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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, enfermeira dos Serviços de Saúde, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Chefe do Executivo, de 22 de Fevereiro de 2010, que indeferiu a actualização salarial requerida no período compreendido entre 1 de Julho de 2007 e 17 de Agosto de 2009.
Por acórdão de 16 de Fevereiro de 2012, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso.
  Inconformada, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
  - Ao longo da sua petição de recurso e nas conclusões que formulou nas alegações, a Recorrente suscitou e apontou - crê que com nitidez - diversas ilegalidades ao despacho recorrido;
  - Daí resultaram outras tantas questões, a merecer resposta, como a tutela das legítimas expectativas da Recorrente; a violação da cláusula contratual de equiparação remuneratória e do princípio da boa fé (na interpretação e integração contratual); a violação do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei; a violação do princípio da paridade-igualdade salarial entre os funcionários públicos; a violação do princípio constitucional-juslaboral de trabalho igual - salário igual; e, ainda, a violação do princípio da não discriminação em matéria de emprego e profissão;
  - Cada um dos referidos fundamentos, integrando o seu próprio vício no plano do direito e a violação de norma particular, gera questões autónomas, pelo que o seu não conhecimento configura uma nulidade, por omissão de pronúncia, atento o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 571.° do CPC de Macau;
  - É aos tribunais, nos casos concretos submetidos à sua apreciação, que cabe conhecer e resolver eventuais contradições entre a Lei Básica e normas jurídicas de outros diplomas vigentes que se suscitem em processos judiciais;
  - Nos recursos contenciosos de acto administrativo o juiz não só pode conhecer (por sua iniciativa e incidentalmente), da ilegalidade de uma disposição normativa ou administrativa, com fundamento no princípio da hierarquia das normas, como se impõe mesmo esse conhecimento, o qual constitui um verdadeiro ónus judicial;
- O Tribunal a quo, fundindo os fundamentos e as diversas questões suscitadas pela Recorrente, interpretou o princípio da legalidade administrativa de forma positivista e redutora, e limitou-se a conhecer da questão da violação do princípio da igualdade de forma abstracta;
  - Não basta o quadro de vinculação em que a Recorrente se relaciona com a Administração ser diferente do quadro de vinculação a que respeitam outras situações (como as dos funcionários do quadro, além quadro ou assalariados), para justificar uma situação de desigualdade salarial;
  - É preciso que de tal quadro resulte efectivamente uma diferença que justifique tal desigualdade;
  - No caso concreto, a Administração não contratualizou direitos diferentes nem sequer superiores, como decorre do respectivo contrato individual de trabalho constante do processo administrativo instrutor;
  - O acórdão recorrido, para além de não ter aplicado ao caso sub judice qualquer norma referente ao princípio da igualdade, de não ter conhecido das razões concretas pelas quais a Recorrente pugnava pela referida desigualdade, fez ainda uma interpretação errónea do princípio da igualdade, incorrendo consequentemente na violação do artigo 11.°, 25.° e 40.° da LBRAEM; dos artigos 174.° e 175.° do ETAPM (aplicáveis ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 1.° do Decreto-Lei n.º 60/92/M, de 24 de Agosto, e da cláusula 18.a do contrato individual de trabalho); do n.º 2 do artigo 57.° da Lei n.º 7/2008, de 18 de Agosto; do artigo 4.° do contrato individual de trabalho celebrado entre a Recorrente e os SSM; dos artigos 2.° e 3.° da Convenção n.º 111 da OIT; e, do artigo 7.° do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II - Os Factos
Estão provados documentalmente os seguintes factos:
  a) A recorrente foi recrutada ao exterior, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, do Estatuto Orgânico de Macau, na redacção da Lei n.º 13/90, de 10 de Maio, publicada no Boletim Oficial de Macau, de 15 de Maio de 1990, para exercer funções de enfermeira nos Serviços de Saúde de Macau, tendo para tal celebrado contrato além do quadro, nos termos dos artigos 25.º e 26.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, por dois anos, de 3 de Outubro de 1995 até 2 de Outubro de 1997, tendo-lhe sido atribuído o índice 385, correspondente a enfermeiro do grau 1, 4.º escalão.
  b) O contrato referido na alínea anterior foi sucessivamente renovado, de 3 de Outubro de 1997 até 2 de Outubro de 1998, nas condições do anterior, sendo na categoria de enfermeira graduada do grau 2, 2.º escalão a partir de 16 de Fevereiro de 1998 e de 3 de Outubro de 1998 até 31 de Julho de 1999, e de 1 de Agosto de 1999 até 31 de Julho de 2000.
  c) A recorrente celebrou contrato individual de trabalho para exercer prestação de actividade de enfermagem e colaboração na formação dos quadros locais, com os Serviços de Saúde de Macau, nos termos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e do n.º 3 do artigo 48.º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15.11, por um ano, de 1 de Agosto de 2000 até 31 de Julho de 2001, tendo-lhe sido atribuído o índice 405 da tabela de vencimentos, correspondente a enfermeira graduada, 3.º escalão, tendo-se acordado que ficava sujeito ao regime de direitos e deveres previsto na lei, com manutenção de todos os direitos dos contratos anteriores.
  d) Em anexo ao contrato referido na alínea anterior foram conferidos outros direitos e regalias ao recorrente, como direito a alojamento a expensas da RAEM, passagem de regresso ao local de recrutamento para si e família, bem como transporte de bagagem pessoal para si e agregado familiar, bagagem técnica, compensações por cessação definitiva de funções, etc.
  e) A recorrente celebrou novos contratos individuais de trabalho, com início em 1 de Agosto de 2001 até 31 de Julho de 2002 e renovação com efeitos com início em 1 de Agosto de 2002 até 31 de Julho de 2003, novo contrato com início em 1 de Agosto de 2003 até 31 de Julho de 2004, e novo contrato com início em 1 de Agosto de 2004 até 31 de Julho de 2005, para exercer prestação de actividade de enfermagem e colaboração na formação dos quadros locais, com os Serviços de Saúde de Macau, nos termos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e do n.º 3 do artigo 48.º do Decreto-Lei n.º 81/99/M.
  f) O último contrato individual de trabalho mencionado na alínea e) foi sucessivamente renovado, sendo que acordaram as partes em alterar o contrato a partir de 19 de Maio de 2010, passando a recorrente a deter a categoria de enfermeira graduada, 4.º escalão, índice 505, segundo o disposto no Anexo I da Lei n.º 18/2009, de 17 de Agosto, tendo-se ainda estipulado que os efeitos decorrentes do índice mencionado, retroagem a 18 de Agosto de 2009.
  g) A recorrente apôs uma declaração ao acordo mencionado na alínea anterior, dizendo assiná-lo “com a reserva dos direitos que me assistam de fazer retroagir a actualização da minha remuneração a 1 de Julho de 2007”.
h) Em 18 de Agosto de 2009 (dia da entrada em vigor da Lei nº 18/2009) pediu ao Director dos Serviços de Saúde se dignasse “ …autorizar, de acordo com o nº2 e 3 do artigo 36º da lei nº 18/2009 …, que seja posicionada no 4º escalão da categoria de Enfª Graduada, dado que permaneço há 14 anos no 3º e último escalão” (fls. 4 do processo administrativo).
i) Em 22 de Fevereiro de 2010 o Ex.mo Chefe do Executivo despachou, na sequência de parecer do Ex.mo Director dos Serviços “ Concordo a ratificação” (fls. 1 e 97 do processo administrativo).
j) O referido parecer tinha recaído sobre proposta n. XXX/PP/DP/XXXX, que propunha a actualização salarial (índice 505, escalão 4º) por averbamento ao contrato com referência à nova carreira de enfermagem (fls. 99 do processo administrativo).
k) Posteriormente, sobre a Proposta nº XXX/PP/DP/XXXX no sentido de fazer retroagir os efeitos da alteração contratual a 18 de Agosto de 2009, data da entrada em vigor da Lei nº 18/2009, o Ex.mo Chefe do Executivo despachou “Autorizo” (fls. 101 do processo administrativo).
l) A interessada foi notificada por ofício de 7/05/2010 dos despachos e propostas atrás referidos (fls. 95 do processo administrativo).
m) Foi enviada à recorrente a minuta da alteração contratual, levando incluída a cláusula 4ª já com o novo escalão e índice (fls. 107 do p.a.), sendo que a cláusula 19ª estipulava que os efeitos decorrentes do índice referido naquela cláusula 4ª retroagiriam a 18 de Agosto de 2009.
n) O averbamento foi efectuado, tendo ficado estabelecido na cláusula 4ª que a remuneração corresponderia à categoria de enfermeiro-graduado, 4º escalão, índice 505, segundo o disposto no Anexo I, da Lei n. 18/2009, de 17 de Agosto (fls. 107 do processo administrativo).
o) E na cláusula 19 ficou definido que os efeitos decorrentes do índice referido na cláusula 4ª do averbamento retroagiriam a 18 de Agosto de 2009 e incidiam sobre o vencimento (fls. 112 do processo administrativo).
p) Contudo, após a assinatura do averbamento a recorrente incluiu uma declaração do seguinte teor: “Assino o presente averbamento ao meu contrato individual de trabalho com a reserva dos direitos que me assistam de fazer retroagir a actualização da minha remuneração a 1 de Julho de 2007” (fls. 112 do processo administrativo).

