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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.º 64 / 2010

Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Economia e Finanças







   1. Relatório
   A interpôs recurso contencioso perante o Tribunal de Segunda Instância contra o despacho do Secretário para a Economia e Finanças de n.º X/SEF/2009.
   Por acórdão de 13 de Maio de 2010 proferido no processo n.º 984/2009, o Tribunal de Segunda Instância rejeitou o recurso contencioso.
   Após, o recorrente arguiu nulidade deste acórdão por omissão do contraditório e apresentou ao mesmo tempo recurso jurisdicional.
   Sobre a nulidade invocada o Tribunal de Segunda Instância proferiu novo acórdão em 22 de Julho de 2010 em que julgou improcedente a pretensão apresentada.
   Deste novo acórdão o recorrente recorreu também para o Tribunal de Última Instância.
   
   No recurso contra o acórdão de 13 de Maio de 2010, o recorrente apresentou as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
   - O acto administrativo susceptível de recurso é o acto recorrido, emitido pelo Secretário para a Economia e Finanças a 9 de Outubro de 2009, e não o acto do Chefe do Executivo, de 29 de Setembro de 2009;
   - O acto do Chefe do Executivo na parte relativa à rescisão do contrato individual de trabalho e na parte relativa ao apuramento e reposição, nos termos da lei, de montantes indevidos, não é dirigido ao recorrente, mas expressamente ao Secretário para a Economia e Finanças;
   - Isto porque é o Secretário para a Economia e Finanças a entidade competente para, nos termos da lei, decidir da reposição ou não de dinheiros públicos, em obediência ao art.º 34.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2006;
   - Daí que o chamado “acto” do Chefe do Executivo a remeter o assunto para decisão do Secretário para a Economia e Finanças que é, nos termos da lei, a entidade competente para decidir da efectiva reposição, ou não, de dinheiros públicos corresponda a um mero acto interno e sem efeitos exteriores, sendo, assim, irrecorrível;
   - O facto de o Chefe do Executivo ter dado início a um processo administrativo que, uma vez decidido pela entidade competente, poderá ou não ter efeitos negativos para o recorrente, não é, por si só, um acto lesivo para este;
   - Antes de tomada a decisão pelo Secretário para a Economia e Finanças a situação jurídica do recorrente não estava, em concreto, definida, não havendo ainda qualquer lesão concreta dos seus direitos;
   - A lesão sofrida só se verifica com a ordem da entidade competente de mandar repor todas as remunerações auferidas pelo recorrente no exercício de funções públicas que ultrapassem o limite previsto no art.º 176.º do ETAPM, ordem essa que consta do acto recorrido;
   - A competência para mandar repor dinheiros públicos é própria, e não delegada, do Secretário para a Economia e Finanças, já que é atribuída directamente por lei;
   - Ainda que se entendesse que tal competência tinha sido delegada pelo Chefe do Executivo, sempre se diria que a mesma teria que ser avocada para que o Chefe do Executivo tivesse legitimidade para definir a situação jurídica do recorrente nesta matéria;
   - Sem haver avocação de competências, o órgão delegante tem apenas o poder de dar instruções genéricas sobre a forma de exercer os poderes delegados, as quais, exactamente por serem genéricas, nunca poderiam definir a situação concreta do recorrente;
   - Ainda que se admitisse que o acto recorrido é um acto de mera execução do acto do Chefe do Executivo, sempre se diria que tal acto foi mais além do que o “acto executado” ao decidir que a reposição dos montantes seria aferida pelo critério dos valores que ultrapassam o limite remuneratório do art.º 176.º do ETAPM, sendo passível de recurso nos termos conjugados do n.º 2 do art.º 30.º do CPAC e do n.º 3 do art.º 138.º do CPA;
   - Para além disso, o alegado acto de execução é também recorrível, termos conjugados do n.º 2 do art.º 30.º do CPAC e do n.º 4 do art.º 138.º do CPA, quando está ferido de ilegalidade própria, como seja o vício de violação de lei ao aplicar o art.º 176.º do ETAPM ao recorrente, como critério para aferir dos montantes a reembolsar.
   Considerando improcedente o fundamento que determinou o não conhecimento do recurso e que deve ser revogado o acórdão recorrido com a baixa do processo para apreciar o mérito da causa.
   
