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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso laboral
N.º 38 / 2008

Recorrente: A
Recorrida: B






   1. Relatório
   B instaurou uma acção de processo civil do trabalho comum contra a A, pedindo que esta seja condenada a pagar à autora certa quantia em dinheiro correspondentes aos dias de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios não gozados.
   No despacho saneador, o Tribunal Judicial de Base julgou procedente a excepção peremptória do pagamento e da renúncia expressa da autora e absolveu a ré do pedido.
   Desta sentença recorreu a autora para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.º 409/2008, foi concedido provimento ao recurso da autora, revogando a decisão recorrida de absolvição da ré do pedido e ordenando o conhecimento pelo tribunal a quo do pedido formulado na petição inicial, a não ser que haja outro motivo legal a obstar a isto.
   Deste acórdão vem agora a ré recorrer para este Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
   - O douto acórdão recorrido violou os art.ºs 5.º e 6.º, de ambos do RJRT, conquanto a interpretação do princípio do tratamento mais favorável não tem cabimento no caso concreto.
   - A declaração que consubstanciou uma remissão de créditos / de dívida foi emitida já depois de a relação contratual entre a autora e a ré estar extinta, pelo que não se trata de qualquer “regulamentação normativa atinente às condições de trabalho”
   - O preceito legal contigo no art.º 6.º do RJRT não tem aplicação ao caso concreto.
   - A autora recebeu um tratamento mais favorável do que eventualmente poderia ter se os cálculos tivessem sido feitos de acordo com a lei.
   - No caso da remissão de créditos laborais, não se consagrou qualquer imperatividade das normas laborais.
   - Sempre se aplicará ao caso concreto o disposto no art.º 854.º do Código Civil.
   - Resulta da declaração da autora que esta pretendeu resolver de uma vez por todas e quaisquer questões pendentes relativamente a eventuais compensações pelo trabalho prestado em dias de descansos e que com essa mesma declaração não mais se consideraria credor de quaisquer valores.
   Pedindo que seja julgado procedente o recurso, revogando a decisão recorrida.
   
   A recorrida não apresentou resposta.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Matéria de facto
   Foram considerados provados os seguintes factos pelo Tribunal Judicial de Base que não forma alterados pelo Tribunal de Segunda Instância:
   “1. A ré é uma empresa que tem por objecto social a exploração de jogos de fortuna ou azar e a indústria hoteleira, de turismo, transportes aéreos, marítimos e terrestres, construção civil, operações em títulos públicos e acções nacionais e estrangeiros, comércio de importação e exportação.
   2. A ré foi desde o início da década de 60 e até meados de 2002 concessionária de uma licença de exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna e azar ou outros em casinos, por adjudicação do então Território de Macau.
   3. Desde 15 de Dezembro de 1974 até ao termo da relação laboral em 2002, a autora trabalhou, sob a direcção efectiva, fiscalização e retribuição da ré.
   4. A 25 de Julho de 2003 a autora emitiu a declaração constante de fls. 122, com o seguinte conteúdo:
   ‘Eu, B, titular do BIR n.° -/------/-, recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$29.892,10 da A1, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a A1.
   Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a A1 subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à A1, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
   A declarante: B (ass)
   BIR n.º -/------/-
   Data: 25-7-2003
   
   Concordo e aceito tal declaração.
   (assinatura)
   2003.7.25
   (carimbo: A1, Departamento do Pessoal)’”
   
   
   2.2 Validade da declaração do trabalhador. Princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. Vício da vontade
   A recorrente considera que o acórdão recorrido padece da nulidade por errada interpretação e aplicação do art.º 6.º do Regime Jurídico das Relações de Trabalho (Decreto-Lei n.º 24/89/M), entendendo que tal norma se aplica apenas no período em que a relação laboral está ainda em vigor e a remissão ocorreu já após a sua vigência e não se relaciona com as condições de trabalho, pelo que tal norma não tem aplicação no presente caso.
   Entende ainda que a recorrida recebeu um tratamento mais favorável do que eventualmente poderia ter se os cálculos tivessem sido feitos de acordo com a lei. E resulta da declaração da recorrida que esta pretendeu resolver de uma vez por todas e quaisquer questões pendentes relativamente a eventuais compensações pelo trabalho prestado em dias de descansos e que com essa mesma declaração não mais se consideraria credor de quaisquer valores.
   
