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Processo n.º 53/2011. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrida: B.
Assunto: Alegação de factos. Prova. Documentos.
Data do Acórdão: 9 de Novembro de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e José Maria Dias Azedo.
SUMÁRIO:
Não podem ser considerados provados factos compreendidos em declarações constantes de documentos particulares, não impugnados pela parte contrária, se tais factos não foram alegados nos articulados, sem que o juiz tenha convidado a parte respectiva a alegá-los nos termos dos artigos 5.º, n.º 3, 397.º, n.º 1, 427.º, n.º 3 ou 553.º, n.º 2, alínea f), do Código de Processo Civil e 14.º, n.º 1, alínea 3), do Código de Processo do Trabalho.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
  I – Relatório
  A intentou acção declarativa de processo comum de trabalho contra B, pedindo a sua condenação no pagamento de MOP$2.813.866,36, a título de trabalho extraordinário prestado diariamente, durante 4 horas, desde 6 de Dezembro de 1991 a 23 de Março de 2005 e não pago.
  Por sentença de 30 de Junho de 2010, foi a ré B condenada a pagar ao autor a quantia de MOP$903.769,20 (por compensação de duas horas por dia, a título de horas extraordinárias, desde 6 de Dezembro de 1991 a 23 de Março de 2005).
  O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 23 de Junho de 2011, deu parcial provimento ao recurso interposto pela ré B, condenando-a a pagar ao autor a compensação de duas horas por dia, a título de horas extraordinárias, apenas no período compreendido entre 6 de Dezembro de 1991 e 31 de Dezembro de 1998, a liquidar em execução de sentença (levando em conta o número de dias apurados na sentença de 1.ª instância, e os vencimentos mensais auferidos pelo autor nesse período, a apurar naquela sede).
  Recorre agora o autor A para este Tribunal de Última Instância (TUI).
  Para tal, formulou as seguintes conclusões úteis:
- O ora Recorrente não se pode conformar com o referido Acórdão, porquanto, ao entender que não ficou provado os vencimentos salariais do ora Recorrente e que o mesmo só tinha direito de receber a compensação pelo trabalho extraordinário prestado entre 6 de Dezembro de 1991 e 31 de Dezembro de 1998, excluindo o período entre 1 de Janeiro de 1999 e 23 de Março de 2005, o Venerando Tribunal a quo, salvo o devido respeito, violou e aplicou erradamente a lei substantiva.
- O Venerando Tribunal a quo entendeu que, não obstante a junção de documentos comprovativos dos vencimentos mensais do ora Recorrente, mesmo que não impugnados pela Recorrida, por falta dos factos articulados pelo Autor no que diz respeito aos quantitativos dos vencimentos mensais, não ficou provado os montantes salariais do Autor.
- Porém, na verdade, apurou-se que nos termos do contrato datado de 2 de Janeiro de 1999 (que foi dado como reproduzido na alínea “B” dos factos assentes) o ora Recorrente auferia um vencimento de MOP$34.300,00 mensais a partir de 2 de Janeiro de 1999.
- Por outro lado, o salário auferido pelo ora Recorrente no início da relação laboral consta do quesito 14 da Base Instrutória, o que foi dado como provado.
- Quanto às restantes actualizações salariais o ora Recorrente juntou aos autos documentos a comprová-las, documentos esses que nunca foram impugnados pelo ora Recorrido.
- Ora, dispõe o art. 14.° n.º 4 do Código de Processo de Trabalho que “nas acções que tenham por objecto o cumprimento de obrigações pecuniárias o juiz deve orientá-las por forma a que a sentença, se for de condenação, possa fixar em quantia certa a importância devida.”
- Assim, embora não estivessem quesitadas as actualizações salariais, o Tribunal da 1ª instância tinha todos os elementos nos autos que lhe permitiam fixá-las e, a partir daí, fixar a compensação devida pelo trabalho prestado e não pago, pelo que, mais não fez do que socorrer-se destes elementos de modo a fixar a quantia devida.
- Conclui-se assim que, sem violar o Princípio do Dispositivo, o Tribunal de 1ª Instância podia fixar a compensação calculada nos termos expostos na sua sentença.
- Por outro lado, o Venerando Tribunal a quo entendeu que, durante o período da vigência do contrato celebrado em 2 de Janeiro de 1999 e com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1999, não merece o ora Recorrente qualquer compensação a título de horas extraordinárias pelo trabalho efectuado nas nonas e décimas horas por se encontrarem ainda dentro do período normal de trabalho. Consequentemente, decidiu o Venerando Tribunal a quo que o ora Recorrente apenas tem direito a receber a compensação pelo trabalho extraordinário prestado entre 6 de Dezembro de 1991 e 31 de Dezembro de 1998.