   O recorrido apresentou as seguintes conclusões nas suas contra-alegações:
   “1. O n.º 3 do Despacho X/SEF/2009, de 09.10.2009, limitou-se a transmitir uma instrução de natureza interna à DSF;
   2. Nos termos do n.º 1 do art.º 34.º do RA 6/2006, a competência para decidir a reposição de dinheiros públicos pelo recorrente cabia e cabe à DSF;
   3. O n.º 3 do Despacho X/SEF/2009, de 09.10.2009, não criou qualquer obrigação ou encargo para o particular;
   4. Da notificação de um despacho de onde constam várias decisões não se pode concluir automaticamente que todas elas são actos administrativos com efeitos externos.”
   Entendendo que deve ser mantida a decisão de rejeitar o recurso contencioso.
   
   No recurso do acórdão de 22 de Julho de 2010, o recorrente formulou as seguintes conclusões úteis nas suas alegações:
   - Dentro das várias categorias de actos irrecorríveis, o Tribunal a quo notificou o recorrente para se pronunciar, em concreto, sobre a possibilidade de qualificar o acto recorrido como “acto confirmativo”;
   - Tal questão não se resume a uma (mera) qualificação jurídica do acto, como entendeu o acórdão em crise, pois a própria lei especifica regimes diferentes de recorribilidade dos actos em função da sua qualificação jurídica;
   - Uma coisa é qualificar um acto como confirmativo, cuja regime de recorribilidade e consequências legais vêm estabelecidos no art.º 31.º do CPAC e outra coisa, totalmente diversa, é a qualificação do acto administrativo como “acto de mera execução”, cujo regime de recorribilidade e consequências legais vêm definidos no art.º 30.º do CPAC;
   - Daí que não se possa entender que a notificação do recorrente para se pronunciar sobre a qualificação do acto como “confirmativo”, com as consequências legais estabelecidas no art.º 31.º do CPAC, incluísse também o conceito de acto consequente ou de mera execução (com as consequências legais do art.º 30.º do CPAC), como veio o acto a ser qualificado, a final, pelo Tribunal a quo;
   - Também não se pode dizer que, ao notificar o recorrente para se pronunciar quanto à possível qualificação do acto como confirmativo, o recorrente teve oportunidade para se pronunciar sobre “a (verdadeira) questão sobre a qual se emitiu pronúncia que foi sobre a “recorribilidade” do mencionado acto administrativo”, como se afirma na página 9 do acórdão recorrido;
   - Para além disso, a única questão levantada pelo Ministério Público no seu Parecer de fls. 211 e 212 prendeu-se com a cumulação ilegal de impugnações, pelo que não é admissível nem defensável que, ao dar-se oportunidade ao recorrente para se pronunciar sobre tal Parecer, lhe tenha sido dada a oportunidade para se pronunciar sobre a questão da qualificação do acto como de “mera execução” ou sobre a questão mais abrangente da irrecorribilidade do acto por ser posterior ao acto efectivamente recorrível;
   - Também daqui não se pode concluir que, ao responder à questão levantada pela entidade recorrida da irrecorribilidade do acto por ser uma mera instrução interna anterior ao acto alegadamente recorrível, o recorrente tenha sido notificado para se pronunciar sobre a irrecorribilidade do acto por ser posterior ao acto alegadamente recorrível;
   - Ao decidir, no acórdão de 13 de Maio de 2010, que o acto recorrido tinha aparência de acto confirmativo, mas que na verdade não o era e que “No caso verifica-se uma situação diversa”, o Tribunal a quo acabou por tomar uma decisão-surpresa, pois levantou oficiosamente uma questão nova que levou à rejeição do recurso apresentado, sem que o recorrente tido, efectivamente, oportunidade para ser ouvido em concreto sobre tal questão;
   - Foi, deste modo, efectivamente omitida uma formalidade essencial prescrita no art.º 61.º do CPAC e no n.º 3 do art.º 3.º do CPC, a qual teve influência na decisão da causa e cuja consequência é a nulidade de todo o processado posterior, nos termos do n.º 1 do art.º 147.º do CPC.
   Pedindo que seja declarada a nulidade da omissão de notificação do recorrente para se pronunciar sobre a questão nova da qualificação do acto recorrido como acto consequente ou de mera execução e anulados todos actos subsequentes à omissão em causa, incluindo os dois acórdãos ora recorridos.
   