III – O Direito
1. As questões a apreciar
A recorrente é enfermeira dos Serviços de Saúde no regime de contrato individual de trabalho.
A Lei n.º 18/2009, de 17 de Agosto, que estabelece o regime jurídico da carreira de enfermagem e que entrou em vigor em 18 de Agosto de 2009, faz retroagir a 1 de Julho de 2007 as valorizações indiciárias dos vencimentos previstos para os enfermeiros do quadro, dos contratados além do quadro e dos assalariados (artigo 40.º, n.º 2, desta Lei), não estendendo tal retroacção aos enfermeiros no regime de contrato individual de trabalho, cujas valorizações indiciárias vigoram, portanto, desde 18 de Agosto de 2009.
Trata-se de saber se este regime viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 25.º da Lei Básica.

2. Omissão de pronúncia
As questões a que se refere a conclusão IV das alegações foram apreciadas pelo Acórdão recorrido. Todas se reconduzem, numa ou noutra vertente, à violação do princípio da igualdade que foi conhecida por aquele Acórdão (violação da cláusula contratual de equiparação remuneratória; a violação do princípio da paridade-igualdade salarial entre os funcionários públicos; a violação do princípio constitucional-juslaboral de trabalho igual - salário igual; e, ainda, a violação do princípio da não discriminação em matéria de emprego e profissão). Mesmo a questão da violação do princípio da boa fé, na interpretação e integração contratual, o recorrente reconduziu a questão, na petição do recurso contencioso, a uma vertente do princípio da igualdade.
Quanto à tutela das legítimas expectativas da interessada, a recorrente, embora abordando a questão (embora em termos manifestamente irrelevantes, invocando compromissos assumidos pelo Governo perante Deputados), não fundamentou aí nenhuma violação de lei, não a integrou como fundamento específico de vício de acto administrativo pelo que o Tribunal recorrido não estava obrigado a pronunciar-se sobre a mesma.
Improcede a questão suscitada.