- Porém, da conjugação dos nºs 1, 2 e 3 do arte 10° do Decreto-lei nº 24/89/M resulta que, não obstante poder ser contratualmente estipulado o limite até 10 horas e 30 minutos por dia, o limite de 48 horas semanais é imperativo.
- Assim, a extensão do período de trabalho diário que implique durações de trabalho superiores a 48 horas semanais tem de ser sempre visto como trabalho extraordinário, devendo pois ser compensado como tal.
  - Assim, o ora Recorrente tem ainda direito de receber a compensação pelo trabalho extraordinário prestado entre 1 de Janeiro de 1999 e 23 de Março de 2005.
  - E ao decidir como decidiu o Venerando Tribunal a quo violou o art. 10.° nos 1, 2 e 3 do Decreto-lei n.º 24/89/M.
  
  II – Os factos
  Os factos considerados provados pelos Tribunais de 1.ª e Segunda Instâncias, são os seguintes:
  Por acordo celebrado em 6 de Dezembro de 1991, a R. contratou o A., para desempenhar as funções de gerente geral na Divisão de Serviços de Segurança, por tempo indeterminado. (A)
Em 1998 o acordo referido na alínea anterior foi substituído pelo contrato escrito assinado pelo A. em 2 de Janeiro de 1999 cuja cópia se encontra a folhas 18/21 e aqui se da por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (B)
O A. tinha como funções, entre outras, a gestão do pessoal que trabalhava fora e por turnos, o que compreendiam a supervisão de todos os trabalhadores que trabalhavam fora e por turnos, atribuir-lhes tarefas e verificar e supervisionar o seu cumprimento, designadamente no transporte de fundos e valores, abertura e fecho de armazéns, verificar se os trabalhadores se encontravam nos seus postos, dar-lhes o apoio e assistência necessária ao cabal cumprimento das suas funções. (C)
  O A., tinha um horário flexível. (D)
  A R. presta a sua actividade de forma ininterrupta, isto é, 24 horas por dia e 365 dias por ano. (E)
  A R. nunca pagou qualquer quantia ao A. a título de trabalho extraordinário. (F)
  O A. trabalhava das 9 horas da manhã às 9 horas da noite, com intervalos de uma hora para almoço e uma hora para jantar. (1°)
  O referido em 1° aconteceu desde 6 de Dezembro de 1991 a 23 de Março de 2005. (3.º)
  O A. só podia realizar horas extraordinárias com autorização do seu superior hierárquico o Director Geral da R. (5°)
  O A. nunca submeteu qualquer pedido do Director Geral para a realização de horas extraordinárias. (6°)
  O A. nunca teve autorização do Director Geral da R. para realizar horas extraordinárias. (7º)
  Em Fevereiro de 2000, o A. gozou de 3 dias de descanso, tendo naqueles dias saído de e entrado em Macau pelas fronteiras. (8°)
  Em Junho de 2000, o A. gozou de 7 dias de descanso, tendo naqueles dias saído de e entrado em Macau pelas fronteiras. (9°)
  Em Agosto de 2000, o A. gozou de 4 dias de descanso, tendo naqueles dias saído de e entrado em Macau pelas fronteiras. (10°)
  Em Novembro de 2000, o A. gozou de 4 dias de descanso, tendo naqueles dias saído de e entrado em Macau pelas fronteiras. (11º)
  Em Novembro de 2001, o A. gozou de 5 dias de descanso, tendo naqueles dias saído de e entrado em Macau pelas fronteiras. (12°)
  Em Maio de 2002, o A. gozou de 3 dias de descanso, tendo naqueles dias saído de e entrado em Macau pelas fronteiras. (13°)
  Em 1991 o A. ganhava cerca de MOP$5.000,00 (14.º).
  
  III – O Direito
  1. As questões a resolver
  São duas as questões a resolver.
  A primeira é a de saber se o Acórdão recorrido violou o disposto no artigo 14.º, n.º 2 , do Código de Processo do Trabalho, ao entender que não tendo o autor articulado na petição inicial os vencimentos auferidos durante a vigência da relação laboral, a sentença de 1.ª instância violou o princípio dispositivo ao ter atendido a documentos juntos pelo autor – e não impugnados pela ré - imediatamente antes da audiência de julgamento, tendentes a provar aqueles factos não alegados.