   Sobre este recurso, o recorrido terminou as suas contra-alegações com as seguintes conclusões:
   “1. Subjacente à classificação do acto administrativo como confirmativo, subsequente ou de execução encontra-se a mesma questão fundamental de direito, e que é a dos efeitos externos e recorribilidade do acto;
   2. O recorrente foi convidado pelo tribunal a quo a pronunciar-se sobre todas as excepções arguidas na contestação, sendo uma delas a da irrecorribilidade do acto constante do n.º 3 do Despacho X/SEF/2009, por não ter efeitos externos;
   3. O recorrente teve pois oportunidade de se pronunciar livremente sobre a questão da recorribilidade do acto;
   4. Tendo o recorrente sido ouvido sobre a questão da recorribilidade, não pode ser entendida como decisão-surpresa, violadora do princípio do contraditório, o acórdão que decide pela falta de efeitos externos e consequente irrecorribilidade do acto impugnado, embora com base numa classificação jurídica do mesmo diferente da defendida pelo recorrente.”
   Pugnando pela negação do provimento do recurso.
   
   No seu parecer, o Ministério Público pugna pela improcedência do recurso, considerando nomeadamente que o recorrente teve efectiva oportunidade de se pronunciar sobre a questão da irrecorribilidade, não podendo argumentar com decisão-surpresa atentatória do respeito pelo contraditório.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Factos provados:
   Foram considerados provados os seguintes factos pelo Tribunal de Segunda Instância:
   - Por Despacho de 30 de Junho de 2009 do Exm° Chefe do Executivo foi instaurado processo disciplinar para apuramento de responsabilidades atribuídas à B, Directora dos Serviços de Finanças; ao A, jurista da mesma Direcção e ao C, ex-director da DSF, a quem eram imputadas a prática de irregularidades no âmbito do funcionamento da Comissão de Avaliação de Veículos Motorizados; (cfr., fls. 65).
   
