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  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
  I – Relatório
  A intentou acção declarativa com processo especial de divisão de coisa comum de um imóvel contra B.
  Após venda judicial do mencionado imóvel por carta fechada, foi admitido o comproprietário do imóvel (o autor) a exercer preferência na venda relativamente à oferta de B, a mais alta.
  Recorreu B do despacho que admitiu tal preferência na venda.
  O Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso.
  Inconformada, recorre novamente B para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a revogação do Acórdão recorrido.
  Para tal, formulou as seguintes conclusões úteis:
  - O acórdão recorrido teve uma errada interpretação quanto à aplicação jurídica do exercício de direito de preferência.
  - Independentemente das jurisprudências desta região ou de Portugal, quanto ao regime do exercício de direito de preferência, não sustentam o princípio de conflito de direito que seja aplicável à venda judicial de coisa comum contra o direito de ganho dos comproprietários.
  - Além disso, o acórdão recorrido não apreciou um dos factos indicados pela recorrente na sua motivação de recurso, em particular, se A dispunha efectivamente da intenção do direito de preferência, bem como qual o grau de posse que o mesmo tinha para com a coisa, tudo isso pode afectar a veracidade sobre o exercício de direito de preferência;
  - Pelo que o acórdão recorrido incorreu em errada interpretação e também em errada aplicação da lei, padecendo de grave vício, devendo ser revogado;
  - Por outro lado, também não apreciou as questões jurídicas alegadas pela recorrente nem se pronunciou sobre isso, assim sendo, devem os autos serem reenviados ou, cabe ao tribunal de hierarquia superior apreciar essa parte nos termos da lei.
  
  II – Os factos
  a) Os factos considerados provados pelo Tribunal de Segunda Instância, são os seguintes:
  Consta da acta de abertura e aceitação de propostas na venda dos bens comuns os seguintes termos:
  “Imóvel Vendido
  - Denominação: “XXX”, do XX.º andar X
  - Fim: Para habitação.
  - Situação: [Endereço (1)], [Endereço (2)].
  - Número de matriz: XXXXXX.
  - Número de descrição na Conservatória do Registo Predial: XXXXXX a fls. 39 do Livro X-XXXX.
  ***
  - Interpelados os preferentes notificados, porém, neste momento pelo autor A, declarou pretender exercer o direito de preferência na aquisição do prédio cuja venda foi ordenada nos presentes autos e pela quantia corresponde à proposta apresentada pela ré B, invocando, para o efeito, a respectiva qualidade de comproprietário do dito imóvel.
  - Dado palavra ao mandatário da ré foi dito que se opõe ao requerido pelo autor, uma vez que não é titular do direito de preferência. Apenas podendo exercer esse direito de preferência na venda de uma quota parte a 3ª. Pessoa.
  - Seguidamente, pela Juiz foi proferida o seguinte:
  Despacho
  -   - Notifique.>
  - Do despacho que antecede, foram os presentes notificados e dele disseram ficar cientes.
  - De seguida pelo mandatário da ré, declarou que não se conformando com o despacho ora proferido, interpôs Recurso Ordinário do mesmo.”
  b) É ainda relevante acrescentar o seguinte facto que resulta dos autos a fls. 77 e 78:
  Houve 9 propostas de compra do imóvel, sendo a de um dos comproprietários ( a ré) a mais elevada de todas. Então o outro comproprietário (o autor), que não ofereceu proposta na venda, pretendeu preferir, pelo que foi aberta licitação entre os dois, tendo o lance mais elevado pertencido à ré.
  
  III – O Direito
  1. A questão a resolver
  Está fundamentalmente em causa interpretar o disposto no artigo 1308.º, n.º 1, do Código Civil, para saber se na venda de imóvel, realizada judicialmente, na acção de divisão de coisa comum, tem preferência o comproprietário do mesmo imóvel.
  
  2. O preceito em causa
  Dispõe o mencionado artigo 1308.º, n.º 1, do Código Civil:
“O comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de venda, ou dação em cumprimento, a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes”.
  O Acórdão recorrido, de 27 de Outubro de 2011, no Processo n.º 467/2011 e outros dois do TSI, de 6 de Julho de 2006 e de 28 de Fevereiro de 2008, respectivamente, nos Processos n. os 125/2006 e 572/2006, embora todos com um voto de vencido, decidiram que o referido preceito se aplica à hipótese de venda, não de quota de imóvel, mas da totalidade do imóvel na acção de divisão de coisa comum, quando se entenda que o prédio não pode ser dividido em substância e quando não houve acordo entre os comproprietários na adjudicação a algum ou alguns dos consortes.
  Afigura-se-nos que a razão está com o vencido. Vejamos porquê.
  
