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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.º 47 / 2008

Recorrente: A
Recorrida: Secretária para a Administração e Justiça






   1. Relatório
   A interpôs recurso contencioso contra o despacho da Secretária para a Administração e Justiça de 9 de Julho de 2007 que lhe indeferiu o pedido de nova nomeação de notário privado.
   Por acórdão proferido no processo n.º 587/2007, o Tribunal de Segunda Instância negou provimento ao recurso contencioso.
   Vem agora o recorrente recorrer para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. A interpretação do Estatuto dos Notários Privados conforme operada pela decisão recorrida (que se limitou a confirmar a decisão administrativa) viola o princípio da imparcialidade e a norma ínsita no art.º 129.º da Lei Básica, porquanto permite que advogados sejam nomeados notários privados mais de cinco anos após frequência e aprovação em curso de formação, ao passo que impede nova nomeação a advogados que (tendo frequentado com aprovação o mesmo curso de formação) tenham entretanto chegado a exercer funções como notários privados.
   2. Tal interpretação é, portanto, inadmissível por ofensa de um princípio de relevância supralegal ou constitucional, para além de destituída de qualquer razoabilidade. Pois,
   3. Ao princípio da imparcialidade não pode deixar de ser reconhecida natureza preceptiva e força jurídica imediatamente vinculante: o princípio da imparcialidade é, em suma, uma norma jurídica de aplicação directa e imediata, pelo que devem ser consideradas inconstitucionais as normas que o infrinjam e inconstitucionais, ou ilegais, os comportamentos que o violem.
   4. O princípio da imparcialidade vincula toda a actividade administrativa, e independentemente da natureza discricionária ou vinculada dos poderes exercidos. Pois,
   5. Mesmo vinculada por disposição legal expressa a Administração não deixa de estar subordinada ao princípio da imparcialidade, podendo, em certos casos, inclusive, não aplicar uma lei com fundamento na sua desconformidade com o princípio constitucional da imparcialidade.
   6. Em síntese, o princípio da imparcialidade obriga o Legislador, no momento da elaboração das leis, o Administrador, no momento da execução das leis; e o Juiz, no momento da aplicação e fiscalização das leis.
   7. Nestes termos, a decisão recorrida violou, ainda, directamente o disposto no art.° 129.° da Lei Básica, tendo levado a um resultado manifestamente parcial e destituído de toda e qualquer razoabilidade.
   8. Portanto, a decisão recorrida viola o Bloco de Constitucionalidade da RAEM a mais do que um título: não só por defeituoso entendimento e aplicação do princípio da imparcialidade (com valor constitucional, quer seja por via da aplicação do art.° 41.° da Lei Básica, quer seja pela via da recepção, formal e ou material, dos direitos fundamentais anteriormente vigentes, operados pela Declaração Conjunta), como também por violação directa do disposto no art.° 129.° da Lei Básica.
   9. Os apontados vícios, enquanto ofensas de disposições da Lei Básica e ou de princípios de relevância constitucional, como é o da imparcialidade, são vícios de conhecimento oficioso, a que o tribunal não pode eximir-se, sob pena de incorrer em omissão de pronúncia.
   10. Se os tribunais, no julgamento dos casos, podem interpretar a Lei Básica, necessariamente que podem concluir que disposições legais ou regulamentares a contrariam e, nesse caso, têm de cumprir o disposto no art.° 11.° da Lei Básica: donde, não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Lei Básica ou os princípios nela consagrados, sem prejuízo do disposto no art.° 143.° daquela Lei. (cfr. Ac. TUI, Proc. n.° 28/2006).
   11. Este poder-dever dos tribunais não pode ser deixado à disponibilidade das partes. Tal poder tem de ser exercido oficiosamente, mesmo que nenhuma das partes do processo suscite a questão, como sucede em todas as Ordens Jurídicas em que os juizes têm acesso directo à Constituição, o que acontece, actualmente, na maioria dos Sistemas Jurídicos. (Ac. TUI, Proc. n.° 28/2006, pág. 32).
   12. O tribunal de recurso pode sempre apreciar ex novo questões de conhecimento oficioso (Ac. TUI, Proc. n.° 12/2002, pág. 41).
   13. Pelo exposto, ao recusar conhecer dos supramencionados vícios – argumentando tratar-se de matéria nova, mas que são, na verdade, meras questões de direito, – o tribunal a quo incorreu na nulidade prevista na al. d) do n.° 1 do art.° 571.° do Código de Processo Civil.
   14. Por outro lado, as alegadas violações configuram nulidades, – ex vi al. d) do n.° 1 do art.° 122.° do Código do Procedimento Administrativo, – as quais, sendo invocáveis a todo o tempo (art.° 123.° do mesmo diploma legal) poderiam muito bem invocar-se em qualquer fase do recurso, mesmo que desgarradas do anteriormente alegado pelo recorrente, (e até ex novo na presente instância).
   15. Para além disso, a decisão recorrida não poderia subsistir em face de uma interpretação sistemática do direito, perspectivando o ordenamento jurídico da RAEM como um todo coerente, nomeadamente por actuação dos princípios gerais de direito. Pois,
   16. A verdade inteira resulta do contexto, e não de uma parte truncada, quiçá defeituosa, mal redigida; examine-se a norma na íntegra, e mais ainda: o Direito todo, referente ao assunto. Além de comparar o dispositivo com outros institutos análogos; força é, também, afinal pôr tudo em relação com os princípios gerais, o conjunto do sistema em vigor.
   17. Não pode aceitar-se o percurso interpretativo a contrario, subjacente à decisão a quo, – que não respeita os critérios da interpretação sistemática e teleológica da lei, – para chegar à (inadmissível) conclusão de que o recorrente teria de repetir o respectivo curso de formação a que faz referência o n.° 2 do art.° 1.° do Decreto-Lei n.° 66/99/M, de 1 de Novembro (Estatuto dos Notários Privados, doravante designado por Estatuto).
   18. O aludido n.° 2 do art.° 1.° do Estatuto foi, obviamente, pensado para quem é nomeado notário privado pela primeira vez!
   19. Se o legislador tivesse previsto situações como a do recorrente, teria, por certo, sido claro a ponto de evitar interpretações como a da entidade recorrida e a da decisão a quo.
   20. E a prova é o facto de que o legislador não sujeitou a um termo a nomeação e tomada de posse após a aprovação no curso de formação – o que veio a permitir (e bem, na perspectiva do recorrente,) a nomeação e tomada de posse a colegas do recorrente, mais de cinco anos após a frequência do aludido curso de formação, conforme documentado nos autos.
   21. Ora, se a eficácia do curso de formação não caducou para aqueles colegas, que nunca antes exerceram notariado, por maioria de razão não há-de ter caducado para o recorrente.”
   Pedindo que seja concedido provimento ao recurso contencioso e anulado a decisão recorrida, bem como ordenada a baixa do processo ao Tribunal de Segunda Instância para conhecer das questões omitidas.
   