   - Em 24.09.2009, e no que toca ao ora recorrente, elaborou-se o seguinte relatório (para arquivamento):
    “1. Por Despacho de 30 de Junho de 2009, de Sua Excelência o Chefe do Executivo, exarado sobre a Informação n.° XX/SEF/2009 (fls. 3 e 4 no original e 5 e 6 na respectiva tradução para a língua portuguesa) foi instaurado processo disciplinar para apuramento de responsabilidades atribuídas à. B, Directora dos Serviços de Finanças; ao A, jurista da mesma Direcção e ao C, ex-director da DSF, a quem se imputa a prática de irregularidades, no âmbito do funcionamento da Comissão de Avaliação de Veículos Motorizados.
    2. As alegadas irregularidades foram detectadas no Relatório do Comissariado de Auditoria e, conforme consta da Informação n.° XX/GC-SEF/2009, datada de 8 de Julho de 2009 (fls. 8 a 12) “levantam questões de legalidade, a saber”:
   “(1) Organização frequente de diversas reuniões no mesmo dia - ou, pelo menos, assinatura de diversas actas de reunião com a mesma data - sem que se perceba que outro efeito prático tal conduta possa ter que não seja o de permitir aos membros da comissão auferir num mesmo dia tantas remunerações quantas as actas assinadas;
   (2) Organização de reuniões com a participação simultânea - e com a remuneração simultânea - de membros efectivos e de membros suplentes, o que constitui, por definição, um absurdo lógico e jurídico;
   (3) Intervenção em deliberações de membros da comissão em situação de conflito de interesses, sem que se tenham declarado impedidos;
   (4) Remuneração paga a membros da comissão por reuniões de cuja acta não consta a respectiva assinatura;
   (5) Remunerações pagas por reuniões das quais não existe acta, sendo pois duvidoso se tais reuniões se realizaram ou não;
   (6) Pagamento a alguns membros da comissão de remunerações provindas do exercício de funções públicas em excesso do limite previsto no art.° 176.° do ETAPM”.
    3. Realizada a competente instrução, veio a apurar-se, quer pela prova testemunhal produzida, quer pelos exames realizados aos documentos juntos aos autos, designadamente das actas, que efectivamente o arguido cometeu, em comparticipação com os demais arguidos contra os quais irá ser deduzida acusação, factos de que era suspeito haver cometido, pelo que, em princípio, deveria ser objecto de acusação pela prática de tais factos e, se confirmados estes, ser pelos mesmos censurado com uma medida disciplinar, que, em abstracto, poderia integrar a pena de demissão ou aposentação compulsiva, nos termos do disposto na al. n) do n.° 2 do art.° 315.° do ETAPM.
   4. Em síntese, são os seguintes os factos dados como provados:
   - O arguido A é jurista contratado, por contrato individual de trabalho, como assessor do Gabinete do Secretário para a Economia e Finanças, para exercer funções na Direcção dos Serviços de Finanças, assegurando ainda a coordenação do Núcleo de Apoio Jurídico, com apoio especializado às diversas subunidades da DSF (fls. 618).
   - Por cada dia de reunião da Comissão Avaliação de Veículos Motorizados foram elaboradas várias actas das quais não constam nem a hora de início nem a hora do seu termo, as quais serviram para os abonos de retribuição aos membros da omissão; sendo que o conteúdo das actas não corresponde à realidade dos factos, porquanto das mesmas se faz constar: «Nada mais foi discutido na reunião, tendo para o efeito sido elaborada a presente acta que vai ser assinada pelos membros da Comissão», isto quando as reuniões eram contínuas e da ordem de trabalhos constavam vários pontos.
   - A participação simultânea de membros efectivos e de membros suplentes, nas reuniões semestrais da Comissão, com abono de retribuição a todos eles, em clara violação do disposto no art.° 15.°, n.° 1, da Lei n.° 5/2002, que «Aprova o Regulamento do Imposto sobre Veículos Motorizados», onde se estabelece expressamente que os membros suplentes se destinam unicamente a substituir os membros efectivos na suas ausências.
   - Pagamento, a alguns membros da comissão, de remunerações provindas do exercício de funções públicas em excesso do limite anual máximo previsto no art.° 176.° do ETAPM (1 032 500,00 patacas).
   - Dos factos acima referidos resultaram consideráveis prejuízo patrimoniais para a Administração Pública e ainda prejuízos maiores em termos de imagem pública, vejam-se as notícias de imprensa (fls. 746 a 785).
   5. Ora o arguido não só não alertou os seus superiores hierárquicos, como era seu dever acrescido por força da sua qualidade de assessor do SEF e de Coordenador do Núcleo Jurídico da DSF, para a ilegalidade das referidas actuações, como ainda suportou e sustentou a legalidade das mesmas, recebendo por efeito disso elevadas quantias de remunerações indevidas; em resultado do desdobramento das actas.
