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Processo n.º 43/2011. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Chefe do Executivo.
Assunto: Suspensão da eficácia do acto administrativo. Prejuízo de difícil reparação. Demolição de casa de habitação. Residência habitual. Danos não patrimoniais.
Data da Sessão: 21 de Setembro de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Choi Mou Pan.
SUMÁRIO:
  I – Os três requisitos previstos nas alíneas do n.º 1 do art. 121.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, tendentes ao decretamento da suspensão da eficácia de acto administrativo, são de verificação cumulativa.
  II – O requisito da alínea a) do n.º 1 do art. 121.º do mesmo diploma (a execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso) tem sempre de se verificar para que a suspensão da eficácia do acto possa ser concedida, excepto quando o acto tenha a natureza de sanção disciplinar.
III – Um local ou um imóvel podem constituir memória relevante da vida de uma pessoa e sua família e, como tal, merecedores da tutela do direito, em termos de se considerarem prejuízos de difícil reparação de natureza não patrimonial, os danos provocados naqueles que tornassem a sua destruição irreversível.
  IV – Não configuram os danos mencionados no número anterior, os provocados pela execução de acto administrativo que determinou a demolição de uma casa nova, se esta foi construída há dois anos no local onde existia uma casa antiga, que constituía a memória do requerente e sua família, e que foi demolida pelo próprio requerente para construir a nova, sendo que o terreno se mantém incólume mesmo após execução do acto.
  V – Para que o interessado demonstre um prejuízo de difícil reparação provocado pela execução do acto administrativo que determinou a demolição da sua casa de residência habitual, consistindo em não ter outra casa para viver com o seu agregado familiar, terá de provar também que está impossibilitado de pagar as rendas de um imóvel que teria de arrendar para habitar, desde o momento da demolição da casa até à devolução das rendas, que teria lugar em execução da sentença que eventualmente anulasse o acto administrativo.
  O Relator,
  Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A requereu a suspensão da eficácia do despacho do Chefe do Executivo, de 20 de Maio de 2011, que ordenou a desocupação de um terreno sito em Coloane, junto ao poste de iluminação n.º XXXXX do [Endereço (1)], com demolição da construção aí edificada e remoção dos objectos, materiais e equipamentos nela existentes, bem como entrega do terreno ao Governo da Região Administrativa Especial de Macau.
O Tribunal de Segunda Instância, (TSI) indeferiu o requerido, por Acórdão de 21 de Julho de 2011.
Inconformado, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI).
Termina a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
  - Contrariamente ao sugerido no douto acórdão a quo, o Recorrente não alegou e nunca alegaria que a sua casa tem valor histórico e certamente que o não tem naquele sentido que subjaz a tal passagem do acórdão.
- O que o Recorrente invocou foi que a casa e, bem assim, o local onde esta se encontra implantada, representam para si e para a sua companheira um valor emocional e evocativo digno da tutela do direito, em termos tais que, cotejado com hipótese de a Administração proceder de imediato à sua demolição, impõe pelo menos o seu protelamento até que haja uma pronúncia final em sede de recurso contencioso de anulação.
- Se tal construção, que fora reconstruída a partir de outra no mesmo local, não encerra um qualquer lastro histórico-cultural de relevo, como quiçá as Ruínas de S. Paulo ou o Farol da Guia - isto apenas por referência a monumentos sitos em Macau -, certo é que, para o Recorrente e para a sua companheira, tal local e tudo quanto aí esteve implantado e está implantado vale certamente como que historicamente para si, pois que representa e consubstancia a sua história e a história da sua família desde há dois terços de século.
  - O Recorrente sustenta, assim, que a norma constante do art. 121.°, n.º 1, alínea a) do CPAC deveria ter sido interpretada no sentido de abranger no segmento “prejuízo de difícil reparação” o dano existencial e identitário aqui em causa, sob pena de violação da inviolabilidade da dignidade humana a que alude o art. 30.° da Lei Básica e do princípio da tutela da personalidade moral a que se refere o art. 67.°, n.º 2 do Código Civil.
- Quanto ao entendimento a quo de que caso fosse demolida a casa, o aqui Recorrente não ficaria na rua sem tecto de abrigo, a questão é que o prejuízo de difícil (in casu, impossível) reparação não é que os mesmos se vissem privados de um resguardo sobre as suas cabeças pois que, fosse esse o critério, a Administração estaria habilitada por seu livre alvedrio a de imediato efectivar toda e qualquer demolição bastando-lhe remeter os até aí moradores para os asilos e albergues públicos ou convidando-os a fazerem-se convidados nas casas dos seus familiares.
A entidade recorrida defende a improcedência do recurso.
A Exm.ª Procuradora-Adjunta emitiu parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
  1. Por despacho do Senhor Chefe do Executivo, de 20/05/2011, determinou-se a desocupação, no prazo máximo de 30 dias, do terreno situado junto aos postes de iluminação n.º XXXXX do [Endereço (1)], em Coloane, com demolição da construção aí edificada e remoção dos objectos, materiais e equipamentos nela existentes, bem como a entrega do terreno ao Governo da RAEM, sem direito de indemnização.
  2. O requerente desde o nascimento até agora é residente de Ká Hó na Ilha de Coloane, vivendo unido de facto com B.
  3. Em 2009, o requerente mandou construir no terreno em causa uma obra em estrutura de betão, conforme demonstrada pela foto constante de fls. 184 do P.A., em substituição da antiga casa rural.
  4. O requerente não possui qualquer licença para ocupar ou utilizar o terreno em causa.
  5. A construção da casa não foi autorizada por entidade competente.
  6. Em 02/04/2009, foi determinado o embargo da obra pela DSSOPT.
  7. O requerente encontra-se reformado.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
O Acórdão recorrido entendeu que, para que a providência cautelar de suspensão de eficácia de actos administrativos pudesse ser decretada, seria necessária a verificação cumulativa dos três requisitos previstos no art. 121.º, n.º 1 do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC). E que, não tendo o requerente alegado factos donde decorresse que a execução do acto lhe causaria previsivelmente prejuízo de difícil reparação, a providência estava condenada ao insucesso e assim decidiu, indeferindo a mesma.
O requerente recorre, entendendo que alegou oportunamente factos que integram o mencionado requisito “que a execução do acto lhe causaria previsivelmente prejuízo de difícil reparação”.
É esta a questão a apreciar.

