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Processo n.º 12/2011. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Secretário para a Economia e Finanças.
Assunto: Fixação de residência em Macau. Pedido de renovação da autorização de fixação de residência. Poderes discricionários. Antecedentes criminais.
Data da Sessão: 11 de Maio de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
Os n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, quando referem que para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, confere verdadeiros poderes discricionários à Administração.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Economia e Finanças, de 29 de Dezembro de 2008, que indeferiu o pedido de renovação da autorização de residência em Macau do seu cônjuge, B.
Por acórdão de 16 de Dezembro de 2010, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso.
Inconformado, interpõe o mesmo recorrente recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:

- O ora Recorrente entende que a decisão em causa viola o n.º 2 do art. 9.º da Lei n.º 4/2003, o qual prescreve que para além dos antecedentes criminais deverá também atender-se a outros aspectos, tais como os meios de subsistência de que o interessado dispõe; as finalidades pretendidas com a residência em Macau e respectiva viabilidade; a actividade que o interessado exerce ou se propõe exercer na RAEM; os laços familiares do interessado com residentes da RAEM; bem como razões humanitárias, nomeadamente a falta de condições de vida ou de apoio familiar em outro país ou território, aquando da análise do pedido de autorização de residência.
- Por sua vez estabelece, o art. 4.º da Lei n.º 4/2003, no seu n.º 2, que “pode ser recusada a entrada dos não residentes na RAEM em virtude de ( ... ) 2) terem sido condenados em pena privativa de liberdade, na RAEM ou no exterior”.
- Ora, a existência da condenação não implica de per si o indeferimento do pedido de autorização de residência da mulher do ora Recorrente, ao contrário do entendimento do órgão decisor que ao aplicar de forma literal e mecânica o supra mencionado normativo legal, ignorou na sua avaliação todas as demais circunstâncias que a lei estabelece como relevantes aquando da análise do mencionado pedido, violando por essa mesma razão o mencionado n.º 2 do art.s 9.º, bem como o n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003.
- A decisão recorrida não ponderou devidamente a situação individual e familiar do ora Recorrente, bastando-se apenas com o facto da mulher do ora Recorrente ter sido condenada, por decisão já transitada em julgado e cujos factos remontam ao ano de 2000. O facto de a mulher do ora Recorrente ter sido condenada na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, não determina só por si a recusa da autorização de residência.
- O ora Recorrente é sócio de uma empresa cuja actividade se relaciona com a decoração, bem como é proprietário juntamente com a sua mulher de 3 (três) fracções autónomas todas de valor superior a um milhão de patacas.
- As filhas do ora Recorrente e sua mulher nasceram em Macau, aqui residem, frequentando o estabelecimento de ensino “Escola”, com bons resultados escolares, estando plenamente integradas e inseridas na comunidade.
- A mulher do ora Recorrente aquando do indeferimento da sua autorização de residência em Macau, trabalhava como empregada de mesa no casino, estando também ela plenamente integrada e inserida na comunidade.
- Tendo em conta as circunstâncias pessoais da mulher do ora Recorrente, bem como do seu agregado familiar, e da lei aplicável, entende o ora Requerente que deveria o pedido de autorização de residência ter sido decidido em sentido diverso.
- A decisão recorrida afigura-se manifestamente excessiva, desrazoável, desproporcionada e injusta, pelo que deve a mesma ser revogada por pôr em causa tais exigências fundamentais.
- As soluções concretas dos casos, para além das soluções normativas, devem estar submetidas ao princípio da justiça.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
A) No Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau foi elaborado o seguinte:
Parecer n.º XXXX/Residência/XXXX/1R
Assunto: Revisão do requerimento da residência por investimento
Vogal Executivo Cheong Chou Weng
1. As seguintes pessoas solicitaram a renovação da autorização de residência temporária:
n.º
nome
relações
documento
n.º
validade
validade da autorização da residência temporária
1.
A
requerente
passaporte chinês
XXXXXXXXX
02/07/2017
13/10/2006
2.
B
cônjuge
passaporte chinês
XXXXXXXXX
02/07/2017
13/10/2006
3.
C
descendente
passaporte chinês
XXXXXXXXX
02/07/2012
13/10/2006
4.