  A segunda questão consiste em saber se o período semanal de trabalho de 48 horas é imperativo, pelo que trabalho prestado que exceda este limite tem de ser sempre considerado como extraordinário, e assim se o autor teria também direito a pagamento de duas horas por dia, a título de horas extraordinárias, desde 1 de Janeiro de 1999 até 23 de Março de 2005.
  
  2. Princípio dispositivo. Modificação da causa de pedir
  O autor intentou acção contra a ex-entidade patronal, pedindo a sua condenação no pagamento de trabalho extraordinário prestado diariamente, durante 4 horas, desde 6 de Dezembro de 1991 a 23 de Março de 2005 e não pago.
  Para tal, como é evidente, seria essencial ter alegado qual o salário auferido durante esses mais de 13 anos, já que o montante do trabalho extraordinário – na falta de acordo entre as partes (artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M), depende do salário auferido.
  Porém, da petição inicial não consta qual o(s) salário(s) auferido(s) naquele período. Alegava o autor apenas ter assinado um contrato em 6 de Dezembro de 1991 (sem dizer qual o salário acordado) e que fora substituído por outro assinado em 2 de Janeiro de 1999, também sem alegar qual o salário neste acordado.
  Juntou, contudo, o autor à petição um contrato de trabalho datado de 2 de Janeiro de 1999, donde constava ser o salário acordado a partir de 1 de Janeiro desse ano, de MOP$34,300.00. Não juntou o tal contrato de 6 de Dezembro de 1991.
  Portanto, para todos os efeitos legais, o autor limitou-se a alegar que, a partir de 1 de Janeiro de 1999, o seu salário mensal era de MOP$34,3300.00.
  Este facto ficou provado, sendo levado aos factos assentes [alínea b)], por falta de impugnação da ré.
  Na contestação, a ré veio dizer – e bem – que o autor não alegou quais os salários que sucessivamente auferiu, tendo a ré alegado que o autor auferia em 1991 cerca de MOP$5.000,00. Este facto foi levado à base instrutória e considerado provado na audiência de julgamento.
  Na véspera da audiência, veio o autor alegar quais os salários que auferira durante toda a relação laboral, tendo dito então que auferira 12 salários diferentes. Juntou documentos comprovativos, não impugnados pela ré.
  O Ex.mo Juiz Presidente do tribunal colectivo, na sentença considerou provados os factos que o autor alegara na véspera da audiência, relativos aos sucessivos salários auferidos.
  Mas não podia fazê-lo.
  Tais factos consistiram numa modificação da causa de pedir, na medida em que consistiram na adição de factos integrantes da causa de pedir, relativamente aos quais nem sequer foi ouvida a parte contrária.
  Ora, não tendo na sua base factos objectiva ou subjectivamente supervenientes - caso em que poderia haver lugar à produção de articulado superveniente1 (artigos 425.º e 426.º do Código de Processo Civil e 33.º, n. os 3 e 4 do Código de Processo do Trabalho) - as regras da modificação da causa de pedir teriam de obedecer ao prescrito nos artigos 216.º e 217.º do Código de Processo Civil, aplicáveis na falta de disposição específica da lei processual do trabalho, por força do artigo 1.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, que se limita a divergir daquelas normas na parte atinente à cumulação sucessiva de pedidos (artigo 16.º do Código de Processo do Trabalho), que não está em causa.
  Pois bem, de acordo com o artigo 217.º ( não havia acordo para a modificação) esta modificação só poderia ter sido feita na réplica, articulado que não existiu, nem, aliás, existe em processo laboral (artigo 33.º do Código de Processo do Trabalho).
  Logo, tal adicional matéria de facto não poderia ter sido considerada. Como é bem de ver, os documentos são apenas um meio de prova. Destinam-se a provar factos oportunamente alegados nos articulados [artigos 389.º, alínea c) e 409.º, n.º 1 do Código de Processo Civil], sendo que só às partes cabe alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir (artigo 5.º do Código de Processo Civil). Mesmo que tais factos fossem considerados como complementares dos factos essenciais, só poderiam ter sido considerados se o Ex.mo Juiz tivesse dado cumprimento ao disposto nos artigos 5.º, n.º 3, 397.º, n.º 1, 427.º, n.º 3 ou 553.º, n.º 2, alínea f), do Código de Processo Civil e 14.º, n.º 1, alínea 3), do Código de Processo do Trabalho, o que não foi o caso.
