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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.º 63 / 2010

Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança





   1. Relatório
   A interpôs recurso contencioso perante o Tribunal de Segunda Instância contra o despacho do Secretário para a Segurança que lhe condenou na pena disciplinar de demissão.
   Por acórdão proferido no processo n.º 777/2007, o Tribunal de Segunda Instância negou provimento ao recurso contencioso.
   Vem agora A recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. O presente recurso tem por seu alvo o acórdão do TSI proferido em 21 de Julho de 2010, o qual julgou improcedente o recurso contencioso interposto pelo recorrente. Por seu turno, o recurso contencioso tem por seu objectivo pedir anular o despacho proferido pelo Secretário para a Segurança no dia 7 de Novembro de 2010, o qual aplicou uma sanção de demissão ao recorrente.
   2. O recorrente tem trabalhado para o serviço, tendo mantido um bom comportamento, sem ter sido sancionado por qualquer erro cometido.
   3. O recorrente mostrou uma atitude cooperativa no processo disciplinar, e confessou ter pedido um livro emprestado, sem qualquer sofisma.
   4. A infracção cometida pelo recorrente constitui apenas um incidente ocasional, sem ter causado qualquer efeito relativamente aos serviços ou terceiros.
   5. O recorrente trabalhou no serviço durante mais de 25 anos, tendo mantido um bom comportamento, sem qualquer registo de infracção.
   6. Afigura-se manifestamente excessiva a aplicação de uma sanção de demissão ao recorrente que apenas cometeu ocasionalmente uma infracção, sem ter ponderado as circunstâncias favoráveis a ele.
   7. Conforme o princípio de legalidade no procedimento administrativo, o acto recorrido é absolutamente um acto eivado do erro grosseiro e manifestamente injusto.
   8. No acórdão recorrido, entende o recorrente que o despacho recorrido nada considerou as circunstâncias atenuantes verificadas por parte do recorrente, especialmente, as previstas nas al.s b) e h) do art.º 282.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
   9. O acórdão recorrido não se pronunciou sobre esta parte, nem fundamentou a decisão, violando assim o disposto no art.º 76.º do CPAC e no art.º 571.º, n.º 1, al. b) do CPC ex vi do art.º 1.º do CPAC, pelo que deve ser declarado nulo.”
   Pedindo que seja julgado procedente o recurso jurisdicional.
   
   O recorrido não apresentou alegações.
   
   O Ministério Público emitiu parecer no sentido de negar provimento ao presente recurso jurisdicional, considerando principalmente o seguinte:
   - no acórdão recorrido está abundantemente fundamentado sobre a apreciação das circunstâncias supostamente atenuantes e invocadas pelo recorrente;
   - é correcta a integração dos factos na cláusula geral punitiva e justa a medida aplicada;
   - a al. j) do n.º 2 do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 60/94/M reconhece a inviabilização da manutenção da relação funcional para as situações do presente caso.
   - à Administração não está vinculada legalmente à aplicação da pena alternativa de aposentação compulsiva.
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Matéria de facto
   No acórdão recorrido foi omitida a especificação da matéria de factos. Embora constitua uma nulidade da sentença prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil (CPC), não foi arguida nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.
   Atendendo às questões suscitadas no recurso contencioso, isto é, a medida da pena disciplinar, passamos a considerar o conteúdo do despacho impugnado como factos provados, com base nos documentos juntos nos autos, ao abrigo do art.º 629.º, n.º 1, al. a) do CPC:
“Despacho
Processo disciplinar do EPM n.º XXXX-PDD/EPM/2007
Arguido: A, Guarda de 1.ª classe, 4.º escalão do EPM
   
