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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.º 74 / 2010

Recorrente: A
Recorrido: Chefe do Executivo







   1. Relatório
   A requereu perante o Tribunal de Segunda Instância a suspensão de eficácia do acto do Chefe do Executivo de 3 de Setembro de 2010 que se ordenou a A e outros ocupantes ilegais desconhecidos a desocupação de um terreno sito em Coloane, a demolição e despejo da construção ilegal existente no terreno, a remoção de materiais nele depositados e a entrega do terreno ao Governo da RAEM.
   Por acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 11 de Novembro de 2010 proferido no processo n.º 806/2010/A, o pedido de suspensão de eficácia de acto administrativo do Chefe do Executivo foi julgado improcedente.
   Inconformado com a decisão, A recorreu deste acórdão para o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
   - De acordo com os factos provados 1, 2 e 3, provou-se que “há cerca de cem anos, os pais, o tio e a tia do recorrente já viviam numa moradia de campo situada no [Endereço(1)]”; e que “em 1974, depois do falecimento dos pais e do tio do requerente, a tia doou-lhe a moradia, e, a partir daí, o requerente tem vivido lá.”
   - Durante os trinta e tal anos em que o recorrente habitou esta “moradia rural”, ele tem utilizado e ocupado a moradia na qualidade de proprietário, pagado as contribuições prediais, e procedido à gestão, reparação e conservação dela, nunca chegando a pagar rendas a ninguém.
   - A moradia não foi adquirida por violência ou usurpação, e ao longo de mais de 35 anos contados a partir de 1974, o recorrente tem utilizado e habitado a moradia de forma pública e repetida, julgando ser ele próprio o proprietário dela.
   - O então Governo de Macau (antes do retorno) também reconheceu a existência desta moradia rural, tendo-a desenhado na planta cadastral da [Endereço(1)] do Coloane.
   - O recorrente, por ser titular da posse pública e de boa fé da moradia rural durante cerca de cem anos, tem o direito de adquirir o “direito próprio” dela por se ter completado o prazo de usucapião.
   - Durante uma trintena de anos, o recorrente tem vivido pacificamente na dita moradia rural, estando convicto de ser o proprietário dela, tal como todo e qualquer cidadão da Povoação, sem ter sido contestado por qualquer pessoa ou pela Administração. Por este motivo, entende o recorrente que a suspensão da execução do acto administrativo não causará lesão grave para o interesse público, tal como não tem causado ao longo dos trinta anos antes da remodelação.
   - Assim, entende o recorrente que, como ele apenas praticou actos de remodelação à moradia rural, não tendo escavado a encosta, arrancado árvores, prejudicado o ambiente ou alterado a topografia do local, a suspensão da eficácia do acto não prejudicará o interesse público, pelo que está preenchido o art.º 121.º, n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo de Macau.
   - Verificando-se a contradição acima referenciada, o acórdão é nulo, nos termos do art.º 571.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil de Macau.
   - Para o recorrente, a perda da moradia equivale à perda da sua vida, de todo o seu património e do seu lar, de modo que ele tem que dormir na rua junto com a sua esposa e os seus filhos.
   - Para evitar que as paredes e a estrutura de aço da moradia ficassem corroídas, e também para prevenir o acontecimento de fuga de electricidades e de caída da moradia, o recorrente remodelou a casa com a poupança quase da sua vida inteira, que é no valor não inferior a MOP 3.500.000.
   - Se for imediatamente executado o acórdão e demolida a dita moradia rural, o recorrente vai sofrer um prejuízo não inferior a MOP 3.500.000. E não só. O que ele perderá é a casa dele, do seu pai B, da sua mãe C, do seu tio D e da sua tia E, casa essa que é mais importante deles e insubstituível por outra, cuja perda é insusceptível de indemnização pecuniária.
   - Além disso, o recorrente já tem uma idade avançada, não tendo capacidade económica de reconstruir ou procurar uma casa nova, pelo que a “demolição” da moradia rural vai fazer com que o recorrente perca o seu lar e que durma na rua, causando-lhe uma lesão irreparável ou de difícil reparação.
   - Mas o acórdão visado pelo recurso apenas diz que não se verificou lesão de difícil reparação e que não é preciso de verificar se está preenchido o n.º 4 do art.º 121.º do Código do Procedimento Administrativo de Macau, deixando de considerar totalmente o afecto que o recorrente tem pela moradia, e os prejuízos patrimoniais e morais.
   - Assim sendo, o referido acórdão foi proferido na falta de fundamentos suficientes e de factos que o provem, pelo que violou o disposto no n.º 4 do art.º 121.º do Código do Procedimento Administrativo de Macau.
   - Nos termos do art.º 571.º, n.º 1, al. b) do Código do Processo Civil de Macau, onde diz que “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”, o respectivo segmento da sentença deve ser considerado nulo.
   Pedindo que seja julgado nulo o acórdão recorrido e, em consequência, deferido o pedido de suspensão de eficácia do acto impugnado.
   