  O artigo 14.º, n.º 2 (e não 4, como alega o recorrente), do Código de Processo do Trabalho, que estatui que “Nas acções que tenham por objecto o cumprimento de obrigação pecuniária, o juiz deve orientá-las por forma a que a sentença, se for de condenação, possa fixar em quantia certa a importância devida” é estranho ao problema. O que se visa é o que juiz tente fixar uma quantia certa como objecto da condenação, não relegando para execução de sentença a liquidação do julgado. Nada tem que ver, por conseguinte, com a falta de alegação de factos, que incumbe às partes.
  Logo, não merece censura o Acórdão recorrido na parte em que não aceitou que tais factos fossem considerados provados.
  Só um ponto final. O que suscita dúvidas é ter-se relegado a alegação (e prova) dos salários auferidos pelo autor, para execução de sentença, dando uma segunda oportunidade ao autor. Constando dos factos provados os salários do autor em 1991 e a partir de 1 de Janeiro de 1999, parece que seria a estes que teria de se atender, uma vez que em nenhum ponto da matéria de facto se diz que o autor auferiu outros salários; isto mesmo que houvesse indícios que a verdade material não coincidia com a verdade processual, o que no caso seria de imputar inteiramente ao autor, como se viu. Mas não tendo o autor nem a ré recorrido quanto a este segmento específico da decisão, não se pode conhecer da questão.
  
  3. Trabalho extraordinário
  O Acórdão recorrido considerou que, no período entre 1 de Janeiro de 1999 e 23 de Março de 2005, o artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 24/89/M, permitia o trabalho até ao limite das 10 horas e 30 minutos diárias, pelo que, tendo-se provado que o autor trabalhava 10 horas diárias, não teria ele direito a qualquer compensação pelo trabalho extraordinário, que não existia por ter sido absorvido pelo período normal de trabalho.
  Contra isto veio agora o autor contrapor que a lei (artigo 10.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 24/89/M) estabelecia um limite semanal de 48 horas, pelo que todo o trabalho que ultrapassasse este limite teria de ser considerado extraordinário.
  Vejamos.
  O autor e a ré acordaram que, a partir de 1 de Janeiro de 1999, o primeiro trabalhasse 12 horas por dia, seis dias por semana, por um salário mensal ilíquido de MOP$34,300.00.
  O autor trabalhava efectivamente 10 horas por dia, das 9 da manhã às 21 horas, com intervalo de 1 hora para almoço e 1 hora para jantar.
  Ora, ainda que o autor esteja certo ao defender que, de acordo com o disposto no artigo 10.º, n. os 1, 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, a prestação de trabalho superior a 48 horas semanais é considerada como trabalho extraordinário, ainda que ela resulte do contrato de trabalho, mesmo assim não lograria êxito na sua pretensão.
  Nessa tese, trabalhando o autor 60 horas semanais, 12 destas horas sê-lo-iam a título de trabalho extraordinário.
  Pois bem, se, de acordo com o contrato escrito livremente acordado entre as duas partes, o autor recebia um salário mensal ilíquido de MOP$34,300.00, estando obrigado a prestar 12 horas diárias de trabalho (embora efectivamente só trabalhasse 10 horas), em 6 dias por semana, tem de se entender que no salário acordado já estava previsto o pagamento das horas excedentes a 48 horas semanais, a título de trabalho extraordinário, já que a lei – na perspectiva do recorrente - consideraria tal período excedente como trabalho extraordinário.
  É que a prestação de trabalho extraordinário dava lugar a um acréscimo de salário que fosse acordado entre o empregador e o trabalhador (artigo 11.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 24/89/M).
  O que seria o caso, por meio do contrato escrito assinado em 2 de Janeiro de 1999, para vigorar desde o dia anterior.
  Não tem, pois, o autor qualquer direito a receber o pagamento do trabalho semanal excedente a 48 horas, porque ele já foi pago, ao receber o respectivo salário mensal.
  Improcede igualmente, nesta parte, o recurso, por fundamentos diversos dos constantes do Acórdão recorrido.
  
IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Macau, 9 de Novembro de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai –
José Maria Dias Azedo
1 Não cabe aqui tomar posição quanto à questão de saber se a modificação da causa de pedir, por meio de articulado superveniente, está submetida ou não às regras dos artigos 216.º e 217.º do Código de Processo Civil.
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Processo n.º 53/2011