打印全文
Processo nº 474/2010
(Autos de recurso penal)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:




Relatório

1. A com os sinais dos autos, veio recorrer do despacho em 19.04.2010 proferido pelo Mm° Juiz de Instrução Criminal, com o qual se decidiu manter o seu estatuto processual de preso preventivamente.

Motivou para concluir nos termos seguintes:
“A. A decisão ora recorrida que considerou não se verificar a situação de revogação prevista na alínea a) do n.°1 do art.° 196 do CPP não se se afigura correcta, porque a medida de prisão preventiva foi aplicada ao A fora das hipóteses ou das condições previstas na lei.
B. Desde logo porque o comportamento do A indiciado nos autos não é reconduzível ao crime de auxílio à emigração ilegal p.p. no artigo art.° 14.° da Lei n.° 6/2004.
C. O objecto da acção incriminada pelo artigo 14.° da Lei n.° 6/2004 é a "entrada" ilegal na RAEM, e não o "trânsito" e/ou a "permanência" das pessoas (que se encontrem nas situações previstas no artigo 2.° desse diploma) no interior da RAEM.
D. Neste sentido, e a propósito da delimitação deste crime no direito comparado, o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal esclareceu que: «O crime de auxílio à emigração clandestina, enquanto definido como favorecimento ou facilitação da entrada irregular de cidadãos estrangeiros em território nacional, cinge-se ao auxílio na própria transposição da linha de fronteira a estrangeiros indocumentado, não abrangendo, por isso, os casos de ajuda aos imigrantes ilegais que já vivem em Portugal.»
E. Entendimento este que se afigura correcto, sendo por isso aplicável ao caso "sub judice", dado que, de outro modo, qualquer acto praticado para com um imigrante que se encontrasse em situação ilegal na RAEM, na medida em que favorecesse a sua estadia, por mais insignificante que fosse, constituiria crime de auxílio.
F. Assim, para que existissem fortes indícios de que o A praticou o crime de auxílio p.p. no artigo 14.° da Lei 6/2004, era necessário que lhe fossem objectiva e subjetivamente imputáveis (i) actos que concorressem para a entrada na RAEM de imigrantes ilegais, (i) e se verificasse o nexo de causalidade adequada (causa dans) entre a conduta do arguido e o resultado típico, o mesmo é dizer entre os actos praticados pelo A e a "entrada" na RAEM dos estrangeiros.
G. Acresce que em momento nenhuma da factualidade indiciada nos autos se surpreende que o A concorreu para a entrada de alguém na RAEM ou de que tinha a consciência de que as pessoas que transportou no interior da RAEM se encontrassem numa das situações previstas no artigo 2.° da Lei n.° 6/2004.
H. Ou seja, era necessário que os autos indiciassem que o A sabia que os passageiros que transportou se encontravam numa das 4 situações previstas no artigo 2.° da Lei 6/2004, e que esse transporte tivesse concorrido para que eles entrassem na RAEM e não apenas para que circulassem dentro da RAEM.
I. Ora, o que as informações dos autos indiciam, designadamente as declarações para memória futura, é que A se limitou a conduzir o veículo (ora apreendido) no interior da RAEM, mais concretamente em direcção ao Casino Lisboa.
J. Donde decorre, sem esforço, que todos os indícios convergem no facto de todos os passageiros já se encontrarem no interior da RAEM quando o A os transportou.
K. Daqui resulta que o (i) A não é responsável nem contribuiu para a "entrada" ilegal de ninguém na RAEM.
L. Não existindo indícios da necessária imputação ao A da prática de actos idóneos à produção do resultado típico p.p. no art.° 14.° da Lei 6/2004, i.e., a entrada na RAEM de pessoas que se encontrassem numa das 4 situações previstas no artigo 2.° do mesmo diploma, a indiciação dos autos não preenche o conceito técnico jurídico de "fortes indícios" previsto no artigo 186.°, n.° 1, a) do CPP.
M. A prisão preventiva do A foi assim aplicada fora das hipóteses previstas na lei, dado que não tem a apoiá-la a forte indiciação que o disposto no art.° 186.°, n.° 1, a) do CPP exige, pelo que deverá ser revogada, com as legais consequências.
N. Por outro lado, na falta de circunstâncias específicas donde se possa objectivamente concluir pela existência dos perigos concretos de fuga, para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de de continuação da actividade criminosa previstos nas alíneas a), b) e c) do artigo 188.° do CPP, verifica-se a que a prisão preventiva foi aplicada fora das hipóteses ou das condições previstas na lei devendo, por isso, ser revogada.
O. As condições previstas na alínea a) do art.° 188.° do CPP ao abrigo das quais foi aplicada a prisão preventiva deixaram de subsistir, dado que deixou de existir ou se atenuou consideravelmente o perigo de perturbação do decurso do processo, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova previsto na alínea b) do artigo 188.° do CPP, como, em abstracto existiu até à dedução da Acusação em 2010/04/6.
P. Afigura-se, porém, face à atenuação das exigências cautelares prevista no art.° 196.°, n.° 3 do CPP decorrente da factualidade contida nos art.°s 11.° a 18.° supra, que a decisão ora recorrida violou o disposto no n.° 3 do art.° 196.° do CPP, devendo, por isso, ser revogada, com as legais consequências.
Q. Não se afigura imprescindível a opção pela medida coactiva mais gravosa do ordenamento jurídico-processual da RAEM: a prisão preventiva, porque os "perigos" em causa, a existirem (e não existem), poderão ser suficientemente contidos, e acautelados, com medidas de coacção menos gravosas, nomeadamente - e por exemplo - a obrigação de apresentações periódicas, nos termos do art.° 183.° do CPP, bem como a imposição da conduta a que alude a alínea a) do n.°1 do art.° 184.° do mesmo diploma, conjugada com a competente comunicação aos Serviços de Migração e/ou, por exemplo, com a prestação de caução carcerária.”; (cfr., fls. 2 a 13).