  3. O estado da jurisprudência e da doutrina
  Ao contrário do que se poderia depreender de uma leitura apressada do Acórdão recorrido, não há propriamente uma divisão da jurisprudência portuguesa sobre a questão em apreço, a propósito de disposição semelhante do Código Civil de 1966, que o Código Civil de Macau manteve.
  Como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) português, de 17 de Dezembro de 19971:
“No início deste século2 ainda houve alguma jurisprudência que admitiu o direito de preferência na venda a terceiro da totalidade da coisa comum indivisível (2).
Mas, pelo menos a partir de 1916, estabeleceu-se forte corrente jurisprudencial no sentido de negar o direito de preferência em tal hipótese.
E por assento de 21 de Julho de 1931, este Tribunal decidiu:
O direito de preferência de que no acto da praça, com fundamento nos artigos 848.º, n.º 7, do Código de Processo Civil e 1566.º do Código Civil, podem usar os comproprietários é inadmissível quando se tratar de arrematação de todo o prédio comum, e não simplesmente da parte pertencente a outro consorte”.
  E depois, de dar conta de doutrina no mesmo sentido, de PINTO LOUREIRO3 e BAPTISTA LOPES4, o mesmo Aresto termina a resenha histórica mencionando um Acórdão do mesmo Alto Tribunal, de 4 de Novembro de 19935, em sentido contrário, desfasado, portanto, da corrente largamente maioritária no sentido de negar a preferência ao comproprietário na acção de divisão de coisa comum.
  Posteriormente, o Acórdão de 10 de Julho de 2008 6, do mesmo STJ, integrou-se, também, na corrente largamente maioritária exposta.
  
