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Processo n.º 52/2011. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: B.
Recorrido: A.
Assunto: Acidente de viação. Seguradora. Direito de regresso. Abandono de sinistrado.
Data do Acórdão: 9 de Novembro de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Choi Mou Pan.

SUMÁRIO:
  O direito de regresso da seguradora, que satisfez indemnização ao lesado em acidente de viação, contra o condutor, previsto na alínea c) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, quando haja abandono voluntário de sinistrado, não está limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima


  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
  I – Relatório
  A, intentou acção declarativa com processo ordinário contra B, pedindo a sua condenação no pagamento de MOP$1.015.945,00, a título de direito de regresso.
  Alegou para tal, que a autora fora condenada a pagar indemnização aos herdeiros de falecido em acidente de viação, a que dera causa o réu, que abandonou o local do acidente e, como tal foi condenado também pelo crime de abandono de sinistrado, sendo que nos termos do artigo 16.º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, a seguradora que satisfaz indemnização por acidente de viação tem direito de regresso contra o condutor que haja abandonado o sinistrado.
  A final, foi o réu B condenado a pagar à autora a quantia de MOP$1.000.000,00.
  O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 12 de Maio de 2011, negou provimento ao recurso interposto pelo réu.
  Recorre o réu B para este Tribunal de Última Instância (TUI).
  Para tal, formulou as seguintes conclusões úteis:
  - A diferença de redacção da alínea c) e da alínea e) dentro do artigo 16.° do Decreto-Lei n.º 57/94/M demonstra que só nas situações de não apresentação de um veículo a inspecção periódica, o legislador quis estabelecer uma espécie de presunção “iuris tantum” de culpabilidade contra o responsável do veículo, interveniente no acidente (de viação), que na altura estava em falta na sua apresentação a inspecção periódica, conferindo, nesses casos, às seguradoras automaticamente, por via do instituto do direito de regresso, o direito de serem reembolsadas das quantias indemnizatórias que tiveram de despender em virtude do acidente de viação em que foi interveniente o veículo em causa.
  - Existe assim uma clara inversão das regras do ónus da prova para a hipótese prevista na alínea e) do artigo art.º 16.° do Decreto-Lei n.º 57/94/M, inversão essa que se não aplica nem se estende a nenhuma das hipóteses previstas na alínea c) do mesmo artigo, designadamente à situação de abandono de sinistrado, na qual a seguradora não se encontra dispensada do ónus da prova que os danos que indemnizou resultaram em concreto do abandono.
  - Em todas as outras situações previstas nas alíneas a), b) c) e d) do art.º 16.° do Decreto-Lei n.º 57/94/M, o legislador não inverteu o ónus da prova, i.e., não dispensou a seguradora de provar todos os factos constitutivos do seu direito de regresso.
  - Assim, não se tendo provado ou sequer alegado qualquer nexo de causalidade entre os danos e o abandono, faltam os factos constitutivos do direito de regresso recortado no artigo 517.°, n.° 1 do Código Civil e no artigo 16.º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 57/94/M, com o que se impõe a absolvição do Réu. O direito de regresso previsto no artigo 517.°, n.º 1 do Código Civil destina-se apenas e exclusivamente a que o devedor, que satisfaça o direito do credor além da parte que lhe competir, possa obter o competente reembolso do(s) condevedor(es).
  - Tal não sucedeu no caso ora em preço, dado que a companhia de seguros não satisfez o direito do credor além da parte que lhe competia nos termos do risco coberto no contrato de seguro.
  - Assim, no caso "sub judice", não há lugar ao direito de regresso reivindicado pela companhia de seguros por falta de alegação e prova dos factos constitutivos desse direito, devendo, pois, revogar-se, a aliás, douta sentença recorrida, por erro de julgamento [erro na subsunção dos factos às normas de direito previstas nos artigos 517.°, n.º 1 do Código Civil e 16.°, alínea c) do Decreto-Lei n.º 57/94/M, ou na interpretação destas, e violação do disposto no artigo 335.°, n.º 1 do Código Civil].
  
