” e de “erro notório na apreciação da prova”, respectivamente previstos no art.º 400.º, n.º 1 e n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal, deve o acórdão ser declarado revogado.
   13. Por outro lado, no acórdão recorrido, não foi provado o facto importante de que a arguida C devia quantia à recorrente.
   14. Facto esse pode provar a relação entre a recorrente e a arguida C, podendo desempenhar um papel importante quanto ao apuramento da verdade de facto do presente processo.
   15. Pelo que, por falta de apuramento do dito facto, o acórdão recorrido padece do “vício de erro notório na apreciação de prova” previsto no art.º 400.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal, deve o acórdão ser declarado revogado.
   16. Mesmo que o Tribunal não concorde com o ponto de vista acima referido, a recorrente considera que, no acórdão recorrido, a pena que lhe foi aplicada é demasiado pesada.
   17. Segundo o acórdão, não se tomou em consideração o grau de participação da recorrente nos autos e o princípio da culpa, no sentido de se determinar a medida da pena; Pelo que, a pena aplicada no acórdão é demasiado pesada, violando assim os art.ºs 64.º e 65.º, n.º 2, al. a) do Código Penal e o princípio da culpa.
   18. Pelo que, quanto à parte da condenação da recorrente na pena de prisão efectiva, o acórdão recorrido violou os art.ºs 64.º e 65.º, n.º 2, al. a) do Código Penal e o princípio da culpa.
   19. A recorrente considera que em conjugação com os factos constantes dos autos e os dispostos nos art.º 64.º e 65.º, n.º 2, al. a) do Código Penal e no princípio da culpa, deve ser condenada efectivamente em pena de prisão não superior a 8 anos.”
   Apresentando, a final, os seguintes pedidos em termos subsidiários:
   - Absolver a recorrente do crime de tráfico de drogas a que foi condenada;
   - Ou condenar a recorrente pelo crime de consumo de drogas previsto no art.º 23.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M;
   - Ou condenar a recorrente pelo crime de tráfico de quantidades diminutas previsto no art.º 9.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M;
   - Ou condenar a recorrente por pena não superior a oito anos de prisão.
   
   Na resposta, o Ministério Público considera que o recurso deve ser rejeitado por ser manifestamente improcedente.
   
   Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição assumida na resposta.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Matéria de facto
   Foram dados como provados pelos Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância os seguintes factos:
   “A partir da data não apurada, a arguida A começou a dedicar-se ao tráfico de estupefaciente. A mesma entregava frequentemente o estupefaciente ao arguido B para ele vender a terceiros.
   A arguida A tinha também o hábito de consumir estupefaciente. Além do consumo pessoal, a mesma ainda fornecia com frequência, o estupefaciente a terceiros.
   Em 6 de Abril de 2002, por volta das 11H45 da noite, o arguido B, na companhia do arguido D, dirigiu-se ao Largo da Cordoaria, perto do Teatro Alegria, para efectuar transacção de droga com a arguida E, e recebeu a quantia de MOP$1,400.00 paga pela arguida E, entretanto, deixou o arguido D entregar, à arguida E 8 comprimidos e 4 pacotes contendo produto em pó.
   Após a transacção de droga, o arguido B, D e E encontraram os agentes da Polícia, pelo que os três puseram em fuga imediatamente.
   A arguida E lançou ao chão, os supracitados estupefacientes adquiridos do arguido B.
   Através de perseguição da polícia, os arguidos B, D e E foram detidos e os 8 comprimidos e 4 pacotes contendo produto em pó lançados ao chão pela arguida E foram apreendidos.
   Feito o exame laboratorial, foi confirmado que os 8 comprimidos acima referidos continham substâncias de Metanfetamina e Ketamina, com peso líquido de 3.030g, abrangidas respectivamente nas Tabelas II-B e II-C do Decreto-Lei n.º 5/9l/M, de 28 de Janeiro; o supracitado produto em pó continha substância de Ketamina, com peso líquido de 0.427g, abrangida na Tabela II-C do mesmo Decreto Lei.
   Os estupefacientes acima indicados foram adquiridos pela arguida E, junto do arguido B, com o preço de MOP$1,400.00, com a finalidade do seu consumo pessoal e de fornecimento a terceiros.
   Foi a arguida A que, no dia 6 de Abril de 2002, cerca das 11H30 da noite, dirigiu-se à residência do arguido B sita na [Endereço(1)] e entregou-lhe os estupefacientes supracitados para ele vender.
   Os agentes da Polícia, depois de deterem os arguidos B e D, procederam-lhes a busca, e na posse do B foi encontrado um telemóvel (n.° XXXXXXX) e na posse do D foram encontrados MOP$l ,400.00.
   O supracitado telemóvel servia de instrumento de comunicação quando o arguido B procedia transacções com compradores e vendedores de droga. A referida quantia de MOP$1400.00 foi verba que os arguidos B e D, na prática de tráfico de droga, adquiriam à arguida E.
   Depois de ter detido o arguido B, pessoal da polícia dirigiu-se à residência onde coabitavam o referido arguido e a arguida C, sita na [Endereço(1)], para efectuar uma busca. Na altura, a arguida C e o menor F (nascido no dia 25 de Julho de 1986) encontravam-se na dita residência.
   Os agentes da PJ apreenderam, nesta residência 20 comprimidos de cor castanha, 1 comprimido de cor verde, 21 comprimidos de cor amarela, dois sacos de plástico transparentes contendo pós brancos, MOP1,000.00 em numerário, HKD400.00 em numerário, 188 sacos de plástico transparentes e grandes quantidades de papéis de embrulho.
   Feio o exame laboratorial, confirmou-se que os referidos 20 comprimidos de cor castanha, continham substâncias de Metanfetamina, MDMA e Ketamina, com peso líquido de 8.317g, abrangidas respectivamente nas Tabelas II-B, II-A e II-C, do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro; o referido comprimido de cor verde, continha substâncias de Metanfetamina, Anfetamina e MDMA, com peso líquido de 0.282g, abrangidas respectivamente nas Tabelas II-B (as 1as duas) e II-A (a última) do mesmo Decreto-Lei; os referidos 21 comprimidos de cor amarela, continha substâncias de Metanfetamina e Ketamina, com peso líquido de 7.904g, abrangidas respectivamente nas Tabelas II-B e II-C do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro; os dois sacos contendo pós brancos acima referidos continham substância de Ketamina, com peso líquido de 0.735g, abrangida na Tabela II-C do mesmo Decreto-Lei.
   Foi a arguida A que, no dia 6 de Abril de 2002, por volta das 11H30 da noite, na residência supracitada, entregou ao arguido B, os estupefacientes acima indicados, para ele vender a terceiros.
   As verbas de MOP$l,000.00 e de HKD$400.00 foram obtidas pelo arguido B através do tráfico de droga. Os sacos de plástico transparentes e papéis de embrulho foram instrumentos que o arguido utilizava para embrulhar estupefacientes.
   No dia 7 de Abril de 2002, cercas das 5H30 da tarde, quando agentes da polícia efectuavam uma busca na residência do arguido B acima mencionada, chegou lá a arguida A e esta foi detida pela polícia.
