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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Chefe do Executivo, de 3 de Setembro de 2009, que declarou a nulidade do seu despacho de 6 de Outubro de 2005 que, homologando parecer da Comissão de Terras, deferiu pedido de revisão de concessão, por aforamento, de um terreno sito em Macau, no [Endereço (1)].
O despacho do Chefe do Executivo, de 3 de Setembro de 2009, fundamentou-se no facto de o procedimento que culminou na mencionada revisão de concessão (despacho de 6 de Outubro de 2005) ter na sua base actos de corrupção passiva para acto ilícito, pelo qual foi condenado judicialmente o então Secretário para os Transportes e Obras Públicas.
Por acórdão de 8 de Março de 2012, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) concedeu provimento ao recurso e anulou o acto recorrido por preterição da formalidade da audiência da interessada no procedimento que conduziu à prolação do mesmo acto, o despacho de 3 de Setembro de 2009.
  Inconformado, interpõe o Chefe do Executivo recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
  - O douto acórdão recorrido enferma de erro de julgamento, violando o princípio utile per inutile non vitiatur ou do aproveitamento do acto administrativo, ao decidir anular o acto recorrido por preterição da audiência prévia da interessada e, assim, considerar como detendo eficácia invalidante a não realização desta formalidade legal.
  - Tendo em conta que o fim legal da audiência prévia dos interessados, imposta pelos artigos 10.º e 93.º do CPA, é proporcionar aos mesmos a possibilidade de se pronunciarem sobre o objecto do procedimento a fim de chamarem a atenção do órgão competente para a decisão da relevância de certos interesses ou pontos de vista, torna-se evidente que, no caso, tratando-se de acto de declaração de nulidade de acto anterior, a Administração encontrava-se vinculada a essa nulidade, pelo que os eventuais factos ou motivos a apresentar pelos interessados se mostrariam totalmente irrelevantes e inócuos, nunca passíveis de alterar o sentido do acto.
  - Atente-se que o despacho impugnado pela recorrente não foi praticado ao abrigo de um poder discricionário da Administração, neste caso, do Chefe do Executivo, mas sim no âmbito de um poder estritamente vinculado.
  - No âmbito do acórdão condenatório do processo n.º 53/2008 TUI ficou provado que o procedimento de revisão da concessão em questão envolveu a prática de um crime de corrupção passiva por acto ilícito, por parte do então SOPT, e tendo em conta o disposto na alínea c) n.º 2 do artigo 122.º do CPA, o acto do Chefe do Executivo em situação alguma poderia ter outro conteúdo decisório, pelo que, com ou sem a audiência prévia da interessada, o acto contenciosamente recorrido teria sempre que ser aquele.
  - Pois, de acordo com o preceituado na alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º e no n.º 2 do artigo 123.º, ambos do CPA, impunha-se à Administração declarar essa nulidade, não restando dúvidas que, contrariamente ao que decidiu o acórdão recorrido, essa decisão se enquadra no âmbito do exercício de poderes absolutamente vinculados, pelo que, no caso concreto, não havia a mais ténue possibilidade dos interessados exercerem qualquer tipo de influência, quer pelos esclarecimentos prestados, quer pelo chamamento da atenção para certos aspectos de facto e de direito, na decisão a proferir pela Administração;
  - E o facto de a recorrente ter ou não sido julgada pelo crime de corrupção activa é perfeitamente irrelevante para o acto posto em crise, porquanto mesmo que aquela viesse a ser absolvida em sede própria, sempre se manteria inquinado o acto que autorizou a revisão de concessão, pois envolveu a prática de um crime de corrupção passiva por acto ilícito, com trânsito em julgado, encontrando-se por conseguinte inelutavelmente contaminado por aquele crime.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer em que se pronuncia pela procedência do recurso.