   A recorrida Secretária para a Administração e Justiça formulou as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
   - Não existe nulidade prevista no art.° 571.°, n.° 1, al. d) do Código de Processo Civil, porquanto, o tribunal a quo não deixou de conhecer da alegada violação do princípio da imparcialidade, ou seja, na ligação que existe entre esse princípio e os princípios da igualdade e da justiça, onde aquele funciona como uma dimensão a ter em conta na averiguação do respeito por estes outros princípios.
   - Tal nulidade não existe quando as questões submetidas à apreciação do juiz foram objecto de análise sumária.
   - Com efeito, ao decidir pela não violação dos princípios da igualdade e justiça e do princípio da imparcialidade, na sua ligação com os anteriores, não deixou o tribunal recorrido de decidir que não existiu a alegada violação do art.° 129.° da Lei Básica.
   - A violação do princípio da imparcialidade gera violação de lei que determina a anulabilidade do acto imparcial.
   - O douto acórdão recorrido fez correcta aplicação do direito e decidiu bem ao negar provimento ao recurso contencioso.
   - A obrigatoriedade de repetição de formação profissional para exercício de determinada profissão ou função existe em muitas situações no ordenamento jurídico de Macau.
   - Não existe nenhuma disposição legal ou regulamentar que salvaguarde a formação anteriormente adquirida necessária ao exercício dessas funções ou que permite, sem mais a readmissão de funções.
   - A lei nova dispõe em regra para o futuro. O previsto no art.° 28.° do Decreto-Lei n.° 66/99/M veio permitir a salvaguarda de determinadas situações a fim de que os seus destinatários não viessem a ser prejudicados pelas novas regras de tomada de posse previstas no art.° 5.° do mesmo diploma e que eram inexistentes na data em que candidataram-se à formação necessária para o exercício da função.
   - Não existem elementos probatórios nos autos que demonstrem ter havido parcialidade na decisão administrativa, nem tão pouco na decisão do tribunal recorrido.
   - Deste modo, não se mostra violado qualquer princípio, como seja o princípio da imparcialidade, nem tão pouco a Lei Básica, designadamente o seu art.° 129.°.
   Terminando que deve ser negado provimento ao recurso e mantido o acórdão recorrido.
   