  II – Os factos
  Os factos considerados provados pelos Tribunais de 1.ª e Segunda Instâncias, são os seguintes:
  Por sentença transitada em julgado no processo que correu termos sob o n° CR3-05-0073-PCC do 3° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, foram dados como provados os seguintes factos:
  a) No dia 18 de Janeiro de 2005, por volta das 11.00 horas da noite, o Réu B pediu ao seu amigo C para lhe emprestar o veículo automóvel MH-XX-XX;
  b) No dia 19 de Janeiro de 2005, pelas 02h da madrugada, o Réu conduziu o referido veículo automóvel para uma loja de comidas na zona da Areia Preta para cear, durante o qual ingeriu vinho tinto;
  c) O Réu conduziu o referido veículo pelo "Túnel da Guia" no sentido da Av. Horta e Costa para o Alameda Dr. Carlos D' Assumpção, e no sentido do viaduto que dá acesso directo à Avenida Dr. Rodrigo Rodrigues;
  d) Naquele momento, à sua frente e pelo lado esquerdo da via, seguia o ofendido D, conduzindo o motociclo MD-XX-XX;
  e) Após percorrerem o referido túnel, o Réu e o ofendido seguiram para o viaduto que dá acesso directo à Avenida Dr. Rodrigo Rodrigues, a fim de avançarem à direcção da Alameda Dr. Carlos D' Assumpção;
  f) Ao chegar à curva do referido viaduto, e devido à velocidade imprimida ao seu veículo, o Réu não conseguiu travar o mesmo, vindo a embater no motociclo conduzido pelo ofendido. Em resultado desse embate, o ofendido foi projectado para cima do veículo conduzido pelo arguido, acabando depois por ultrapassar a barreira de protecção do viaduto e cair na Avenida Rodrigo Rodrigues sem consciência;
  g) A seguir a estes factos, o Réu B, alheou-se da situação do ofendido, abandonando imediatamente o local;`
  h) O ofendido, foi transportado para o hospital, vindo a falecer às 11.15h da manhã do dia 19-01-2005.
  i) De acordo com as conclusões do relatório Médico e da Autópsia, a causa da morte do ofendido foram as múltiplas fracturas, profundas lesões cerebrais, lesão da medula e enfisema pulmonar que sofreu em virtude do acidente (facto do artigo 8°).
  – Na referida sentença, o condutor B foi declarado único e exclusivo culpado daquele acidente, sendo sentenciado com culpa grave (facto do artigo 9°).
  – O Réu B foi, assim, condenado pela prática em autoria material e consumada de:
  a) 1 crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo artigo 134°, n° 1 do CPM e artigo 66.°, n.° 1 do Código da Estrada, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão;
  b) 1 crime de abandono de sinistrados previsto e punível pelo artigo 62.°, n.° 1 do referido Código da Estrada, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão;
  c) 1 transgressão ao estatuído no artigo 14.°, n.° 2 do Código da Estrada na pena de multa de 1.000,00;
  d) 1 transgressão ao estatuído no artigo 22.°, n.° 1 do referido Código da Estrada na pena de multa de 1.500,00, convertível em 10 dias de prisão;
  e) Em cúmulo jurídico do supra referido pelos 2 crimes e das 2 transgressões, numa única pena de 2 anos de prisão, e na multa de MOP$2.500,00 (facto do artigo 10°).
  Por consequência, a Autora foi condenada a pagar aos sucessores da vítima D, uma indemnização civil no valor de MOP$1.000.000,00 (facto do artigo 12°).
  A Autora despendeu, para além dos montantes fixados em sede de sentença contabilizados em MOP$1.000.000,00 para pagamento da indemnização cível, a quantia de MOP$15.945,00 a título de honorários dos seus advogados e despesas judiciais (facto do artigo 13°).
  O que perfaz a quantia global de MOP$1.015.945,00 (facto do artigo 14°).
  