II - Os Factos
Estão provados os seguintes factos:
a) Por Acórdão de 22 de Abril de 2009, transitado em julgado, proferido no Processo n.º 53/2008, o Tribunal de Última Instância condenou B, ex-Secretário para os Transportes e Obras Públicas, além do mais, pela prática de um crime de corrupção passiva para a prática de acto ilícito, previsto e punível pelo artigo 337.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, por ter recebido HKD$2.000.000,00 de C, na qualidade de representante legal de A para assegurar o pedido de revisão de concessão, por aforamento, de um terreno sito em Macau, no [Endereço (1)], bem como a construção de um prédio com 18 andares;
b) Com fundamento em tal decisão judicial, o Chefe do Executivo, por despacho de 3 de Setembro de 2009, declarou a nulidade do seu despacho de 6 de Outubro de 2005 que, homologando parecer da Comissão de Terras, deferiu pedido de revisão de concessão, por aforamento, de um terreno sito em Macau, no [Endereço (1)].
c) A não teve qualquer participação, designadamente por meio da audiência prevista no artigo 93.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, no procedimento administrativo em que foi praticado o despacho de 3 de Setembro de 2009.
O acto recorrido é o despacho de 3 de Setembro de 2009, mencionado na alínea b).

III – O Direito
1. As questões a apreciar
As questões a apreciar são as seguintes:
- Em primeiro lugar, a de saber se a audiência dos interessados, a que alude o artigo 93.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, era ou não obrigatória, no caso dos autos, antes de ser emitido o acto recorrido.
- A segunda questão, atinente à interpretação do artigo 122.º, n.º 2, alínea c), do Código do Procedimento Administrativo, designadamente, apurar se um acto administrativo que tenha sido determinado por parecer motivado por acto de corrupção passiva para a prática de acto ilícito, é nulo para efeitos da mencionada norma.
- A terceira, decidir se, tendo-se o acto recorrido – que declarou a nulidade de outro anterior – baseado em condenação judicial, transitada em julgado, do agente que foi passivamente corrompido, condenação essa que não abrangeu o corruptor activo, é para a Administração um acto vinculado, ou se existe no acto algum momento discricionário.

2. Audiência dos interessados
Trata-se de saber se a audiência dos interessados, antes da decisão, mencionada no artigo 93.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, era ou não obrigatória, no caso dos autos, antes de ser emitido o acto recorrido.
No caso dos autos o acto administrativo recorrido, do Chefe do Executivo, que declarou a nulidade do seu despacho de 6 de Outubro de 2005 (despacho este que, homologando parecer da Comissão de Terras, deferiu pedido de revisão de concessão, por aforamento, de um terreno sito em Macau, no [Endereço (1)]) não foi precedido da audiência, mencionada no artigo 93.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.
Nessa norma, que adiante examinaremos mais detidamente, estatui-se que:

“...concluída a instrução, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta.”
A entidade recorrida considera que, tratando-se de acto de conteúdo vinculado, que não poderia ter outro sentido e conteúdo, tal formalidade se degrada em não essencial, pelo que a sua omissão não inquina o procedimento administrativo e, portanto, o acto administrativo proferido nesse procedimento.
Importa, assim, apurar se é exacta esta tese, de que no domínio dos actos administrativos praticados no exercício de poderes vinculados, a omissão da realização da audiência do interessado, antes de ser proferida decisão final, não constitui vício invalidante do procedimento e do acto.

3. Formalidades essenciais e não essenciais
O procedimento administrativo consiste numa sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade da Administração Pública, ou à sua execução (artigo 1.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo).
Ensina MARCELLO CAETANO1 que formalidade é “todo o acto ou facto, ainda que meramente ritual, exigido por lei para segurança da formação ou da expressão da vontade de um órgão de uma pessoa colectiva”, acrescentando que “os próprios prazos estabelecidos para a prática de um acto entram no conceito genérico de formalidade bem como os actos preparatórios, decisões ou deliberações que tendem a tornar possível a prática do acto definitivo, num caso e noutro formalidades relativas à formação da vontade administrativa; as que integram a forma respeitam à expressão ou manifestação dessa vontade”.
Como se sabe, as formalidades são essenciais ou não essenciais, consoante a sua preterição ou omissão afecte ou não a validade do acto que delas dependa ou que por elas se traduza.
Em princípio, toda a formalidade prescrita por lei é essencial, pelo que tem de ser observada para que o acto seja válido.
A sua não observância, quer por omissão, quer por preterição, gera invalidade do acto.2
Mas, ainda na lição de MARCELLO CAETANO3, “Aparte os casos em que a lei declare essenciais ou não essenciais as formalidades, devem considerar-se como não essenciais:
a) as formalidades preteridas ou irregularmente praticadas quando, apesar da omissão ou irregularidade, se tenha verificado o facto que elas se destinavam a preparar ou alcançado o objectivo específico que mediante elas se visava produzir;
b) as formalidades meramente burocráticas prescritas na lei com o intuito de assegurar a boa marcha interna dos serviços.