   O Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
   “Salvo o devido respeito, afigura-se-nos não assistir razão ao recorrente.
   
   Em primeiro lugar, parece-nos que não se verifica o vício de omissão de pronúncia invocada pelo recorrente, na concordância com a posição e as judiciosas considerações explanadas pela entidade recorrida nas suas alegações.
   Por um lado, o Tribunal recorrido não ignorou as questões suscitadas pelo recorrente.
   Tal como afirma o Tribunal recorrido, o recorrente invoca em sede de alegações facultativas novos vícios relacionados com pretensas inconstitucionalidades decorrentes de afronta a princípios fundamentais e preceitos da Lei Básica, “se bem que já invocados na sua petição de recurso, mas a que deu uma nova roupagem naquele articulado”.
   E foi consignado no douto acórdão recorrido que sobre as questões de desenvolvimento ou explicitação do anteriormente alegado, “não se deixará de conhecer”, e foram efectivamente conhecidas.
   Por outro lado, há que realçar a ligação íntima entre os princípios da igualdade e da justiça e o princípio da imparcialidade, no sentido indicado pelo recorrente.
   Ora, nas suas alegações facultativas, o recorrente invoca a violação do princípio de imparcialidade, alegando que este “obriga a Administração, nas suas relações com os particulares, à igualdade de tratamento dos interesses dos cidadãos, e impõe uma actuação administrativa em termos de equidade, não podendo deixar de ponderar interesses juridicamente protegidos” – cfr. al. k) das suas conclusões.
   E resulta de todo o conjunto dos seus argumentos que o que pretende o recorrente é essencialmente o seu igual tratamento com outros advogados que viram deferidos os respectivos pedidos para tomar posse como notário privado, vários anos depois do curso de formação, sem necessidade de nova frequência do curso.
   Tal como demonstra a entidade recorrida, com a citação das doutas considerações doutrinais, o princípio da imparcialidade está intimamente ligado aos princípios da igualdade e da justiça, pois tem uma vertente que impõe a igualdade de tratamento dos direitos e interesses dos cidadãos.
   Daí que, com a apreciação e a decisão da alegada violação dos princípios da igualdade e da justiça (cfr. ponto 7 do Acórdão), o Tribunal recorrido não deixou de conhecer da violação do princípio da imparcialidade, e consequentemente da violação do art.º 129.º da Lei Básica.
   Não se verifica a nulidade por omissão de pronúncia prevista no art.º 571.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil.
   