   Analisados os autos do processo disciplinar n.º XXXX-PDD/EPM/2007, ficaram apurados e provados os factos seguintes:
   1. O arguido, A, guarda de 1.ª classe, 4.º escalão do EPM, foi destacado para exercer vigilância no 2.º andar do Bloco 7.º do EPM, das 13H00 às 20H30 no dia 2 de Setembro de 2006. (vide fls. 61 e 62 dos autos);
   2. Quando estava de serviço, o arguido saiu do piso onde a vigilância ficou a cargo dele, foi à Sala de Chefe de Piquete do 3.º andar, permaneceu na oficina do 3.º andar e aí leu um livro (vide as fotos n.º 6 a fls. 65, n.º 7 a fls. 66, n.º 9 a fls. 67, n.º 11 a fls. 68, n.º 13 a fls. 69, n.º 24 a fls. 74 e n.º 29 a fls. 77 dos autos, e fls. 103, 113 e 114 dos autos);
   3. O arguido confessou sair, sem qualquer autorização superior, do piso onde a vigilância ficou a cargo dele (fls. 113 dos autos);
   4. Das fotos constantes de fls. 63 a 81 dos autos, demonstra-se que o arguido saiu do 2.º andar onde a vigilância ficou a cargo dele, foi ao 3.º andar e depois voltou ao 2.º andar. Na altura, a porta daquele andar não foi trancada;
   5. O arguido declarou que quando estava de serviço, pediu emprestado um livro a um recluso da zona prisional do 2.º andar e foi à oficina do 3.º andar onde leu o livro, posteriormente, voltou às celas n.ºs 1 a 8 da zona prisional do 2.º andar e devolveu ao recluso o livro emprestado (vide as fotos n.ºs 1 e 2 a fls. 63, n.º 3 a fls. 64, n.º 5 a fls. 65, n.º 13 a fls. 69, n.º 32 a fls. 78, n.ºs 33 e 34 a fls. 79, e fls. 113 e 114 dos autos);
   6. O arguido declarou que não se recordou qual era a cela do recluso a quem pediu emprestado o livro, mas declarou que o livro que ele pediu emprestado deve ser o livro da biblioteca do EPM (vide fls. 114 dos autos);
   7. Prevê-se no ponto 5.º das Instruções de Serviço Diário da Zona Prisional do Serviço de Segurança e Vigilância do EPM que “Os guardas prisionais em serviço não podem sair do seu posto de trabalho sem qualquer autorização”, e no ponto 10.º, “as portas dos pisos devem manter-se fechadas e trancadas.” (vide fls. 57 dos autos);
   8. O Bloco 7.º do EPM é a zona prisional destinada ao alojamento de reclusos classificados no grupo de segurança.
   
   Analisados os factos provados e as provas constantes dos autos, pode-se chegar à seguinte conclusão:
   Em primeiro lugar, o arguido, A, guarda de 1.ª classe, 4.º escalão do EPM, foi destacado para exercer vigilância no 2.º andar do Bloco 7.º do EPM, das 13H00 às 20H30 no dia 2 de Setembro de 2006. Sem qualquer autorização superior, o arguido saiu do piso onde a vigilância ficou a cargo dele, não trancou a porta daquele piso nem manteve a porta fechada. Tais condutas ignoraram completamente o dever de vigilância básica que um guarda prisional deve cumprir, a mais grave, o Bloco 7.º onde o arguido foi destacado para exercer vigilância é uma zona prisional destinada ao alojamento de reclusos classificados no grupo de segurança, onde exige uma vigilância mais rigorosa, de forma a assegurar a ordem e a segurança da zona prisional;
   Além disso, quando estava de serviço, o arguido pediu emprestado livro a um recluso, o que violou gravemente o dever especial previsto no art.º 22.º al. 4) da Lei n.º 7/2006 que o pessoal do corpo de guardas prisionais deve cumprir: “Não comprar, vender, emprestar ou pedir emprestados objectos ou valores a reclusos ou aos seus familiares, salvo autorização superior”. Tal conduta destruiu completamente a confiança dada pelo EPM ao seu pessoal do corpo de guardas prisionais no exercício das funções e afectou gravemente a imagem pública da justiça e do professionalismo que o pessoal do corpo de guardas prisionais deve ter no exercício das suas funções.
   A determinação e a graduação da pena disciplinar devem ser feitas em função da natureza da infracção disciplinar e da sua gravidade, e ainda, deve considerar-se o grau de ilicitude do facto, a categoria do agente, a personalidade e o nível cultural deste, o grau de culpa e outras circunstâncias já definidas, nomeadamente nos termos do art.º 21.º da Lei n.º 7/2006, são aplicáveis as circunstâncias atenuantes e agravantes previstas nos art.ºs 282.º e 283.º do ETAPM;
   