   O recorrido sustenta, nas suas alegações, a improcedência do recurso ora interposto.
   
   O Ministério Público emitiu o parecer no sentido de não ocorrer qualquer das nulidades assacadas ao acórdão recorrido, sem prejuízo de, relativamente à substância do decidido, se manter a posição assumida no parecer dado no Tribunal de Segunda Instância em que se pugna o deferimento do pedido de suspensão de eficácia do acto impugnado.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Matéria de facto
   Foram considerados provados os seguintes factos pelo Tribunal de Segunda Instância:
   “1. A, ora requerente, é filho de B e C;
   2. Há cerca de cem anos, os pais e tios do ora requerente habitaram uma casa que existia num terreno da [Endereço(1)], em Coloane;
   3. Em 1974, após o falecimento dos pais e tio do requerente, a sua tia ofereceu-lhe o dito imóvel, tendo o mesmo passado a residir nele;
   4. No mesmo local, e em data não determinada, o requerente decidiu realizar obras, construindo uma moradia de 4 pisos;
   5. De acordo com a certidão da Conservatória de Registo Predial de 10.05.2010, sobre o terreno onde se encontra edificada a mencionada moradia não se encontra registado a favor de particular direito de propriedade ou qualquer outro direito real;
   6. Em 09.12.2009, profissionais da DSSOPT detectaram que no referido terreno desenvolviam-se obras de construção de uma edificação com betão armado e vara de aço;
   7. Em 14.12.2009 foi decidida a proibição das ditas obras, tendo-se afixado cópia de tal decisão à entrada do terreno;
   8. Em 19.03.2010, e depois de se apurar que as obras continuavam, foi novamente ordenado que fossem as mesmas imediatamente suspensas;
   9. Em 29.04.2010, e perante a continuação das obras, a DSSOPT, com a colaboração da PSP, procedeu à vedação da obra;
   10. Por despacho do Exm° Chefe do Executivo de 03.09.2010, (cfr., fls. 143 e segs. do P.I.), ordenou-se a desocupação do terreno assim como a demolição da construção aí existente, (sendo este o acto objecto do presente pedido).”
   
   
   2.2 Grave lesão do interesse público
   O recorrente não entende que haja grave lesão do interesse público por considerar que ele próprio tinha residido na casa rural há mais de trinta anos, de forma pública e com boa fé, sem qualquer oposição, adquirindo assim o “direito próprio” da casa rural por usucapião, e a imputação da grave lesão do interesse público após a reparação desta casa consubstancia a contradição entre os fundamentos provados e a decisão, conducente à nulidade do acórdão recorrido.
   
   Ora, não há qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão no acórdão recorrido, pois os fundamentos de facto e de direito constantes deste conduzem naturalmente à decisão tomada. O recorrente discorda, no fundo, da verificação da grave lesão do interesse público na suspensão da eficácia do acto impugnado.
   Mas sem razão.
   
