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Processo n.º 58/2011. Recurso jurisdicional em matéria penal.
Recorrente: A.
Recorrido: Ministério Público.
Assunto: Processo penal. Nulidade da sentença. Falta dos fundamentos que presidiram à escolha e à medida da pena. Irregularidade. Correcção da sentença. Homicídio. Crime de ofensa grave à integridade física. Crimes preterintencionais. Dolo. Negligência. Artigo 139.º do Código Penal.
Data do Acórdão: 6 de Dezembro de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Lai Kin Hong.
SUMÁRIO:
I - Os fundamentos de nulidade de sentença são apenas os previstos no artigo 360.º do Código de Processo Penal.
II - A falta, na sentença condenatória, dos elementos previstos na primeira parte do artigo 356.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (fundamentos que presidiram à escolha e à medida da pena), constitui mera irregularidade, sujeita ao regime do artigo 361.º, n.os 1, alínea b) e 2 do mesmo diploma legal.
  III - O crime de homicídio, previsto e punível pelo artigo 128.º do Código Penal, é um crime doloso. Nele, o agente provoca a morte de outra pessoa, agindo intencionalmente com vista a provocar o resultado morte.
IV - O crime de ofensa grave à integridade física, previsto e punível pelo artigo 138.º do Código Penal, é um crime doloso. O agente quer ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, tem intenção de provocar ofensa no corpo ou na saúde de outrem. Em todas as situações previstas, o dolo tem que abranger não só o delito fundamental, como as consequências que o qualificam. Isto é, a intenção tem de abranger não só a ofensa, como as circunstâncias previstas numa das quatro alíneas.
  V - Os crimes do artigo 139.º constituem ilícitos preterintencionais, em que o resultado excede a intenção do agente. Há dolo quanto à ofensa ao corpo ou à saúde de outrem, mas existe mera negligência quanto ao resultado morte.
  VI - No crime previsto e punível pelos artigos 138.º, alínea d) e 139.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, prevê-se a ofensa à integridade física de outra pessoa, com intenção não só quanto à ofensa, mas também em se provocar perigo para a vida, de que resultou a morte por negligência do agente.
  VII - A diferença fundamental entre os elementos constitutivos dos dois tipos criminais, o do artigo 128.º do Código Penal e o dos artigos 138.º, alínea d) e 139.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, reside em que no crime de homicídio o agente tem intenção de provocar a morte de outrem e obtém esse resultado, enquanto que no crime de ofensa grave à integridade física originando a morte, o agente tem intenção de agredir o corpo ou a saúde da vítima, sabendo que coloca em perigo a sua vida, mas não tem intenção de lhe provocar a morte; no entanto, a morte acaba por ocorrer por negligência do agente.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
  I – Relatório
  O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 29 de Junho de 2011, condenou o arguido A, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio, previsto e punível pelo artigo 128.º do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão e, em cúmulo jurídico com as penas aplicadas noutro processo, na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.
  O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 29 de Setembro de 2011, rejeitou o recurso interposto pelo arguido, por manifesta improcedência.
  Ainda inconformado, recorre o arguido para este Tribunal de Última Instância (TUI), terminando com as seguintes conclusões úteis:
  - O acórdão recorrido cometeu um erro de direito ao considerar que o acórdão proferido pelo Tribunal de 1a Instância tinha cumprido o dever de fundamentação, dado que não indica os motivos de facto e de direito determinativos da condenação;
  - O acórdão proferido pelo Tribunal de 1a Instância nem sequer fez a necessária análise crítica da prova produzida tendo, outrossim, feito urna remissão genérica para os elementos de prova carreados para os processo sem sequer ter tido a preocupação de os cotejar, sendo ainda totalmente omisso quanto aos fundamentos que presidiram à qualificação jurídica operada;
  - O acórdão recorrido errou ao considerar que o crime cometido pelo recorrente integra os elementos típicos do preceituado no art. 128° do Código Penal pois, o crime de homicídio, pelo qual o recorrente foi condenado, é um crime apenas punível se se provar que o agente actuou com dolo;
  - Ora, a matéria provada é insuficiente para a decisão a que o douto colectivo chegou pois, não se colhe do acórdão recorrido se a conduta do recorrente foi motivada por dolo, e se assim o foi, qual o grau de dolo ou se o foi apenas por negligência;
- A factualidade provada, quando muito, permite apenas a subsunção dos factos ao tipo legal de crime consagrado nos arts. 138.º alínea d) e 139.° nº 1 alínea b) ambos do Código Penal, isto é, ao crime de ofensa grave à integridade física originando a morte.
  - Por outro lado, a medida concreta da pena -14 anos de prisão - peca por severidade em demasia;
  - A medida concreta da pena nunca deveria ultrapassar os 10 anos de prisão efectiva.
  - Na verdade, o acórdão recorrido omitiu completamente na averiguação da medida concreta da pena o facto do recorrente se encontrar sob o efeito de bebidas alcoólicas, de estar num estado emocional perturbado, de se tratar da sua namorada com quem vivia em comum e com quem tinha um filho, de o recorrente se ter entregue voluntariamente à policia e de ter confessado os factos em tribunal;
  - Face a essa ausência total de esforço de apuramento no tipo ou grau de dolo subjacente à conduta do recorrente, o acórdão recorrido não respeitou o estatuído na alínea b) do n.º 2 do artigo 65.° do Código Penal, que assim omitiu por completo, razão pela qual violou esta norma legal.
  Na resposta à motivação do recurso o Ex.mo Procurador-Adjunto defendeu que deve ser negado provimento ao recurso.
  No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto manteve a posição já assumida na resposta à motivação.
  