   A questão suscitada, a proceder, configura um erro de julgamento e não a nulidade da sentença.
   
   Foi aceite no acórdão recorrido de que se está formalmente perante uma remissão de dívida corporizada na declaração emitida pela autora. Mas entende que tal contrato de remissão não é válido tendo em conta o disposto no art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, por violação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador nele consagrado e porque do acordo da remissão resultou condições de trabalho menos favoráveis para a autora. Invocou ainda o art.º 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M para reforçar a sua tese.
   
   Segundo os factos assentes, a recorrida trabalhou para a ré de 1974 a 2002. Em Julho de 2003, a recorrida emitiu a declaração em questão em que declarou que recebia voluntariamente da ré a quantia de MOP$29.892,10 a título de prémio de serviço, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a A1. Mais declarou que nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a ré subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é exigível, por qualquer forma, à mesma empresa.
   
   Dispões assim o art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M:
   “São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei.”
   
   Está consagrado neste artigo o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador no sentido de que as normas convencionais prevalecem sobre as normas legais quando aquelas estabelecem condições de trabalho não menos favoráveis que estas.
   Tal norma refere às condições de trabalho a ser observadas durante a vigência da relação laboral. Ao passo que o teor da declaração emitida pela recorrida não se relaciona com as condições de trabalho, mas antes declarações negociais sobre a disposição de créditos laborais, pelas quais a recorrida declarou que ter recebido determinada quantia pecuniária devida pela relação laboral já extinta e mais nada ter a receber da antiga entidade patronal.
   Assim, o referido art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M é inaplicável ao presente caso.
   
   É natural que haja outras disposições legais com objectivo de proteger a efectivação dos direitos de trabalhador, tal como o disposto no art.º 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, diploma que estabelece o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, que foi referido no acórdão recorrido.
   Apesar de ter finalidade semelhante ao art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, não se pode perder de vista que cada norma tem o seu campo de aplicação e na concretização do direito num caso concreto deve atender estritamente às normas que regulam exactamente a questão a resolver. É manifesto que cada um dos dois diplomas legais tem o seu próprio âmbito de aplicação, de modo que as disposições do Decreto-Lei n.º 40/95/M que regula as matérias de acidentes de trabalho e doenças profissionais são insusceptíveis de justificar a solução a dar ao presente caso relacionado com a disposição de créditos laborais derivados duma relação de trabalho que, entretanto, já deixou de vigorar.
   
   Cabe referir que a autora, na sua resposta à excepção peremptória de remissão de créditos invocada pela ré, chegou a alegar uma série de factos tendentes a demonstrar o erro induzido pelo cálculo de indemnização feito pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais e o constrangimento sofrido de não renovação do contrato de trabalho com a C como consequência de não assinar a declaração.
   O Tribunal Judicial de Base considerou, no saneador-sentença, que tais factos só têm relevância enquanto se mantenha a relação laboral com a primitiva entidade patronal.
   E o Tribunal de Segunda Instância referiu no acórdão recorrido à subsistência do estado de sujeição da autora no momento da assinatura da declaração por considerar como facto notório, conhecido pelos tribunais de Macau no exercício das funções jurisdicionais em todos os processos semelhantes, que quem assinou este tipo de declarações foram ex-trabalhadores da A1 que passaram a trabalhar, a partir dessa altura, nos casinos da C, criada e controlada pela mesma A1.
   Quanto a esta consideração do tribunal recorrido, é de salientar que a alegação destes factos pela autora na sua resposta à excepção deduzida pela ré constitui uma ampliação da causa de pedir, evidentemente na falta de acordo, que só pode ser feita na réplica (art.º 217.º, n.º 1 do CPC), de modo que a ré possa ainda responder na tréplica1 (art.º 421.º, n.º 1 do CPC). Mas no processo civil do trabalho comum não há réplica (art.º 33.º do Código de Processo do Trabalho), pelo que a autora não pode ampliar a causa de pedir na resposta à referida excepção. Em consequência, tais factos são irrelevantes processualmente para a apreciação do mérito da causa.
   