3. Princípio da igualdade
Trata-se de saber se o acto recorrido – e, portanto, o Acórdão recorrido – violou o princípio da igualdade nas suas várias vertentes, atrás mencionadas.
Preliminarmente, importa afastar dúvidas de que o Tribunal não poderia conhecer de violação da Lei Básica por parte da lei ordinária ou de que não poderia anular o acto administrativo, com fundamento em violação do referido princípio. Não é assim, como este Tribunal já teve oportunidade de decidir, e cuja jurisprudência se reafirma:
No Acórdão de 27 de Junho de 2007, no Processo n.º 28/2006, dissemos o seguinte:
«Abordemos, agora, a questão de saber [alínea c) de III] se o TSI poderia ter conhecido oficiosamente da violação da Lei Básica pelo Regulamento.
A entidade recorrente não põe em causa que os tribunais possam conhecer das violações da Lei Básica por normas hierarquicamente inferiores. Mas defende que só o podem fazer a requerimento das partes e não oficiosamente. Para tal invoca o artigo 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso e o artigo 36.º, alínea 8) [deveria querer referir-se à alínea 9)] da Lei de Bases da Organização Judiciária, que se referem a “julgar processos de impugnação de normas”.
Pois bem.
A Lei Básica é a lei fundamental da Região Administrativa Especial de Macau, constituindo como que o seu estatuto básico, previsto expressamente no artigo 31.º da Constituição da República Popular da China. Consagra direitos fundamentais dos residentes e de outras pessoas, a estrutura política da Região e as políticas a desenvolver.
A revisão da Lei Básica, como lei fundamental, obedece a um procedimento rígido1: as propostas de revisão só podem ser apresentadas pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, pelo Conselho de Estado ou pela Região Administrativa Especial de Macau, tendo sempre de ser ouvida a Comissão da Lei Básica da Região (artigo 144.º).
Por outro lado, a Lei Básica está no vértice da pirâmide normativa da Região: de acordo com o 2.º parágrafo do artigo 11.º da Lei Básica nenhuma lei, decreto-lei, regulamento administrativo ou acto normativo a pode contrariar.
Ao referir-se à relação entre a Lei Básica da RAEM e a Constituição chinesa, o Professor XIAO WEIYUN2 afirma expressamente que “A Lei Básica da RAEM é a concretização e positivação da Constituição. Esta dispõe apenas no artigo 31.°, como princípio, a política de ‘um país, dois sistemas’, sem prescrever sobre as questões mais concretas. Por seu lado, a Lei Básica da RAEM dispõe com pormenor, através de um preâmbulo, nove capítulos, 145 artigos e três anexos, sobre a matéria de contexto histórico do seu nascimento, as políticas e directivas essenciais do País em relação a Macau, o relacionamento entre as Autoridades Centrais e a RAEM, os direitos e deveres fundamentais de cidadãos de Macau, o sistema político, a economia e a cultura. Torna-se concretizada e positivada na Constituição a política de ‘um país, dois sistemas’, permitindo a concretização e a viabilidade efectiva do artigo 31.° da Constituição”.
O mesmo Professor salienta ainda, “Ela (a Lei Básica) determina claramente as competências das Autoridades Centrais, a fim de assegurar a unificação do país e a integridade da soberania e do território nacional, e ao mesmo tempo o poder de alto grau de autonomia da RAEM, ... permitindo estabelecer, no pressuposto de velar ‘um país’, certas disposições da Lei Básica diferentes da Constituição e das Leis3.
A Lei Básica comunga, portanto, das características normalmente associadas às constituições políticas dos Estados, embora formalmente não o seja já que a Região Administrativa Especial de Macau não é um Estado.
Nenhuma norma da Lei Básica, em concreto, atribui aos tribunais, de forma expressa, a possibilidade de conhecer de violações da Lei Básica por normas jurídicas hierarquicamente inferiores, constantes de leis, regulamentos ou de outros actos normativas.4
Não obstante, esse poder dos tribunais extrai-se por interpretação conjugada de várias normas da Lei Básica.
Na verdade, nos termos do 2.º parágrafo do artigo 19.º da Lei Básica, “Os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau têm jurisdição sobre todas as causas judiciais na Região, salvo as restrições à sua jurisdição que se devam manter, impostas pelo ordenamento jurídico e pelos princípios anteriormente vigentes em Macau”.
Como se viu, nos termos do 2.º parágrafo do artigo 11.º da Lei Básica “Nenhuma lei, decreto-lei, regulamento administrativo ou acto normativo da Região Administrativa Especial de Macau pode contrariar esta Lei”.
Ora, não tendo a Lei Básica instituído nenhum mecanismo, designadamente de carácter político, para resolver eventuais contradições entre a Lei Básica e normas jurídicas de outros diplomas vigentes que se suscitem em processos judiciais, daqui não pode deixar de decorrer que é aos tribunais, nos casos concretos submetidos à sua apreciação, que cabe conhecer de tais questões.
Tal como ensina o Professor WANG ZHENMIN5 quando aborda o regime de controlo de constitucionalidade da RAEM, “De acordo com as normas das duas Leis Básicas das Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e de Macau, são dois os sujeitos dotados do poder de controlo da constitucionalidade na região administrativa especial, a Assembleia Popular Nacional e o respectivo Comité Permanente, por um lado, e os tribunais da região especial, por outro. Ambas as entidades assumem as funções de fiscalizar a aplicação nas regiões especiais das Leis Básicas das regiões administrativas especiais, são órgãos conjuntos de fiscalização da constitucionalidade das regiões administrativas especiais”.
Relativamente aos fundamentos de proceder ao controlo de constitucionalidade pelos tribunais de região administrativa especial, o mesmo autor considera que “Dispõe o artigo 80.° da Lei Básica (de Hong Kong) (artigo 82.° da Lei Básica de Macau): ‘Os tribunais das diversas instâncias da RAEHK são órgãos judiciais da RAEHK, exercendo o poder judicial da RAEHK.’ Na ‘administração de justiça’ deve incluir, antes de mais, a lei fundamental da região, ou seja, a Lei Básica. Todos os tribunais da região têm as funções de fiscalizar a aplicação da Lei Básica. Mais ainda, o artigo 158.° da Lei Básica (artigo 143.° da Lei Básica de Macau) atribui aos tribunais da Região Especial de Hong Kong o poder de interpretar as disposições da Lei Básica da região especial no julgamento das causas. Torna-se, assim, óbvia a realização autónoma do controlo de constitucionalidade pelos tribunais da região especial. ... Por isso, seja qual for a perspectiva, não há dúvida de que os tribunais da Região Especial de Hong Kong devem continuar a dotar do poder de fiscalização de constitucionalidade após o retorno de Hong Kong. Existem fundamentos suficientes na Lei Básica e fácticos para os tribunais da região especial exercer o poder de controlo de constitucionalidade” 6.
É o que também resulta do artigo 143.º da Lei Básica, nos termos de cujo 2.º parágrafo, os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau estão autorizados pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional a interpretar, por si próprios, no julgamento dos casos, as disposições da Lei Básica que estejam dentro dos limites da autonomia da Região, isto é, que não se refiram a matérias que sejam da responsabilidade do Governo Popular Central (defesa e relações externas) ou do relacionamento entre as Autoridades Centrais e a Região.
Tal como considera o Professor XIAO WEIYUN 7ao tratar do poder de interpretação da Lei Básica de Macau, “Embora os tribunais da RAEM não tenham o poder de interpretar a Lei Básica de Macau, o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional atribui especialmente aos tribunais da RAEM parte do poder de interpretação, isto é, podem interpretar, por si próprios, as disposições da Lei Básica de Macau relativas à autonomia da RAEM. Em relação a interpretação destas normas, já não intervém o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional no julgamento das causas pelos tribunais da RAEM... Assim determina a Lei Básica de Macau é porque, por um lado, a RAEM é dotada de alto grau de autonomia que deve ser respeitado pela Lei Básica de Macau .... Por outro lado, os tribunais da RAEM procedem necessariamente à aplicação das leis no julgamento das causas, incluindo a Lei Básica. Mais ainda, os tribunais da RAEM têm o poder de julgar em última instância, também necessitam de interpretar as leis. Sem a interpretação e aplicação das leis não é possível julgar as causas”.
Ora, se os tribunais, no julgamento dos casos, podem interpretar a Lei Básica, necessariamente que podem concluir que disposições legais ou regulamentares a contrariam e, nesse caso, têm de cumprir o disposto no artigo 11.º da Lei Básica: donde, não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Lei Básica ou os princípios nela consagrados, sem prejuízo do disposto no artigo 143.º daquela Lei.
Como explica GOMES CANOTILHO 8 “em caso de conflito entre duas leis a aplicar a um caso concreto, o juiz deve preferir a lei superior (= lei constitucional) e rejeitar, desaplicando-a, a lei inferior”.
Do que ficou dito já se vê que este poder-dever dos tribunais não pode ser deixado à disponibilidade das partes. Tal poder tem de ser exercido oficiosamente, mesmo que nenhuma das partes do processo suscite a questão9, como sucede em todas as Ordens Jurídicas em que os juízes têm acesso directo à Constituição, o que acontece, actualmente, na maioria dos Sistemas Jurídicos».
E no mesmo Acórdão de 27 de Junho de 2007, acrescentámos o seguinte:
«Examinemos, agora, se o Acórdão recorrido violou o princípio da adequação formal – previsto no artigo 7.º do Código de Processo Civil - por não ter dado cumprimento ao disposto no artigo 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (os artigos 88.º a 93.º deste diploma legal referem-se a um meio processual denominado impugnação de normas). Ou se foi violado o princípio dispositivo ou o princípio da estabilidade da instância, por se ter condenado em coisa diversa do pedido.
A invocação do artigo 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso e do artigo 36.º, alínea 9) da Lei de Bases da Organização Judiciária, bem como a chamada à colação do princípio da adequação formal – previsto no artigo 7.º do Código de Processo Civil - ou do princípio dispositivo e do princípio da estabilidade da instância, por, alegadamente, se ter condenado em coisa diversa do pedido, tem na sua base um equívoco de natureza processual.
Na verdade, o meio processual utilizado pelo recorrente foi o recurso contencioso de anulação - e bem - já que pediu a nulidade e a anulação de um acto administrativo. É o que decorre do disposto no artigo 20.º do Código de Processo Administrativo Contencioso. Isto, porque é doutrina corrente que é o pedido deduzido pela parte que determina a forma de processo a utilizar.
O meio processual dos artigos 88.º e seguintes do Código de Processo Administrativo Contencioso é outra coisa: visa a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de norma regulamentar. Ou seja, tem por finalidade expurgar da Ordem Jurídica uma norma regulamentar ilegal.
Não foi isso que foi pedido nos autos, nem foi isso que o Acórdão recorrido decidiu. Este limitou-se a anular um acto administrativo por ter na sua base normas regulamentares ilegais. Mas não declarou a ilegalidade, com força obrigatória geral, de norma regulamentar. Mesmo que a tese do Acórdão recorrido prevalecesse, o Regulamento Administrativo n.º 17/2004 continuaria a vigorar e poderia ser aplicado em outros casos pela Administração ou pelos tribunais. O julgado só obrigaria no caso concreto em apreciação.
O que o Acórdão recorrido fez foi conhecer, a título incidental, da legalidade de um Regulamento que o acto administrativo aplicou. Ora, “a título incidental qualquer tribunal poderá conhecer da legalidade dos regulamentos”10. Mas esta questão nunca foi controvertida. Veja-se, por exemplo, a lição de MARCELLO CAETANO11: “não é possível o recurso directo das disposições regulamentares, que constem de decreto12, mas pode-se recorrer do acto administrativo que as aplique, com fundamento em violação de lei resultante da contradição entre o regulamento e a lei a que deve obedecer”.
E o conhecimento incidental da ilegalidade de um regulamento, oficiosamente, pelo juiz, no recurso contencioso de acto administrativo, também nunca suscitou dúvidas, com fundamento no princípio da hierarquia das normas. F. ALVES CORREIA13 explica, seguindo a lição de AFONSO QUEIRÓ14, que o princípio da hierarquia das normas conduz não apenas à recusa de aplicação pelo tribunal – independentemente de ser ou não requerida - de uma norma regulamentar que contrarie a lei, mas também a desaplicação no caso sub judicio de uma norma regulamentar que viole outra norma regulamentar hierarquicamente superior.
Logo daqui se vê que não é de aceitar a invocação de violações dos princípios da adequação formal, dispositivo ou da estabilidade da instância».
E no Acórdão de 12 de Maio de 2010, no Processo n.º 5/2010, anulámos um acto administrativo por ter aplicado norma de Decreto-Lei que violava o disposto no artigo 25.º da Lei Básica, ou seja, o princípio da igualdade.
Nada temos a alterar aos entendimentos mencionados.
Em conclusão:
Em recurso contencioso de anulação de acto administrativo o tribunal pode, oficiosamente, ou a pedido da parte, conhecer da violação da Lei Básica por norma legislativa ou regulamentar internas, desaplicando estas normas se entender que as mesmas violam a Lei Básica e, com base nesse entendimento, anular o acto administrativo.

