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Processo n.º 51/2011. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrida: B.
Assunto: Embargos de executado. Ónus da prova. Relações imediatas. Violação de pacto de preenchimento do cheque.
Data do Acórdão: 16 de Novembro de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Choi Mou Pan.

SUMÁRIO:
  Em execução que tem como título um cheque, no domínio das relações imediatas cabe ao embargante/executado a prova da existência de pacto de preenchimento do cheque e da sua violação.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
  I – Relatório
  A propôs acção executiva contra B, oferecendo como título executivo um cheque, no montante de HKD$2.000.000,00.
  A executada deduziu embargos, alegando que o cheque não era título executivo, por ter sido o exequente quem o preencheu, já que a embargante não concordou que o embargado o preenchesse com o seu nome, com o montante de HKD$2.000.000,00 e com a data de emissão.
  A sentença julgou improcedentes os embargos.
  O Tribunal de Segunda Instância (TSI) deu provimento ao recurso interposto pela embargante, julgando procedentes os embargos e extinta a execução.
  Recorre o exequente/embargado A para este Tribunal de Última Instância (TUI), formulando as seguintes conclusões úteis:
  O douto Tribunal recorrido aplicou erradamente o disposto nos artigos 677.º al. c) do CPC, nos artigos 452.º e 372.º do Código Civil (CC) e no artigo 1.224.º do Código Comercial (CCom), ao considerar que não pode entender-se que o Embargante constituiu ou reconheceu uma obrigação pecuniária para com o Embargado, por ter sido o Embargado a preencher os dados referentes ao nome do beneficiário, ao montante e à data no cheque dado à execução.
  Em processo de embargos de executado é sobre o embargante, subscritor do cheque exequendo, emitido com data em branco e posteriormente completado pelo tomador a seu mando, que recai o ónus da prova da existência de acordo de preenchimento e da sua inobservância
  A Embargante não logrou provar qualquer violação do acordo de preenchimento, tampouco que o cheque dado à execução lhe haja sido subtraído (ónus que sobre si também recaía).
  
  II – Os factos
  Os factos considerados provados pelos Tribunais de 1.ª e Segunda Instâncias, são os seguintes:
  Em 10/09/2007, com base no cheque do [Banco (1)], sob o n° XXXXXX, o embargado propôs a execução contra a embargante (alínea A dos factos assentes).
  O cheque acima mencionado foi assinado e carimbado (carimbo da embargante) pelos membros da administração da embargante (alínea B dos factos assentes).
  A data, o montante e o nome do beneficiário do pagamento acima referido foram preenchidos pelo embargado, ou seja, são os seguintes elementos preenchidos: 06/09/2007, 2,000,000.00 dólares de Hong Kong e A (alínea C dos factos assentes).
  O Embargado e os dois membros da administração da embargante, C e D, conheciam-se (resposta ao quesito 1.°).
  O C exerce as suas actividades de negócios na China Continental, enquanto o D reside na Austrália (resposta ao quesito 2.°).
  O Embargado reside em Macau (resposta ao quesito 3.°).
  Em circunstâncias não apuradas e para os efeitos não apurados, a Embargante entregou ao Embargado o cheque referido na alínea a) dos Factos Assentes (resposta aos quesitos 4° e 17.°).
  Em 03/09/2007, a Embargante deslocou-se ao [Banco (1)] e preencheu uma comunicação de suspensão do pagamento do cheque, donde inclui-se o cheque indicado no facto comprovado (resposta ao quesito 12.°).
  Posteriormente, o Embargado chegou a contactar com o gerente, Sr. E, da Companhia dele, situada em Jiang Men, solicitando a este último que comunicasse à Embargante, que o Embargado iria apresentar ao pagamento o cheque em causa (resposta ao quesito 22°).
  
  III – O Direito
  1. As questões a resolver
  A questão a resolver é a de saber a quem cabe o ónus da prova do acordo de preenchimento de cheque e da sua conformidade com o acordo ou da violação de tal acordo.
  