4. Actos vinculados e actos discricionários
Explica MARCELLO CAETANO4 que “... umas vezes a lei ou os estatutos regulam as circunstâncias em que o órgão deve exercer o poder que lhe está confiado, impondo-lhe que actue sempre que concorram essas circunstâncias, e determinam o modo de actuar e o conteúdo do acto.
Outras vezes a norma deixa ao órgão certa liberdade de apreciação acerca da conveniência e da oportunidade de exercer o poder, e até sobre o modo desse exercício e o conteúdo do acto, permitindo-lhe que escolha uma das várias atitudes ou soluções que os termos da lei admitam”.
No primeiro caso trata-se de exercício de poder vinculado. No segundo, o poder é discricionário.
Ora, tem-se entendido que, por força do princípio do aproveitamento dos actos administrativos proferidos no uso de poderes vinculados, o tribunal não deve invalidar o acto administrativo, apesar do vício de violação de lei (ou outro) constatado, se o sentido da decisão do acto for aquele que o direito imporia.5
Pois bem, a tese da entidade recorrida é que a omissão da formalidade da audiência prévia à decisão do acto administrativo ora impugnado se degradou em não essencial por força do princípio do aproveitamento dos actos administrativos, visto que, face ao Acórdão do TUI, que condenou por corrupção passiva o Ex-Secretário das Obras Públicas, por factos que estiveram na génese no despacho de 6 de Julho de 2006, a Administração estaria obrigada a declarar a nulidade deste acto.
O acto administrativo recorrido seria, assim, um acto proferido no uso de poderes vinculados.
Cumpre, assim, ponderar, de seguida, se é certo que omissão da formalidade da audiência do interessado prévia à decisão do acto se degrada em não essencial por força do princípio do aproveitamento dos actos administrativos, quando esteja em causa um acto vinculado.

5. A formalização do procedimento administrativo
“O procedimento administrativo é a Administração em acção e, por isso, constitui o modo de realização do Direito Administrativo (pelo menos na medida em que este careça de concretização, ou seja, não integre normas exequíveis por si mesmas)”6.
Formalizar o procedimento administrativo significa vincular a Administração a praticar determinados actos e formalidades antes de tomar uma decisão final relativa a certo circunstancialismo fáctico. “Daí que a formalização signifique a limitação da possibilidade de a Administração estruturar o procedimento administrativo (que, insista-se, sempre tem de ser realizado em razão da própria orgânica administrativa) casuisticamente”7.
Pondera PEDRO MACHETE que “O procedimento administrativo não formalizado significa a possibilidade de o administrado ser tratado como «objecto», ver o seu papel procedimental reduzido a simples meio ou elementos de prova submetido passivamente ao poder inquisitório da Administração (potestas inspiciendi suprema). Daí que o significado fundamental da formalização do procedimento administrativo, no quadro de valores próprio de um Estado de Direito, seja o de reconhecer o particular como pessoa dotada de uma dignidade intangível que não pode ser tratada como objecto passivo. A tradução procedimental desta valoração é o reconhecimento do particular como sujeito procedimental”8.

