打印全文
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
  I – Relatório
  A, que também usa A1 ou A2 ou A3 ou A4, B ou B1, C, D, E e F ou F1 intentaram acção declarativa com processo ordinário contra (1.º) G (2.º) H, (3.º) I e (4.º) J, pedindo:
  A) Se declare a inexistência jurídica ou, subsidiariamente, a nulidade da procuração supostamente outorgada por K, falecida em 14 de Janeiro de 1994, no Cartório da Notária Privada L em 24 de Novembro de 2004;
  B) Se declare a ineficácia, em relação aos Autores, ou subsidiariamente, a nulidade dos contratos de compra e venda que tiveram por objecto o prédio sito em Macau, outrora com o [Endereço (1)], composto por um terreno, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 40 verso, do livro XXX, foreiro à Região Administrativa Especial de Macau, conforme inscrição n.º XXXXXX, a fls. 144, do livro XXXX e omisso na matriz predial urbana dada a sua natureza e fins, celebrados pelos Réus através da:
- Escritura pública lavrada em 14 de Janeiro de 2005, a fls. 73 do livro 41 do Cartório da Notária Privada L, através da qual o 1.º Réu, supostamente em representação da falecida K declarou vender ao 2.º Réu que, por sua vez declarou comprar o imóvel em apreço pelo preço de MOP$1.000.000,00; e
- Escritura pública lavrada a fls. 70 do livro 14 do Cartório da Notária Privada M, através da qual o 2.º Réu declarou vender ao 3.º Réu e à 4.a Ré que, por seu turno, declararam comprar, o dito imóvel pelo preço de HKD$2.300.000,00;
  C) Se ordene, em consequência, o cancelamento na Conservatória do Registo Predial dos registos de aquisição fundados nas mencionadas compras e vendas e lavrados a favor dos Réus, ou seja o cancelamento das inscrições n.º XXXXXX e XXXXXX, ambas do livro G;
  D) Se declare serem os Autores, para todos os efeitos legais nomeadamente de registo, como titulares do domínio útil do prédio sito em Macau, outrora com o [Endereço (1)], composto por um terreno, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 40 verso, do livro XXX, foreiro a Região Administrativa Especial de Macau, conforme inscrição n.º XXXXXX, a fls. 144, do livro XXXX e omisso na matriz predial urbana dada a sua natureza e fins, por o haverem adquirido por usucapião.
  A acção foi julgada procedente.
  Em recurso interposto pelos 3.º e 4.º réus, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) concedeu parcial provimento ao recurso e determinou, nos termos do artigo 629.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, a remessa do processo à 1.ª instância para que os mesmos Juízes, que compuseram o tribunal colectivo, que julgou a matéria de facto, especifiquem os fundamentos que foram decisivos e essenciais para as respostas aos quesitos 9.º, 26.º e 27.º da base instrutória, com indicação das testemunhas ou documentos concretos relevantes para tal. Não sendo possível obter a fundamentação com os mesmos Juízes, que seja repetida a produção da prova aos mencionados quesitos.
  Inconformados, recorrem agora os autores A, que também usa A1 ou A2 ou A3, B, C, D, E e F ou F1 para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a revogação do Acórdão recorrido.
  Para tal, formulam as seguintes conclusões úteis:
  - O presente recurso tem por objecto o douto acórdão proferido pelo TSI que, dando procedência parcial ao recurso interposto pela 3.a e pelo 4.° Réus da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base, determinou com base no n.º 5 do artigo 629.° do CPC “que o processo seja remetido à 1a instância, a fim de (...) especifiquem os fundamentos (motivos) (...) que foram decisivos e essenciais para a resposta aos quesitos 9.°, 26.° e 27.° da base instrutória” e se “não for possível obter a fundamentação da prova com os mesmos juízes, seja repetida a produção da prova somente à matéria dos referidos quesitos”.
  - Ora, o n.º 2 do artigo 556.° do CPC é “meramente indicador, que não obriga o tribunal a descrever de modo minucioso o processo de raciocínio ou o iter lógico-racional que incidiu sobre a apreciação da prova submetida ao respectivo escrutínio; basta que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para análise crítica dos factos e decidir como decidiu”, pelo que não assiste razão ao Tribunal a quo na crítica que faz ao acórdão sobre a matéria de facto que não enferma então de qualquer vício, estando em conformidade com o disposto no citado n.º 2 do artigo 556.°.
  - Sucede que, apenas nos casos em que o facto deficientemente fundamentado, dado como provado ou não provado, se revelar concretamente essencial para a decisão da causa é que deverá a posteriori exigir-se essa fundamentação ou, dito de outro modo, apenas se esse facto, depois de analisados e ponderados todos os restantes factos que integram as causas de pedir invocadas e as respectivas excepções, se revelar essencial para uma decisão conscienciosa é que deverá dar-se provimento ao recurso que exija uma nova fundamentação sobre o julgamento proferido a esse ponto da matéria de facto.
  - Aqui chegados, é fácil constatar que os factos contidos nos artigos 9.°, 26.° e 27.° da base instrutória não são essenciais para a decisão da causa uma vez que foram dados como provados outros factos, em relação aos quais não foi suscitada deficiência de fundamentação, que tornam absolutamente inócua ou destituída de qualquer interesse para a decisão conscienciosa da causa a boa ou a má fé dos Réus na celebração dos aludidos negócios de compra e venda.