   6. Na verdade, a elaboração da minuta das actas teve, pelo menos, a colaboração expressa e directa do arguido, como resulta das declarações (fls. 703) da senhora D, ex. Secretária da Comissão de Avaliação de Veículos Motorizados: «Confrontada com a acta n.° 1 de 2006 e tendo-lhe sido perguntado como foi elaborada a minuta da acta, esclareceu que teve de pedir ajuda ao A porquanto não tinha experiência deste tipo de Comissões. Mais esclarecendo que a expressão “Nada mais foi discutido na reunião” lhe foi ditada no inicio pelo A, membro da Comissão e Coordenador do Núcleo de Apoio Jurídico. Mais esclarecendo que até Maio de 2007 como nunca lhe foram dadas ordens em contrário continuou a utilizar a mesma minuta na elaboração de actas».
   7. E, conforme consta de documento junto aos autos pela outra arguida B (fls. 676 a 693) foi o arguido que sustentou, em parecer exarado sobre a Informação n.° XXX/NAJ/AS/2007, de 14 de Setembro de 2007, elaborada a pedido da Directora B na sequência do recebimento do Ofício-Circular dos SAFP n.° XXXXXXXXXX/DIR, de 10 de Julho de 2007, sobre a «Missão do servidor público» que : «É minha convicção que as remunerações auferidas pelos membros das comissões tributárias que sejam trabalhadores da Administração Pública não estão sujeitas a qualquer acto prévio de autorização para acumulação de funções e, não se configurando como tal, devem igualmente ser retiradas dos valores a considerar para efeitos do cálculo do limite máximo de remuneração».
   8. Solução esta que não tem acolhimento no texto do n.° 2 do art.° 176.° do ETAPM que consagra de forma taxativa o elenco das retribuições que não entram para o cômputo do limite de remunerações anuais: «Não são consideradas para efeitos do limite fixado no número anterior apenas as importâncias recebidas a titulo de prémio de antiguidade, subsídio de turno, subsídio de família, subsídio de residência, subsidio de refeição, abono para falhas, despesas de representação, senhas de presença e ajudas de custo, bem como as devidas pelo exercício de funções de deputado e de vogal do Conselho Consultivo (Executivo) e membro de Assembleias Municipais».
   9. Sucede, que, por força do art.° 276.° do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), aprovado pelo Decreto-Lei n.° 87/89/M, de 21 de Dezembro, o regime disciplinar previsto no ETAPM (art.°s 276.° a 358.°), apenas se aplica aos funcionários e agentes.
   10. E, que, nos termos do n.° 2 do art.° 2.° do ETAP, apenas o provimento por nomeação definitiva ou em comissão de serviço confere a qualidade de funcionário; sendo que o provimento por nomeação provisória ou em regime de contrato além do quadro confere a qualidade de agente (n.° 3).
   11. Conforme consta dos documentos juntos aos autos, o arguido é contratado através de contrato individual de trabalho.
   12. E, assim sendo, este processo não pode, por força do citado art.° 276.° do ETAPM, continuar contra o arguido, até porque do seu contrato individual de trabalho (fls. 537 e 538) consta a seguinte cláusula: «Cláusula 9.ª - Cessação do contrato por justa causa - 1. O primeiro outorgante só pode pôr termo ao presente contrato antes de verificado o decurso do prazo referido na cláusula 2.ª, ocorrendo justa causa. 2. Para efeitos do número anterior, considera-se justa causa para pôr termo imediato ao contrato o comportamento doloso do segundo outorgante que, de acordo com as regras da boa-fé, torne insustentável a manutenção da relação laboral. 3. Caso o primeiro outorgante ponha termo ao contrato de trabalho antes de decorrido o prazo do mesmo, sem justa causa; fica obrigado a indemnizar o segundo outorgante no montante global das retribuições vincendas até o final do contrato, com o limite máximo correspondente a seis meses de remuneração e acrescido das proporções de subsídio de férias e de Natal».
   13. No mesmo sentido, de que o regime disciplinar do ETAPM não se aplica aos contratados no regime de contrato individual de trabalho, vai a doutrina,
   14. Veja-se o que, a propósito escreve Manuel Leal-Henriques: «Sujeitos activos [do procedimento disciplinar previsto no ETAPM], como reza o preceito definidor (art.° a 281.°)1 e também o que delimita o campo de aplicação do regime (art.° a 276.°), só podem ser os funcionários e os agentes da Administração, portanto, apenas aqueles que se encontram a ela vinculados por uma relação de serviço público da que ficou desenhada antes. Assim, todos os demais trabalhadores, qualquer que seja o título de ligação à máquina administrativa (assalariamento, tarefa ou contrato individual de trabalho), estão fora do regime disciplinar da função pública, regendo-se, nessa matéria, por cláusulas próprias dos seus instrumentos de ajuste.2 E, «mesmo que nos respectivos acordos laborais se inscrevam cláusulas que eventualmente os submetam, por remissão, àquele regime disciplinar, carecem as mesmas de validade jurídica, já que não é lícito, por via contratual, derrogar uma regra constante de norma imperativa».
   15. Nos termos expostos propõe-se que o processo disciplinar não prossiga nesta sede, sendo que isso não invalida que, na sede própria, sejam tomadas as medidas julgadas adequadas, designadamente as atinentes à efectivação da reposição das quantias indevidamente recebidas.”; (cfr., fls. 65 a 70).
   