  III – O Direito
  1. A questão a resolver
  Trata-se de saber se, face ao disposto no artigo 16.º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 57/94/M - que dispõe que a seguradora que satisfaz indemnização por acidente de viação tem direito de regresso contra o condutor que haja abandonado o sinistrado - tal direito está limitado aos danos que se provarem tiverem resultado do abandono ou antes se o direito de regresso se estende à totalidade da indemnização que a seguradora tiver satisfeito ao lesado.
  
  2. As duas teses em confronto
  O Decreto-Lei n.º 57/94/M regula o regime legal do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, impondo a obrigação de todos os veículos circularem nas vias públicas com seguro de responsabilidade civil pelos danos que a sua utilização venha a causar a terceiros (artigo 1.º), impondo determinados valores mínimos de cobertura, por cada acidente, em função do tipo de veículo (artigo 6.º, n.º 1 e anexo I).
  No artigo 4.º1 excluem-se da garantia do seguro quaisquer danos causados a determinadas pessoas e bens e também em função de determinadas causas e de certos eventos.
  Processualmente, em todas as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil por acidente de viação abrangido pelo seguro obrigatório, quer sejam exercidas em processo cível, quer o sejam em processo penal, é obrigatória a intervenção da seguradora ou seguradoras dos demandados, sob pena de ilegitimidade (artigo 45.º, n.º 1).
  Por força do contrato de seguro, havendo acidente, a seguradora satisfaz o valor da indemnização até ao montante segurado. Porém, em certos casos, seguidamente, a seguradora pode pedir o valor pago ao causador do acidente ou a outro responsável.
  É o que estabelece o artigo 16.º, onde se dispõe:
  
“Artigo 16.º
(Direito de regresso da seguradora)
  Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra:
  a) O causador do acidente que o tenha provocado dolosamente;
  b) Os autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente;
  c) O condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado;
  d) O responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de queda de carga ocorrida durante o seu transporte e que tenha sido devida a deficiência de acondicionamento;
  e) O responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica referida no artigo 10.º, que não tenha cumprido essa obrigação, excepto se o mesmo provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo”.
  
  Em face de normas semelhantes às acabadas de citar (o artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro), a jurisprudência portuguesa confrontou-se com a questão que se debate nos autos. Uma corrente entendeu que o direito de regresso da seguradora contra o condutor que abandona sinistrado tem sempre lugar. Uma outra propendeu a que tal direito de regresso só se limita aos danos que se prove tenham resultado do abandono, exigindo à seguradora a prova desse nexo de causalidade entre o abandono do lesado e os danos. Esta última tese parece, actualmente, ser a prevalecente.
  Questão semelhante tem sido debatida a propósito do direito de regresso da seguradora pelos danos provocados por condutor sob o efeito do álcool que, aliás, tanto no nosso Direito, como no português, decorre da mesma norma da que regula as consequências do abandono de sinistrado [alínea c) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M e alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, respectivamente]. Uma tese defende o direito de regresso irrestrito da seguradora. Outra entende que esta só tem direito de regresso quanto aos danos que se prove terem resultado da condução sob o efeito do álcool.
  Vejamos como se coloca e resolve a questão à luz do Direito de Macau.
  