   Em segundo lugar, afigura-se-nos correcta a interpretação feita pelo Tribunal a quo quanto às disposições legais que regulam a matéria ora em causa.
   Pretende o recorrente a sua nomeação como notário Privado, em virtude de ter suspendido, a seu pedido, o exercício anterior destas funções.
   Resulta dos autos os seguintes factos que se mostram relevantes para apreciar o pedido do recorrente: em 16/11/1999 o recorrente tomou posse e prestou compromisso de honra como notário privado, tendo sido nomeado para esse cargo por Despacho do então Governador de Macau; no entanto e em 20/9/2001 foi autorizada, por despacho da Secretária para a Administração e Justiça que foi notificado em 24/9/2001, a suspensão da licença de notário privado pedida pelo recorrente, situação esta que se mantém até 18/5/2007, data em que o recorrente requereu a nova nomeação como notário privado.
   Ora, estamos perante uma situação em que, apesar de ter sido nomeado e exercido as funções de notário privado por período inferior a 2 anos, o recorrente suspendeu voluntariamente essas funções por período superior a 2 anos e pretende agora ser novamente nomeado.
   A questão há de ser resolvida nos termos das disposições legais do Estatuto do Notariado (DL n.º 66/99/M de 1 de Novembro), nomeadamente dos art.ºs 1.º, 23.º e 24.º.
   Nos termos do art.º 23.º, n.ºs 1 e 3 deste diploma, os notários privados podem, a todo o tempo, solicitar a suspensão da respectiva licença e a cessação do exercício de funções, sendo que a suspensão da licença cuja duração se prolongue por período superior a 2 anos se converte automaticamente em cessação do exercício de funções.
   E a título de “reassunção de funções”, o art.º 24.º prevê duas situações, uma referente à suspensão de licença e a outra à cessação do exercício de funções.
   Por um lado, os notários privados cuja licença tenha sido suspensa podem reassumir as suas funções independentemente de nova nomeação, sendo bastante a autorização da Administração que depende apenas da verificação dos requisitos previstos no n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 66/99/M, e por outro lado, a reassunção de funções daqueles notários privados que tenham cessados o exercícios de funções depende da nova nomeação que pressupõe a verificação dos requisitos previstos nos n.ºs 1 a 3 do art.º 1.º.
   No caso sub judice, trata-se duma situação de cessação do exercício de funções, dado que a suspensão de funções com duração superior a 2 anos implica automática cessação do exercício de funções, tal como resulta do n.º 3 do art.º 23.º.
   Ora, no caso de cessação do exercício de funções, um dos requisitos de cuja verificação depende a nova nomeação é o exercício de funções de notário privado em Macau durante mais de 2 anos que ficou depois voluntariamente cessado – al. b) do n.º 3 do art.º 1.º.
   Daí que, com o exercício das suas funções de notário privado por período inferior a 2 anos, a situação do recorrente não satisfaz a referida exigência da al. b) do n.º 3 do art.º 1.º, pelo que deve ser indeferido o pedido de nova nomeação formulado pelo recorrente.
   E resulta do n.º 2 do art.º 1.º, conjugado com o n.º 4 do art.º 24.º, que a nova nomeação depende de frequência e aprovação em curso de formação organizado pela Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça.
   Nota-se, no entanto, que no despacho impugnado, a Administração nem sequer invocou esta última exigência para indeferir o pedido do recorrente.
   
   Na realidade, a solução adoptada pela Administração no acto impugnado é imposta pela interpretação dos respectivos preceitos legais.
   O que se compreende na cronologia, lógica e teleologia desses mesmos preceitos.
   Tal como afirma o Magistrado do MP no seu parecer dado no recurso contencioso, “sempre se poderá ponderar que o exercício da função de notário privado por período inferior a 2 anos não é suficiente para sedimentar conhecimentos e adquirir experiência a tal nível, sendo que, por outra banda, a suspensão dessas funções por período superior a 2 anos será passível de “desenquadrar”, de “desactualizar” o interessado relativamente a novas exigências da actividade, impondo-se, pois, em qualquer dos casos, a efectivação de novo curso de formação”.
   E parece que as mesmas preocupações sobre a inadequação, desactualização e desadaptação ao exercício das funções de notário privado nos casos em que, após o curso de formação, os interessados nunca prestaram funções nem tomaram posse dentro de certo prazo, presidirão também à norma legal contida no art.º 5.º do DL n.º 66/99/M, segundo o qual os notários privados devem tomar posse e prestar compromisso de honra nos 30 dias seguinte à publicação da respectiva nomeação, prazo este que pode ser prorrogado até 1 ano quando haja motivo atendível, e “a falta de tomada de posse e de prestação de compromisso de honra implica a impossibilidade de nova nomeação antes de repetida a verificação dos requisitos previstos no artigo 1.º ”.
   Rigorosamente não estão em causa situações completamente iguais.
   Seja como for, e independentemente da bondade da decisão tomada pela Administração nos casos invocados pelo recorrente em que os seus colegas que não chegaram a exercer a actividade conseguiram depois a nova nomeação sem necessidade de repetir o curso de formação, certo é que a solução para o caso do recorrente resulta clara e expressamente das disposições legais.
   Actuando no domínio vinculado, à Administração não resta nenhuma hipótese de não indeferir o pedido do recorrente.
   Invoca o recorrente a violação dos princípios da igualdade , da justiça e da imparcialidade.
   No entanto, tal como entende este Tribunal de Última Instância, “a violação do princípio da igualdade não releva no exercício de poderes vinculados, já que não existe um direito à igualdade na ilegalidade. O princípio da igualdade não pode ser invocado contra o princípio da legalidade: um acto ilegal da Administração não atribui ao particular o direito de exigir a prática no futuro de acto de conteúdo idêntico em face de situações iguais” (cfr. Ac. de 2-4-2008, proc. n.º 7/2007).
   Salvo o devido respeito, não se demonstra violado o princípio da igualdade ou da justiça.
   E não se vê onde está a parcialidade na actuação da Administração.
   