   Os agentes da polícia apreenderam, em flagrante, no interior da mala da arguida A, um saco de plástico transparente supostamente contendo de estupefaciente, urna garrafa de vidro, dois telemóveis (n.º XXXXXXX) e 53 sacos de plástico transparentes.
   Os agentes da PJ, de imediato, dirigiram-se à residência da arguida A, sita na [Endereço(2)] para proceder uma busca e, lá apreenderam uma garrafa com 2 palhinhas e tapada pelo plástico, contendo líquido no interior, bem como 10 papéis de estanho com rasto de queima pelo fogo.
   Feito o exame laboratorial, verificou-se que a substância constante no saco de plástico transparente no interior da mala da arguida A, apreendida por agentes da polícia, continha substância de Metanfetamina, com peso líquido de 1.677g, abrangida na Tabela II-B do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro; a garrafa acima indicada também continha substância de Metanfetamina.
   Os estupefacientes supracitados foram adquiridos pela arguida A junto a um indivíduo não identificado, com a finalidade do seu consumo pessoal; a referida garrafa de vidro e os papéis de estanho serviam de utensílios para ela consumir droga e os 53 sacos de plástico transparentes acima indicados serviam de instrumentos para embrulho de estupefacientes quando praticava o tráfico de droga.
   No dia 8 de Abril de 2002, após o interrogatório feito pelo Ministério Público, foi tomada a medida de coacção sem privação de liberdade aos arguidos A, C e D.
   No dia 19 de Abril de 2002, por voltas das 10H40 da noite, os agentes da P.J., na porta do [Endereço(3)], acharam que a arguida C estava com atitude suspeita, por isso, interceptaram-na.
   Foram encontrados, em flagrante por agentes da polícia, na posse da arguida C, 12 pacotes de papel contendo pós brancos e um telemóvel (n.º XXXXXXX).
   Feito o exame laboratorial, verificou-se que a substância constante nos 12 pacotes de papel acima referidos continha substância de Ketamina, com peso líquido de 1.227g, abrangida na Tabela II-C do Decreto-Lei n° 5/91/M, de 28 de Janeiro.
   Os agentes da PJ, de imediato, dirigiram-se à residência da arguida C, sita na [Endereço(1)] para proceder uma busca. Na altura, o arguido D e os menores G (nascido no dia 12 de Abril de 1987) e F encontravam-se na dita residência.
   Os agentes da PJ apreenderam na residência acima referida, 9 saquinhos contendo pós brancos, 2 pacotes de papel contendo pós brancos, 37 sacos de plástico, 7 palhinhas, 9 palhinhas feitas por papel de estanho, 15 papéis de estanho, 2 garrafas de plástico e 1 rolo de papel de estanho.
   Na altura, F estava a consumir droga, a qual foi fornecido pela arguida A ao B, tendo-a este deixado em sua casa.
   Feito o exame laboratorial, confirmou-se que os 9 saquinhos contendo pós brancos e 2 pacotes contendo pós brancos continham substância de Ketamina, com peso líquido de 3.998g, abrangida na Tabela II-C do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro.
   Os estupefacientes acima referidos encontrados pela polícia na posse e na residência da arguida C, numa data não apurada, foram adquiridos à arguida A, para fornecer a terceiros e consumo próprio.
   As palhinhas, garrafas de plástico e papéis de estanho serviam de utensílios para os arguidos C e D e os menores F e G consumirem droga. O referido telemóvel com n.º XXXXXXX servia de instrumento de comunicação quando a arguida C fazia transacções de droga com outrem.
   Depois de ter sido detida, a arguida C confessou o facto de que a arguida A a deixou fazer o tráfico de droga e combinou, conforme as disposições da polícia, com a arguida A, fingindo que ia à residência da mesma para lhe entregar o dinheiro proveniente do tráfico de droga.
   No dia 20 Abril de 2002, pelas 2H30 da madrugada, os agentes da PJ conduzidos pela arguida, chegaram à residência da A, si ta na [Endereço(2)]. Na altura, a arguida A encontrava-se na dita moradia.
   Os agentes da PJ procederam imediatamente uma busca na moradia acima referida e apreenderam 1 pacote de papel contendo pós brancos, 2 papéis de estranho e 6 palhinhas.
   Feito o exame laboratorial, foi confirmado que a substância constante no pacote de papel acima referido continha substância de Ketamina, com peso líquido de 0.117g, abrangida na Tabela II -C do Decreto-Lei n.° 5/91/M, de 28 de Janeiro.
   Os estupefacientes foram adquiridos pela arguida A a um individual não identificado, para seu consumo pessoal.
   Os papéis de estanho e palhinhas acima indicados eram utensílios para a arguida A consumir droga.
   Os arguidos A, B, C, D e E agindo livre, voluntária e conscientemente, praticaram os actos supracitados.
   Ambos os arguidos tinham perfeito conhecimento da natureza e características dos estupefacientes supracitados.
   As condutas acima referidas dos arguidos não eram permitidas por lei.
   Os arguidos A, B, C, D e E sabiam bem que as ditas condutas eram proibidas e punidas por lei.
   