   - Sobre tal relatório lavrou o Exm° Chefe do Executivo o despacho seguinte:
   “Concordo. Remeta-se ao Secretário para a Economia e Finanças para proceder à rescisão do contrato individual de trabalho de A, cumprindo as formalidades legais, e para apuramento e reposição, nos termos da lei, dos montantes indevidamente recebidos”; (cfr., fls. 59).
   
   - E, na sequência do assim decidido proferiu o Exm° Secretário para a Economia e Finanças o despacho já referido, onde, no ponto ora em questão, se determinou que “A Direcção dos Serviços de Finanças procederá, no prazo de 15 dias, ao cálculo das remunerações provenientes do exercício de funções públicas auferidas pelo A e exigirá o reembolso daquilo que ultrapassar o limite previsto no art.° 176.º do ETAPM, sem prejuízo do disposto em matéria de prescrição de créditos da Região Administrativa Especial de Macau.”; (cfr., fls. 3).
   
   
   2.2 Recurso do acórdão de 22 de Julho de 2010: violação do princípio do contraditório
   É de conhecer em primeiro lugar este recurso por cuja procedência poder determinar a anulação do acórdão objecto do outro recurso.
   Neste recurso, o recorrente alega que não foi dada a palavra para se pronunciar sobre a qualificação oficiosa do acto recorrido como acto consequente ou acto de execução feita no acórdão que rejeitou o recurso contencioso.
   
   Antes de proferir o acórdão final que rejeitou o recurso contencioso por irrecorribilidade do acto impugnado, o relator do tribunal recorrido ordenou oficiosamente, por meio do despacho a fls. 217, a notificação do recorrente para se pronunciar sobre as questões (excepções) suscitadas na contestação da entidade recorrida, assim como no parecer do Ministério Público, e sobre uma possível qualificação do acto recorrido como acto confirmativo, com as suas legais consequências, convite a que acedeu o recorrente.
   
   O que se pretende garantir com a consagração do princípio do contraditório previsto no art.º 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil é a possibilidade de as partes processuais pronunciarem sobre as questões de direito ou de facto antes de ser decididas por juiz.
   
   Ora, a verdadeira questão de direito apreciada no acórdão de 13 de Maio de 2010 é a recorribilidade do acto impugnado. Ser um acto de execução ou um acto meramente confirmativo constitui apenas as diversas qualificações jurídicas do acto que possam determinar a sua irrecorribilidade.
   Realmente, o recorrente foi notificado para pronunciar nomeadamente sobre as excepções suscitadas pelo recorrido na contestação.
   Assim, desde que seja dada oportunidade de pronunciar sobre a excepção de irrecorribilidade do acto impugnado, não há violação do princípio do contraditório quando o tribunal decide rejeitar o recurso contencioso com base na procedência desta excepção, independentemente de qualificar o acto com confirmativo ou de execução.
   Improcede o recurso.
   