6. Audiência dos interessados (continuação)
O artigo 10.º do Código do Procedimento Administrativo consagra o princípio da participação dos particulares na formação das decisões administrativas nos seguintes termos:
“Os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes disserem respeito, designadamente através da respectiva audiência, nos termos deste Código”.
A audiência dos interessados é o momento por excelência da participação dos particulares no procedimento administrativo.9
Por outro lado, a doutrina sublinha, justamente, que a audiência dos interessados antes de ser tomada a decisão final é um direito e não uma benesse da Administração, aliás, como resulta da própria letra da lei.10 Acrescenta ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA que “Na audição, o cidadão deve ter a possibilidade real de levar para o processo a sua visão das questões relevantes. O direito à audição constitui uma garantia de um procedimento transparente (protecção contra decisões-surpresa), de igualdade de oportunidades e de uma decisão que atende às circunstâncias do caso concreto. Estes objectivos fundamentais não são garantidos apenas através da audição, mas também através de outros mecanismos, como direito à orientação e ao aconselhamento, o direito à colaboração no esclarecimento dos factos, o direito à consulta do processo, o direito a ser informado ou o direito a uma clara e completa fundamentação da decisão final.
O direito à audição não serve apenas à protecção jurídica subjectiva, mas visa também fins de formação de consenso, maior proximidade aos factos e aumento da aceitação das decisões. Trata-se pois de uma formalidade que se insere na tendência da moderna Administração para dialogar, buscar o consenso, enfim, realizar a justiça material”.
A formalidade da realização da audiência está prevista no artigo 93.º do mesmo Código:

“Artigo 93.º
(Audiência dos interessados)

1. Salvo o disposto nos artigos 96.º e 97.º, concluída a instrução, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta.
2. O órgão instrutor decide, em cada caso, se a audiência dos interessados é escrita ou oral.
3. A realização da audiência dos interessados suspende a contagem de prazos em todos os procedimentos administrativos”.

7. Inexistência e dispensa de audiência dos interessados
A audiência dos interessados nem sempre é obrigatória. A lei prevê expressamente casos em que não existe audiência e casos em que o órgão instrutor a pode dispensar.
Regem nesta matéria os artigos 96.º e 97.º do Código do Procedimento Administrativo:
“Artigo 96.º
(Inexistência de audiência dos interessados)

Não há lugar a audiência dos interessados:
a) Quando a decisão seja urgente;
b) Quando seja razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão;
c) Quando o número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo nesse caso proceder-se a consulta pública, quando possível, pela forma mais adequada.
Artigo 97.º
(Dispensa de audiência dos interessados)

O órgão instrutor pode dispensar a audiência dos interessados nos seguintes casos:
a) Se os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas;
b) Se os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão favorável aos interessados”.

Com base em normas semelhantes às apontadas, a jurisprudência portuguesa dividiu-se quanto à questão de saber se, no caso de actos vinculados, o princípio do aproveitamento dos actos administrativos degradaria em formalidade não essencial e, portanto, não invalidante do acto, a omissão da audiência do interessado. Num primeiro momento (década de 90 do século passado), a jurisprudência dominante inclinou-se para a solução afirmativa. Dizia-se que não se deveria anular o acto administrativo, por ser irrelevante o vício procedimental, sempre que através de um juízo de prognose póstuma o Tribunal conclua que a decisão tomada era a única concretamente possível. Posteriormente, tem prevalecido a tese negativa.
  Vejamos. Como nota LUÍS CABRAL DE MONCADA “A audiência prévia é seguramente o conteúdo procedimental mínimo da relação jurídica administrativa. Por essa razão devem ser contados os casos em que a Administração dele pode prescindir bem como os casos em que em procedimentos especiais ela está como que reduzida ao mínimo expoente por poderosas razões de interesse público.
  É, portanto, dentro de um enquadramento necessariamente muito restritivo que se deve admitir a dispensa legal da audiência e a possibilidade de a Administração considerar que a lei lhe deu a possibilidade de prescindir da audiência prévia do particular no procedimento administrativo. É a própria substância da relação jurídica administrativa que está em causa se não for assim”.11
O artigo 93.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, ao estatuir que, “salvo o disposto nos artigos 96.º e 97.º, concluída a instrução, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final...” é uma norma imperativa. Nunca se controverteu esta asserção.
As situações de inexistência e de dispensa de audiência, previstas nos artigos 96.º e 97.º são excepções àquela regra.
Na verdade, o legislador optou por consagrar uma enumeração taxativa dos casos de inexistência e de dispensa de audiência, podendo ter optado por outra solução, como uma cláusula geral de excepção ao dever de audiência, conferindo uma margem de decisão à Administração, como acontece na legislação alemã.12 Não é o caso.
Esta circunstância conduz PEDRO MACHETE 13 a defender que está afastada a possibilidade de aplicar analogicamente normas como as dos 96.º e 97.º, na medida em que a lei proíbe a aplicação analógica das normas excepcionais (artigo 10.º do Código Civil vigente, artigo 11.º do Código Civil de 1966).
Não obstante, entende-se que, em caso de acto vinculado, a falta de audiência não prejudica o resultado final, pois se alcança o objectivo específico que com a audiência se visava produzir, que era o de permitir uma formação da vontade da Administração mais esclarecida, já que o sentido do acto sempre seria o mesmo.
Conclui-se, assim, que, em caso de acto vinculado a audiência do interessado não deixa de ser obrigatória, mas a sua omissão se degrada em formalidade não essencial, pelo que não produz anulação do acto administrativo.