   Pelos acima expostos, usando as competências conferidas pelo art.º 4.º do Regulamento Administrativo n.º 6/1999 e pela Ordem Executiva n.º 13/2000, venho decidir o seguinte:
   Dos elementos constantes do processo disciplinar acima referido, prova-se que quando estava de serviço, o arguido A, guarda de 1.ª classe do EPM, saiu, sem qualquer autorização superior, do piso onde a vigilância ficou a cargo dele, não trancou a porta do piso nem manteve a porta fechada, tais condutas violaram o art.º 22.º da Lei n.º 7/2006 e os deveres de assiduidade, obediência e zelo previstos no art.º 279.º do ETAPM, os quais são aplicáveis ao regime disciplinar do pessoal do corpo de guardas prisionais; e quando estava de serviço, o recorrente pediu emprestado um livro a um recluso, conduta essa também violou o dever especial previsto no art.º 22.º al. 4) da Lei n.º 7/2006 que o pessoal do corpo de guardas prisionais deve cumprir.
   Segundo os factos provados acima referidos, as condutas do arguido ignoraram completamente o dever de vigilância básica que um guarda prisional deve cumprir, destruíram completamente a confiança dada pelo EPM ao seu pessoal do corpo de guardas prisionais no exercício das funções e afectaram gravemente a imagem pública da justiça e do professionalismo que o pessoal do corpo de guardas prisionais deve ter no exercício das suas funções, o que leva à inviabilização da subsistência da relação jurídico-funcional entre a Autoridade e o agente;
   Nestes termos, considerando os interesses que o arguido prejudicou no presente processo, tendo em conta as circunstâncias atenuantes do arguido, nomeadamente as no art.º 282.º al.s a) e f) do Estatuto, e a circunstância agravante prevista no art.º 283.º al. h) do referido Estatuto, decido aplicar ao arguido A, guarda de 1.ª classe do EPM, a pena de demissão nos termos do art.º 13.º al. j) do Decreto-Lei n.º 60/94/M e do art.º 322.º do Estatuto.
   Notifique o arguido que da presente decisão, cabe recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância nos termos da lei.
   Aos 9 de Novembro de 2007.
   
   Gabinete do Secretário para a Segurança da RAEM.
   Secretário para a Segurança
   Cheong Kuoc Vá
   Superintendente-Geral”
   
   
   2.2 Violação do princípio da proporcionalidade
   O recorrente considera que não é possível aplicar a pena tão grave e desproporcional de demissão face às circunstâncias atenuantes, tais como a manutenção de boa conduta durante mais de 25 anos de trabalho no Estabelecimento Prisional de Macau com a classificação de muito bom nos anos 1994 a 2004 e a ausência de punição disciplinar. Entende ainda que o facto de ter emprestado um livro a um recluso não é tão grave que possa determinar a impossibilidade de manutenção do vínculo funcional.
   
   De acordo com a matéria de facto apurada no processo disciplinar em que se fundamenta a decisão de demissão, o recorrente ausentou, sem autorização superior, do 2º piso do 7º bloco do Estabelecimento Prisional de Macau durante o período de vigilância, deixando aberta a porta deste piso. Tal bloco estão alojados os reclusos de segurança que exige a vigilância mais rigorosa. O recorrente pediu emprestado um livro a um recluso alojado no 2º piso para ler num quarto situado no 3º piso e depois voltou ao 2º piso para devolver o livro ao recluso.
   
   Em relação à competência do pessoal do Corpo de Guardas Prisionais (CGP), destaca-se a prevista nas duas primeiras alíneas do art.º 6.º da Lei n.º 7/2006 (Estatuto do Pessoal da Carreira do Corpo de Guardas Prisionais):
   “Ao pessoal do CGP compete, genericamente:
   1) Exercer vigilância nas instalações prisionais;
   2) Observar os reclusos nos locais de trabalho, recintos ou zona habitacional com a discrição possível, a fim de detectar situações que atentem contra a ordem e segurança do estabelecimento ou contra a integridade física e moral de todos os que nele se encontrem;
   ...”
   