  4. Interpretação do artigo 1308.º, n.º 1, do Código Civil
  Como se sabe, a interpretação tem de partir da letra da lei. E ela refere-se a venda de quota de prédio e não de prédio na sua totalidade. Como se diz no Acórdão do STJ de 10 de Julho de 2008:
“A verdade é que, na letra da lei, não cabe senão a alienação de quotas; para se defender, por via de interpretação extensiva, que o preceito se aplica também à alienação da totalidade do bem, seria necessário demonstrar, recorrendo aos demais elementos de interpretação enunciados no artigo 9.º7, que ao utilizar o termo quota o legislador ficou aquém do que pretendia dizer”.
  Pois bem, como explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA8:
“São três os fins principais que justificam a concessão da preferência no caso especial da compropriedade: a) fomentar a propriedade plena, que facilita a exploração mais equilibrada e mais pacífica dos bens: b) não sendo possível alcançar a propriedade exclusiva, diminuir o número dos consortes; c) impedir o ingresso, na contitularidade do direito de pessoas com quem os consortes, por qualquer razão, o não queiram exercer”.
  Como se diz no mencionado Acórdão do STJ, de 17 de Dezembro de 1997, nenhuma destas justificações colhe no caso de venda judicial, em hasta pública, a que se proceda na acção de divisão de coisa comum da totalidade do prédio: neste caso obteve-se a propriedade plena, desaparece a contitularidade, deixa de haver possibilidade de conflitos entre uma pluralidade de comproprietários.
  É que o artigo 1308.º, n.º 1, não tem por finalidade defender a permanência do imóvel na propriedade de um dos anteriores proprietários.
E, como se diz no Acórdão do STJ de 17 de Dezembro de 1997, “a atribuição do direito de preferência ao comproprietário na venda do prédio por inteiro, em hasta pública, a que se proceda em acção de divisão de coisa comum, mostra-se incorrecta e inconveniente pelos prejuízos que é susceptível de causar aos outros comproprietários (em especial aos de menor poder económico e que, por isso, não estejam em condições de oferecer preço elevado).
Na verdade, não se reconhecendo o direito de preferência nesta hipótese, o comproprietário interessado na aquisição da totalidade do prédio terá que lançar na hasta pública, o que fará subir o preço até ao melhor em benefício de todos os demais comproprietários, mesmo daqueles que por razões económicas (ou por estas aliadas à pequenez das suas quotas) se encontrem de facto impossibilitados de oferecer o preço justo ou o melhor”.
  Com razão também se diz que, na hipótese do artigo 1308.º, n.º 1, o comproprietário é estranho à negociação que conduz à venda ou à dação em cumprimento e por isso se justifica o seu direito de preferência. Já na venda na acção de divisão de coisa comum todos os comproprietários podem concorrer à venda (artigo 951.º, n.º 2, do Código de Processo Civil) pelo que não teria justificação ainda poderem vir a exercer a preferência.
  Por fim, afastemos os argumentos do Acórdão recorrido em favor da sua posição.
  Diz-se no Acórdão que não se vê razão para que os comproprietários pudessem exercer a preferência em sede de conferência de interessados e não já na venda judicial.
  Ora, salvo o devido respeito, este argumento tem na sua base uma confusão evidente.
  A conferência de interessados, que tem lugar na acção de divisão de coisa comum, quando o juiz decide que a coisa não é divisível (em substância), e a que se refere o artigo 951.º, n.º 1, do Código de Processo Civil “destina-se a:
a) ...
b) Adjudicar a coisa comum a algum ou alguns dos interessados, preenchendo-se em dinheiro as quotas dos restantes, nos casos em que a coisa só seja divisível em valor”.
  Ora, esta conferência de interessados, nem de longe, nem de perto, tem alguma coisa que ver com algum direito de preferência. É apenas o corolário do princípio da autonomia privada, do princípio da liberdade contratual. Pois, se os interessados podem vender extrajudicialmente a cada um dos comproprietários a sua quota na coisa, também o podem fazer no processo. A adjudicação da coisa, por acordo, a algum ou alguns dos interessados, na conferência dos interessados representa apenas isso. Não está em causa o exercício de qualquer direito de preferência.
Na falta de acordo na conferência dos interessados é a coisa comum vendida, podendo os comproprietários concorrer à venda (artigo 951.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
  E nesta venda judicial não há direito de preferência na compra por parte dos comproprietários porque nenhuma norma o concede, designadamente o artigo 1308.º, n.º 1, do Código Civil.
  O Acórdão recorrido invoca, por fim, um interesse de um dos comproprietários em não querer vender a uma determinada pessoa. Mas, qualquer comproprietário pode comprar a coisa, oferecendo um preço superior aos restantes comproprietários e terceiros na venda judicial.
  
  5. Direito de preferência no caso de venda ou dação em cumprimento a estranhos
  No caso dos autos, havia ainda uma circunstância adicional que sempre inviabilizaria o exercício do direito de preferência por um dos comproprietários, ainda que o artigo 1308.º, n.º 1, do Código Civil fosse aplicável na venda judicial do imóvel.
  É que tal direito só existe no caso de venda ou dação em cumprimento de quota da coisa a estranhos, como se alcança dos fins visados pela norma, atrás mencionados e explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA9. Quando um comproprietário vende ou dá em cumprimento a sua quota do imóvel a outro comproprietário ninguém tem direito de preferência, porque o que a norma visa é a redução do número de comproprietários (ou a extinção da compropriedade) e estas já são alcançadas pela venda ou dação em cumprimento de um comproprietário a um dos restantes.
  Ora, a proposta vencedora de compra do imóvel não foi de um estranho, mas de um dos comproprietários, pelo que a norma nunca seria aplicável.
  O recurso merece, portanto, provimento.
  
IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso, revogam o Acórdão recorrido e o despacho da Ex.ma Juíza que concedeu preferência na venda judicial do imóvel ao autor.
Custas pelo autor no TSI e neste TUI.
Macau, 9 de Maio de 2012.
  Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

   1 No Boletim do Ministério da Justiça n.º 472, p. 437.
   2 Referia-se ao século XX.
   3 PINTO LOUREIRO, Manual dos Direitos de Preferência, Vol. I, p. 210 e nota (1).
   4 BAPTISTA LOPES, Do Contrato de Compra e Venda, p. 304.
   5 No Boletim do Ministério da Justiça n.º 431, p. 408.
   6 Processo n.º 08B1868, em www.dgsi.pt.
   7 Do Código Civil de 1966, correspondendo ao artigo 8.º do Código Civil de Macau.
   8 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 2.ª edição, Volume III, p. 367.
   9 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código..., Volume III, p. 367.
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Processo n.º 14/2012