4. Princípio da igualdade
Trata-se, como se disse, de saber se a Lei n.º 18/2009, que estabelece o regime jurídico da carreira de enfermagem e que entrou em vigor em 18 de Agosto de 2009, viola o princípio da igualdade previsto no artigo 25.º da Lei Básica, na medida em que faz retroagir a 1 de Julho de 2007 as valorizações indiciárias dos vencimentos previstos para os enfermeiros do quadro, dos contratados além do quadro e dos assalariados (artigo 40.º, n.º 2, da Lei), não estendendo tal retroacção aos enfermeiros no regime de contrato individual de trabalho.
No Acórdão de 12 de Maio de 2010, no Processo n.º 5/2010, ponderámos o seguinte sobre a violação deste princípio estabelecido na Lei Básica e que se aplica ao caso dos autos, por também estar em causa um tratamento diferenciado de dois grupos de funcionários públicos:
“Ora, de acordo com o artigo 25.º da Lei Básica, os residentes são iguais perante a lei, não sendo admissíveis discriminações em razão da nacionalidade, ascendência, raça, sexo, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução e situação económica ou condição social.
O princípio da igualdade postula que a lei – é a actuação legislativa que neste momento está em causa e não outras vertentes da actuação dos poderes públicos, como a da Administração Pública – trate igualmente o que é igual e que trate desigualmente o que é diferente.
No caso dos autos, a lei trata desigualmente duas situações. O que importa é apurar se estas situações são iguais ou diferentes.
Se as situações forem diferentes não há qualquer violação do princípio da igualdade.
Se as situações forem basicamente iguais, tratadas de modo desigual, temos violação do mesmo princípio, na vertente de proibição do arbítrio”.