8. Acto administrativo que tenha sido determinado por parecer motivado por acto de corrupção passiva para a prática de acto ilícito
Trata-se de saber se, para efeitos do disposto no artigo 122.º, n.º 2, alínea c), do Código do Procedimento Administrativo, um acto administrativo que tenha sido determinado por parecer motivado por acto de corrupção passiva para a prática de acto ilícito, é nulo para efeitos da mencionada norma.
Dispõe este artigo:
“Artigo 122.º
(Actos nulos)
1. São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.
2. São, designadamente, actos nulos:
a) ...
b)...
c) Os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime;
d) ...
e) ...
f)...
g) ...
h)...
i) ...”
O objecto do acto administrativo é a produção de efeitos jurídicos no caso concreto14, é o efeito jurídico criado ou declarado15.
No caso dos autos, o objecto do despacho de 6 de Outubro de 2005 que, homologando parecer da Comissão de Terras, deferiu pedido de revisão de concessão, por aforamento, de um terreno sito em Macau, no [Endereço (1)], não constitui qualquer crime, pelo que, em termos literais, poderia parecer não ter aqui aplicação a alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.
Contudo, a doutrina tem feito uma interpretação extensiva da norma, que é totalmente justificável.
MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS16 sustentam que:
  “A expressão «actos administrativos que impliquem a prática de um crime» tem que ser objecto de interpretação extensiva: não estão em causa apenas as situações em que o acto administrativo em si preenche um tipo penal, mas todas aquelas em que o acto administrativo envolva, na sua preparação ou execução, a prática de um crime.
  Exemplos de actos administrativos que implicam a prática de crimes: um acto administrativo de conteúdo difamatório para o seu destinatário; um acto praticado sob extorsão; uma ordem dada por um superior a um subalterno para que exerça violência física injustificada sobre pessoas”.
E MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM17 escrevem:
  “Consideramos abrangidos na parte final desta alínea c) – mesmo se parece estranho o facto do legislador se referir apenas ao «objecto» do acto administrativo – também aqueles que, não sendo crime por esse lado, o são pela sua motivação ou finalidade, quando esta seja relevante para a respectiva prática. Diríamos, portanto, serem nulos não apenas os actos cujo objecto (cujo conteúdo) constitua um crime, mas também aqueles cuja prática envolva a prática de um crime.
  Estão nessas circunstâncias, por exemplo, os actos que se fundem em documentos administrativamente falsificados (actas ou convocatórias forjadas, etc.) ou os actos que sejam praticados mediante suborno ou por corrupção”.
Pois bem, tendo-se o despacho de 6 de Outubro de 2005 baseado em parecer, que foi obtido por acto de corrupção passiva para a prática de acto ilícito, considera-se que ele estava, efectivamente, ferido de nulidade.