  II – Os factos
  As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
I. Num dia incerto do princípio do ano de 2007, o arguido A e a vítima B (identificada em fls. 294v., 295 e 304 dos autos) conheceram-se com a apresentação feita por amigos e, posteriormente, tomaram-se namorados.
II. Pouco depois, o arguido e a vítima arrendaram e coabitaram num quarto, sito na [Endereço (1)]. Decorrido cerca de 3 a 4 meses, a vítima ficou grávida e, em consequência, ela e o arguido começaram a discutir sobre o casamento, bem como fizeram preparação para o nascimento do bebé.
  III. No período do planeamento do casamento, o arguido, por ser viciado em jogo, perdeu o dinheiro destinado ao pagamento do jantar do casamento e um apartamento que lhe foi oferecido pela sua mãe D (identificada em fls. 56 e 183 dos autos). Enfim, o arguido e a vítima não se casaram, mantendo-se em relação de coabitação. Em 6 de Abril de 2008, a vítima gerou um bebé [C ].
  IV. Durante o período de coabitação, o arguido pediu emprestado mais de MOP 100.000,00 à vítima, sob vários pretextos, tais como, pretendia continuar o planeamento do casamento e tinha de tratar a doença grave da sua mãe. De facto, o arguido apostou no jogo todo o dinheiro pedido emprestado.
  V. Dado que o arguido andou sempre a mentir a vítima, os dois entraram frequentemente em discussões e houve duas vezes a pretensão de se separar. A primeira vez aconteceu em pouco depois do início do “namoro”; e a segunda vez teve lugar no princípio do ano de 2009 quando o arguido pediu dinheiro à vítima para apostar no jogo, consequentemente, eles entraram em discussões severas e, enfim, a vítima acabou por voltar a residir em casa da sua mãe. Depois, o arguido tentou várias vezes recuperar a relação com a vítima, mas esta não o ligou. Finalmente, recuperou-se a relação entre o arguido e a vítima e os dois voltaram a viver juntos, uma vez que a mãe do arguido, D, dirigiu-se ao local de trabalho da vítima ("X" no [Hotel (1)] do Resort na Taipa) e, foi ali, andou a chorar e persuadi-la.
  VI. Em 6 de Maio de 2009, por volta das 05H00, o arguido e a vítima, depois de ter ingerido álcool e divertido no “Karaoke”, sito no NAPE em Macau, foram de Taxi para o quarto arrendado pelos mesmos, sito na [Endereço (1)]. Contudo, eles saíram do carro no entroncamento entre Edf. Kam Hoi San e Edf. Hoi Pan Garden, na intersecção em que está fixado o semáforo.
  VII. Em seguida, o arguido e a vítima andaram a pé para casa, passando por um beco, sito na parte lateral do “Estabelecimento de Comida” no Edf. Kam Hoi San.
  VIII. No caminho, o arguido e a vítima entraram em discussões por coisas insignificantes da vida quotidiana. Na altura, o arguido estava muito irritado e deu com força uma palmada na cabeça da vítima.
  IX. A vítima doeu, virou as costas e preparou para abandonar o local em apreço.
  X. Para impedir a fuga da vítima, o arguido agarrou com força nas mãos e no ombro da mesma e abraçou-a a passar pela porta secundária do “Jardim de Infância”, puxando-a à força para encaminhar para frente e, em contrapartida, a vítima tentou fugir. Daí, os dois andaram a puxar um ao outro e, enfim, o arguido conseguiu impedir a fuga da vítima.
  XI. Em seguida, o arguido empurrou à força a vítima até que ficasse encostada numa parede do local em causa e, depois, o arguido ficou várias vezes ajoelhado. O arguido voltou a puxar à força a vítima para encaminhar para frente.
  XII. No decurso, o arguido tomou-se subitamente bastante agitado e começou a perder o seu auto-controlo, dando com força um soco na cabeça da vítima e causando-lhe queda e ferimento, além disso, o arguido não parou de pisar e dar pontapés fortes na cabeça, no pescoço, na face e em diversas partes do corpo da vítima, o que durou mais de um minuto.
  XIII. O arguido causou directamente hemorragia quantiosa na boca, no nariz e em diversas partes da cabeça da vítima, consequentemente, esta entrou rapidamente em coma.
  XIV. Depois de a vítima ter desmaiado e caído no chão, o arguido meteu a mão na mala de mão da vítima e retirou dela um telemóvel (de marca SONY ERICSSON, modelo W350i, n.° XXXXXXXX-XXXXXX-X) (vide auto de busca e apreensão de fls, 186 e fotografias de fls, 188 dos autos) e MOP1.500,00, e, em seguida, abandonou logo o local em causa.
  XV. Posteriormente, o arguido deslocou-se ao apartamento da sua mãe D, sito em Macau, em [Endereço (2)], em vez de regressar ao apartamento pelo mesmo arrendado. O arguido contou à sua mãe sobre as discussões surgidas com a vítima e, depois, foi descansar no quarto da sua mãe.