D
descendente
passaporte chinês
XXXXXXXXX
02/07/2012
13/10/2006

  Quando à apresentação do presente requerimento da renovação pelo requerente, provou-se no certificado de registo criminal do seu cônjuge que o cônjuge do requerente, B, foi condenada pelo Tribunal Judicial de Base, posteriormente, após a notificação, o requerente apresentou a sentença do Tribunal Judicial de Base em 18 de Janeiro de 2008, provando que o cônjuge B foi condenado na pena de dois anos de prisão pela prática de um crime de falsificação de documentos de valor especial, com suspensão de execução no período de três anos (vide fls. 20 a 24).
  Dado que o requerimento de renovação da residência temporária do cônjuge do requerente, B, é provavelmente influenciado pela existência deste facto supracitado, portanto, este Instituto exigiu o cônjuge do requerente apresentar contestação escrita, o requerente conferiu a competência à advogada E a apresentar a declaração em 25 de Janeiro de 2008 (vide fls. 35), na qual indicando que depois de obter a autorização de residência temporária, B cumpria regulamentos e sentia-se muito arrependida pelo erro cometido antes de 8 anos, mais como as suas duas filhas vêm crescendo dia a dia, no caso de não ser autorizada esta renovação, as filhas menores não só faltavam o acompanhamento da mãe, mas também sem o cuidado do pai que tinha de trabalhar, não é difícil imaginar os problemas derivados do ambiente complicado da actual sociedade, pelo que, queria este Instituto a autorizar, conforme apropriado, este requerimento da renovação do cônjuge do requerente, B, isso é muito importante para a reunião dos indivíduos familiares, o desenvolvimento mental das filhas menores e a harmonia familiar.
  Com base nos documentos apresentados pelo requerente, combinando com a sentença do Tribunal Judicial de Base, analisa-se como os seguintes (vide fls. 20 a 25 e fls. 35):
1. O cônjuge do requerente deu à luz uma filha, D em Macau em 14 de Agosto de 1996, e efectuou o registo de nascimento em 5 de Setembro do mesmo ano, no registo de nascimento, o nome do pai da menina registada era o requerente, A, em seguida, B foi expulsa de Macau para o Interior da China por causa de excesso de permanência, até a Março de 2000, B ficou grávida e permaneceu ilegalmente de novo para o parto em Macau, em 19 de Novembro de 2000 foi ao Hospital Kiang Wu à espera do parto e disse à parte do Hospital que era pessoa permanente ilegalmente. Durante o período de espera do parto, B pediu o irmão mais velho do requerente, F, para reconhecer a bebé recém-nascida como o pai dela a fim de efectuar o registo de nascimento da bebé, concordou o irmão mais velho do requerente, F. Após o parto de B , efectuou o registo em acompanhamento com agentes em 22 de Novembro de 2000, no entanto, foi descoberto pelos agentes que já tinha efectuado o registo da sua filha em 5 de Setembro de 1996 e o nome do marido na altura era A.
2. Os factos ilegais supracitados eram factos apurados e reconhecidos pelo tribunal e há dolo na consciência subjectiva de B.
3. Indica-se na sentença que os actos de B não só afectou a fé pública do documento certificado de nascimento, mas também prejudicou os interesses de terceiros e da RAEM, pelo que foi condenada na pena de dois anos de prisão pela prática de um crime de falsificação de documentos de valor especial, com suspensão de execução no período de três anos.
4. Nos termos do n.º 2 do artigo 4 e da alínea 1) do n.º 2 do artigo 9º da Lei n.º 4/2003 subsidiariamente aplicável ao artigo 11º do D.L. 14/95/M, quando à concessão da autorização de residência, o Chefe do Executivo da RAEM deve atender aos aspectos que se o requerente tenha antecedentes criminais, se tenha comprovado incumprimento das leis da RAEM ou fosse condenado em pena privativa de liberdade, na RAEM ou no exterior, a pena supracitada do cônjuge do requerente, B, é manifestamente desfavorável a este requerimento da renovação da autorização de residência temporária.
  Com base nos factos e fundamentos de direito acima referidos, é manifestamente desfavorável a este requerimento da renovação da autorização de residência temporária.