   Os estupefacientes apreendidos aos arguidos foram objecto de novo exame laboratorial, cujo resultado se encontra junto aos autos, a fls. 579 a 583, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
   
   A arguida A é primária.
   Negou os factos imputados.
   Encontra-se desempregada.
   Tem a seu cargo três filhos menores.
   Frequentou o quarto ano do curso primário.
   
   O arguido B é primário.
   Confessou integralmente e sem reserva os factos, tendo justificado a sua conduta.
   Encontrava-se desempregado.
   Tem a seu cargo dois filhos menores.
   Frequentou o quinto ano do curso primário.
   
   A arguido C é primária.
   Confessou parcialmente os factos, tendo justificado a sua conduta.
   Aufere um salário mensal cerca de MOP$4,500.00.
   Tem a seu cargo dois filhos menores.
   Frequentou o quinto ano do curso primário.
   
   O arguido D é primário.
   Confessou parcialmente os factos, tendo justificado a sua conduta.
   Encontra-se desempregado.
   Não tem cargo familiar.
   Frequentou o segundo ano do curso secundário.
   
   A arguida E é primária.
   Confessou parcialmente os factos, tendo justificado a sua conduta.
   Aufere cerca de MOP$3,700.00 a título de salário.
   Não tem cargo familiar.
   Frequentou o primeiro ano do curso secundário.
   
   Facots não provados:
   A arguida A, na prática da conduta acima referida, sabia bem que F e G eram menores inferiores a 16 anos e idade.
   Foi a arguida A forneceu directamente estupefaciente a F para este consumir.
   A arguida C adquiriu estupefacientes à A para consumir conjuntamente com o arguido D e os menores F e G.”
   
   
   2.2 Contradição entre os factos provados e não provados
   A recorrente sustenta que não foram encontrados quaisquer vestígios seus nos locais dos crimes que indiciam a prática dos actos de tráfico de drogas, para concluir que ela nunca participou nestes actos.
   Por outro lado, alega ainda que existe contradição entre os factos provados e não provados, porque dos factos provados resultam que foi a recorrente quem forneceu drogas aos arguidos B e C, mas dos factos não provados resultam que não se conseguiu provar que a recorrente chegou a fornecer drogas à arguida C e ao menor F para este consumir. Mais ainda, os referidos arguidos eram casal e pode-se chegar à conclusão de que as drogas pertenciam integralmente a eles.
   
   Ora, a primeira parte da questão ora suscitada pela recorrente seria o erro na apreciação da prova. Mas é fácil de concluir que a inexistência de vestígios físicos da recorrente nos locais dos crimes, isto é, no local em que o arguido B entregou drogas adquiridas da recorrente a terceiro e na casa do mesmo arguido, não implica necessariamente que ela não estava ligada de alguma maneira aos crimes em causa.
   
   Em segundo lugar, também não se verifica a contradição entre os factos provados e não provados alegada pela recorrente.
   Dos factos provados resulta claramente, tal como a recorrente admitiu na sua motivação do recurso, que foi a recorrente quem forneceu drogas aos arguidos B e C para estes vender ou fornecer a terceiros.
   O ponto em discussão reside na interpretação dos seguintes factos não provados:
   “Foi a arguida A que forneceu directamente estupefaciente a F para este consumir.”
   “A arguida C adquiriu estupefacientes à A para consumir conjuntamente com o arguido D e os menores F e G.”
   Estes factos não provados incidem apenas à relação directa entre a recorrente e os menores implicados no presente processo, que não ficou provada. Mas nunca se pode afirmar até ao ponto de que não ficou provado que a recorrente chegou a fornecer drogas à arguida C e ao menor F para consumir. A conclusão da recorrente não tem qualquer suporte nos factos não provados e será uma distorsão do seu significado.
   Não existem os vícios invocados.
   
   
   2.3 Subsunção no crime de tráfico de quantidades diminutas
   A recorrente alega que existe erro de direito por não ter sido apuradas as quantidades de drogas detidas por ela, respectivamente para o consumo pessoal e para venda, considerando que a quantidade de drogas apreendidas na sua posse e em sua casa é diminuta e era consumidor de drogas, devia consequentemente ser condenada apenas pelo crime de tráfico de quantidades diminutas previsto no art.° 9.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M.
   
   A afirmação da recorrente não está conforme com os factos provados.
   Os factos provados indicam com clareza de que as drogas encontradas na mala da recorrente e posteriormente na sua casa eram destinados ao seu consumo pessoal e as restantes drogas apreendidas eram objecto de transacção entre a recorrente e os vários arguidos.
   Assim, ficaram bem distinguidas na matéria provada as drogas detidas pela recorrente para seu consumo pessoal e para vender a terceiros.
   Improcede a questão suscitada.
   