  XVI. No mesmo dia, por volta das 06H00, passava no local da ocorrência de factos uma residente chamada E (identificada em fls, 52 dos autos) que descobriu que a vítima se encontrava em estado de coma e deitada no chão, havia nas proximidades da sua cabeça uma mancha grande de sangue, bem como no seu nariz e boca estavam a deitar sangue, por isso, ela resolveu por comunicar telefonicamente à Polícia sobre o assunto. Pouco depois, chegaram os guardas da Polícia e a ambulância do Corpo de Bombeiros, pelos quais foi transportada a vítima ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário para ser socorrida.
  XVII. Por ser infrutífero o tratamento, a vítima morreu em 8 de Maio de 2009, por volta das 11H35. O relatório médico do exame directo e o relatório de autópsia do cadáver, constantes de fls, 12 e 304 a 310 dos autos, descreveram os ferimentos da vítima e, para os devidos efeitos jurídicos, o seu teor se dá aqui por integralmente reproduzido, constituindo como parte integrante da acusação.
  XVIII. Segundo o parecer conclusivo do médico legal, a vítima B morreu pela grave lesão no crânio-cerebral, cujos ferimentos fatais são fractura do osso occipital, contusão cerebral e hemorragia subaracnóide, provocados pelo impacto na parte traseira do lado esquerdo da cabeça da vítima. Além do ataque feito à cabeça, a vítima também sofreu de várias contusões na parte superior do tórax e do dorso, bem como no membro superior esquerdo, provocando a fractura das 1ª e 2ª vértebras torácicas, hematoma mediastinal direita e contusão no lobo superior direito, sendo esses os ferimentos resultantes do impacto violento de carácter contundente. Atendendo à equimose em forma de barra regular provocada pela contusão na face e tendo em conta que os ferimentos estão concentrados nas partes frontal e traseira da cabeça, do tórax e do dorso, conclui-se que a vítima foi, por várias vezes, pisada e atacada quando estava deitada (os ferimentos costumam ser encontrados em forma espalhada quando a vítima for ferida em outras partes do corpo ou quando se encontrar em fuga). Há várias “feridas defensivas” no antebraço esquerdo da vítima, daí, revela-se que a vítima estava consciente e tinha consciência de auto-defesa aquando foi atacada. Pelo exposto, a vítima morreu de homicídio.
  XIX. O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente o acto supramencionado.
  XX. O arguido começou por bater na cabeça da vítima, empurrou-a no chão e, depois, agrediu-a, ininterrupta e fortemente, em diversas partes do corpo com socos e pontapés.
  XXI. O arguido tinha perfeito conhecimento de que os empurrões e puxões, assim como a força e o tempo dedicados à agressão eram suficientes para causarem lesões graves ao corpo da vítima, e, até, podia provocar-lhe perigo de tirar a vida, contudo, o arguido aceitou a ocorrência do risco em apreço.
  XXII. O arguido sabia perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei.
  Antes de ser preso, o arguido exercia funções de bate-fichas, auferindo a remuneração mensal de cerca de MOP10.000,00 a MOP20.000,00.
  O arguido é solteiro; não tem ninguém a seu cargo.
  O arguido confessou parcialmente os factos; não é delinquente primário.
  Em 1 de Fevereiro de 2007, o arguido foi condenado, no Processo Comum Colectivo n.° CR1-05-0178-PCC, pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo art.° 197°, n.° 1 do Código Penal, na pena de prisão de 7 meses; pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo art.° 197°, n.° 1 do Código Penal, na pena de prisão de 7 meses; e, pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.° 199°, n.° 1 do Código Penal, na pena de prisão de 7 meses, e, em cúmulo jurídico com a pena aplicada no processo n.° CR1-04-0140-PCS, foi, enfim, condenado numa pena única de 2 anos de prisão, com suspensão da execução da pena por 3 anos, sob condição de efectuar o pagamento de indemnização dentro de 3 meses. Os factos criminosos daquela causa foram ocorridos em 22 de Março de 2001, 9 de Agosto de 2001 e 23 de Maio de 2004. A referida decisão transitou em julgado em 9 de Outubro de 2009.
  Em 2 de Julho de 2009, o arguido foi condenado, no Processo Comum Colectivo n.º CR2-07-0209-PCC, pela prática de dois crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo art.° 199°, n.° 1 do Código Penal, na pena de prisão de 9 meses para cada crime, e, em cúmulo jurídico das penas aplicadas nos dois crimes, foi condenado na pena de 1 ano de prisão efectiva. Os factos criminosos daquela causa foram ocorridos em 21 de Setembro de 2004 e 23 Janeiro de 2006. A referida decisão transitou em julgado em 5 de Outubro de 2009. O arguido completou o cumprimento da pena em 26 de Novembro de 2010; (cfr., fls. 796 a 804).
  