  Posteriormente, foi descoberto no formulário do pedido apresentado pelo requerente que não é coerente entre os factos acima expostos e os dados de registo criminal do requerente e dos seus agregados familiares, indica-se no formulário do requerimento que o requerente e os seus agregados familiares não registaram incriminações ou sanções administrativas pela infracção em Macau ou em outras zonas (vide fls. 3), depois de receber a notificação, o requerente apresentou declaração em 24 de Outubro de 2008 (vide fls. 35 a 36), na qual, indica-se que o seu requerimento foi tratado através de uma Companhia de Investimento e Emigração, o formulário do requerimento foi preenchido por um empregador da empresa e assinado por ora requerente depois de explicação oral do uso deste formulário pelo empregador ao requerente, é provável que a expressão do requerente não é muito clara e deduziu a este erro do registo criminal, o requerente manifestou que isso não foi intencional, combinando com o seu nível de escolaridade não alto, tinha de recorrer à Companhia de mediação para tratar as formalidades de requerimento e levou a este assunto.
  Um vez que entre os documentos apresentados pelo requerente, regista-se definitivamente no certificado de registo criminal o assunto da incriminação pela infracção do seu cônjuge, o requerente devia não o ocultar com esmero, acredita-se que o erro relativo ao registo criminal deste formulário do requerimento não era cometido dolosamente pelo requerente (vide fls.3), pelo que sugere-se que mantêm parecer positivo a este requerimento da renovação do requerente e dos seus descendentes.
2. O requerente apresentou o requerimento de residência temporária a este Instituto com base no investimento em imóveis no valor de um milhão de patacas, foi autorizado o respectivo requerimento em 27 de Julho de 2004.
3. Para efeitos de renovação, o requerente apresentou a informação escrita da Conservatória do Registo Predial e outros documentos para verificar que este apresentou o requerimento com as propriedades originais:
  (1) n.º de descrição predial: XXXXX-XX
[Endereço (1)]
  Valor: MOP$ 463.500,00
  Data de registo: 03/11/2003 (XXX)
(2) n.º de descrição predial: XXXXX
[Endereço (2)]
Valor: MOP$ 386.250,00
Data de registo: 20/10/2003 (XX)
(3) n.º de descrição predial: XXXXX
[Endereço (3)]
Valor: MOP$ 386.250,00
Data de registo: 20/10/2003 (XX)
  Concluindo a revisão, foi provado que o requerente atendeu ao disposto da lei em relação ao investimento em imóveis em Macau no valor de um milhão de patacas.
  Nos termos do D.L. n.º 14/95/M, sugere-se que autorize os interessados com o seguinte prazo:
N.º
Nome
Relações
Validade da concessão de autorização de residência temporária sugerida
1.
A
requerente
27/07/2010
2.
C
descendente
27/07/2010
3.
D
descendente
27/07/2010

  Ao mesmo tempo, nos termos da alínea 1) do n.º 2 do artigo 9 da Lei n.º 4/2003 subsidiariamente aplicável ao artigo 11º do D.L. n.º 14/95/M, não autoriza o cônjuge B do requerente A, o requerimento da renovação da autorização de residência temporária.
  Solicita-se a autorização do superior.
  B) O Vogal Executivo Cheong Chou Weng propôs o indeferimento da renovação da autorização do cônjuge do requerente, com base no parecer antecedente;
  C) O Secretário para a Economia e Finanças, em 29 de Dezembro de 2008, autorizou a proposta.
  É este o acto recorrido.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
São duas as questões a decidir.
A primeira questão a resolver é a de saber se o Acórdão recorrido, ao ter negado provimento ao recurso contencioso de anulação, interposto do acto que negou a renovação da residência do cônjuge do requerente/recorrente, violou o disposto no artigo 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n° 4/2003, que manda atender aos antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM e qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da Lei, para efeitos de concessão de autorização de residência.
A segunda questão que importa solucionar consiste em saber se o acto recorrido (e portanto o Acórdão recorrido, na medida em que o manteve), violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça e se padece de total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, ao não ter deferido o pedido de renovação de residência do cônjuge do recorrente, com fundamento nos seus antecedentes criminais.