   Pelo exposto, parece-nos que se deve negar provimento ao recurso.”
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Matéria de facto
   Foram considerados provados os seguintes factos pelo Tribunal de Segunda Instância:
   “É do seguinte teor o despacho ora recorrido:
   ‘Concordo com o presente parecer e indefiro o pedido de nomeação de notário privado, feito pelo advogado, Dr. A.
   A Secretária para a Administração e Justiça.
   Florinda Chan
   09/07/2007’
   É do seguinte teor o parecer ali aludido:
‘Parecer / Proposta
   Nomeação de notário privado
   Dr. A
   Exmº Senhor
   Director dos Serviços de Assuntos de Justiça
   
   O Dr. A, advogado, com escritório em Macau, na [Endereço], fls. 2, requereu a sua nomeação como notário privado, em virtude de ter suspendido, a seu pedido, o exercício anterior de tais funções, bem como a cessação da sua substituição, pelo notário privado, Dr. B, fls. 3.
   Juntou certificado de registo criminal, fls. 1, e certidão da Associação dos Advogados de Macau, fls. 2.
   Na verdade, em 16/11/1999, conforme fotocópia do termo de posse, fls. 4, o requerente tomou posse e prestou compromisso de honra como notário privado, tendo sido nomeado para esse cargo, por Despacho de 6 de Outubro de 1999, do então Governador de Macau, publicado em 20/10/1999, e com garantia bancária de 28/10/1999, fls. 10.
   Em 24/9/2001, foi notificado, fls. 8, do despacho da Secretária para a Administração e Justiça, de 20/9/2001, que autorizou o pedido de suspensão da licença de notário privado, pelo ora requerente.
   Em 10/10/2001, foi publicado o anúncio dessa suspensão voluntária, fls. 4.
   Nomeação e Posse
   - A nomeação é em acto administrativo receptício e, como tal, para produzir efeitos, está sujeita a aceitação, por parte do seu destinatário.
   É esta, aliás, a opinião sufragada pelo Dr. C e Dr. D, in Código do Procedimento Administrativo de Macau, Anotado e Comentado, edição da Fundação Macau e da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, de 1998, pág. 656.
   A citada aceitação da nomeação concretiza-se com a tomada de posse do interessado e a eficácia dessa nomeação não se retroage à sua data, mas antes é diferida para a data da tomada de posse, nos termos do art.° 111.°, al. c), 1ª parte, e dado não se estar perante nenhum dos casos previstos no art.° 110.°, ambos do Código do Procedimento Administrativo (CPA), de 1994, que têm a sua correspondência no art.° 119.°, al. c), 1ª parte e no art.° 118.° do CPA, em vigor desde 10/11/1999.
   - A nomeação, apesar de válida, é ineficaz, até ao momento da posse.
   Prova disso é a norma jurídica do n.º 3 do art.° 5.°, do actual Estatuto dos Notários Privados, que, na previsão da falta de tomada de posse e de prestação de compromisso de honra, dentro de certo prazo, anula todo o processado anterior, em paralelo com o que se passa no provimento de cargos públicos.
   O mesmo se diga quanto às normas que regulam a responsabilidade civil dos notários privados, que fazem condicionar a tomada de posse à prestação de caução para garantia da sua responsabilidade, art.° 15.°, n.ºs 1, 2 e 4, do actual Estatuto dos Notários Privados, que entrou em vigor em 1/11/1999, e que foi aplicado ao caso em apreço, embora a sua caução tenha data anterior a esta, fls. 9, pelo que o exercício de tais funções só se inicia com a tomada de posse.
   Notificação e Publicação