5. Os regimes de provimento dos enfermeiros. A situação da recorrente durante a Administração portuguesa
  Tem a recorrente razão ao defender que não basta o seu quadro de vinculação com a Administração seja diferente do quadro de vinculação a que respeitam outras situações (como as dos funcionários do quadro, além quadro ou assalariados), para justificar uma situação de desigualdade salarial. É preciso que de tal quadro resulte efectivamente uma diferença que justifique tal desigualdade.
Cabe, então, apurar se há fundamento material para a diversidade de soluções que a Lei n.º 18/2009 estatui quanto à retroactividade das valorizações de vencimentos para alguns grupos de enfermeiros dos Serviços de Saúde, por contraposição à não retroactividade das valorizações de vencimentos para os outros grupos de enfermeiros, os submetidos ao contrato individual de trabalho.
Para tal, temos de descrever os regimes de provimento aplicáveis a estes grupos de funcionários.
A recorrente iniciou funções como enfermeiro nos Serviços de Saúde de Macau no dia 8 de Agosto de 1995, dias depois de ter entrado em vigor (artigo 33.º ) a Lei n.º 9/95/M, de 31 de Julho, que estabeleceu o regime da carreira de enfermagem.
Celebrou contrato além do quadro, tendo sido recrutada ao exterior ao abrigo do artigo 69.º, n.º1, do Estatuto Orgânico de Macau, na redacção da Lei n.º 13/90, que dispunha:
“O pessoal dos quadros dependentes dos órgãos de soberania ou das autarquias da República poderá, a seu requerimento ou com sua anuência e com autorização do respectivo ministro ou do órgão competente e concordância do governador, prestar serviço por tempo determinado ao território de Macau, contando-se, para todos os efeitos legais, como efectivo serviço no seu quadro e categoria o tempo de serviço prestado nessa situação”.
Recorde-se que vigorava o Decreto-Lei n.º 60/92/M, de 24 de Agosto, que estabelecia normas que regiam o recrutamento de pessoal ao abrigo do artigo 69.º, n.º 1, do Estatuto Orgânico de Macau, para exercer funções nos serviços e organismos públicos, incluindo as autarquias, os serviços e fundos autónomos, bem como nas empresas públicas e demais pessoas colectivas de direito público (artigo 1.º, n.º 1).
De acordo com os n. os 2 e 3 do mesmo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 60/92/M:
“2. Ao restante pessoal recrutado no exterior são aplicáveis as normas constantes do respectivo contrato de trabalho e, subsidiariamente, com as devidas adaptações, o disposto no presente diploma.
3. Ao pessoal referido nos números anteriores aplica-se, supletivamente, o regime da função pública de Macau”.

Ora, nos termos do artigo 7.º deste Decreto-Lei n.º 62/92/M:
“Artigo 7.º
(Modalidades)
1. O pessoal recrutado, nos termos do artigo 1.º, pode exercer funções nos seguintes regimes:
a) Comissão de serviço, quando prevista na lei;
b) Contrato além do quadro e, excepcionalmente, assalariamento;
c) Contrato individual de trabalho.
2. A prestação de serviço no Território tem, em regra, a duração de dois anos ou a que lhe for fixada no despacho de autorização.
3. O contrato além do quadro e o assalariamento obedecem ao regime fixado para a função pública e o contrato individual de trabalho obedece ao regime que for fixado no respectivo contrato.
4. ...”

Portanto, ao tempo, os recrutados ao exterior (isto é, os vinculados à função pública portuguesa) para exercer funções nos serviços e organismos públicos, incluindo as autarquias, os serviços e fundos autónomos, bem como nas empresas públicas e demais pessoas colectivas de direito público, exerciam funções em comissão de serviço, quando prevista na lei, por contrato além do quadro e, excepcionalmente, assalariamento.
O contrato além do quadro era, desta maneira, a forma de provimento regra para os recrutados ao exterior.
O contrato de trabalho era a forma destinada ao pessoal recrutado ao exterior para prestar serviço nas entidades privadas.
Como se sabe, a comissão de serviço era (e é) a forma de provimento prevista em leis especiais, por tempo determinado, para determinadas funções, como os lugares de direcção e chefia, coordenação de equipas de projecto e em regime de estágio para os que já detivessem a qualidade de funcionário [artigo 23.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM)].
O contrato além do quadro era (e continua a ser) uma forma de provimento por tempo determinado, renovável por iguais períodos ou inferiores, a que se aplicavam os requisitos gerais de provimento, ingresso, progressão e acesso nas carreiras, com excepção do concurso, sendo atribuído ao contratado um índice de vencimento com referência à carreira, categoria e escalão correspondentes às funções a desempenhar, de acordo com as habilitações e experiência profissional (artigos 25.º e 26.º do ETAPM).
O contrato de assalariamento era (e ainda é) é o ajuste feito pela Administração com uma pessoa não integrada nos quadros para, com carácter de subordinação, assegurar a satisfação das necessidades do serviço público mediante o pagamento de um salário correspondente à prestação diária de trabalho. O recurso ao contrato de assalariamento era admitido: para o recrutamento de pessoal operário e auxiliar, ou para outras categorias de pessoal que, pelo tipo de funções ou nível remuneratório, lhe sejam equiparáveis, quando fosse necessário o recrutamento de pessoal para o desempenho de funções específicas ou que revistam carácter de urgência, quando fosse necessário, pela natureza das funções, fazer preceder a celebração de contrato além quadro de um período experimental até 6 meses, para o recrutamento de estagiários, tratando-se de pessoal que não detenha a qualidade de funcionário e em casos previstos em legislação própria e nos termos nela regulamentados (artigo 27.º do ETAPM).
  A recorrente manteve-se na situação de recrutada ao exterior, mediante contrato além do quadro, até 31 de Agosto de 2000.
  Vigorava, então, o Decreto-Lei n.º 29/92/M, de 8 de Julho, que criou os Serviços de Saúde de Macau, como instituto público, dotado de personalidade jurídica e de autonomia administrativa e financeira, dispondo o seu artigo 45.º, n.º 2, que o regime do pessoal é o previsto na lei para os trabalhadores da Administração Pública.