Não se conhece da questão da violação do disposto nos arts. 1.°, 2.° e 3.° da Lei n° 6/94/M e no artigo 9.º da Convenção dos Direitos da Criança, por não se ter suscitado a mesma no recurso contencioso. O recurso jurisdicional não visa o conhecimento de questões novas - salvo as de conhecimento oficioso - mas apenas apurar do bem fundado da sentença objecto de recurso.

2. Autorização de residência
O cônjuge do requerente/recorrente foi condenado por sentença do Tribunal Judicial de Base na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução durante três anos, pela prática de um crime de falsificação de documentos de especial valor (artigo 245.º do Código Penal) por ter procedido ao registo de uma filha, indicando como pai, não o requerente, seu marido e pai da criança, mas o irmão deste.
Dispõe o artigo 9.º da Lei n.º 4/2003 que:
Artigo 9.º
Autorização
1. O Chefe do Executivo pode conceder autorização de residência na RAEM.
2. Para efeitos de concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos:
1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei;
2) Meios de subsistência de que o interessado dispõe;
3) Finalidades pretendidas com a residência na RAEM e respectiva viabilidade;
4) Actividade que o interessado exerce ou se propõe exercer na RAEM;
5) Laços familiares do interessado com residentes da RAEM;
6) Razões humanitárias, nomeadamente a falta de condições de vida ou de apoio familiar em outro país ou território.
3. A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência.
O pedido de renovação da residência do cônjuge do requerente foi indeferido com fundamento na alínea 1) do n.º 2 do artigo 9.º, que, para efeitos de concessão de autorização de residência, manda atender aos antecedentes criminais. O cônjuge tinha efectivamente antecedentes criminais na RAEM, tendo sido punido por um crime cuja penalidade variava entre 1 e 5 anos de prisão, e em concreto com a pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução durante três anos.
Não se vislumbra, assim, em que é a norma mencionada foi violada.

3. Discricionariedade. Princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça. Total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
A segunda questão que importa solucionar consiste em saber se o acto recorrido violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, ao não ter deferido o pedido de renovação de residência, com fundamento em antecedentes criminais do cônjuge do requerente/recorrente.
Já vimos que antecedentes eram esses.
A tese do recorrente, de que o acto administrativo recorrido violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, assenta nas seguintes considerações:
- A não procedência do recurso contencioso traduz-se numa segunda condenação do cônjuge do recorrente, pelo mesmo facto pelo qual já foi condenado pelo Tribunal Judicial de Base;
- A pena de prisão foi suspensa na sua execução, pelo que o Tribunal considerou suficiente esta pena para acautelar os valores jurídicos em causa e para a reintegração do cônjuge do recorrente na sociedade.
O primeiro argumento traduz-se num manifesto equívoco. Se a lei diz que o órgão que aprecia os pedidos de autorização de residência na RAEM deve atender aos antecedentes criminais do interessado, é evidente que, por natureza, têm de ser levadas em conta as condenações criminais e os factos em que estas se basearam, pois sem condenações criminais não existem antecedentes criminais.
Não se percebe bem, pois, a substância do argumento.
Quanto ao segundo argumento, o recorrente esquece que a punição pela prática de um crime, pode não esgotar a totalidade da apreciação que os poderes públicos ou privados podem extrair dessa condenação, desde que com base na lei. A finalidade da condenação criminal em pena de prisão suspensa na sua execução, não se confunde com os objectivos visados pelas normas administrativas.
Por isso, nada obsta, por exemplo, que o mesmo facto possa fazer incorrer o agente numa pena criminal e, se for funcionário público, ao mesmo tempo, numa pena disciplinar.
Deste modo, a condenação criminal do cônjuge do requerente/recorrente pode ser levado em conta para não ser autorizada a sua residência em Macau. Ou até para ser recusada a sua entrada na Região.
Nada tem de estranho.
Por outro lado, como se disse, nos termos dos n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”.
A lei não especifica de que antecedentes criminais se trata, de qual a sua gravidade, qual o número de infracções cometidas.