   
   2.4 Erro notório na apreciação da prova
   A recorrente alega que chegou a afirmar nos presentes autos de que a arguida C contraíu um empréstimo a ela e os arguidos C e B declararam que foi a recorrente que lhes forneceu drogas a fim de esta ficar impossibilitada de reclamar o reembolso da dívida, para concluir que existe erro notório na apreciação da prova, ao não considerar provado o empréstimo, vício este previsto no art.º 400.°, n.° 2, al. c) do Código de Processo Penal (CPP).
   
   O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
   Ora, o que foi alegado pela recorrente não é qualquer erro na apreciação da prova. Mesmo que se ficasse provada a existência do empréstimo, dela não pode tirar a conclusão, sem mais, de que os arguidos C e B imputaram a venda de drogas à recorrente para esta ficar impossibilitada de reclamar a dívida.
   Improcede a questão suscitada.
   
   
   2.5 Medida da pena
   Finalmente, a recorrente alega outro erro de direito por o tribunal recorrido ter fixado a pena demasiado severa, sem cuidar o grau de participação da recorrente e o princípio da culpa.
   
   Pela prática do crime de tráfico de drogas previsto no art.º 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M a recorrente foi condenada na pena de nove anos de prisão e multa de oito mil patacas, convertível em 53 dias de prisão.
   Segundo a referida norma, o crime de tráfico de drogas era punível com a prisão de 8 a 12 anos com multa de 5.000 a 700.000 patacas.
   Não parece que seja desproporcional face à culpa da recorrente a pena encontrada pelas instâncias, atendendo a não confissão da recorrente, a prevenção geral e especial da prática do crime e sobretudo a grande quantidade de drogas vendidas pela recorrente a outros arguidos:
   - 8 comprimidos que continham substâncias de Metanfetamina e Ketamina, com peso líquido de 3.030g; um produto em pó continha substância de Ketamina, com peso líquido de 0.427g;
   - 20 comprimidos de cor castanha, continham substâncias de Metanfetamina, MDMA e Ketamina, com peso líquido de 8.317g; um comprimido de cor verde, continha substâncias de Metanfetamina, Anfetamina e MDMA, com peso líquido de 0.282g; 21 comprimidos de cor amarela, continha substâncias de Metanfetamina e Ketamina, com peso líquido de 7.904g; dois sacos de pós brancos continham substância de Ketamina, com peso líquido de 0.735g;
   - 12 pacotes de papel continha substância de Ketamina, com peso líquido de 1.227g;
   - 9 saquinhos e 2 pacotes de pós brancos continham substância de Ketamina, com peso líquido de 3.998g.
   
   Assim, o presente recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência.
   
   
   2.6 Entrada em vigor da nova Lei n.° 17/2009. Aplicação da lei mais favorável
   2.6.1 Em relação à recorrente
   No passado dia 10 de Setembro entrou em vigor a nova lei de proibição da produção, do tráfico e do consumo ilícitos de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas (Lei n.° 17/2009, publicada em 10 de Agosto de 2009).
   A nova lei mantém basicamente os mesmos estrutura sistemática e tipos de crimes ligados a drogas do anterior Decreto-Lei n.° 5/91/M.
   
   Quando se verifica a sucessão de leis penais no tempo, é de atender ao comando do n.º 4 do art.º 2.º do Código Penal (CP):
   “4. Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se já tiver havido condenação transitada em julgado.”
   
   A sentença condenatória da recorrente à parte respeitante ao crime de tráfico de drogas previsto no art.º 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, única recorrível ao Tribunal de Última Instância, não transitou ainda em julgado, pois está ainda em via de recurso ordinário nos presentes autos.
   A nova Lei n.º 17/2009 entrou em vigor no passado dia 10 do mês corrente e passa a prever nos seus art.ºs 8.º e 11.º os crimes ligados ao tráfico de drogas, em termos algo diferentes do que previstos nos art.ºs 8.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
   Assim, é de apurar qual é o regime penal aplicável à recorrente que se mostre concretamente mais favorável a ela, ao abrigo do referido art.º 2.º, n.º 4 do CP.
   A ponderação concreta “pressupõe que o tribunal realize todo o processo de determinação da pena concreta face a cada uma das leis, a não ser, como é óbvio, que seja evidente, numa simples consideração abstracta, que uma das leis é claramente mais favorável que a outra.”1
   