  III - O Direito
  1. A questão a resolver
  As questões a apreciar são as de saber se o Acórdão recorrido:
  - Violou o disposto no artigo 355.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ao considerar que o Acórdão de 1.ª instância não enferma de falta de fundamentação de facto e de direito, nem omitiu a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal;
  - Violou o disposto no artigo 128.º do Código Penal ao considerar integrados todos os elementos do crime de homicídio;
  - Errou ao considerar provado que o arguido agiu com dolo;
  - Violou o disposto no artigo 65.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, ao não ter indicado o tipo ou grau de dolo do arguido;
  - Aplicou uma pena demasiado pesada pelo crime de homicídio, devendo antes ter aplicado uma pena não superior a 10 anos de prisão.
  
  2. Falta de fundamentação de facto e de direito
  A sentença de 1.ª instância não incorre na nulidade prevista na alínea a) do artigo 360.º do Código de Processo Penal.
  Dispõe este artigo e o n.º 2 do artigo 355.º, para o qual remete (já que o recorrente não imputa violação relacionada com o disposto no n.º 3 do artigo 355.º):
“Artigo 360.º
(Nulidade da sentença)
  É nula a sentença:
  a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 355.º; ou
  b) ...”
  
“Artigo 355.º
(Requisitos da sentença)
  1. ...
  2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
  3...”
  