  3. O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. O direito de regresso da seguradora
  Como explica MARIA MANUELA CHICHORRO2, citando, em parte, JOSÉ VASQUES3, “O contrato de seguro de responsabilidade civil assenta em geral em dois pilares fundamentais: a distribuição do risco e a imputação de responsabilidade a quem tira proveito de uma actividade, sintetizada na expressão ubi commoda, ibi incommoda. No caso do seguro automóvel, essa actividade corresponde à utilização de veículos terrestres a motor para obtenção de vantagens, sendo considerada uma actividade perigosa pelo meio que utiliza – veículos a motor – e exigindo, por isso, um especial regime.
  Paralelamente evidenciam-se a função social e económica do contrato de seguro e, assim, do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. A desproporção entre o dano sofrido pelo lesado e a capacidade indemnizatória do civilmente responsável cria a necessidade de contratar o seguro. Através dele, redistribui-se o valor constituído pelos prémios de seguros de todas as apólices, canalizando-o para os lesados, vítimas de acidentes de viação. A indemnização do lesado já não se realiza, assim, em nome do princípio da responsabilidade individual, mas em nome do risco social que a circulação automóvel constitui, para o qual o lesante paga conjuntamente com todos os outros automobilistas. A essencialidade da culpa (individual) é substituída pelo imperativo (social) de reparação dos danos. Nisso consiste a função social do contrato de seguro, à qual subjazem princípios de interesse público”.
  Por isso mesmo, só em casos muito especiais a lei veio admitir que a seguradora pudesse exercer um direito de regresso após pagamento de indemnização ao lesado.
  A utilização da expressão “apenas”, constante do proémio do artigo 16.º, mostra claramente que a enumeração das situações em que se permite o direito de regresso à seguradora, constantes do artigo 16.º são de natureza taxativa4. São estas apenas e não outras.
  Na alínea a) do artigo 16.º prevê-se o direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente. A conduta tem de ser intencional, ainda que não criminosa, como no caso do proprietário que danifica o veículo próprio.
  Por força da alínea b) a seguradora pode pedir a indemnização paga aos lesados, aos autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente.
  Na alínea c) está consagrado o direito de regresso da seguradora em três situações:
  - Contra o condutor não legalmente habilitado para conduzir;
  - Contra o condutor que tiver agido sob a influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos;
  - Contra o condutor que haja abandonado o sinistrado.
  Na alínea d) estatui-se o direito de regresso da seguradora contra o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de queda de carga ocorrida durante o seu transporte e que tenha sido devida a deficiência de acondicionamento. Portanto, sanciona-se a mera negligência no acondicionamento da carga que tenha caído durante o transporte.
  Na alínea e) o direito de regresso é exercido contra o responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica, que não tenha cumprido essa obrigação, excepto se o mesmo provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo.
  