  2. Título executivo. Cheque.
  Dado o cheque dos autos à execução, veio o embargante alegar violação do acordo de preenchimento e a relação causal, defendendo que nada devia ao exequente.
  Nada se provou, para além de que o cheque foi entregue em branco pela embargante ao embargado e que este o preencheu.
  Não se provou se houve ou não pacto de preenchimento e se este foi violado.
  Também nada se provou quanto à relação causal ou subjacente.
  Tudo está, pois, em saber a quem cabia o ónus da prova da existência de pacto de preenchimento de cheque entregue em branco e da violação deste pacto.
  O Acórdão recorrido decidiu que cabia ao embargado provar a existência do negócio causal ou subjacente, para fazer dotar o documento particular de força executiva. Entendeu, ainda que um cheque cujos dados relativos ao nome do beneficiário, ao montante e à data foram preenchidos pelo exequente/embargado depois de entregue a este, não constitui título executivo nos termos do artigo 677.º, alínea c) do Código de Processo Civil, por não constituir uma obrigação pecuniária.
  Começando por esta última questão.
  Dispõe o artigo 677.º, alínea c) do Código de Processo Civil:
Artigo 677.º
(Espécies de títulos executivos)
  À execução apenas podem servir de base:
  a) As sentenças condenatórias;
  b) Os documentos exarados ou autenticados por notário que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
  c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto;
  d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
  
  O cheque é um título de crédito, que contém o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada, dele devendo contar a assinatura de quem passa o cheque (o sacador), o nome de quem deve pagar (o sacado, um banco), a indicação do lugar do pagamento e da data e do lugar onde o cheque é passado (artigo 1212.º do Código Comercial).
  O cheque representa uma ordem de pagamento dirigida a um banqueiro, onde existem fundos providenciados por quem emite o título.
  A própria lei prevê que um cheque possa ser passado incompleto e completado posteriormente (artigo 1224.º do Código Comercial).
  A questão também não é estranha ao Direito Civil (artigo 372.º do Código Civil).
  Não se entende, por conseguinte, o alcance do Acórdão recorrido ao afirmar que um cheque cujos dados relativos ao nome do beneficiário, ao montante e à data foram preenchidos pelo exequente/embargado depois de entregue a este, não constitui título executivo nos termos do artigo 677.º, alínea c) do Código de Processo Civil, por não constituir uma obrigação pecuniária.
  É que, por um lado, nada obsta ao seu preenchimento posterior e não há dúvidas que, após preenchido, constitui uma obrigação pecuniária, visto que dele consta uma ordem assinada pelo sacador (o devedor) ao banco para pagar uma quantia determinada a favor de determinada pessoa, o beneficiário (credor).
  E o embargante não provou a extinção da relação subjacente, como lhe competia.
  Trata-se, por tanto, de um título executivo.
  
  3. Ónus da prova do pacto de preenchimento do cheque e da sua violação
  Como se disse, o cheque é um título de crédito. Significa isto que é “o documento necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado”.1
  Nos títulos de crédito o documento é um requisito necessário para a existência do direito nele mencionado: o documento tem uma função constitutiva, sendo que esta “não se restringe ao momento inicial da vida do direito, mas reveste carácter permanente: o documento é imprescindível também para o exercício e a transferência do direito. Por isso se deveria dizer, segundo certa teoria, que é a titularidade do documento que decide da titularidade do direito nele mencionado; que o documento é o principal, sendo o direito seu acessório”2
  O cheque, como título de crédito, tem determinadas características:
  - A incorporação da obrigação no título. Resulta do que dissemos anteriormente.
  - A literalidade da obrigação. O conteúdo, extensão e modalidades da obrigação cartular são os que a declaração objectivamente defina e revele.
  - A abstracção da obrigação. O negócio cambiário é independente da sua causa.
  - A autonomia do direito do portador.
  Na obrigação cambiária há que distinguir as relações imediatas das relações mediatas.
  Nas relações imediatas, ou seja, nas relações entre o subscritor e o sujeito cambiário imediato, sujeitos estes que são também os sujeitos da relação subjacente, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta.
  Nestas relações, a obrigação cambiária está sujeita às excepções que se fundamentem nas relações pessoais dos sujeitos. É essa a interpretação que tem sido dada ao artigo 1233.º do Código Comercial e a disposição idêntica da Lei Uniforme Sobre o Cheque que aquele reproduz (artigo 22.º)
  Já nas relações mediatas, ou seja, entre os sujeitos que não são parte na relação subjacente, não podem ser opostas ao portador excepções pessoais, a menos que o portador do cheque ao adquiri-lo tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor (artigo 1233.º do Código Comercial).
  Assim, dada a natureza do cheque, como obrigação cambiária literal e abstracta, é ao embargante que cabe o ónus da prova das excepções pessoais que tenha contra o portador.
  Examinemos a quem cabe o ónus da prova do pacto de preenchimento do cheque e da sua violação.
  “O pacto de preenchimento é uma convenção obrigacional e informal. Tem como conteúdo a obrigação de preencher a letra (ou o cheque) de acordo com o critério estipulado entre as partes”.3
  A violação do pacto de preenchimento pode ser oposta sempre no domínio das relações imediatas. No domínio das relações mediatas, já não pode ser oposto, a menos que o portador tenha adquirido o cheque de má fé, ou adquirindo-o tenha cometido uma falta grave (artigo 1224.º do Código Comercial).
  No caso dos autos estamos no domínio das relações imediatas, visto que o cheque não entrou ainda em circulação.
  É mais ou menos pacífico, tanto na doutrina como na jurisprudência, que a prova da violação do pacto de preenchimento do cheque cabe a quem a alega, no caso ao embargante na acção executiva.
  Antes de mais, é isso que resulta do disposto no artigo 372.º do Código Civil, onde se dispõe:
“Artigo 372.º
(Assinatura em branco)
   Se o documento tiver sido assinado em branco, total ou parcialmente, o seu valor probatório pode ser ilidido, mostrando-se que nele se inseriram declarações divergentes do ajustado com o signatário ou que o documento lhe foi subtraído”.
  