   - Estão sujeitos a notificação os actos que, extingam direitos ou interesses legalmente protegidos ou afectam as condições do seu exercício, conforme al. c) do art.° 68.°, aos quais também se aplica o disposto no n.º 1 do art.° 121.°, isto é, quando não sujeitos a publicação, começam a produzir efeitos a partir da sua notificação aos destinatários.
   - A publicação dos actos administrativos só é obrigatória quando exigida por lei, de acordo com o n.º 1 do art.° 120.°.
   - Os artigos supra invocados são do CPA.
   Estatuto dos Notários Privados : artigos 1°, 23° e 24°
   - A suspensão da licença de notário privado, por mais de 2 anos, converte-se, automaticamente, em cessação de funções, art.° 23.°, n.º 3.
   - Os notários privados que tenham cessado o exercício de funções, apenas podem reassumi-las, depois de novamente nomeados, art.° 24.°, n.º 3.
   - A nova nomeação, como notário privado, depende da verificação dos requisitos previstos nos n.ºs 1 a 3 do art.° 1.°, conforme art.° 24.°, n.º 4.
   - Para serem nomeados notários privados, os advogados têm de, cumulativamente, observar os n.ºs 1 e 2 do art.° 1.° ou o seu n.º 3.
   - Este n.º 3 do art.° 1.° diz-nos que essa nomeação depende apenas de requerimento e de confirmação, pela Direcção dos Serviços dos Assuntos de Justiça, dos requisitos do seu n.º 1, isto é, estar o advogado inscrito no respectivo organismo representativo, ter escritório e exercer funções em Macau, e por fim, não ter sido pronunciado, ou não ter sido designado dia para julgamento, ou condenado pela prática de crime doloso gravemente desonroso, quando o advogado tenha anteriormente exercido funções de notário público e sido dispensado do estágio para a advocacia por causa de tais funções ou quando o advogado tenha anteriormente exercido funções de notário privado, em Macau, durante mais de 2 anos e cessado esse exercício voluntariamente. Nestas duas situações, o advogado não tem de fazer depender a sua nomeação da frequência e aprovação em curso de formação, de acordo com o n.º 2 do citado art.° 1.°.
   Conclusão :
   No caso sub judice, o advogado suspendeu, voluntariamente, o exercício das suas funções de notário privado, suspensão esta que excedeu 2 anos, pelo que foi convertida, automaticamente, em cessação de funções.
   A sua publicação não é imposta directamente pela lei.
   Por sua vez, o exercício dessas funções, iniciou-se com a sua tomada de posse como notário privado e cessou com a notificação do despacho de autorização de suspensão da licença de notário privado, o que faz com que aquele exercício de funções não tenha sido levado a cabo por mais de 2 anos.
   - Tudo visto, somos de parecer que V. Ex.a proponha a Sua Excelência a Secretária para a Administração e Justiça o indeferimento do pedido de nomeação de notário privado, feito pelo advogado, Dr. A, com base no n.º 3, al. b) do art.° n.º 1 (sic.), do Estatuto dos Notários Privados, em conjugação com o seu n.º 1.
   - Porém, e caso V. Ex.a entenda que o pedido é de deferir, terá de propor a Sua Excelência a Secretária para a Administração e Justiça a nomeação do Dr. A como notário privado, sugerindo como forma e montante de caução para garantia da sua responsabilidade civil, a garantia bancária e o valor de MOP$1.500.000,00 (um milhão e quinhentas mil patacas).
   - Quanto ao pedido de cessação da substituição, consequente da suspensão de funções, a Administração nada tem a pronunciar, visto que o notário substituto foi designado pelo notário privado substituído.
   V. Ex.ª melhor decidirá.
   A Conservadora,
   E’ ”
   