6. A situação da recorrente na RAEM
  Como se extractou na súmula dos factos provados, a recorrente celebrou contrato individual de trabalho por um ano, de 1 de Agosto de 2000 até 31 de Julho de 2001, para exercer prestação de actividade de enfermagem e colaboração na formação dos quadros locais, com os Serviços de Saúde de Macau, nos termos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e do n.º 3 do artigo 48.º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15.11, tendo-lhe sido atribuído o índice 405 da tabela de vencimentos, correspondente a enfermeira graduada 3.º escalão, tendo-se acordado que ficava sujeito ao regime de direitos e deveres previsto na lei, com manutenção de todos os direitos dos contratos anteriores.
  Em anexo ao contrato referido no parágrafo anterior foram conferidos outros direitos e regalias à recorrente, como direito a alojamento a expensas da RAEM, passagem de regresso ao local de recrutamento para si e família, bem como transporte de bagagem pessoal para si e agregado familiar, bagagem técnica, compensações por cessação definitiva de funções, etc.
A situação contratual da recorrente na RAEM passou a fazer-se por meio de um contrato individual de trabalho.
Enquanto que a situação contratual anterior (recrutado ao exterior na situação de contrato além quadro) tinha um paradigma perfeitamente claro na lei, resultando da conjugação das normas do Decreto-Lei n.º 62/92/M e do ETAPM, em função do artigo 69.º do Estatuto Orgânico de Macau (depois artigo 66.º, n.º 1, após a Lei n.º 23-A/96, de 29 de Julho que alterou este Estatuto), complementado pelo artigo 45.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 29/92/M, o suporte legal actual não é tão claro.
Vejamos porquê.
A orgânica dos Serviços de Saúde resulta agora do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro, que revogou o Decreto-Lei n.º 29/92/M.
Estatuiu o artigo 48.º do Decreto-Lei n.º 81/99/M:
“Artigo 48.º
(Quadro e regime de pessoal)
1. ...
2. Ao pessoal dos SSM aplica-se o regime jurídico geral dos trabalhadores da Administração Pública e a legislação especial aplicável à área da saúde.
3. Os SSM podem contratar pessoal médico, de enfermagem ou outro pessoal técnico, em Macau ou no exterior, em regime de contrato individual de trabalho ou de prestação de serviços para a execução de trabalhos de elevada diferenciação técnica.
4. ....”

