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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 23 de Agosto de 2010, que negou provimento a recurso hierárquico interposto do despacho do Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, de 20 de Agosto de 2009, que aplicou ao recorrente a medida de interdição de entrada na RAEM, pelo período de 3 anos, por ter sido detectado a trabalhar ilegalmente em Macau.
Por acórdão de 17 de Novembro de 2011, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) concedeu provimento ao recurso.
Inconformado, interpõe o Secretário para a Segurança recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
  - O acto administrativo anulado é de natureza marcadamente discricionária (art. 12.º da Lei n.º 6/2004), designadamente quanto à fixação do período de interdição de entrada que configura inquestionavelmente o exercício de poderes discricionários.
  - A determinação do “quantum” da medida de interdição de entrada decorre de uma valoração própria, em resultado de juízo de prognose e de proporcionalidade, cuja realização é exclusiva do exercício da função administrativa e alheia, portanto, à esfera de competência dos Tribunais, que não controla o mérito da decisão discricionária da Administração.
  - A entidade ora recorrente visa, com a aplicação da medida de interdição de entrada - medida administrativa de natureza securitário-preventiva - prevenir situações de trabalho ilegal (isoladas, frequentes ou em massa) com a finalidade de, nos termos da lei e no âmbito das suas atribuições, assegurar a defesa da legalidade, da ordem pública e a protecção dos interesses laborais da sociedade da Região Administrativa Especial de Macau.
  - Não é, de todo, aceitável o entendimento vertido no Acórdão recorrido, uma vez que as medidas aplicadas pela DSAL e as medidas aplicadas pela entidade recorrente, são distintas quanto à sua natureza e aos fins a alcançar e inexistindo, entre elas, qualquer relação de dependência ou complementaridade pelo que, não é legítimo fazer depender a aplicação de uma de quaisquer aspectos presentes na outra,
  - O acto praticado no uso do poder discricionário, vertido no citado artigo 12.º da Lei n.º 6/2004 observa as regras de competência do órgão, o fim visado com a sua concessão, as regras procedimentais, o dever de fundamentação e os princípios da legalidade, igualdade, proporcionalidade, justiça e imparcialidade, pelo que é apenas sindicável em caso de erro grosseiro ou de injustiça manifesta.
  - O exercício de actividade laboral, sem a necessária autorização emitida pela entidade competente, é considerado facto grave por se enquadrar num vasto problema de natureza social que, quando não devidamente controlado, pode potenciar uma ameaça à ordem pública da RAEM; e, em face do perigo que representa para a ordem pública, também é significativamente grave e censurável.
  - A invocação pelo interessado, de a sociedade onde trabalha em Hong Kong e a sociedade de Macau pertencerem ao mesmo grupo económico, de ter casado em Hong Kong com uma residente permanente da RAEM, erradamente realçados pelo Acórdão recorrido, respeitam apenas a interesses individuais, sem qualquer cunho de excepcionalidade que, seguramente, nos termos da lei não devem ser atendidos, quando confrontados com o interesse público e fins colectivos visados (salvaguarda da ordem pública e estabilidade social e laboral da RAEM) na aplicação da medida em apreço, o que configura erro de julgamento dos pressupostos de facto.
  - As “visitas conjugais” não têm necessariamente que ter lugar apenas em Macau, como erradamente defende o Acórdão, pois muito naturalmente, podem ser mantidas, a escassos 60 Km daqui, em Hong Kong.
  - No que aos interesses individuais, acima referidos, respeita, jamais podem ser considerados aptos a servir de fundamento à decisão de anulação do despacho recorrido, porque haverão sempre de ceder perante o interesse público em presença.
  - Por conseguinte, não existe qualquer desproporcionalidade da decisão de aplicar a medida de interdição de entrada pelo período de três anos com vista à salvaguarda da ordem pública e estabilidade social e laboral da RAEM, a um não residente de Macau que só aqui tem permanecido como turista sem que nunca estivesse ou esteja autorizado a exercer qualquer actividade profissional.
  - O critério de gradação do período de interdição de entrada é exclusivo da entidade administrativa, que o exerce com base numa larga margem de quantificação decorrente da sua forte natureza discricionária que poderia até traduzir-se num período de 5 ou 6 ou mais anos (conforme as necessidades e as políticas vigentes no momento da prática do acto) sem que pudesse ser qualificado de totalmente desrazoável.
  - Neste sentido, não é, absolutamente, legítimo ao Acórdão recorrido concluir pela total desrazoabilidade da opção da entidade recorrente que aplicou o período de 3 anos de interdição de entrada, e defender, expressamente, a aplicação de um menor período.
  - Pelo que, o Acórdão recorrido viola o princípio da separação de poderes consagrado no artigo 2.º da Lei Básica da RAEM, o que faz por força de uma errada interpretação e aplicação do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 5.º, n.º 2 “in fine” do CPA e o artigo 21.º, n.º 1 alínea d) do Código de Processo Administrativo Contencioso, sendo por isso nulo.

O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer em que se pronuncia pela procedência do recurso.