2. Verificação cumulativa dos requisitos
No sistema administrativo de Macau e nos semelhantes, designados de administração executiva, “Os actos administrativos são executórios logo que eficazes” (n.º 1 do art. 136.º do Código de Procedimento Administrativo) (CPA).
  Por isso, a Administração não precisa de recorrer aos tribunais para executar os actos administrativos. Dispõe o n.º 2 do art. 136.º do CPA que “O cumprimento das obrigações e o respeito pelas limitações que derivam de um acto administrativo podem ser impostos coercivamente pela Administração sem recurso prévio aos tribunais, desde que a imposição seja feita pelas formas e nos termos admitidos por lei”.
  Por outro lado, a interposição de recurso contencioso de anulação do acto administrativo não tem, em regra, efeito suspensivo do acto (embora haja casos expressamente previstos na lei, em que o tem).
  No caso dos autos, a interposição do recurso contencioso de anulação não suspende a execução do acto.
Não obstante, a lei prevê, como providência cautelar, a suspensão da eficácia dos actos administrativos, estatuindo o art. 121.º do CPAC:
“Artigo 121.º
(Legitimidade e requisitos)
1. A suspensão de eficácia dos actos administrativos, que pode ser pedida por quem tenha legitimidade para deles interpor recurso contencioso, é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a) A execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso;
b) A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto; e
c) Do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
2. Quando o acto tenha sido declarado nulo ou juridicamente inexistente, por sentença ou acórdão pendentes de recurso jurisdicional, a suspensão de eficácia depende apenas da verificação do requisito previsto na alínea a) do número anterior.
3. Não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 para que seja concedida a suspensão de eficácia de acto com a natureza de sanção disciplinar.
4. Ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1, a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente.
5. Verificados os requisitos previstos no n.º 1 ou na hipótese prevista no número anterior, a suspensão não é, contudo, concedida quando os contra-interessados façam prova de que dela lhes resulta prejuízo de mais difícil reparação do que o que resulta para o requerente da execução do acto”.

É manifesto que os três requisitos previstos nas alíneas do n.º 1 são de verificação cumulativa, pelo que basta a não verificação de um deles para que a providência não seja decretada, salvo nas hipóteses previstas nos n.os 2, 3 e 4.1
Mais rigorosamente, o requisito da alínea a), que é o que está em causa (a execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso de anulação) tem sempre de se verificar para que a suspensão da eficácia do acto possa ser concedida, excepto quando o acto tenha a natureza de sanção disciplinar, o que não é o caso.

3. Prejuízos de difícil reparação
O requerente da providência tem, pois, de alegar danos, patrimoniais ou não. Mas não basta. Não se pode paralisar a actividade da Administração se o requerente não alegar e provar sumariamente que a execução do acto lhe causa prejuízo de difícil reparação, o que se compreende perfeitamente.
Mesmo que o interessado sofra danos com a execução de um acto administrativo, se lograr obter a anulação do acto no respectivo processo, pode, em execução de sentença, ser indemnizado dos prejuízos sofridos. E se esta via não for suficiente pode, ainda, intentar acção de indemnização para ressarcimento dos prejuízos. Por isso, só se os prejuízos forem de difícil reparação, isto é, que não possam ser satisfeitos com a utilização dos falados meios processuais, é que a lei admite a suspensão da eficácia do acto.
Mas, a questão de saber se a demolição de uma casa, que constitui a residência habitual de uma pessoa, constitui um prejuízo de difícil reparação, para efeitos de conduzir à suspensão da eficácia do acto administrativo até à decisão do recurso contencioso visando a anulação do acto, não pode ser resolvida em abstracto para todos os casos, nem no sentido positivo, nem no sentido negativo, sob pena de manifesto conceitualismo.
Importa, sim, examinar os factos invocados pelo interessado para se concluir se integram o conceito de prejuízo de difícil reparação.