O novo diploma veio permitir, assim, a contratação de pessoal em regime de contrato individual de trabalho ou de prestação de serviços, ao lado dos quadros contratuais do ETAPM.
Convém relembrar o que dispõe a Lei Básica sobre contratação de pessoal para a função pública:
“Artigo 97.º
   Os funcionários e agentes públicos da Região Administrativa Especial de Macau devem ser residentes permanentes da Região, salvo os funcionários e agentes públicos previstos nos artigos 98.º e 99.º desta Lei, certos técnicos especializados e funcionários e agentes públicos de categorias inferiores contratados pela Região Administrativa Especial de Macau.
Artigo 98.º
   À data do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, os funcionários e agentes públicos que originalmente exerçam funções em Macau, incluindo os da polícia e os funcionários judiciais, podem manter os seus vínculos funcionais e continuar a trabalhar com vencimento, subsídios e benefícios não inferiores aos anteriores, contando-se, para efeitos de sua antiguidade, o serviço anteriormente prestado.
   Aos funcionários e agentes públicos, que mantenham os seus vínculos funcionais e gozem, conforme a lei anteriormente vigente em Macau, do direito às pensões de aposentação e de sobrevivência e que se aposentem depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, ou aos seus familiares, a Região Administrativa Especial de Macau paga as devidas pensões de aposentação e de sobrevivência em condições não menos favoráveis do que as anteriores, independentemente da sua nacionalidade e do seu local de residência.
Artigo 99.º
   A Região Administrativa Especial de Macau pode nomear portugueses e outros estrangeiros de entre os funcionários e agentes públicos que tenham anteriormente trabalhado em Macau, ou que sejam portadores do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau, para desempenhar funções públicas a diferentes níveis, exceptuando as previstas nesta Lei.
   Os respectivos serviços públicos da Região Administrativa Especial de Macau podem ainda contratar portugueses e outros estrangeiros para servirem como consultores ou em funções técnicas especializadas.
   Os indivíduos acima referidos são admitidos apenas a título pessoal e respondem perante a Região Administrativa Especial de Macau”.
O regime dos vínculos contratuais previsto no ETAPM continua a vigorar.
Já o Decreto-Lei n.º 60/92/M (diploma dos recrutados ao exterior) não foi adoptado como diploma normativo pela RAEM, por, de acordo com o artigo 3.º, n.º 3, e Anexo II da Lei n.º 1/999, contrariar a Lei Básica. “Todavia, enquanto não for elaborada nova legislação, pode a Região Administrativa Especial de Macau tratar as questões nela reguladas de acordo com os princípios contidos na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, tendo por referência as práticas anteriores”.
Como se disse atrás, o provimento por meio de contrato individual de trabalho parece ter sido previsto no Decreto-Lei n.º 60/92/M para os recrutados ao exterior que viessem a ser contratados por entidades privadas. Mas, em bom rigor, o mesmo Decreto-Lei n.º 60/92/M não exclui, de todo, que o contrato individual de trabalho pudesse ser um instrumento contratual para os que viessem a prestar serviço nos serviços e organismos públicos, nos serviços e fundos autónomos, bem como nas empresas públicas e demais pessoas colectivas de direito público.
Mas, enquanto o regime dos contratados além do quadro e dos assalariados obedece ao regime fixado para a função pública, já o contrato individual de trabalho obedece ao regime que for fixado no respectivo contrato (artigo 7.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 60/92/M).
Desta forma, por exemplo, enquanto o regime dos direitos e regalias dos contratados além do quadro, incluindo o montante dos respectivos vencimentos, resulta da lei e demais normativos aplicáveis à função pública, não sendo possível fixar vencimentos diferentes para pessoas que estiverem providas na mesma categoria e escalão de vencimentos, já os providos por contrato individual de trabalho podem beneficiar de direitos e regalias diversos, incluindo vencimentos, desde que seja isso acordado entre as partes, desde que seja isso que resulte do respectivo contrato.
Entretanto, em 2009 foi publicada uma lei que alterou o panorama que ficou descrito. Referimo-nos à Lei n.º 14/2009, de 3 de Agosto, relativa ao regime das carreiras dos trabalhadores dos serviços públicos, que entrou em vigor em 4 de Agosto de 2009 (artigo 82.º), complementada, no que ao pessoal de enfermagem concerne, pela Lei n.º 18/2009, de 17 de Agosto, que estabeleceu o regime da carreira de enfermagem e que entrou em vigor em 18 de Agosto de 2009 (artigo 40.º).
Segundo o n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 14/2009, “O regime das carreiras é aplicável aos trabalhadores providos em regime de nomeação provisória ou definitiva, nomeação em comissão de serviço, contrato além do quadro, contrato de assalariamento e contrato individual de trabalho nos serviços públicos da RAEM”.
Por conseguinte, a partir da entrada em vigor desta norma, os providos por contrato individual de trabalho nos serviços públicos passam a estar sujeitos ao regime das carreiras.
Contudo, nos termos do artigo 1.º, n.º 4, alínea 3), “O regime das carreiras não é aplicável aos trabalhadores providos para servirem como consultores ou em funções técnicas especializadas”, sendo que a contratação destes trabalhadores “depende da autorização indelegável do Chefe do Executivo” [alínea 5)].
Apesar da obscuridade desta norma, parece ter-se querido15 referir-se ao pessoal mencionado pela mesma expressão, no 2.º parágrafo do artigo 99.º da Lei Básica, que não é a totalidade dos estrangeiros providos em funções públicas, sendo manifesto não se aplicar à recorrente que, sendo portador de bilhete de identidade de residente permanente [n.º XXXXXXX(X), emitido em 1 de Novembro de 2004, pelos SIM, referido no seu contrato celebrado em 2010], e tendo trabalhado em Macau antes do estabelecimento da RAEM, se lhe aplica antes o 1.º parágrafo do artigo 99.º.
Portanto, à recorrente nunca seria aplicável o disposto no artigo 1.º, n.º 4, alínea 3), Lei n.º 14/2009.
Porém, há que ter em conta o disposto no artigo 69.º da mesma Lei n.º 14/2009:
“Artigo 69.º
Contratos individuais de trabalho em vigor
1. Os contratos individuais de trabalho celebrados antes da data da entrada em vigor da presente lei e as suas renovações, continuam sujeitos à disciplina emergente desses contratos.
2. As partes, por sua iniciativa e mútuo acordo, podem optar por celebrar um novo contrato individual de trabalho regido pela presente lei.
3. A opção referida no número anterior deve ser exercida no prazo de 180 dias a contar da data da entrada em vigor da presente lei, retroagindo os efeitos do novo contrato a essa data.
4. Os contratos referidos no n.° 2 são celebrados tendo por referência a carreira a que corresponda as funções a desempenhar, tendo em conta as habilitações académicas ou profissionais legalmente exigidas, auferindo o trabalhador um índice de vencimento igual ou imediatamente superior ao que detém, caso não haja coincidência.
5. O tempo de serviço, para efeitos de progressão e acesso, dos contratos celebrados ao abrigo do n.° 2 é contado a partir da data de produção de efeitos do mesmo, não podendo ser anterior a data da entrada em vigor da presente lei.
6. Aos trabalhadores providos por contrato individual de trabalho não se lhes aplica o disposto no artigo anterior, contando-se o tempo de serviço para efeitos de progressão e acesso a partir da data da entrada em vigor da presente lei”.
Disposições similares vieram a constar do artigo 36.º da Lei n.º 18/2009, que regula o regime da carreira de enfermagem, onde se estatui:
“Artigo 36.º
Contratos individuais de trabalho em vigor
1. Os contratos individuais de trabalho celebrados antes da data da entrada em vigor da presente lei e as suas renovações continuam sujeitos à disciplina emergente desses contratos.
2. As partes, por sua iniciativa e mútuo acordo, podem optar por celebrar um novo contrato individual de trabalho regido pela presente lei.
3. A opção referida no número anterior deve ser exercida no prazo de 180 dias a contar da data da entrada em vigor da presente lei, retroagindo os efeitos do novo contrato a essa data.
4. Os contratos referidos no n.º 2 são celebrados tendo por referência o desenvolvimento da carreira constante do anexo I ou no anexo III da presente lei, tendo em conta, respectivamente, as habilitações académicas ou profissionais legalmente exigidas, mantendo os trabalhadores a categoria e escalão anteriormente detidos.
5. Nos casos previstos no n.º 2 o tempo de serviço, para efeitos de progressão e acesso, é contado a partir da data de produção de efeitos dos novos contratos”.

O último contrato individual de trabalho da recorrente foi celebrado em 2004, para vigorar de 1 de Agosto de 2004 até 31 de Julho de 2005, tendo tido renovações e alterações posteriores, pelo que se lhe aplica o estabelecido no artigo 69.º, n.º 1, da Lei n.º 14/2009 e o artigo 36.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2009, uma vez que no prazo de 180 dias a contar da entrada em vigor desta última Lei não foi celebrado novo contrato regido pela mesma Lei.
Daqui resulta que o regime de trabalho da recorrente é o que for fixado no respectivo contrato individual de trabalho, por aplicação dos princípios do Decreto-Lei n.º 60/92/M (designadamente do seu artigo 7.º, n.º 3), por força do artigo 3.º, n.º 3, e Anexo II, da Lei n.º 1/999, não lhe sendo aplicável, em princípio, o regime fixado para a função pública.
E, por isso, é que o contrato da recorrente tem 18 cláusulas, dispondo sobre o objecto do contrato, prazo, horário de trabalho, remuneração, subsídios de férias e de Natal, férias, subsídio de família, assistência médica e medicamentosa, ajudas de custo, cessação do contrato por justa causa, rescisão unilateral por parte do contratado, viagem de regresso a Portugal, alojamento, trasladação de restos mortais, compensações na cessação definitiva de funções e encargos.
É certo que, de acordo com a cláusula 18.ª, nos casos omissos, o contrato se rege pelas regras gerais vigentes para os trabalhadores da Administração Pública e que a recorrente recebe uma remuneração correspondente a uma categoria de enfermeiro e escalão de vencimento previsto no regime jurídico do pessoal de enfermagem, e que, de acordo com o n.º 3 da cláusula 4.ª do seu contrato, a remuneração mensal é actualizada na mesma proporção que o forem os vencimentos da Administração Pública.
Mas trata-se de remuneração contratual, não regida por lei, não estando excluído que a Administração com outros contraentes acorde de maneira diversa.