9. Prova da corrupção passiva
Por último, há que decidir se, tendo-se o acto recorrido – que declarou a nulidade de outro anterior – baseado em condenação judicial, transitada em julgado, do agente que foi passivamente corrompido, condenação essa que não abrangeu o corruptor activo, é para a Administração um acto vinculado, ou se existe no acto algum momento discricionário.
A mencionada condenação judicial apenas abrangeu o corrupto passivo visto que este tinha um foro próprio, tendo o corruptor activo sido, posteriormente, julgado por um Tribunal de 1.ª Instância.
Afigura-se-nos que no Acórdão recorrido se faz uma ténue, mas visível confusão, entre a questão de saber se a Administração devia considerar provada a prática do crime, com a questão da vinculação ou discricionariedade do acto administrativo de 3 de Setembro de 2009.
Ora, tendo o corrupto passivo sido condenado judicialmente, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de corrupção passiva para a prática de acto ilícito, está definitivamente provado – para sempre e erga omnes - que o despacho de 6 de Outubro de 2005 se baseou em parecer, que foi obtido por acto de corrupção passiva para a prática de acto ilícito, porque tais factos se provaram naquela sentença.
É inteiramente irrelevante a questão de saber se o Acórdão de 22 de Abril de 2009, do Tribunal de Última Instância, que condenou B, ex-Secretário para os Transportes e Obras Públicas, vincula ou não C, representante legal da ora recorrente.
O que interessa é que está definitivamente assente que na base do acto administrativo está a prática de um crime de corrupção, pelo qual foi condenado o corrupto passivo. Isso inquina irremediavelmente o despacho 6 de Outubro de 2005. Para este efeito, pouco importa quem foi o corruptor activo ou se veio a ser condenado, como efectivamente acabou por ser, embora, por estar em fuga, a respectiva condenação ainda não lhe foi notificada e, por isso, ainda não transitou em julgado (facto que é do conhecimento geral).
Quer dizer, há que afastar as águas. A declaração de nulidade do despacho de 6 de Outubro de 2005 não constitui uma sanção para o interessado no procedimento administrativo, por ser ou deixar de ser corruptor activo.
Mas, para a Administração, a condenação judicial definitiva, do corrupto passivo, prova que o acto administrativo foi inquinado por corrupção, independentemente de quem foi o corruptor activo que, no limite, poderia até não ser o interessado no procedimento administrativo atinente à declaração de nulidade do acto anterior.
Face à interpretação que atrás fizemos do artigo 122.º, n.º 2, alínea c), do Código do Procedimento Administrativo, a declaração de nulidade do despacho de 6 de Outubro de 2005 era, para a Administração, um acto vinculado.
Tendo nós concluído que, em caso de acto vinculado, a omissão da audiência do interessado se degrada em formalidade não essencial, pelo que não produz anulação do acto administrativo, importa tirar a conclusão final de que o despacho de 3 de Setembro de 2009 não enferma de vício de forma, por não ter sido precedido de audiência da interessada A.
Procede, portanto, o recurso.

IV – Decisão
Face ao expendido, julgam procedente o recurso, revogando o Acórdão recorrido.
Custas por A nas duas instâncias, com taxas de justiça, respectivamente no TSI e no TUI, de 15 UC e 7 UC.
Macau, 25 de Julho de 2012.
  Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
  