  4. Direito de regresso da seguradora pelos danos provocados por condutor que abandona sinistrado
Como é sabido, na interpretação da lei, o intérprete tem de partir da sua letra, embora sem se cingir a ela, sendo que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 8.º, n. os 1 e 2 do Código Civil).
  A letra da alínea c) do artigo 16.º aponta decisivamente para a solução segundo a qual o abandono de sinistrado conduz ao direito de regresso contra o condutor, independentemente de os danos terem ou não sido especificamente causados ou agravados pelo crime de abandono. Claro que o condutor tem de ter sido o responsável pelo acidente e, por via disso, a seguradora teve de satisfazer indemnização ao lesado. Mas da letra da lei não resulta que o direito de regresso da seguradora só se pode efectivar se a seguradora provar que os danos foram devidos ao abandono e não ao acidente.
  Diga-se, aliás, que a tese do ora recorrente não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
  Ora, se a lei pretendesse tal fim - isto é, direito de regresso condicionado à prova de que os danos resultaram do abandono - certamente que o teria prescrito, como fez, de resto na alínea e) do preceito em causa5. Na verdade, na situação prevista nesta alínea e) o direito de regresso é exercido contra o responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica, que não tenha cumprido essa obrigação, mas este pode provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo, caso em que o direito de regresso não se efectiva. Mas tal mecanismo não se prevê na alínea c), pelo que se tem de concluir que nesta situação o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.
  Diga-se, ainda que tal prova – como também noutra das situações previstas na alínea c) (prova de que os danos foram especificamente devidos à condução sob o efeito álcool) seria impossível ou quase, diabólica, já foi designada.
  Efectivamente, como é possível provar que os danos no lesado foram devidos ao seu abandono ou devidos ao estado alcoólico do condutor do veículo e não ao acidente em si?
  A ser assim, teríamos de concluir que a norma em causa seria uma norma sem aplicação ou de quase impossível aplicação, o que constitui uma indicação de que não estaríamos no melhor caminho interpretativo, visto que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil ).
  Por outro lado, por alguma razão, os que defendem a tese da necessidade do nexo de causalidade entre os danos e o abandono do sinistrado ou da condução sob o efeito álcool (equiparando sempre as duas situações), omitem a terceira situação prevista na alínea c): o direito de regresso da seguradora contra o condutor não legalmente habilitado para conduzir. Então e neste caso também seria necessário a prova da causalidade entre os danos e a falta de habilitação para conduzir? Seria uma solução absurda.
  O que, manifestamente, se pretendeu na alínea c) foi, por razões preventivas e também repressivas, não beneficiar da protecção do seguro quem não tiver licença para conduzir, o condutor que ultrapassar os limites de álcool no sangue ou estiver intoxicado por outras substâncias e quem cometa o crime de abandono de sinistrado (voluntário, pois é este o caso dos autos, pelo que apenas cabe examinar esta situação), desde que sobre o condutor recaia o dever de indemnizar, sendo irrelevante que os danos sejam especificamente devidos às situações descritas.
  É que a responsabilidade civil, além da função reparadora, tem também uma função preventiva e punitiva6, não sendo a pena privada estranha ao nosso ordenamento jurídico civil, como por exemplo, no regime do sinal (artigos 446.º e 820.º do Código Civil, tal como os restantes artigos que se citarão neste parágrafo), na sanção pecuniária compulsória (artigo 333.º), passando pelo regime de revogação das doações por ingratidão do donatário (artigo 964.º), na fixação de sanções pecuniárias pela assembleia de condóminos (artigo 1341.º), na incapacidade sucessória por indignidade (artigo 1874.º) , na deserdação (artigo 2003.º)7
  O que se pretendeu, foi, desta maneira, desincentivar a condução por quem não estiver legalmente habilitado para conduzir, a condução sob influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos e o abandono de sinistrados.
  Por outro lado, o artigo 517.° do Código Civil não dispõe aquilo que o recorrente alega, que parece antes estar a referir-se ao artigo 490.º do Código Civil, mas também tal como o anterior, completamente estranho ao problema que está em causa.
  Conclui-se, assim, que o direito de regresso da seguradora, que satisfez indemnização ao lesado em acidente de viação, contra o condutor, previsto na alínea c) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, quando haja abandono voluntário de sinistrado, não está limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.
  Improcede, pois, o recurso.
  
IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Macau, 9 de Novembro de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai –
Choi Mou Pan
  


1 Do Decreto-Lei n.º 57/94/M, como serão todos os preceitos sem indicação da proveniência.
2 MARIA MANUELA CHICHORRO, O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Coimbra Editora, 2010, p. 33.
3 JOSÉ VASQUES, Contrato de Seguro – Notas para uma Teoria Geral, Coimbra Editora, 1999, p. 21 e 22.
4 Neste sentido, para preceito semelhante da lei portuguesa, MARIA CLARA LOPES, Responsabilidade Civil Extracontratual, Lisboa, Rei dos Livros, 1997, p. 106.
5 Neste sentido, AMÉRICO MARCELINO, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, Lisboa, Livraria Petrony, 6.ª edição, sem data, p. 668.
6 PATRÍCIA CARLA MONTEIRO GUIMARÃES, Os Danos Punitivos e a Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Direito e Justiça, 2001, Vol. XV, Tomo 1, p. 164 e segs.
7 PAULA MEIRA LOURENÇO, Os Danos Punitivos, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2002, Vol. XLIII, n.º 2, p. 1061.
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