4. Prejuízos de difícil reparação de natureza não patrimonial
O ora recorrente alegou, fundamentalmente, um dano de natureza não patrimonial e outro de natureza patrimonial, que considera de difícil reparação.
O primeiro consistiria em o local dos autos ser aquele onde nasceu e sempre viveu onde viveram seus ascendentes, pelo que tal espaço e local encerrariam elementos intangíveis merecedores de acolhimento pelo Direito.
Sem dúvida que um local ou um imóvel podem constituir memória relevante da vida de uma pessoa e sua família e, como tal, merecedores da tutela do direito em termos de se considerarem serem prejuízos de difícil reparação os danos que tornassem irreversível uma situação que os afectasse definitivamente.
Mas não é este, seguramente, o caso dos autos.
A casa que está em causa é uma casa nova, de betão armado, de três pisos (cfr. o facto provado atrás mencionado e a fotografia para o qual remete), construída pelo requerente, em 2009, no local em que se situava uma casa rural e onde habitou.
A casa rural, a que a memória familiar do requerente se refere, teve necessariamente que ser demolida para a construção da nova, por um princípio básico da física, segundo o qual dois corpos sólidos não podem ocupar, simultaneamente, o mesmo espaço.
Por conseguinte, a haver alguma memória familiar e emocional do requerente, só pode respeitar ao local onde se situava a casa rural. Não a esta casa, que foi demolida pelo requerente para construir a nova casa.
Pois bem, este local, isto é, o terreno, não vai desaparecer com a demolição da casa. E, se o recurso contencioso for procedente - onde se vai discutir, a final, o direito do requerente a ocupar o local - ele virá a reocupar o terreno.
Portanto, neste aspecto não está em causa nenhum prejuízo de difícil reparação.
É que o terreno só não estará na posse do requerente entre o momento da demolição, com posse do terreno pela Administração e a execução da sentença que julgar procedente o recurso contencioso, no caso de ser este o resultado do processo, o que não parece justificar o embargo de um acto administrativo.

5. Prejuízos de natureza patrimonial de difícil reparação
No que respeita aos prejuízos de difícil reparação de natureza patrimonial, alegados pelo requerente, o único que poderia justificar a suspensão da eficácia do acto seria o facto de o requerente ficar privado de casa para viver com a sua companheira, entre o momento da demolição da casa e o momento do pagamento de indemnização pelo valor respeitante à mesma casa, no caso de a sentença do recurso contencioso vir a concluir que o requerente tinha o direito de ter a sua casa edificada no terreno dos autos.
Para tal, alegou o requerente não ter qualquer outra casa em Macau, nem ter meios para custar a compra de casa, nem mesmo para arrendar um imóvel. Alegou, ainda, ter gasto todas as suas poupanças na construção da casa dos autos.
A este propósito, começaremos por dizer que não se subscreve o entendimento do Acórdão recorrido, de que o requerente poderia resolver o seu problema da sua falta de casa temporária, indo viver para casa de um dos filhos. É que nem se pode impor ao requerente que vá viver com outros familiares, nem ao filho que tenha de tolerar o pai e respectiva companheira em sua casa.
Mas o requerente não fez prova dos factos alegados ( de não ter qualquer outra casa em Macau, nem ter meios para custar a compra de casa, nem mesmo para arrendar um imóvel e que gastou todas as suas poupanças na construção da casa dos autos).
Prescindindo de considerações sobre o facto de o requerente ter ou não outras casas em Macau ou de ter ou não meios para adquirir outra casa, certo é que muito provavelmente pode arrendar uma casa para viver durante o período de tempo atrás mencionado.
É facto notório que existe em Macau um mercado florescente de arrendamento, pelo que não é difícil arrendar um imóvel ou uma fracção em propriedade horizontal, seja em Macau, na Taipa ou Coloane, mesmo por pessoas com rendimentos ou poupanças reduzidas, o que está longe de estar demonstrado seja o caso do requerente.
É que a casa dos autos, construída em 2009, com três pisos, não está ao alcance de uma pessoa com disponibilidades financeiras escassas, sendo certo que o requerente nem sequer necessitou de recorrer a financiamento bancário, pois alegou que a construiu com poupanças, que se esgotaram totalmente. Mas este último facto, não demonstrado, não é sequer credível, além de que o requerente não alegou se tem ou não rendimentos e em que montantes.
Acresce que o montante das rendas que o requerente viesse a pagar por arrendamento de imóvel ou fracção, durante o mencionado período transitório, sempre seria facilmente indemnizável.
Não demonstrou, por conseguinte, o requerente o requisito do prejuízo de difícil reparação, pelo que não merece censura o Acórdão recorrido.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 6 UC.
  Macau, 21 de Setembro de 2011.
  Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai –
  Choi Mou Pan

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho
  
1 Neste sentido, para legislação semelhante, ao tempo, à de Macau, cfr. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), Coimbra, Almedina, 3.ª ed., 2000, p. 176.
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