  Ora, a sentença contém a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
  É certo que não se faz uma análise crítica das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Mas a lei também não a exige, como temos decidido (entre outros, os Acórdãos de 18 de Julho de 2001, 9 de Outubro de 2002 e 30 de Novembro de 2007, respectivamente, nos Processos n. os9/2001, 10/2002 e 52/2007).
  Também é certo que a fundamentação jurídica não é exuberante, mas essa eventual debilidade da sentença não é fulminada com a nulidade, podendo consistir em violação do artigo 356.º do Código de Processo Penal, no que se refere à falta de fundamentação quanto à escolha e à medida da sanção aplicada. Mas esta violação não contém uma sanção autónoma. É que o recorrente sempre poderá impugnar directamente a escolha e a medida da sanção aplicada, o que, aliás, fez.
No Acórdão de 23 de Setembro de 2009, no Processo n.º 25/2009, citando LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS1, lembrámos que estes Autores entendem que a falta dos elementos previstos no artigo 356.º, n.º 1, constitui mera irregularidade2.
Tal irregularidade estaria sujeita ao regime do artigo 361.º, n.º 1, alínea b) – por se tratar de erro cuja eliminação não importaria modificação essencial da sentença – e do artigo 361.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, consistindo em correcção da sentença pelo TSI.
E tal correcção não teve lugar porque o Acórdão recorrido considerou não ter havido insuficiente fundamentação.
  Improcedem as questões relacionadas com a falta ou deficiência da fundamentação de facto e de direito.
  
  3. Crimes de homicídio e de ofensa grave à integridade física originando a morte
  O arguido foi condenado pela prática, como autor, de um crime de homicídio voluntário consumado, previsto e punível pelo artigo 128.º do Código Penal.
  Neste recurso, o arguido considera que, quanto muito, só poderia ter sido condenado pela prática, como autor, de um crime de ofensa grave à integridade física originando a morte, previsto e punível pelos artigos 138.º, alínea d) e 139.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.
  Vejamos o que dispõem aquelas normas:
Artigo 128.º
(Homicídio)
Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 10 a 20 anos.

Artigo 138.º
(Ofensa grave à integridade física)
Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a
a) privá-la de importante órgão ou membro, ou desfigurá-la grave e permanentemente,
b) tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem,
c) provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável, ou
d) provocar-lhe perigo para a vida, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.

Artigo 139.º
(Agravação pelo resultado)
1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa e vier a produzir-lhe a morte é punido:
a) Com pena de prisão de 2 a 8 anos, no caso do artigo 137.º;
b) Com pena de prisão de 5 a 15 anos, no caso do artigo anterior.
2. Quem praticar a ofensa prevista no artigo 137.º e vier a produzir a ofensa prevista no artigo anterior é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
  
  Estão em causa três tipos de crime.
  O crime de homicídio, previsto e punível pelo artigo 128.º do Código Penal, é um crime doloso. Nele, o agente provoca a morte de outra pessoa, agindo intencionalmente com vista a provocar o resultado morte.
  Como se expressa JORGE FIGUEIREDO DIAS3, “O tipo subjectivo de ilícito do homicídio previsto no art. 131.º4 exige o dolo em qualquer das suas formas contempladas no art. 14.º: directo, necessário ou eventual. Trata-se por isso de um tipo relativamente ao qual se verifica aquilo que a doutrina chama de total congruência entre a sua parte objectiva e a parte subjectiva. Importa todavia sublinhar – por ser este um campo em que situações desta ordem são frequentes – que, para se verificar dolo eventual relativamente a condutas objectivamente e mesmo extremamente perigosas, não basta que o agente preveja o perigo de resultado e se conforme com ele (recorde-se, a título de exemplo, o que muito provavelmente se terá passado no caso do very-light no estádio do Jamor), tornando-se antes sempre necessário que aquele preveja e se conforme com o próprio resultado”.
  O crime de ofensa grave à integridade física, previsto e punível pelo artigo 138.º do Código Penal, é igualmente um crime doloso. O agente quer ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, tem intenção de provocar ofensa no corpo ou na saúde de outrem.
  Mas trata-se de um crime de ofensa à integridade física agravado por uma das circunstâncias previstas numa das alíneas a) a d) (o crime de ofensa simples à integridade física está previsto no artigo 137.ºdo Código Penal).
Pode estar em causa uma ofensa corporal ou na saúde que prive uma pessoa de importante órgão ou membro, ou que a desfigure grave e permanentemente [alínea a)], que lhe tire ou afecte, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem[alínea b)], que lhe provoque doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável[alínea c)], ou que lhe provoque perigo para a vida [alínea d)].
Em todas as situações previstas, “o dolo tem que abranger não só o delito fundamental, como as consequências que o qualificam. O dolo eventual é suficiente.”5Isto é, a intenção tem de abranger não só a ofensa, como as circunstâncias previstas numa das quatro alíneas.
Tratando-se de ofensa corporal ou na saúde, que provoque perigo para a vida de outra pessoa, é essencial provar-se a intenção de causar ofensa ao corpo ou saúde de outrem, como também querer provocar-lhe perigo para a vida ou, pelo menos, representar este perigo como consequência possível da conduta e actuando conformando-se com ele.
Como refere PAULA RIBEIRO DE FARIA6, “Relativamente à al. d), exige-se o conhecimento das circunstâncias que tornam o comportamento perigoso sob o ponto de vista do bem jurídico protegido (neste caso a vida), não se tornando necessária a vontade de lesão efectiva do mesmo bem jurídico”.
  Os crimes do artigo 139.º constituem ilícitos preterintencionais, em que o resultado excede a intenção do agente7. Há dolo quanto à ofensa ao corpo ou à saúde de outrem, mas existe mera negligência quanto ao resultado morte, sendo que no caso da alínea b) está em causa uma das ofensas graves previstas no artigo anterior.
  Ou seja, no crime previsto e punível pelos artigos 138.º, alínea d) e 139.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, prevê-se a ofensa à integridade física de outra pessoa, com intenção não só quanto à ofensa, mas também em se provocar perigo para a vida, de que resultou a morte por negligência do agente.
  A diferença fundamental entre os elementos constitutivos dos dois tipos criminais, o do artigo 128.º do Código Penal e o dos artigos 138.º, alínea d) e 139.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, reside em que no crime de homicídio o agente tem intenção de provocar a morte de outrem e obtém esse resultado, enquanto que no crime de ofensa grave à integridade física originando a morte, o agente tem intenção de agredir o corpo ou a saúde da vítima, sabendo que coloca em perigo a sua vida, mas não tem intenção de lhe provocar a morte; no entanto, a morte acaba por ocorrer por negligência do agente.
No primeiro caso, a penalidade que cabe ao crime é de pena de prisão de 10 a 20 anos, enquanto no segundo é de pena de prisão de 5 a 15 anos.
  