   Dispõem assim os art.ºs 8.º e 11.º da Lei n.º 17/2009:
“Artigo 8.º
Tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas
   1. Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos.
   2. Quem, tendo obtido autorização mas agindo em contrário da mesma, praticar os actos referidos no número anterior, é punido com pena de prisão de 4 a 16 anos.
   3. Se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV, o agente é punido com pena de prisão:
   1) De 6 meses a 5 anos, no caso do n.º 1;
   2) De 1 a 8 anos, no caso do n.º 2.
   
Artigo 11.º
Produção e tráfico de menor gravidade
   1. Se a ilicitude dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados, a pena é de:
   1) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos nas tabelas I a III, V ou VI;
   2) Prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV.
   2. Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante.”
   
   Assim, em relação à moldura de pena do tipo-padrão do crime de tráfico de drogas que não seja de quantidades diminutas na lei antiga ou de menor gravidade como prevista na lei nova, em vez de 8 a 12 anos de prisão com multa passa agora a ser de 3 a 15 anos de prisão. Com o alargamento dos limites mínimo e máximo da pena de prisão, o legislador consagra uma maior flexibilidade ao tribunal na fixação concreta da pena, no sentido de aliviar a severidade da reacção penal para os casos de tráfico de drogas cuja gravidade não seja menor mas sem atingir o grau considerável, tal como acontecia na vigência da lei antiga, e de punir com maior severidade os casos de tráfico de drogas com dimensão mais significante.
   Por outro lado, para o crime de tráfico de menor gravidade agora previsto no art.º 11.º da lei nova, a moldura da pena passa a ser de 1 a 5 anos de prisão para o caso do n.º 1 deste artigo, em vez de pena de prisão máxima de 2 anos e multa prevista na lei antiga. Além do aumento do limite máximo da pena de prisão, para este tipo de crime, a inovação mais importante reside na previsão de um critério objectivo a ponderar de limite máximo da quantidade de drogas implicadas no crime fixada através da tabela anexa à lei nova, que corresponde a cinco vezes da quantidade do uso diário da respectiva droga, e de outras circunstâncias capazes de mostrar que ilicitude dos factos de tráfico de drogas seja consideravelmente diminuída, nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou circunstâncias da acção, a qualidade de drogas.
   De acordo com a tabela anexa à lei nova, são seguintes as quantidades de uso diário em termos legais das drogas apreendidas nos presentes autos:
   - Ketamina: 0,6g;
   - Metanfetamina: 0,2g;
   - Anfetamina: 0,2g;
   - MDMA: 0,15g.
   
   De acordo com os factos provados, nomeadamente o teor dos relatórios de exame laboratoriais do Polícia Judiciária a fls. 572 a 583, as drogas fornecidas pela recorrente a outros arguidos tinham os seguintes pesos líquidos:
Unidades
Peso líquido
Peso líquido das substâncias estupefacientes


Metanfetamina
Ketamina
MDMA
Anfetamina
8 comprimidos
3,030g
0,239g
1,008g


1 pacote de pó
0,427g

0,318g


20 comprimidos
8,317g
0,103g
1,180g
0,309g

1 comprimidos
0,282g
---

0,101g
---
21 comprimidos
7,904g
0,656g
2,745g


2 sacos de pó
0,735g

0,562g


12 pacotes de pó
1,227g

0,966g


11 sacos de pó
3,998g

2,778g


Total

0,998g
9,557g
0,410g

   
   Em comparação com as quantidades de uso diário destes estupefacientes fixadas na tabela anexa à lei nova, a quantidade de ketamina é de quase 16 vezes da dose de uso diário, só isso é suficiente para afastar a hipótese de integrar as condutas da recorrente no crime de tráfico de menor gravidade previsto no art.º 11.º da lei nova, pelo que o crime praticado no âmbito da lei nova é o de tráfico ilícito de drogas previsto no art.º 8.º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009.
   Considerando todas as circunstâncias da prática do crime pela recorrente, nomeadamente a quantidade de drogas vendidas para outros arguidos, a não confissão dos factos e o seu papel fundamental em todo o processo de venda de drogas, é de fixar a pena em sete anos de prisão ao abrigo da lei nova.
   Assim, a lei nova é mais favorável à recorrente, pelo que é de aplicar a nova lei à recorrente e proferir nova condenação em conformidade.
   Em cúmulo jurídico com outros dois crimes a que foi condenada, deve ser fixada a pena única em sete anos e três meses de prisão.
   