   Segundo os factos provados, apesar de o recorrente e a sua família terem residido na casa rural existente no terreno em causa há cerca de cem anos, é de destacar que o terreno não está registado a favor de qualquer particular e a moradia agora encontrada é uma casa totalmente nova, já não é a casa rural que o recorrente e os seus familiares residiam inicialmente. Esta casa rural é agora substituída segundo o plano, concebido e executado por eles próprios, de realização de obras para construir uma moradia nova com quatro andares. Esta moradia foi objecto de ordem de proibição de obras emitida pela DSSOPT em 14 de Dezembro de 2009 e de duas ordens de suspensão de obras posteriormente passadas pelo pessoal deste Serviço.
   Assim, é manifesto que a moradia construída pelo recorrente é uma construção nova cujas obras foram realizadas com total ignorância da lei. O recorrente, tendo perfeito conhecimento da ilegalidade das obras realizadas no local pelo menos por falta da respectiva licença de obra e a posição do Governo sobre a titularidade da propriedade do terreno pelo Estado, mantinha as obras em curso até concluída a construção da moradia, violando publicamente as ordens administrativas de proibição de execução de obras, sem cuidar as possíveis sanções legais, incluída a eventual responsabilidade criminal.
   O acto cuja eficácia se pretende suspender visa precisamente a repor a ordem jurídica violada, restabelecendo com premência o respeito pela lei face à sua violação sucessiva. A suspender a eficácia do acto em causa, este interesse público visado pelo acto será gravemente prejudicado.
   Por isso, não se verifica no presente caso o requisito previsto na al. b) do n.º 1 do art.º 121.º do CPAC.
   
   
   2.3 Prejuízo de difícil reparação ou desproporcionado para o requerente
   O recorrente alega ainda que a perda da casa rural equivale, para ele, a perder a sua vida e todo o seu património, tornando-se sem abrigo e perdendo a sua família a casa mais importante, que é irreparável por dinheiro, e as despesas de reparação da casa rural absorvem a sua poupança de quase toda a vida. E considera que o acórdão recorrido é nulo por falta de especificação dos fundamentos da decisão, ao referir apenas a falta de prejuízo de difícil reparação para o recorrente e a desnecessidade de examinar o n.º 4 do art.º 121.º do CPAC.
   
   De igual modo, não há aqui qualquer nulidade do acórdão recorrido por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, pois tais fundamentos foram expressamente expostos na parte de fundamentação do acórdão recorrido.
   Quanto à casa em si, não se deve confundir a casa rural anteriormente existente no terreno em causa e a moradia agora construída, não sendo uma mera reparação da antiga casa rural. É de salientar que a moradia agora objecto de ordem de demolição é uma construção totalmente nova, realizada por decisão do recorrente, com as obras praticamente feitas em Junho de 2010.
   Não parece que tal construção reveste qualquer valor histórico ou arquitectural de relevo. E muito menos a “casa rural” em que residiam o recorrente e os seus familiares. Assim, não será difícil a sua reconstrução no caso de ser demolida a moradia nova, que a Administração deve tomar toda a precaução a prevenir esta hipótese, com a indemnização pecuniária dos prejuízos que não podem ser reparados por reconstituição natural, nomeadamente os que resultam da privação do uso da moradia.
   Mais ainda, as obras de construção da moradia tinham sido realizadas já com a emissão de ordens de proibição de execução de obras. Ou seja, o recorrente conhecia a falta de licenças para as obras cuja execução tinha sido proibidas por referidas ordens administrativas. Por outro lado, também sabia perfeitamente a posição da Administração sobre a titularidade da propriedade do terreno.
   
   No quadro de circunstâncias concretas do presente caso, a execução imediata do acto não constitui prejuízo de difícil reparação para o recorrido.
   É de salientar que a construção de casa alegadamente de forma ilegal foi levada a cabo pelo recorrente com manifesto desrespeito de ordens proibitivas da Autoridade, mesmo até correndo o risco de responder criminalmente. Por outra palavra, mesmo que exista eventualmente prejuízo de difícil reparação ou desproporcional, seria este provocado por ele próprio.
   Não se verificando este requisito previsto na al. a) do n.° 1 do art.° 121.°CPAC, é inevitável o indeferimento do pedido de suspensão de eficácia do acto ora impugnado e torna-se consequentemente desnecessário apreciar o caso nos termos do n.° 4 do mesmo artigo.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso jurisdicional.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixadas em 4UC.
   
   
   Aos 2 de Março de 2011




Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai


O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Victor Manuel Carvalho Coelho


Processo n.º 74 / 2010 10