A propósito da discricionariedade, dissemos o seguinte no Acórdão de 3 de Maio de 2000, no Processo n.º 9/2000, momento este recordado no nosso Acórdão de 27 de Outubro de 2010, no Processo n.º 50/2010, em que se apreciou, igualmente, um recurso jurisdicional relacionado com a aplicação dos n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003:
“10. É clássica a explicação que MARCELLO CAETANO1 dá para distinguir os poderes vinculados e discricionários dos órgão administrativos: «umas vezes a lei ou os estatutos regulam as circunstâncias em que o órgão deve exercer o poder que lhe está confiado, impondo-lhe que actue sempre que concorram essas circunstâncias, e determinam o modo de actuar e o conteúdo do acto.
Outras vezes a norma deixa ao órgão certa liberdade de apreciação acerca da conveniência e da oportunidade de exercer o poder, e até sobre o modo desse exercício e o conteúdo do acto, permitindo-lhe que escolha uma das várias atitudes ou soluções que os termos da lei admitam».
No primeiro caso trata-se de poder vinculado. No segundo, o poder é discricionário.
Cabe aqui referir que, como tem sido assinalado, não há, em regra actos totalmente vinculados, nem actos totalmente discricionários. Em qualquer acto administrativo se projectam poderes vinculados a par do exercício, em maior ou menor grau, de discricionaridade, resultando sempre da lei a competência e o fim, isto é o interesse público fixado ao exercício da competência no caso concreto, ao menos implicitamente2.
No que respeita às finalidades da lei na concessão do poder discricionário, explica aquele Professor3 que «a discricionaridade de certos poderes conferidos por lei aos órgãos da Administração traduz o reconhecimento pelo legislador da impossibilidade de prever na norma toda a riqueza e variedade das circunstâncias em que o órgão pode ser chamado a intervir e das soluções mais convenientes consoantes os casos» 4.
Enfim, como refere DAVID DUARTE5 «a existência de uma margem de acção permite a valorização das circunstâncias na sua imprevisibilidade, dá espaço e tempo de manobra e, para além de se lhe reconhecer uma função relevante de legitimação administrativa, realiza a vantagem que resulta da proximidade existente entre o decisor e a situação».

11. Uma matéria importante no âmbito da discricionariedade, relativamente ao caso em apreciação, é a que se refere aos limites do poder discricionário, por razões que estão ligadas à sindicabilidade judicial do exercício destes poderes.
As limitações do poder discricionário podem classificar-se com utilização de vários critérios.
Quanto ao critério da origem dos limites, costuma distinguir-se entre os limites legais, os que resultam da própria lei, e a auto-vinculação, isto é, de normas elaboradas pela própria Administração para disciplinar o uso de determinado poder discricionário.
Outra classificação distingue entre limites internos e limites externos.
De acordo com J. M. SÉRVULO CORREIA6, «por limites internos da discricionariedade, entendem-se os factores que condicionam a própria escolha entre as várias atitudes possíveis, fazendo com que algumas deixem de o ser nas circunstâncias concretas».
Os limites externos serão os restantes, os que se referem à orientação dos poderes de livre decisão a priori e ao seu controlo a posteriori7.
Entre estes limites externos, costuma referir-se a densidade normativa mínima.
A lei fundamental, por vezes, determina que certas matérias estejam reservadas à lei. Nestes casos, a atribuição de poderes discricionários à Administração deve conter uma exigência de densidade normativa mínima8.
Mas não só nos casos de reserva de lei se deve exigir tal densidade normativa mínima à norma que concede o poder discricionário. «O princípio da legalidade, na mesma vertente em que materializa a exigência de um título de decisão, não se limita, no entanto, a uma mera permissão decisória. Simultaneamente, por razões de densidade substantiva, a legalidade exige que o suporte da decisão contenha uma intensidade razoável de pré-determinações, sob pena de frustração da própria ratio do princípio9».
No que respeita aos limites internos, o primeiro será o da vinculação ao fim, «a necessidade de conformar o exercício da discricionariedade com o interesse público visado pela norma que a concede10».
O desvio de poder é o vício típico do exercício de poderes discricionários.
Dispunha o art. 19.º da Lei Orgânica do STA que «o exercício de poderes discricionários só pode ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder», existindo este sempre «que o motivo principalmente determinante da prática do acto recorrido não condizia com o fim visado pela lei na concessão do poder discricionário» (§ único do referido art. 19.º).