   
   2.6.2 Em relação ao co-arguido B
   No presente processo, o co-arguido B foi condenado em primeira instância pela prática de um crime de tráfico de drogas previsto e punido pelo art.º 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M na pena de oito anos e seis meses de prisão e multa de oito mil patacas, convertível em 53 dias de prisão.
   O arguido não recorreu da decisão condenatória e começou a cumprir a pena logo depois da condenação.
   Por despacho de 21 de Janeiro de 2009 da juiz de instrução criminal, foi concedida a liberdade condicional cujo período terminará em 29 de Novembro de 2010.
   Por se tratar de caso de comparticipação entre a recorrente e o arguido, o presente recurso aproveita a este, ao abrigo do art.º 392.º, n.º 2, al. a) do CPP. Embora já estar em liberdade condicional, mas o respectivo prazo ainda não terminou e a pena ainda não fica extinta, pelo que há interesse em apurar o regime penal mais favorável ao arguido.
   
   São seguintes os pesos líquidos das substâncias estupefacientes nas drogas detidas pelo arguido e destinadas a vender a terceiros:
Unidades
Peso líquido
Peso líquido das substâncias estupefacientes


Metanfetamina
Ketamina
MDMA
Anfetamina
8 comprimidos
3,030g
0,239g
1,008g


1 pacote de pó
0,427g

0,318g


20 comprimidos
8,317g
0,103g
1,180g
0,309g

1 comprimidos
0,282g
---

0,101g
---
21 comprimidos
7,904g
0,656g
2,745g


2 sacos de pó
0,735g

0,562g


Total

0,998g
5,813g
0,410g

   Também é evidente que as condutas de tráfico de drogas cometidas pelo arguido não pode integrar no crime de tráfico de menor gravidade, pois já o peso líquido de ketamina é de nove vezes da respectiva dose de uso diário.
   Assim, as condutas do arguido são integráveis no crime de tráfico ilícito de drogas previsto no art.º 8.º, n.º 1 da lei nova.
   Tendo em conta todas as circunstâncias da prática do crime pelo arguido, nomeadamente a quantidade das substâncias estupefacientes detidas pelo mesmo e destinadas à venda a terceiros e a confissão integral dos factos, encontramos a pena de seis anos de prisão.
   Por ser mais favorável, deve ser aplicada a lei nova ao arguido.
   O arguido foi detido desde o dia 7 de Abril de 2002 e foi sempre preso no Estabelecimento Prisional de Macau. Até à sua libertação em Janeiro do ano corrente por concessão de liberdade condicional, já ficou preso mais do que o período da prisão agora fixada em aplicação da Lei n.º 17/2009, pelo que deve ser declarada, desde já, extinta a pena por cumprimento.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso.
   Nos termos do art.º 2.º, n.º 4 do Código Penal, aplicam o regime penal mais favorável aos arguidos A, ora recorrente, e B e em consequência:
   - condenar a arguida A pela prática de um crime de tráfico ilícito de drogas previsto e punido pelo art.º 8.º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009 na pena de sete anos de prisão;
   Em cúmulo jurídico com outros dois crimes a que foi condenada, é fixada a pena única em sete anos e três meses de prisão.
   - condenar o arguido B pela prática de um crime de tráfico ilícito de drogas previsto e punido pelo art.º 8.º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009 na pena de seis anos de prisão;
   - declarar extinta a pena ora imposta ao arguido B por cumprimento.
   Nos termos do art.º 410.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, é a recorrente condenada a pagar 4 UC.
   Custas pela recorrente com a taxa de justiça fixada em 4 UC.
   
   
   Aos 23 de Setembro de 2009


Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai


1 Américo A. Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, 3ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 247.
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Processo n.º 26 / 2009 1