   Por outro lado, constitui um dos deveres especiais de guardas prisionais “não ... emprestar ou pedir emprestados objectos ou valores a reclusos ou aos seus familiares, salvo autorização superior” (art.º 22.º, al. 4) da Lei n.º 7/2006).
   
   Ora, é evidente que o recorrente violou manifestamente as principais funções de vigilância e um dos deveres especiais e importante acima referidos e não pode deixar de se qualificar a sua conduta como grave.
   
   Quanto às penas aplicáveis, é de atender o art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 60/94/M (Regime Disciplinar do Corpo de Guardas Prisionais de Macau) que fundamenta a decisão disciplinar:
   “1. As penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, às infracções disciplinares que, pela sua extrema gravidade e consequências especialmente danosas para o serviço, inviabilizem a subsistência da relação jurídico-funcional.
   2. As penas referidas no número anterior são aplicáveis aos guardas que, nomeadamente:
   ...
   j) Comprem, vendam, emprestem ou peçam emprestados objectos ou valores a reclusos ou a familiares destes;
   ...
   3. A pena de aposentação compulsiva só pode ser aplicada se o funcionário ou agente reunir o período mínimo de 15 anos de serviço contados para efeitos de aposentação e quando não haja abandono de lugar.”
   
   Assim, o legislador equipara expressamente o facto de emprestar ou pedir emprestado objectos ou valores a reclusos pelo guarda prisional à infracção disciplinar que inviabiliza a subsistência da relação jurídico-funcional do agente pela sua extrema gravidade e consequência especialmente danosa para o serviço prisional, e sanciona com a pena de aposentação compulsiva e de demissão.
   Para o estabelecimento prisional, como local de execução da pena de prisão ou medida detentiva, é fundamental garantir a situação de segurança em todos os níveis de modo a permitir a execução efectiva da pena e medida de prisão e proteger a segurança física dos reclusos e funcionários do estabelecimento prisional. Ainda por cima está em causa a zona onde estão alojados os reclusos classificados de segurança, ou seja, os que foram condenados a penas de prisão mais elevadas.
   
   As circunstâncias invocadas pelo recorrente, tais como a manutenção de boa conduta durante mais de 25 anos de trabalho no Estabelecimento Prisional de Macau com a classificação de muito bom nos anos 1994 a 2004, a ausência de punição disciplinar e o objecto emprestado ser apenas um livro têm pouco valor atenuativo face aos actos praticados por ele.
   Como o art.º 13.º, n.ºs 1 e 2, al. j) do Decreto-Lei n.º 60/94/M sanciona expressamente com a pena de demissão ou aposentação compulsiva, nada se revela desproporcional a pena de demissão aplicada no despacho impugnado.
   
   
   2.3 Circunstâncias atenuantes
   O recorrente sustenta ainda que não foram consideradas todas as circunstâncias atenuantes, nomeadamente a confissão espontânea da infracção e diminutos efeitos provocados aos serviços ou terceiros previstas nas al.s b) e h) do art.º 282.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM). Imputa ainda nulo o acórdão recorrido por falta de apreciação e fundamentação sobre este aspecto.
   
   Ao contrário do que alega pelo recorrente, o tribunal recorrido apreciou expressamente as referidas duas circunstâncias e concluiu a falta de confissão espontânea ou integral dos factos imputados, nomeadamente sobre a identidade do recluso que emprestou o livro ou o número da respectiva cela, e a impossibilidade de qualificar como diminutos os efeitos da sua ausência do serviço de vigilância durante mais de vinte minutos numa zona em que se alojam os reclusos de segurança e se exige apertadas medidas de segurança.
   Assim, é manifesto que, quer a entidade recorrida, quer o tribunal recorrido, apreciaram com cuidado os factos praticados pelo recorrente, bem como as suas situações concretas. Só que, com a insubsistência das referidas duas circunstâncias atenuativas, bem como o pouco valor atenuativo de que revestem as outras segundo o exposto no ponto 2.2, deve ser confirmada a decisão de manter o despacho punitivo sob impugnação no recurso contencioso.
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso jurisdicional.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 3 UC.
   
   Aos 29 de Abril de 2011


Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

A Procuradora-Adjunta
presente na conferência: Song Man Lei


Processo n.º 63 / 2010 12