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho



Declaração de voto
  Dissenti quanto ao entendimento de que, em caso de acto vinculado, a falta de audiência do interessado constitui uma formalidade não essencial do procedimento administrativo, por me parecer uma tese dogmaticamente pouco solvente e, por isso, não subscrevo a fundamentação do Acórdão constante dos dois últimos parágrafos da página 16.
  No mais, subscrevo o Acórdão.
  Sucintamente, são as seguintes as razões para o meu entendimento:
  Como lembra JOÃO PACHECO DE AMORIM18, mesmo numa hipótese de competência vinculada pode sempre haver lugar a uma divergência sobre a interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis, designadamente, em todos os casos em que, seja pela ambiguidade das normas aplicáveis ou pela existência de lacunas extra-legais, a solução para o caso concreto possa ser mais do que uma.
  Ou seja, em qualquer momento de aplicação do Direito é essencial o contraditório, na medida em que contribui para uma melhor qualidade daquela aplicação, mesmo quando esteja em causa o exercício de poderes vinculados. Fazendo um paralelismo com a aplicação do direito processual pelos tribunais, diremos que esta é, como se sabe, uma actividade essencialmente vinculada, sendo muito raros os poderes discricionários dos juízes. Ora, nunca se suscitou qualquer dúvida que o cumprimento do contraditório, ouvindo as partes sobre questões de facto ou de direito, antes da decisão judicial, previsto na parte final do n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, tem lugar, também, quando o juiz exerce poderes vinculados.
  Acresce que a solução de que não se deveria anular o acto administrativo, sempre que o tribunal, através de um juízo de prognose póstuma, conclua que a decisão tomada era a única concretamente possível, enfrenta obstáculos dificilmente superáveis, destacados argutamente por MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS19:
  “... em ordem a concluir pelo carácter não viciado do acto em causa, o tribunal vai na prática ter que reinstruir o procedimento administrativo em substituição da administração, violando o princípio da separação de poderes; terceiro, porque para atingir o mesmo desiderato o tribunal vai ter que averiguar da existência de vícios que não foram alegados pelas partes (na medida em que estes constituem obstáculos à salvaguarda do acto), violando assim o princípio do dispositivo”.
  Na verdade, o tribunal para concluir que a decisão tomada era a única concretamente possível (acto totalmente vinculado) teria de investigar todas as condições de validade do acto administrativo, inclusive sindicar eventuais vícios de que o acto pudesse padecer, a que coubesse a sanção da anulabilidade, vícios de que lhe não cabe conhecer oficiosamente (artigo 124.º Código do Procedimento Administrativo), violando, assim, o princípio dispositivo.
  E nem se pode dizer que, no caso dos autos, a formalidade não era essencial por, apesar da omissão ou irregularidade, se ter verificado o facto que ela se destinava a preparar ou alcançado o objectivo específico que mediante ela se visava produzir, pois não se sabe que contribuição é que a interessada poderia ter dado na audiência e de que maneira é que isso poderia ter determinado outro sentido ao acto administrativo.
Macau, aos 25 de Julho de 2012.

Viriato Manuel Pinheiro de Lima

1 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, I volume, 10.ª ed., Coimbra, Almedina, 1980, p. 470.
   2 FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, Vol. I, 2.ª edição, 2011, p. 385.
   3 MARCELLO CAETANO, Manual..., I vol., p. 471 e 472.
4 MARCELLO CAETANO, Manual..., I vol., p. 214.
   5 Cfr., sobre o princípio do aproveitamento dos actos administrativos, os Acórdãos deste TUI, de 17 de Dezembro de 2003, no Processo n.º 29/2003 e de 10 de Maio de 2006, no Processo n.º 7/2006.
6 RAINER WAHL, citado por PEDRO MACHETE, A Audiência dos Interessados no Procedimento Administrativo, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2.ª edição, 1996, p. 79 e 80.
7 PEDRO MACHETE, A Audiência..., p. 84.
8 PEDRO MACHETE, A Audiência..., p. 88.
   9 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Actividade Administrativa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007, p. 127.
   10ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, A Participação dos Interessados no Procedimento Administrativo, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003, p. 105.
11 LUÍS CABRAL DE MONCADA, A Relação Jurídica Administrativa, Para um Novo Paradigma de Compreensão da Actividade, da Organização e do Contencioso Administrativos, Coimbra Editora, 2009, p. 226 e 227.
12 PEDRO MACHETE, A Audiência..., p. 477.
13 PEDRO MACHETE, A Audiência..., p. 476.
   14 MARCELLO CAETANO, Manual..., I vol., p. 481.
   15 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Lisboa, Almedina, 1980, p. 441.
   16 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito..., Tomo III, p. 162.
   17 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 1997, p. 645.
   18 JOÃO PACHECO DE AMORIM, A Instrução do Procedimento: Pareceres Vinculativos e Audiência dos Interessados no Código do Procedimento Administrativo, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 82, Julho/Agosto de 2010, p. 28 e 29.
   19 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito..., Tomo III, p. 129 e 130.
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Processo n.º 48/2012