   
   2.2 Omissão de pronúncia e matéria de conhecimento oficioso
   Entre as questões suscitadas pelo recorrente, é de apreciar, em primeiro lugar, a omissão de pronúncia, pois a proceder o vício, determinará a nulidade do acórdão recorrido.
   O recorrente sustenta que o acórdão recorrido incorreu na nulidade por omissão de pronúncia prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil (CPC), ao abster de conhecer da alegada violação directa do art.º 129.º da Lei Básica da RAEM e do princípio da imparcialidade por supostamente se tratarem de matéria nova.
   Mais considera que tais violações configuram nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 122.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e são vícios de conhecimento oficioso.
   
   Ora, sobre os referidos vícios o tribunal recorrido não deixou de pronunciar, manifestando a sua posição.
   Perante a oposição da recorrida a aceitar o conhecimento superveniente da matéria, considerada nova por esta, suscitada nas alegações facultativas do recorrente, no acórdão recorrido, ao referir os vícios “relacionados com pretensas inconstitucionalidades decorrentes de afronta a princípios fundamentais e preceitos da Lei Básica”, decidiu-se o seguinte:
   “Enquanto matéria nova, não sendo de conhecimento superveniente, face ao disposto no n.º 3 do art.º 68.º, CPAC, de tal não se conhecerá nesta sede; enquanto desenvolvimento ou explicitação do anteriormente alegado, sobre essas questões não se deixará de conhecer.”
   E o tribunal recorrido conheceu efectivamente, a partir do ponto n.º 7 da parte dos fundamentos do acórdão ora impugnado, a pretensa violação dos princípios de justiça e de igualdade, a que relaciona, em alguma medida, tal matéria “nova” alegada pelo recorrente.
   Assim, não há omissão de pronúncia sobre tal matéria. Se o tribunal recorrido pronunciou bem, já é outra questão, ou seja, a existência ou não de erro de julgamento.
   
   Por outro lado, os vícios de acto administrativo conducentes à sua nulidade ou até inexistência jurídica são de conhecimento oficioso, independentemente da posição das partes, mesmo que sejam considerados matéria nova em recurso jurisdicional.
   No entanto, não nos parece que, no presente caso, a violação do princípio de igualdade consagrado no art.º 129.º, n.º 1 da Lei Básica da RAEM e do princípio da imparcialidade determinará a nulidade do acto impugnado, pois não é qualquer afronta, mais ou menos directa, aos princípios constitucionalmente protegidos que gera nulidade do acto, também não estamos perante o caso de ofensa ao “conteúdo essencial de um direito fundamental”, uma das causas de nulidade prevista na al. d) do n.º 2 do art.º 122.º do CPA.
   “A violação do princípio da imparcialidade gera vício de violação de lei, o que determina a anulabilidade do acto imparcial (cfr. art.º 116.º do CPA). Mas se a Administração se desvia do interesse público para prosseguir interesses alheios e estes são o motivo determinante da sua conduta, tal parcialidade determina a anulabilidade do acto por desvio de poder.”1
   Portanto, à violação dos referidos princípios só pode corresponder à anulabilidade do acto impugnado, nos termos do art.º 124.º do actual CPA, não sendo, em consequência, de conhecimento oficioso.
   Improcede esta parte do recurso.
   
   
   2.3 Repetição do curso de formação
   O recorrente considera que não é legítimo nem razoável o advogado que tenha cessado as funções de notário privado, em qualquer circunstância tenha de repetir a frequência e aprovação em curso de formação, propondo que se proceda à interpretação lógica e teleológica conducente à conclusão de que não deve ser imposta nova frequência e aprovação em curso de formação a quem já o fez, independentemente do tempo transcorrido. Entende que ao decidir diferentemente, a decisão recorrida faz uma interpretação e aplicação simplista do art.º 24.º do Estatuto dos Notários Privados.
   Para o recorrente, a prova é o facto de que o legislador não sujeitou a um termo a nomeação e tomada de posse após a aprovação no curso de formação – o que veio a permitir a nomeação e tomada de posse a colegas do recorrente, mais de cinco anos após a frequência do curso de formação.
   
   O caso do recorrente encontra solução expressa no Estatuto dos Notários Privados aprovado pelo Decreto-Lei n.° 66/99/M de 1 de Novembro.
   É fundamental atender às seguintes normas:
“Art.° 1.°
(Nomeação)
   1. Podem ser nomeados notários privados os advogados que, cumulativamente:
   a) Não sejam estagiários;
   b) Estejam regular e definitivamente inscritos no respectivo organismo representativo;
   c) Tenham escritório e se encontrem em exercício de funções no Território;
   d) Não tenham sido pronunciados, ou não tenha sido designado dia para julgamento, ou condenados pela prática de crime doloso gravemente desonroso.
   2. Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a nomeação depende de frequência e aprovação em curso de formação organizado pela Direcção dos Serviços de Justiça.
   3. Depende apenas de requerimento e de confirmação, pela Direcção dos Serviços de Justiça, da verificação dos requisitos previstos no n.º 1, a nomeação de advogados que:
   a) Tenham anteriormente exercido funções de notário público e sido dispensados do estágio para a advocacia por causa de tais funções;
   b) Tenham anteriormente exercido funções de notário privado no Território durante mais de 2 anos e cessado esse exercício voluntariamente.
   4. Os notários privados são nomeados por despacho do Governador.
   5. Quando a nomeação dependa de frequência e aprovação em curso de formação, o despacho referido no número anterior é proferido no prazo de 30 dias após a publicação da lista de classificação final.
   