Dispondo a lei (art. 6.º do ETAF) que os recursos contenciosos são de mera legalidade e que o exercício de poderes discricionários só pode ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder, daqui resulta que os tribunais não controlam o mérito da decisão discricionária da Administração.

12. No que toca aos restantes limites internos do poder discricionário, interessa-nos destacar a consagração dos princípios jurídicos por que a Administração deve nortear a sua actividade.
De acordo com os arts. 5.º e 6.º do CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 35/94/M, e vigente à data da prática do acto impugnado, no exercício da sua actividade, a Administração deve observar os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.
Estes são, pois, limites internos do poder discricionário, factores que condicionam a própria escolha do decisor entre as várias atitudes possíveis11.
Entre tais princípios, os que, à partida, podem estar em causa no nosso caso serão os da proporcionalidade e da justiça. O nosso exame limitar-se-á a estes.
O CPA prevê o princípio da proporcionalidade no seu art. 5.º, n.º 2, estabelecendo que «as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar».
Não cabe aqui fazer a história da génese do princípio ou a sua fundamentação filosófica.
Como refere VITALINO CANAS12 o princípio da proporcionalidade só poderá aplicar-se na apreciação de comportamentos em que o autor goze de uma certa margem de escolha.
A doutrina tem dissecado o princípio em três subprincípios, da idoneidade, necessidade e proporcionalidade, em sentido estrito, ou de equilíbrio.
A avaliação da idoneidade de uma medida é meramente empírica, podendo sintetizar-se na seguinte pergunta: a medida em causa é capaz de conduzir ao objectivo que se visa?
Aceitando-se que uma medida é idónea, passa a verificar-se se é necessária.
O centro das preocupações desloca-se para a ideia de comparação. Enquanto na máxima da idoneidade se procurava a certificação de uma relação causal entre um acto de um certo tipo e um resultado que se pretende atingir, na máxima da necessidade a operação central é a comparação entre uma medida idónea e outras medidas também idóneas. O objectivo da comparação será a escolha da medida menos lesiva.
«A aferição da proporcionalidade, em sentido estrito, põe em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto restritivo ou limitativo, e os bens, interesses ou valores sacrificados por esse acto. Pretende-se saber, à luz de parâmetros materiais ou axiológicos, se o sacrifício é aceitável, tolerável. Para alguns, esta operação assemelha-se externamente à análise económica dos custos/benefícios de uma decisão. Se o custo (leia-se o sacrifício de certos bens, interesses ou valores) está numa proporção aceitável com o benefício (leia-se a satisfação de certos bens, interesses ou valores) então a medida é proporcional em sentido estrito»13 14.
O CPA determina no art. 6.º que «no exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação».

13. Não se têm suscitado dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência, que os tribunais podem fiscalizar o respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade. A dúvida está em saber em que medida deverão os tribunais intervir nesta matéria.
DAVID DUARTE15, referindo-se à proporcionalidade em sentido estrito, «que engloba a técnica do erro manifesto de apreciação, técnica jurisdicional francesa que compreende, em termos avaliativos, para além do erro na qualificação dos factos, a utilização de um critério decisório proporcional que se revela numa decisão desequilibrada entre o contexto e a finalidade. O erro manifesto de apreciação, na vertente de controlo da adequação da decisão aos factos…é, como meio de controlo do conteúdo da decisão, um dos degraus mais elevados da intervenção do juiz na discricionariedade administrativa. E, por isso, só é utilizável na medida da evidência comum da desproporção16» (o sublinhado é nosso).
Nas mesmas águas navega MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS GARCIA17 defendendo que«em face da fluidez dos princípios (da proporcionalidade, da igualdade, da justiça), só são justiciáveis as decisões que, de um modo intolerável, os violem18» (o sublinhado é nosso).
O novo CPAC, no seu art. 21.º, n.º 1, alínea d), embora não aplicável à situação dos autos, a respeito dos fundamentos do recurso contencioso refere-se ao «erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários»”.