  Interpretando a norma, afirma MÁRIO DE BRITO4 que “A regra é que, assinado um documento em branco, ele vem a ser preenchido de harmonia com a vontade do subscritor, sendo, portanto, de presumir que o seu conteúdo representa a vontade deste.
  Mas tal presunção pode ser ilidida pela prova de que houve abuso no preenchimento, isto é, que se inseriram nele declarações divergentes do ajustado com o signatário. Em tal caso, da autenticidade da assinatura não deriva a veracidade do conteúdo do documento. Isso mesmo se diz no presente artigo...”.
  Por conseguinte, o que tem que ser provado é o abuso no preenchimento, isto é a violação do pacto e não o contrário, de que não houve tal violação.
  No que toca especificamente ao ónus da prova da violação do pacto de preenchimento, na acção executiva, que o mesmo cabe ao embargante/executado é mais ou menos pacífico, como se disse. Só a sua fundamentação é controvertida.
  Para uns, porque se trata de facto constitutivo da oposição deduzida contra a execução, nos termos do artigo 335.º, n.º 1, do Código Civil. É o caso de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA5, que diz: “Nos embargos de executado, a distribuição do ónus da prova observa as regras gerais sobre a matéria, pelo que cabe ao executado embargante a prova dos fundamentos alegados (art. 342º, n.º 1, CC6), dado que estes são factos constitutivos da oposição deduzida. Por exemplo: é sobre o embargante, subscritor do cheque exequendo, emitido com data em branco e posteriormente completado pelo tomador ou a seu mando, que recai o ónus da prova da existência do acordo de preenchimento e da sua inobservância”.
  Para outros, e como se afigura mais correcto, porque se trata de facto extintivo do direito do exequente, de acordo com o disposto no artigo 335.º, n.º 2, do Código Civil.
  É a tese de LEBRE DE FREITAS7, quando defende: “O equívoco transparece claramente em TEIXEIRA DE SOUSA, ao exemplificar a sua posição com um caso nítido de excepção (o de documento particular emitido em branco e preenchido com violação do pacto de preenchimento: art. 378 CC8): não é por os fundamentos da oposição serem «factos constitutivos da oposição deduzida», mas sim por via da norma de direito civil aplicável (na oposição à execução como em outra qualquer acção declarativa, seja quem for que tome a posição de autor ou de réu), que o ónus da prova do conteúdo do pacto de preenchimento cabe ao executado oponente”.
  Em conclusão, cabia ao embargante/executado, tanto a prova da existência de um negócio subjacente, como a prova da existência do pacto de preenchimento do cheque e da sua violação.
  Nada se tendo provado, os embargos teriam de improceder.
  Com o que procede o recurso.
  
IV – Decisão
Face ao expendido, julgam procedente o recurso, revogam a decisão recorrida, julgando improcedentes os embargos de executado.
Custas pelo recorrido, tanto no TUI, como no TSI.
  Macau, 16 de Novembro de 2011.
   Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai –
   Choi Mou Pan

1 VIVANTE, citado por A. FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial, Universidade de Coimbra, 1975, Vol. III, p. 4.
2 A. FERRER CORREIA, Lições..., Vol. III, p. 5, que se seguirá, de perto.
3 PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial, Títulos de Crédito, Lisboa, AAFDL, reimpressão de 1997, p. 63.
4 MÁRIO DE BRITO, Código Civil Anotado, edição do autor, 1967, Vol. I, p. 515.
5 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, p. 177.
6 Refere-se ao Código Civil de 1966.
7 LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva Depois da Reforma, Coimbra Editora, 2004, 4.ª edição, p. 183 e 184, nota (31).
8 Refere-se ao Código Civil de 1966.
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Processo n.º 51/2011

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