*

Respondendo, pugna o Exm° Magistrado do Ministério Público no sentido da improcedência do recurso.
Conclui pois que:
“1. Segundo os autos, há indícios e provas que o recorrente e o outro indivíduo ora preso preventivamente, conjuntamente com outros indivíduos desconhecidos, cometeram crime de auxílio.
2. Tendo em consideração o facto de ser grave o crime de auxílio, que pode afectar a ordem pública e tranquilidade social, embora o arguido A seja residente de Macau, o mesmo não confessou os factos imputados, o que revela que é elevada a intensidade de dolo do arguido, bem como, na fase da investigação, há perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do processo ou, perigo para a recolha de prova, razão pela qual, é adequada a decisão feita pelo meritíssimo juiz de direito que determinou manter a prisão preventiva aplicada ao arguido. O despacho já está fundamentado.
3. Atendendo a que, na presente fase, a aplicação de prisão preventiva ao arguido é a forma única e viável, nos termos dos art.ºs 176º, 178º, 178º, 179º, 186º, n.º1, al. a) e 188º, al. a), b) e c) do Código de Processo Penal.
4. Pelo que, no despacho recorrido, é correcta a aplicação da lei, não se verifica a violação do disposto no artº 196º e 188º do Código de Processo Penal tal como entendida pelo recorrente.”;(cfr., fls. 189 a 190).

*

Admitido o recurso nos termos legais, nesta Instância, e em sede de vista, juntou o Exm° Representante do Ministério Público o seguinte Parecer:
“Está em causa reapreciação de medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao recorrente.
Ao contrário do pretendido pelo mesmo, afigura-se-nos, acompanhando as judiciosa considerações do Exmo colega junto da 1ª instância, conterem os autos elementos suficientes para permitir concluir pela existência de sérios indícios de imputação ao mesmo da prática de crime de auxílio à imigração ilegal, p.p. pelo art° 14° da Lei 6/2004, constatando-se de tais indícios que, de facto, com a sua conduta, o mesmo concorreu para a entrada na RAEM de imigrantes ilegais, facilitando, obviamente tal entrada e circulação, pelo que a aplicação da medida de prisão preventiva se revela conforme com o exigível, designadamente da al a) do n° 1 do art° 186°, CPP, revelando-se ainda sensata a asserção no sentido quer da gravidade do ilícito imputado, quer da afectação da ordem pública e tranquilidade social coma aplicação de qualquer outra medida que não esta, tudo razões que impelem no sentido de que a manutenção da medida em questão não merece censura.
Somos, pois, pelo não provimento do presente recurso.”; (cfr., fls. 210).

*

Colhidos os vistos dos Mm°s Juízes-Adjuntos, urge decidir.