II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
   1. Em 22 de Julho de 2009 foi detectado que o recorrente tinha trabalhado ilegalmente em Macau, razão por que a D.S.A.L lhe aplicou a multa e a sanção acessória de inibição de trabalho na R.A.E.M. pelo período de 2 anos.
   2. O recorrente pagou a multa.
   3. O Chefe do Serviço de Migração do C.P.S.P. proferiu o despacho em 23 de Julho de 2009 que revogou a autorização de permanência do recorrente na R.A.E.M., ordenando-lhe o abandono desta Região antes do dia 24 daquele mês.
   4. Da referida decisão foi notificada o recorrente naquele dia.
   5. Em 20 de Agosto de 2009, o Comandante do C.P.S.P. decidiu, nos termos do art.º 12º, n.º 2, al. 2) da Lei n.º 6/2004, aplicar ao recorrente a medida de interdição de entrada na R.A.E.M. pelo período de 3 anos, por motivo de que em 22 de Julho de 2009 foi detectado que o recorrente tinha trabalhado ilegalmente em Macau, o que causa prejuízo grave à vida dos cidadãos e à segurança social.
   6. Da aludida decisão foi notificada o mandatário do recorrente através do ofício de 9 de Março de 2010.
   7. Em 6 de Abril de 2010, o recorrente interpôs recurso hierárquico necessário ao Secretário para a Segurança contra as duas decisões supra mencionadas.
   8. Em 23 de Agosto de 2010, o Secretário para a Segurança rejeitou o recurso interposto pelo recorrente, mantendo-se as respectivas decisões.
   9. Em 12 de Junho de 2009, o recorrente contraiu casamento com B em Hong Kong.
   10. A esposa do recorrente, B , é residente permanente da R.A.E.M. e habita nesta Região.

III – O Direito
1. A questão a apreciar
Trata-se de saber se o Acórdão recorrido violou o princípio da separação de poderes e se errou na interpretação e aplicação do princípio da proporcionalidade.

2. Revogação de autorização de permanência. Interdição de entrada na RAEM a quem seja revogada a autorização de permanência
O recorrente não é residente de Macau e permanecia em Macau ao abrigo de visto de entrada e permanência como turista. Nesta situação foi detectado a trabalhar, pelo que a sua autorização de permanência foi revogada, com este fundamento, ao abrigo do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea 1) da Lei n.º 6/2004:
“1. A autorização de permanência na RAEM pode ser revogada, sem prejuízo da responsabilidade criminal e das demais sanções previstas na lei, por despacho do Chefe do Executivo, quando a pessoa não residente:
1) Trabalhar na RAEM sem estar autorizada para tal;”
E, com fundamento no artigo 12.º, n.º 2, alínea 2), da Lei n.º 6/2004, o Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública aplicou ao recorrente a medida de interdição de entrada na RAEM, pelo período de 3 anos.
Dispõe o artigo 12.º da mesma Lei:
“Artigo 12. º
Interdição de entrada
1. As pessoas a quem seja decretada a expulsão ficam, depois de esta ser concretizada, interditas de entrar na RAEM por um período a fixar na ordem de expulsão.
2. Pode igualmente ser decretada a interdição de entrada:
1) ...
2) Às pessoas a quem seja revogada a autorização de permanência nos termos do n.º 1 do artigo anterior.
3. ...
4. O período de interdição de entrada deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam”.

Temos, assim, que a decisão de decretar a interdição de entrada às pessoas a quem seja revogada a autorização de permanência é discricionária, como também é discricionária a fixação do período de interdição de entrada, já que os conceitos a que a lei subordina o mesmo período concedem uma margem de livre apreciação à Administração (deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam).
O Acórdão recorrido entendeu que o acto administrativo violou o princípio da proporcionalidade, por o grau de ilicitude e gravidade não serem muito elevados, a esposa do recorrente habitar em Macau, sendo residente permanente da RAEM e ele ter sido destacado para trabalhar em Macau por uma empresa do grupo da sua entidade patronal em Hong Kong.
Vejamos. No Acórdão de 3 de Maio de 2000, no Processo n.º 9/2000, dissemos o seguinte a propósito do princípio da proporcionalidade, da sua aplicação pela Administração e pela sindicância da violação deste princípio por parte dos tribunais:
   “De acordo com os arts. 5.º e 6.º do CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 35/94/M, e vigente à data da prática do acto impugnado, no exercício da sua actividade, a Administração deve observar os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.1
   Estes são, pois, limites internos do poder discricionário, factores que condicionam a própria escolha do decisor entre as várias atitudes possíveis2.
   Entre tais princípios, os que, à partida, podem estar em causa no nosso caso serão os da proporcionalidade e da justiça. O nosso exame limitar-se-á a estes.
   O CPA prevê o princípio da proporcionalidade no seu art. 5.º, n.º 2, estabelecendo que «as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar».
   Não cabe aqui fazer a história da génese do princípio ou a sua fundamentação filosófica.
   Como refere VITALINO CANAS3 o princípio da proporcionalidade só poderá aplicar-se na apreciação de comportamentos em que o autor goze de uma certa margem de escolha.
   A doutrina tem dissecado o princípio em três subprincípios, da idoneidade, necessidade e proporcionalidade, em sentido estrito, ou de equilíbrio.
   A avaliação da idoneidade de uma medida é meramente empírica, podendo sintetizar-se na seguinte pergunta: a medida em causa é capaz de conduzir ao objectivo que se visa?
   Aceitando-se que uma medida é idónea, passa a verificar-se se é necessária.
   O centro das preocupações desloca-se para a ideia de comparação. Enquanto na máxima da idoneidade se procurava a certificação de uma relação causal entre um acto de um certo tipo e um resultado que se pretende atingir, na máxima da necessidade a operação central é a comparação entre uma medida idónea e outras medidas também idóneas. O objectivo da comparação será a escolha da medida menos lesiva.
   «A aferição da proporcionalidade, em sentido estrito, põe em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto restritivo ou limitativo, e os bens, interesses ou valores sacrificados por esse acto. Pretende-se saber, à luz de parâmetros materiais ou axiológicos, se o sacrifício é aceitável, tolerável. Para alguns, esta operação assemelha-se externamente à análise económica dos custos/benefícios de uma decisão. Se o custo (leia-se o sacrifício de certos bens, interesses ou valores) está numa proporção aceitável com o benefício (leia-se a satisfação de certos bens, interesses ou valores) então a medida é proporcional em sentido estrito»4 5.
   O CPA determina no art. 6.º que«no exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação».