  4. O crime praticado pelo arguido face aos factos provados
  Convém historiar brevemente as vicissitudes do processo.
  Primitivamente, pelos factos dos autos, o Ministério Público tinha acusado o arguido pelo crime previsto e punível pelos artigos 138.º, alínea d) e 139.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.
  Submetido a julgamento, o Tribunal Colectivo considerou que os factos apontavam para a prática de um crime de homicídio, previsto e punível pelo artigo 128.º do Código Penal, pelo que determinou que o Ministério acusasse pela prática deste crime.
  Regressando os autos ao Ministério Público, deduziu nova acusação que, se bem que incrimine o arguido pelo crime de homicídio (previsto e punível pelo artigo 128.º do Código Penal), na verdade, articula factos que apontam, não para o crime de homicídio, mas para o mesmo crime preterintencional, de crime de ofensa corporal, com perigo para a vida, de que resultou a morte (crime previsto e punível pelos artigos 138.º, alínea d) e 139.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal). Afinal o mesmo crime da acusação primitiva.
  Está assim redigido o artigo XXI da 2.ª acusação:
  “XXI.
  O arguido tinha perfeito conhecimento de que os empurrões e puxões, assim como a força e o tempo dedicados à agressão eram suficientes para causarem lesões graves ao corpo da vítima, e, até, podia provocar-lhe perigo de tirar a vida, contudo, o arguido aceitou a ocorrência do risco em apreço”.
  
  Diz-se claramente que o arguido, com a sua agressão, percebeu perfeitamente que podia provocar perigo para a vida da vítima, mas mesmo assim permitiu a ocorrência do risco em apreço. Nunca se diz que teve intenção de causar a morte.
  O Tribunal Colectivo limitou-se a dar como provados os factos da acusação, e a considerar cometido o crime de homicídio, sem atentar que os factos não integram os elementos deste crime (e sem utilizar os poderes previstos no artigo 339.º do Código de Processo Penal, alterando os factos da acusação para permitir que o arguido fosse condenado pelo crime de homicídio; isto no caso de os factos apontarem para a intenção de matar, como terá acontecido no 1.º julgamento).
  No crime de homicídio, como refere JORGE FIGUEIREDO DIAS, que atrás citámos, não basta que o agente preveja o perigo de resultado (a morte) e se conforme com ele, tornando-se antes sempre necessário que aquele preveja e se conforme com o próprio resultado.
  Os factos integram, portanto, a prática pelo arguido de um crime previsto e punível pelos artigos 138.º, alínea d) e 139.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, por ter provocado intencionalmente agressões com perigo para a vida da vítima, conhecendo este risco e querendo-o, das quais acabou por resultar a morte da vítima por negligência do arguido.
  Tendo o arguido sido punido pelo crime de homicídio, incorreu-se em erro de direito.
  