   
   2.3 Recurso do acórdão de 13 de Maio de 2010: recorribilidade do acto do Secretário para a Economia e Finanças impugnado
   Para o recorrente, o acto do Chefe do Executivo é um mero acto interno dirigido ao Secretário para a Economia e Finanças, sem efeitos externos, sendo assim irrecorrível. Sustenta que deve ser o acto do Secretário para a Economia e Finanças recorrível contenciosamente por ser este dotado de competência para apurar e mandar repor eventuais montantes nos termos do art.º 34.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2006, com a produção de lesão efectiva dos direitos do recorrente.
   Alega ainda que, no caso de entender o acto do Secretário para a Economia e Finanças ser um acto consequente ou de mera execução do despacho do Chefe do Executivo, o primeiro acto é sempre recorrível por exceder o conteúdo do segundo acto ao decidir a reposição com base no limite remuneratório previsto no art.º 176.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM) e por vício próprio de violação de lei ao aplicar este artigo ao recorrente.
   
   Antes de mais, é de analisar a competência para decidir sobre a efectivação da responsabilidade por violação das normas da autorização e pagamento de despesas públicas.
   Prescrevem assim os art.º 82.º e 83.º do Regime de administração financeira pública, regulado pelo Regulamento Administrativo n.º 6/2006 (segundo o texto republicado no Boletim Oficial da RAEM de 9 de Novembro de 2009, I série):
“Artigo 82.º
Infracções e responsáveis
   1. A violação das normas sobre elaboração e execução dos orçamentos, bem como da autorização ou pagamento de despesas públicas, quando não possa ser relevada em virtude das circunstâncias especiais em que ocorreu, determina o pagamento de uma multa até ao limite máximo de $ 10 000,00 (dez mil patacas) a graduar segundo a gravidade da falta.
   2. No caso de alcance ou desvio de dinheiros ou outros valores, ou de pagamentos indevidos, podem os responsáveis ser obrigados à restituição das importâncias abrangidas pela infracção.
   3. Nos casos referidos nos números anteriores, a responsabilidade recai sobre o agente ou agentes da infracção.
   4. A responsabilidade dos agentes referidos no número anterior é solidária.
   5. A multa prevista no n.º 1 é aplicável mediante processo de infracção administrativa, nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 52/99/M, de 4 de Outubro.
   6. A aplicação de multa não prejudica a responsabilidade disciplinar a que eventualmente haja lugar.

Artigo 83.º
Efectivação da responsabilidade
   A efectivação da responsabilidade a que se refere o artigo anterior compete à DSF, excepto quando recaia sobre qualquer um dos seus trabalhadores, caso em que compete ao Chefe do Executivo.”
   
   Segundo estas normas do Regime de administração financeira pública, a efectivação da responsabilidade por pena de multa, restituição das importâncias abrangidas pela infracção disciplinar por violação das normas da autorização ou pagamento de despesas públicas compete, em princípio, à Direcção dos Serviços de Finanças. Mas quando está em causa um trabalhador da mesma Direcção, como é o caso, já é o Chefe do Executivo competente para proferir a respectiva decisão.
   Assim, nada de estranhar que foi o Chefe do Executivo que proferiu a decisão em causa no sentido de proceder à liquidação e exigir ao recorrente a reposição, nos termos da lei, dos montantes indevidamente recebidos, em concordância com o teor do relatório para arquivamento do processo disciplinar
   