   13. Não se têm suscitado dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência, que os tribunais podem fiscalizar o respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade. A dúvida está em saber em que medida deverão os tribunais intervir nesta matéria.
   DAVID DUARTE6, referindo-se à proporcionalidade em sentido estrito, «que engloba a técnica do erro manifesto de apreciação, técnica jurisdicional francesa que compreende, em termos avaliativos, para além do erro na qualificação dos factos, a utilização de um critério decisório proporcional que se revela numa decisão desequilibrada entre o contexto e a finalidade. O erro manifesto de apreciação, na vertente de controlo da adequação da decisão aos factos … é, como meio de controlo do conteúdo da decisão, um dos degraus mais elevados da intervenção do juiz na discricionariedade administrativa. E, por isso, só é utilizável na medida da evidência comum da desproporção7» (o sublinhado é nosso).
   Nas mesmas águas navega MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS GARCIA8 defendendo que«em face da fluidez dos princípios (da proporcionalidade, da igualdade, da justiça), só são justiciáveis as decisões que, de um modo intolerável, os violem9» (o sublinhado é nosso).
O novo CPAC, no seu art. 21.º, n.º 1, alínea d), embora não aplicável à situação dos autos10, a respeito dos fundamentos do recurso contencioso refere-se ao «erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários»”

3. O caso dos autos
Ao Tribunal não compete dizer se o período de interdição de entrada fixado ao recorrente foi ou não proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam, se tal período foi o que o Tribunal teria aplicado se a lei lhe cometesse tal atribuição. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é outro, é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários. E não nos parece que assim tenha sido.
O recurso merece, pois, provimento.

IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso jurisdicional, revogam o Acórdão recorrido e negam provimento ao recurso contencioso.
Custas pelo recorrido, com taxas de justiça, no TSI e no TUI, que se fixam, respectivamente, em 7 e 4 UC.
Macau, 9 de Maio de 2012.
  Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho

1 Estes princípios da actuação da Administração constam dos artigos 5.º e 7.º do actual Código do Procedimento Administrativo, que se aplica ao caso dos autos.
2 Sobre esta matéria, M. ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, vol. I, 1980, Livraria Almedina, Lisboa, p. 255 e segs.
3 VITALINO CANAS, Princípio da Proporcionalidade, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol VI, Lisboa, 1994, p. 616, que se seguirá de perto na exposição subsequente.
4 VITALINO CANAS, ob. cit., p. 628.
5 Sobre o emprego no princípio da proporcionalidade da contabilização custos-benefícíos (ou vantagens) pelo Conselho de Estado francês, cfr. J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 75, que enumera, a p. 114 e segs. da mesma obra, os elementos do princípio em termos semelhantes aos traçados acima.
6 DAVID DUARTE, ob. cit., p. 323.
   7 O mesmo autor, ob. cit., p. 323, nota 205, a propósito da questão de saber qual a medida da desproporcionalidade que uma decisão deve ter para poder ser controlada pelo tribunal, cita uma decisão judicial britânica de 1945 (Associated Provincial Picture House Ltd. v. Wednesbury Corporation), que criou um standard aplicável à medida da intervenção judicial, estabelecendo que “if an authority`s decision was so unreasonable that no reasonable authority could ever have como to it, then the courts can interfere”.
   8 Ob. cit., p. 642.
   9 No mesmo sentido, M. ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., p. 256 e 257 e J.C. VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Livraria Almedina, Coimbra, 1991, p. 137.
   10 No caso dos autos é o Código aplicável.
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1
Processo n.º 13/2012