  5. Medida concreta da pena e cúmulo jurídico
  O dolo do arguido foi muito intenso, perpetrando uma agressão brutal numa jovem com quem vivia e de quem tinha um filho. Deixou a vítima a esvair-se em sangue, a uma hora (5 horas) em que dificilmente seria socorrida, o que só acabou por acontecer uma hora mais tarde.
  O arguido tem um expressivo passado criminal, com três condenações judiciais pela prática de seis crimes de furto, abuso de confiança e denúncia caluniosa.
  Confessou parcialmente os factos, mas sem grande utilidade, já que câmaras filmaram a agressão.
  O facto de ter ingerido álcool não tem revelo atenuativo.
  A penalidade que cabe ao crime é a de pena de prisão de 5 a 15 anos, pelo que se julga equilibrada uma pena de 10 (dez) anos de prisão.
  Há que fazer cúmulo jurídico com as penas do Processo CR1-05-01-0178-PCC (3 penas de 7 meses de prisão pela prática de dois crime de furto, previstos e puníveis pelo artigo 197.º, n.º 1, do Código Penal e de um crime de abuso de confiança, previsto e punível pelo artigo 199.º, n.º 1, do Código Penal) e do Processo CR1-04-01-0140-PCS (pena de prisão de 7 meses, pela prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punível pelo artigo 329.º, n.º 1, do Código Penal).
  Considera-se ajustada uma pena única de 12 (doze) anos de prisão.
  
  IV – Decisão
  Face ao expendido, concedem parcial provimento ao recurso, revogando o Acórdão recorrido e condenando o arguido pela prática, como autor de um crime consumado, previsto e punível pelos artigos 138.º, alínea d) e 139.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 10 (dez) anos de prisão.
  Em cúmulo jurídico, com as penas dos Processos CR1-05-01-0178-PCC e CR1-04-01-0140-PCS, vai condenado na pena única de 12 (doze) anos de prisão.
  Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 2 UC.
  
  Macau, 6 de Dezembro de 2011.
  
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai –
Lai Kin Hong (Vencido nos termos de declaração de voto que se junta)


Processo nº 58/2011
Declaração de voto

Vencido apenas quanto à alteração da qualificação jurídica operada no Acórdão antecedente, isto é, do homicídio para o crime preterintencional de ofensa grave à integridade física, com agravação pelo resultado, pois a simples circunstância de ficar provado que o agente previu como possível o perigo da vida da vítima não quer dizer, por um lado, ficar provado que o agente não previu como possível a morte da vítima e se conformou como a sua realização, e não impede por outro lado que o Tribunal possa tirar ilação judicial dos restantes factos provados para afirmar a existência do dolo por parte do agente, pois in casu globalmente analisada a matéria de facto provada, é bem evidente que, pela intensidade, grau de violência e duração das agressões do agente, pelas partes atingidas no corpo da vítima e pela circunstância de o agente ter abandonado a vítima, após as violentas agressões, num lugar tão ermo na madrugada, ao agente do crime, ora recorrente, não pode deixar de ser imputada a morte, a título de dolo, pelo menos, eventual.

De resto, mas à excepção da pena ora atenuada, subscrevo o Acórdão.

RAEM, 06DEZ2011

O Juiz Adjunto
Lai Kin Hong

1 LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código de Processo Penal de Macau, 1997, p. 753.
2 LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código..., p. 753. No mesmo sentido, PAULA MARQUES CARVALHO, Manual Prático de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 2007, p. 365.
3 JORGE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricence do Código Penal, Coimbra Editora, Parte Especial, Tomo I, 1999, p. 16 E 17.
4 Refere-se ao Código português.
5 PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário Conimbricence do Código Penal, Coimbra Editora, Parte Especial, Tomo I, 1999, p. 234.
6 PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário..., Tomo I, p. 234.
7 MAIA GONÇALVES, Código Penal Português Anotado e Comentado, Coimbra, Almedina, 17.ª edição, 2005, p. 531.
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