   Não se pode sustentar a irrecorribilidade do acto do Chefe do Executivo com o argumento de que a competência para decidir a reposição de dinheiros públicos não cabe ao Chefe do Executivo, com base no disposto no art.º 34.º do referido Regulamento Administrativo n.º 6/2006 (norma aditada pelo Regulamento Administrativo n.º 28/2009 e segundo o texto republicado), como entendem ambas as partes do processo:
“Artigo 34.º
Processamento de reposições
   1. O processamento e a decisão para a reposição de dinheiros públicos competem à entidade processadora, excepto quando, nos termos do presente regulamento administrativo, essa decisão seja da competência do Secretário para a Economia e Finanças, caso em que a entidade processadora é unicamente responsável pelo processamento.
   2. Para efeitos do disposto no número anterior considera-se entidade processadora aquela em cujo orçamento, de funcionamento ou privativo, a quantia paga a mais é escriturada.
   3. As instruções para o processamento de reposições de dinheiros públicos são aprovadas por despacho do Secretário para a Economia e Finanças, a publicar em Boletim Oficial da RAEM.”
   
   Para o caso como o presente, a decisão e o processamento para reposição de dinheiros públicos constituem apenas operações subsequentes destinadas a pôr em prática a efectivação da responsabilidade pela restituição das importâncias indevidamente recebidas nos termos do referido art.º 82.º, n.º 2 do mesmo Regulamento Administrativo.
   
   Analisando os conteúdos dos despachos do Chefe do Executivo e do Secretário para a Economia e Finanças, a conclusão será a mesma.
   Pois na realidade, constam expressamente do relatório o facto de que alguns membros da Comissão de Avaliação de Veículos Motorizados com estatuto de funções públicas receberam remunerações em valor superior ao limite anual máximo de remuneração previsto no art.º 176.º do ETAPM e a proposta de exigir a reposição dos montantes indevidamente recebidos.
   Assim, é clara a decisão do Chefe do Executivo, como órgão competente, no sentido de reposição das partes de remunerações recebidas pelo recorrente que excederam o referido limite anual máximo.
   Tal despacho do Chefe do Executivo é já recorrível contenciosamente por ter definido a situação jurídica do recorrente em matéria de reposição de montantes indevidamente recebidos.
   
   Já em relação ao acto impugnado no presente recurso contencioso, de autoria do Secretário para a Economia e Finanças, consta do n.º 3 do teor da decisão a ordem dirigida à Direcção dos Serviços de Finanças no sentido de proceder ao cálculo das remunerações provenientes do exercício de funções públicas auferidas pelo recorrente e exigir o reembolso daquilo que ultrapassa o limite previsto no art.º 176.º do ETAPM, sem prejuízo do disposto em matéria de prescrição de créditos da RAEM.
   Trata-se de uma ordem dirigida aos serviços subordinados ao ora recorrido cujo conteúdo em nada renova em comparação com o anterior acto praticado pelo Chefe do Executivo, sendo um mero acto de execução deste último.
   Embora constituem questões novas que não podem ser apreciadas, cabe salientar que inexiste, do mesmo modo, excesso dos limites do acto exequendo. E o apuramento em concreto das quantias recebidas pelo recorrente que são relevantes para determinar a existência da obrigação de reposição foi feito nos ulteriores actos da Directora substituta dos Serviços de Finanças.
   Por ser um mero acto de execução da decisão do Chefe do Executivo, o acto do Secretário para a Economia e Finanças é irrecorrível contenciosamente nos termos do art.º 30.º, n.º 1 do CPAC.
   Improcede também este recurso.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar improcedentes os recursos jurisdicionais.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 8UC.
   
   
   Aos 27 de Abril de 2011





Os juízes:Chu Kin
Sam Hou Fai
Lai Kin Hong

A Procuradora-Adjunta
presente na conferência: Victor Manuel Carvalho Coelho
1 “Considera-se infracção disciplinar o facto culposo, praticado pelo funcionário ou agente, com violação de algum dos deveres gerais ou especiais a que está vinculado”.
2 Manuel Leal-Henriques, Manual de Direito Disciplinar, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2005, pagina 48.
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Processo n.º 64 / 2010 22