Após esta longa citação do nosso anterior Acórdão, não parecem suscitar-se dúvidas que os n.º os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, quando referem que para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, confere verdadeiros poderes discricionários à Administração.
Para efeitos do artigo 21.º, n.º 1, alínea d) do CPAC, que se aplica aos autos, não se afigura ter havido erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários.
Uma condenação em pena de prisão suspensa na sua execução, não deixa de ser uma condenação em processo crime.
Entendemos, assim, que o acto recorrido não violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, ao não ter deferido o pedido de renovação de residência, com fundamento em antecedentes criminais do cônjuge do recorrente.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC.
Macau, 11 de Maio de 2011.
   Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho

1 MARCELLO CAETANO, Manual, vol. cit., p. 214.
   2 MARCELLO CAETANO, ob. e vol. cits., p 490, FREITAS DO AMARAL, ob. e vol cits. , p. 112 e segs. e DAVID DUARTE, ob. cit., p. 343.
   3 MARCELLO CAETANO, ob. e vol. cits., p. 214 e 215.
   4 Na lição de MARTIM BULLINGER, Verwaltungsermessen im modernen Staat (Deutschland), Baden-Baden, 1986, p. 149 a 156, citado por MARIA DA GLÓRIA F. P.DIAS GARCIA, Da Justiça Administrativa em Portugal, Sua Origem e Evolução, Lisboa, 1994, p. 645, tais finalidades são as de:
   - Âmbito livre para considerações estratégicas ou tácticas, como acontece com a polícia, a fim de adequadamente reagir aos perigos contra a segurança e ordem públicas;
   - Âmbito livre para adaptar a lei a circunstâncias especiais do caso concreto, como acontece com uma licença excepcional de construção para um caso típico;
   - Âmbito livre para valorações técnicas, como é o caso actos tomados na base de dados fornecidos por comissões de peritos de instalação de centrais nucleares;
   - Âmbito livre para projectos que concretizam a lei e actos configuradores similares (discricionariedade do plano);
   - Âmbito livre para a optimização flexível de prestações estatais.
   5 Ob. cit., p. 351.
   6 Ob. cit., p. 499.
   7 BERNARDO DINIZ DE AYALA, ob. cit., p. 176.
   8 BERNARDO DINIZ DE AYALA, ob. cit., p. 176 a 178.
   9 DAVID DUARTE, ob. cit., p. 344, que acrescenta que a norma deve ser determinada, não sendo possível que a habilitação decisória seja a do exemplo caricaturalmente utilizado por JESCH: “A Administração tem a faculdade de poder fazer tudo aquilo que considere necessário para a prossecução do interesse público”.
   10 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 493. Cfr, sobre esta matéria, também, MARCELLO CAETANO, ob. e vol. cits., p. 214.
   11 Sobre esta matéria, M. ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, vol. I, 1980, Livraria Almedina, Lisboa, p. 255 e segs.
   12 VITALINO CANAS, Princípio da Proporcionalidade, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol VI, Lisboa, 1994, p. 616, que se seguirá de perto na exposição subsequente.
   13 VITALINO CANAS, ob. cit., p. 628.
   14 Sobre o emprego no princípio da proporcionalidade da contabilização custos-benefícíos (ou vantagens) pelo Conselho de Estado francês, cfr. J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 75, que enumera, a p. 114 e segs. da mesma obra, os elementos do princípio em termos semelhantes aos traçados acima.
   15 DAVID DUARTE, ob. cit., p. 323.
   16 O mesmo autor, ob. cit., p. 323, nota 205, a propósito da questão de saber qual a medida da desproporcionalidade que uma decisão deve ter para poder ser controlada pelo tribunal, cita uma decisão judicial britânica de 1945 (Associated Provincial Picture House Ltd. v. Wednesbury Corporation), que criou um standard aplicável à medida da intervenção judicial, estabelecendo que “if an authority`s decision was so unreasonable that no reasonable authority could ever have como to it, then the courts can interfere”.
   17 Ob. cit., p. 642.
   18 No mesmo sentido, M. ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., p. 256 e 257 e J.C. VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Livraria Almedina, Coimbra, 1991, p. 137.
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Processo n.º 12/2011

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Processo n.º 12/2011