Art.° 23.°
(Regime)
   1. Os notários privados podem, a todo o tempo, solicitar ao Governador a suspensão da respectiva licença e a cessação do exercício de funções.
   2. A decisão é sempre precedida de inspecção aos notários privados com vista à instrução do procedimento.
   3. A suspensão da licença cuja duração se prolongue por período superior a 2 anos converte-se automaticamente em cessação do exercício de funções.
   
Art.° 24.°
(Reassunção de funções)
   1. Os notários privados cuja licença tenha sido suspensa podem reassumir as suas funções, independentemente de nova nomeação, depois de autorizados pelo Governador.
   2. A autorização depende da verificação, nesse momento, dos requisitos previstos no n.º 1 do artigo 1.º
   3. Os notários privados que tenham cessado o exercício de funções apenas podem reassumi-las depois de novamente nomeados.
   4. A nova nomeação como notário privado depende da verificação dos requisitos previstos nos n.ºs 1 a 3 do artigo 1.º.”
   
   Das referidas normas resulta o seguinte:
   A suspensão da licença de notário privado por mais de dois anos é convertida automaticamente em cessação do exercício de funções.
   Cessado o exercício de funções, o interessado só pode reassumi-las depois de nova nomeação, dependente da verificação dos requisitos previstos nos n.°s 1 a 3 do art.° 1.° do mesmo diploma. É o que está expressamente previsto no seu art.° 24.°, n.°s 3 e 4. E o requisito previsto no n.° 2 do art.° 1.° é exactamente a frequência e aprovação em curso de formação que só podem ser dispensadas nomeadamente com o exercício de funções de notário privado em Macau durante mais de dois anos.
   
   De acordo com a matéria de facto provada, o recorrente tomou posse como notário privado em 16 de Novembro de 1999. Foi notificado em 24 de Setembro de 2001 do despacho de autorização de suspensão da licença de notário privado com o anúncio dessa suspensão publicado em 10 de Outubro seguinte. Em Maio de 2007, o recorrente pediu que fosse novamente nomeado notário privado.
   Assim, é manifesto que o recorrente chegou a exercer as funções de notário privado, mas por período inferior a dois anos e verificou-se a cessação do exercício de funções porque a licença suspendeu-se durante mais de dois anos. Então, só com a nova frequência e aprovação do curso de formação é possível a reassunção de funções de notário privado, face à prescrição do art.° 24.°, n.° 4 do Estatuto dos Notários Privados. A actual lei é bastante clara neste sentido.
   Compreende-se a preocupação do legislador em assegurar a adaptação e actualização de capacidade e conhecimentos técnicos de notário privado que tinha exercido as respectivas funções por menos de dois anos e deixou de exercer estas funções durante mais de dois anos.
   
   O recorrente chegou a mencionar os casos de nomeação e tomada de posse como notário privado mais de cinco anos após a frequência do curso de formação, para justificar a violação dos princípios de igualdade, de justiça e de imparcialidade por parte da entidade recorrida.
   Tal argumento não procede, simplesmente por serem casos diferentes, pois aqueles dois casos referem-se às nomeação e tomada de posse como notário privado seis anos depois da publicação da lista em que foram considerados habilitados.
   Pode-se questionar a actuação da Administração de aceder aos pedidos de nomeação como notário privado depois de decurso do referido prazo. Mas seja qual for a resposta, não pode servir de argumento para dispensar a nova frequência do curso de formação pelo recorrente, pois se fosse a actuação legal, o seu regime legal é totalmente alheio à situação do recorrente; se fosse ilegal, então reina o princípio de que a igualdade não se opera na ilegalidade.
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso jurisdicional.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 4UC.
   
   Aos 5 de Novembro de 2009


Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

A Procuradora-Adjunta
presente na conferência: Song Man Lei

1 Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro, José Cândido de Pinho, Código do Procedimento Administrativo de Macau, anotado e comentado, edição conjunta de Fundação de Macau e da SAFP, 1998, p. 104. No mesmo sentido, José Manuel da S. Santos Botelhos e outros, Código do Procedimento Administrativo, anotado – comentado – jurisprudência, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1996, p. 84.
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Processo n.º 47 / 2008 24