   
   2.3 Natureza jurídica da declaração e os seus efeitos
   Nos termos da declaração da recorrida, esta declarou que recebia uma prestação pecuniária e que não subsistia mais nenhum direito decorrente da relação de trabalho com a ré.
   Não parece que fosse uma remissão da recorrida.
   Segundo Antunes Varela:
   “A obrigação extingue-se sem chegar a haver prestação.
   Na remissão é o próprio credor que, com a aquiescência embora do devedor, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse, que a lei lhe conferia.”2
   
   Remitir significa perdoar.
   Para Menezes Leitão, a remissão “consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida. Efectivamente, o credor, tendo naturalmente direito a exigir a prestação do devedor, pode, com o acordo deste, abdicar desse direito, determinando a extinção da dívida, sem que ocorra a realização da prestação.”3
   
   Na realidade, a recorrida declarou que recebeu uma prestação pecuniária. Nada resulta, nem do teor da declaração, nem dos articulados, que a recorrida pretendia remitir, ou seja, perdoar a dívida laboral da ré, total ou parcialmente.
   
   Trata-se mais de uma quitação, pois a quitação é uma prova de cumprimento da obrigação entregue pelo credor a quem cumpre a obrigação (art.º 776.º do Código Civil).
   Mas é uma quitação complexa cujo conteúdo excede a simples declaração do credor de ter recebido uma prestação como satisfação do seu crédito, fenómeno que não deixa de ser tratado na doutrina:
   “A quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit Civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”4
   Vaz Serra, no estudo que precedeu à elaboração do anteprojecto do Código Civil de 1966, considera que a quitação pode significar uma remissão da dívida, ou seja, o credor quer remitir a dívida sob a forma de quitação, quando se prove que o devedor sabia que a dívida não estava extinta e que a quitação não foi passada na esperança de um pagamento. E pode significar também um reconhecimento da inexistência da dívida. Também aqui o reconhecimento não se conclui apenas da quitação, que o não declara. Portanto, a remissão ou o reconhecimento negativo da dívida não são de presumir, devendo resultar, pelo menos, das circunstâncias, dado que em regra, a quitação não é passada com essa finalidade.5
   
   E segundo o ensinamento de Antunes Varela, o reconhecimento negativo de dívida é o negócio declarativo pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe, assente sobre a convicção declarada da inexistência da obrigação.6
   
   A recorrida não alegou nem resulta do teor da declaração que pretendia perdoar o crédito laboral à ré, por isso não é de considerar a declaração como remissão concedida na forma de quitação.
   Mas declarou que recebeu uma determinada quantia da A1 e “nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a A1 subsiste”.
   Entendemos que se trata de uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
   
   O reconhecimento negativo de dívida visa certificar a efectiva inexistência da dívida, para pôr termo a uma situação de incerteza acerca da existência do crédito, tornado certo o que era incerto. Para tanto, o credor reconhece que a dívida não existe. O efeito deste reconhecimento é que a dívida se extingue, se acaso existia.7
   Assim, tem como consequência jurídica da declaração a extinção direito de crédito laboral da recorrida contra a recorrente.
   É de manter a decisão de primeira instância de absolver a recorrente do pedido e, em consequência, deve ser revogado o acórdão recorrido.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância para ficar a subsistir a sentença do Tribunal Judicial de Base que absolveu a ré do pedido.
   Custas nesta e na segunda instância pela autora.
   
   Aos 17 de Dezembro de 2008



Os juízes: _________________________________


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1 Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 280.
2 Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. II, Almedina, Coimbra, 7ª ed., 1999, p. 243.
3 Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, Coimbra, 4ª ed., 2006, p. 219.
4 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 3ª ed., 1986, p. 40
5 Vaz Serra, Do cumprimento como modo de extinção das obrigações, in BMJ, n.º 34, p. 169 e 175.
6 Antunes Varela, obra citada, p. 252.
7 Vaz Serra, Remissão, reconhecimento negativo de dívida e contrato extintivo da relação obrigacional bilateral, in BMJ, n.º 43, p. 79 e 80.
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Processo n.º 38 / 2008 12