Fundamentação

2. Vem o arguido ora recorrente pedir a revogação do despacho judicial datado de 19.04.2010 que lhe manteve a medida de coacção de prisão preventiva.

De facto, tal medida tinha-lhe já sido aplicada por despacho de 21.01.2010, (cfr., fls. 74 a 74-v), e, após deduzida acusação, em sede de reapreciação da sua situação processual, decidiu-se manter a mesma, sendo esta a decisão ora recorrida.

Tem a mesma o teor seguinte:
“Relatório social, a fls. 158 a 162: Visto
O arguido A vem requerer que lhe seja aplicada outra medida de coacção em vez da prisão preventiva, mais requerendo que lhe sejam feitas as diligências tais como elaboração de relatório social, realização de perícia sobre a personalidade, bem como, inquirição de quatro testemunhas e audição de alegações dele. (fls.121 a 137 dos autos)
Face ao requerimento do arguido, o presente Tribunal já obteve o relatório social (vd. fls. 142, e 158 a 162 dos autos), quanto ao pedido das diligências de realização de perícia sobre a personalidade e de inquirição de quatro testemunhas, o referido pedido foi indeferido pelo Ministério Público. (fls. 147 dos autos)
Quanto ao pedido de audição de alegações, segundo o arguido, as suas alegações têm a ver com as questões indicadas nos art.º 37º a 55º do requerimento, entre as quais, incluindo o seu posto de trabalho e o nome da empresa onde trabalhou anteriormente, ele não tem antecedentes criminais, e suas situações familiares tais como situação de saúde dos seus pais e a situação financeira deles, bem como, situação do estudo do seu filho e a quem cabe tomar cuidado do seu filho, etc. Tendo em consideração as finalidades de aplicação das referidas diligências, o presente Tribunal considera que todas as situações referidas já constam dos autos tais como o certificado de registo criminal do arguido, as informações alegadas pelo arguido e as cartas por si apresentadas anteriormente (alegação por escrito), os respectivos requerimentos e os documentos anexos (apresentados e alegados pelo defensor do arguido), e o relatório social (feito pelo técnico conforme alegado pelo arguido) (constam respectivamente de fls. 36, 83, 131 a 137v, 158 a 162 dos autos), pelo que, o presente Tribunal considera não haver necessidade de ouvir directamente a alegação feita pelo arguido. Pelo que, nos termos do art.º 197º, n.º2 do Código de Processo Penal (sensu contrário), determina indeferir os respectivos pedidos.
Por outro lado, face ao pedido do arguido A, nos termos do art.º 197º do Código de Processo Penal, procede-se ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva aplicada aos arguidos A e B.
O digno magistrado do Ministério Público entende que se mantêm inalterados os pressupostos de prisão preventiva aplicada aos dois arguidos, pelo que, sugere que seja mantida a respectiva medida. (fls. 141)
Analisados os dados constantes dos autos, no dia 21 de Janeiro de 2010, o presente Tribunal aplicou aos dois arguidos A e B, a medida de prisão preventiva, de acordo com os fundamentos indicados a fls. 59 e 59v dos autos. No dia 6 de Abril de 2010, os dois arguidos foram acusados pelo Ministério Público da prática de crime de auxílio, p.p. pelo art.º 14º, n.2 da Lei n.º6/2004 (vd. fls. 114 a 115 dos autos)
Até à presente data, após feita análise das provas existentes nos autos, o presente Tribunal considera que há fortes indícios que os dois arguidos A e B, em co-autoria material, cometeram o supracitado crime, bem como, depois de analisado os dados e os fundamentos indicados a fls. 121 a 137v dos autos, o presente Tribunal concorda com o parecer do Ministério Público, considerando que se mantêm inalterados os pressupostos de prisão preventiva aplicada aos dois arguidos, pelo que, não se constituem circunstâncias de revogação de aplicação da medida de coacção previstas no art.º 196º, n.º1, al. a) e b) do Código de Processo Penal, nem existe a atenuação das exigências cautelares que permita a substituição da medida de coacção por outra medida menos gravosa, prevista no n.º3 do mesmo artigo. Assim sendo, o presente Tribunal determina manter a medida de prisão preventiva aplicada aos dois arguidos A e B.
Proceda à notificação e à diligência necessárias.
Após concluídas, remeta os ‘presentes autos ao Ministério Público.”; (cfr., fls. 176 e 202 a 204).