7. O caso dos autos
Estamos em condições de concluir.
O regime contratual da recorrente é profundamente diverso do regime dos enfermeiros do quadro e dos contratados além do quadro.
Enquanto que o regime dos enfermeiros do quadro, dos contratados além do quadro, dos assalariados e o dos novos contratos individuais de trabalho resulta da lei, o regime do recorrente resulta apenas do contrato que outorgou.
A Lei n.º 18/2009, que estabelece o regime jurídico da carreira de enfermagem e que entrou em vigor em 18 de Agosto de 2009, faz retroagir a 1 de Julho de 2007 as valorizações indiciárias dos vencimentos previstos para os enfermeiros do quadro, dos contratados além do quadro e dos assalariados (artigo 40.º, n.º 2, da Lei), não estendendo tal retroacção aos enfermeiros no regime de contrato individual de trabalho.
Afigura-se de que se trata de uma opção que se encontra dentro da discricionariedade do legislador, não violando o princípio da igualdade.
No caso dos autos, a lei trata desigualmente duas situações. Como referimos atrás, o que importa é se estas situações são iguais ou diferentes. Se as situações forem diferentes não há qualquer violação do princípio da igualdade.
No já mencionado Acórdão de 12 de Maio de 2010 dissemos o seguinte:
Como referem J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA16, “A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como igual. Nesta perspectiva, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes. Porém, a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que há-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da «discricionariedade legislativa» são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma «infracção» do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio”.
Por outro lado, de acordo com os mesmos autores, “A proibição do arbítrio é particularmente relevante quando se compara o tratamento jurídico dedicado a grupos normativos de destinatários. Nestes casos, a violação do princípio da igualdade reconduz-se à desigualdade de tratamento de um grupo de destinatários da norma em relação a outros grupo de destinatários, não obstante a inexistência de qualquer diferença justificativa de tratamento desigual”17.
Por vezes, a lei considera desiguais duas situações que o não são por errada qualificação. Aqui haverá violação do princípio da igualdade.
Há, então, que determinar quais os valores segundo os quais se pode afirmar a igualdade ou desigualdade jurídica das situações.
Como as normas são meios de realização de fins, tem-se visto na conexão entre as normas com os respectivos fins o critério aferidor da igualdade ou desigualdade jurídica das situações.
Quando não haja conexão, ou ela seja insuficiente ou falha de razoabilidade para obter o fim visado pela norma, há violação do princípio da igualdade18.
Por outro lado, tal conexão tem de ter um fundamento material bastante.
Quer dizer, sem prejuízo da discricionariedade legislativa que deve ser reconhecida ao legislador, viola o princípio da igualdade a existência de regimes legais contraditórios aplicáveis a funcionários públicos, sem qualquer justificação razoável, ou seja, o arbítrio legislativo, o tratamento diferenciado injustificado.

5. Controlo judicial da legalidade das normas
De outra banda, em sede de controlo de legalidade das normas jurídicas, em face do parâmetro da Lei Básica, importa ponderar que “não cabe aos respectivos órgãos emitir propriamente um juízo ‹positivo› sobre a solução legal: ou seja, um juízo em que o órgão de controlo comece por ponderar a situação como se fora o legislador (e como que “substituindo-se” a este) para depois aferir da racionalidade da solução legislativa pela sua própria ideia do que seria, no caso, a solução ‹razoável›, ‹justa› ou ‹ideal›. Os órgãos de controlo da constitucionalidade não podem ir tão longe: o que lhes cabe é tão somente um juízo ‹negativo›, que afaste aquelas soluções legais de todo o ponto insusceptíveis de credenciar-se racionalmente”19.
Dito de outro modo: “a teoria da proibição do arbítrio não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, mas antes expressa e limita a competência do controlo judicial”, pelo que, perante este “critério essencialmente negativo, são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade”, o que só ocorrerá quando as diferenças instituídas pelo legislador forem “não fundamentadas, não objectivas, não razoáveis>20.
No caso dos autos, se bem que o legislador pudesse ter estabelecido o mesmo regime para todos os enfermeiros, considera-se que a diferenciação de remuneração transitória, efectuada entre os vários grupos de funcionários, não constitui flagrante e intolerável desigualdade, por se integrar dentro da discricionariedade do legislador.
Com o que se conclui que não houve violação do princípio da igualdade.
Improcede, assim, o recurso.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC.

Macau, 4 de Julho de 2012.

  Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho

   1 A rigidez consiste em determinadas leis terem um procedimento agravado de revisão.
     2 XIAO WEIYUN, Macau e a Lei Básica de Macau, Editora do Diário de Macau, Macau, 1ª ed., 1998, p. 151.
   3 XIAO WEIYUN, Macau..., p. 155.
4 Como se sabe, no país berço da judicial review – os Estados Unidos da América - nenhum preceito constitucional expresso confere o poder de fiscalização da constitucionalidade das leis aos tribunais (Cfr. JORGE MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 133).
5 WANG ZHENMIN, O Regime da Fiscalização da Constitucionalidade das Leis na China, Pequim, Editora da Universidade de Ciências Políticas e Direito da China, 2004, p. 339.
6 WANG ZHENMIN, O Regime..., p. 356 e 357.
    7 XIAO WEIYUN, Macau..., p. 215.
8 J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 2003, 7.ª edição, p. 893.
9 Desde que seja dada possibilidade às partes de se pronunciarem sobre a matéria.
   10 SANTOS BOTELHO, Contencioso Administrativo, Coimbra, Almedina, 2.ª ed., 1999, p.322.
   11 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 9.ªed., Tomo II, p. 1350.
   12 Era esse o regime legal ao tempo.
   13 F. ALVES CORREIA, A impugnação jurisdicional de normas administrativas, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 16, p. 18.
   14 AFONSO QUEIRÓ, Teoria dos regulamentos, in Revista de Direito e Estudos Sociais, Janeiro-Março de 1986, Ano I (2.ª Série), n.º 1, p. 30.
   15 Embora seja duvidoso que se tivesse obtido o que se pretendia, já que nem todos os consultores ou que exercem funções técnicas especializadas são estrangeiros, nem a norma se refere a estrangeiros.
16 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, Volume I, 4.ª edição, p. 339.
17 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., Volume I, p. 340.
18 MARIA DA GLÓRIA FERREIRA PINTO, Princípio da Igualdade, Fórmula Vazia ou Fórmula Carregada de Sentido?, separata do Boletim do Ministério da Justiça n.º 358, Lisboa, p. 27.
19 JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, Tomo I, p. 125, citando parecer da Comissão Constitucional portuguesa.
20 MARIA LÚCIA AMARAL, O princípio da Igualdade na Constituição Portuguesa, em Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2004, p. 52.
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1
Processo n.º 33/2012