Transcrita que ficou a decisão recorrida, que dizer?

Pois bem, antes de mais, há que ter em conta que o despacho ora recorrido foi proferido em sede de “reexame dos pressupostos da prisão preventiva”, matéria regulada no art. 197° do C.P.P.M., onde se preceitua que:
“1. Durante a execução da prisão preventiva o juiz procede oficiosamente, de 3 em 3 meses, ao re-exame da subsistência dos pressupostos daquela, decidindo se ela é de manter ou deve ser substituída ou revogada.
2. Sempre que necessário, o juiz ouve o Ministério Público e o arguido.
3. A fim de fundamentar as decisões sobre a substituição, revogação ou manutenção da prisão preventiva, o juiz pode solicitar a elaboração de relatório social.”

E, atento o assim estatuído e ao que da decisão ora recorrida resulta, dúvidas cremos que não há que observou o Mm° Juiz o comando em causa.

Porém, importa saber se motivos haviam para se alterar a situação processual do ora recorrente.

E, então, há que atentar no estatuído no art. 196° do C.P.P.M., onde, sob a epígrafe “revogação e substituição das medidas”, se preceitua que:
“1. As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:
a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou
b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.
2. As medidas revogadas podem de novo ser aplicadas, sem prejuízo da unidade dos prazos que a lei estabelecer, se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação.
3. Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução.
4. A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo estes, sempre que necessário, ser ouvidos; se, porém, o juiz julgar o requerimento do arguido manifestamente infundado, condena-o ao pagamento de uma soma entre 4 e 16 UC.”

Ora, apreciando o assim determinado teve já este T.S.I. oportunidade de afirmar que:
“Qualquer medida de coacção só pode ser alterada quando ocorrer alteração substancial dos pressupostos da sua aplicação.”; (cfr., v.g., o Ac. de 06.06.2002, Proc. n° 242/2001-I).

Então, a questão que importa apreciar consiste em saber se, in casu, ocorreu tal “alteração dos pressupostos”?

Entendeu o Mm° Juiz a quo que não.

Vejamos, então, se o assim entendido merece censura.

Afirma o arguido que o crime pelo mesmo cometido não é o de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n° 2 da Lei n° 6/2004, e que se “limitou a conduzir o veículo no interior da R.A.E.M.”.

Há que atentar no seguinte.

Contra o arguido foi já deduzida acusação, imputando-se-lhe a prática de um crime de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n° 2 da Lei n° 6/2004, (cfr., 129 a 130), certo sendo também que, após a sua notificação, não requereu o mesmo arguido a abertura da instrução para, em tal sede, “discutir” a dita qualificação da sua conduta.

Pois bem, é sabido que a acusação fixa o “objecto do processo”, e, nessa conformidade, poder-se-á entender que em sede de um recurso de um despacho proferido após deduzida acusação e que mantém ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva antes aplicada com base em factos descritos na dita acusação, adequado não é proceder-se a uma reapreciação da qualificação jurídico-penal da sua conduta, quando o próprio, podendo, não a impugnou na sede própria, isto é, em sede de instrução, após a notificação da dita acusação.

Porém, seja como for, e admitindo-se que a questão possa comportar outro entendimento, que se respeita, há que dizer que nos presentes autos, e na própria acusação, existem também elementos que não deixam de permitir a conclusão no sentido de que o arguido ora recorrente terá cometido o “crime de acolhimento”, p. e p. pelo art. 15°, n° 2 da Lei n° 6/2004, com a pena de 2 a 8 anos de prisão, verificado estando assim o pressuposto do art. 186°, n° 1, al. a) do C.P.P.M., (onde se exige, para a aplicação da prisão preventiva, a existência de “fortes indícios da prática de crimes doloso punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos”).

Dest’arte e afigurando-se-nos também inalterados os restantes pressupostos que levaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao ora arguido, improcede o presente recurso.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará o recorrente a taxa de justiça de 4 UCs.

Macau, aos 10 de Junho de 2010

José Maria Dias Azedo (Relator)

Chan Kuong Seng (Primeiro Juiz-Adjunto)

João A. G. Gil de Oliveira (Segundo Juiz-Adjunto)
Proc. 474/2010 Pág. 4

Proc. 474/2010 Pág. 1