  - A inocuidade e a irrelevância da matéria factual constante dos quesitos 9.°, 26.° e 27.° da base instrutória para uma decisão conscienciosa da causa resultam também dos factos dados como provados nos quesitos 10.° a 24.°, os quais se reportam à segunda causa de pedir invocada pelos Autores e com base nos quais a sentença de 1.a instância deu provimento ao pedido dos Autores de serem declarados para todos os efeitos legais nomeadamente de registo titulares do domínio útil do imóvel a que se vem fazendo menção por o haverem adquirido por usucapião.
  - Ora, é fácil constatar que ainda que se considerasse que o regime de invalidade a aplicar aos negócios de compras e vendas celebrados entre os Réus seria o da nulidade (hipótese que apenas por dever de patrocínio se admite) e que, no momento da celebração desses negócios os Réus e, em particular, os ora Recorridos em relação à segunda das compras e vendas estavam de boa fé o efeito resultante dessa suposta boa fé seria totalmente destruído pela aquisição do prédio por usucapião pelos Autores o que, também por este motivo, torna a remessa dos autos à 1.a instância para produção de nova fundamentação ou novo julgamento aos referidos quesitos uma total inutilidade.
  
  II – Os factos
  a) Os factos considerados provados pelo Tribunal de Segunda Instância, são os seguintes:
  - Pela inscrição nº XXXXX, a fls. 36, verso, do livro XXX, com apresentação de 30/12/1964, está inscrita na Conservatória do Registo Predial de Macau a aquisição por compra, a favor de K, do prédio urbano sito em Macau, na frequesia de S. Lourenço, outrora com o nº [Endereço (1)], composto por um terreno, descrito na Conservatório Predial de Macau sob o nº XXXX, a fls. 40 verso, do livro XXX, e omisso na matriz predial respectiva (alínea A) da Especificação).
  - A aquisição, por compra, do prédio referido em A) mostra-se registada a favor do 2º Réu por apresentação de 18/01/2005 (alínea B) da Especificação).
  - A aquisição, por compra, do prédio referido em A) mostra-se registada a favor dos 3º e 4º Réus por apresentação de 23/02/2005 (alínea C) da Especificação).
  - A presente acção mostra-se registada por apresentação de 24/01/2008 (alínea D) da Especificação).
  - A petição inicial da presente acção deu entrada na secretaria judicial do tribunal no dia 24/01/2008 (alínea E) da Especificação).
  Da Base Instrutória
  - K, referida na al. A) dos F actos Assentes, faleceu em 30 de Janeiro de 1994 (resposta ao quesito 1º).
  - Faleceu no estado de casada com o 1 º Autor (resposta ao quesito 2º).
  - E é mãe dos restantes Autores (resposta ao quesito 3º).
  - Em 24 de Novembro de 2004, alguém cuja identidade não foi possível apurar, fazendo-se passar pela K, outorgou, no Cartório da Notária Privada L, uma procuração através da qual, declarou constituir procurador o 1º Réu (resposta ao quesito 4º).
  - E declarou conferir-lhe os mais amplos poderes em relação ao prédio referido em A), nomeadamente o poder de proceder à sua venda (resposta ao quesito 5º).
  - O 1º Réu, com o intuito de obter para si um enriquecimento a que sabia não ter direito, utilizou a referida procuração para outorgar uma escritura pública de compra e venda do prédio referido em A) (resposta ao quesito 6º).
  - E por escritura pública lavrada em 14 de Janeiro de 2005, a fls. 73 do livro XX do Catório da Notária Privada L, o 1º Réu arvorando-se, com base na referida procuração, da qualidade de procurador de K, a titular registada do prédio referido em A), declarou vender em representação daquela ao 2º Réu que, por sua vez, declarou comprar o dito imóvel, pelo preço de MOP$1,000,000.00 (um milhão de patacas) (resposta ao quesito 7º).
  - Mais tarde e decorrido que estava menos de um mês após aquela venda, uma vez mais à revelia dos Autores, o 2º Réu celebrou uma nova escritura, desta feita exarada a fls. 70 do livro XX do Cartório da Notária Privada M, através da qual declarou vender o mesmo prédio, pelo preço de HKD$2,300,000.00 ao 3º Réu à 4ª Ré que, por sua vez o declararam comprar (resposta ao quesito 8º).
  - O 1º Réu, quando outorgou as escrituras referidas, sabia que não havia sido K, mas alguém que se fez passar por ela, que outorgou a procuração referida em 4º; provado ainda que os demais Réus (2º, 3º e 4º), apesar de terem suspeitado que o prédio não havia sido adquirido pelo 1º Réu de modo lícito, conformaram-se com esta possibilidade, outorgando a respectiva escritura de compra e venda (resposta ao quesito 9º).
  - Desde Novembro de 1964 até Janeiro de 1994 que K é reconhecida como proprietária do prédio em litígio pela generalidade das pessoas (resposta ao quesito 10º).
  - E, tendo a convicção de ser proprietária de tal prédio (resposta ao quesito 11º).
  - Usou como armazém a construção que o compunha (resposta ao quesito 12º).
  - ininterruptamente (resposta ao quesito 13º).
  - À vista de toda a gente (resposta ao quesito 14º).
  - Sem oposição de ninguém (resposta ao quesito 15º).
  - E na convicção de não 1esar direito alheio (resposta ao quesito 16º).
  - Após o falecimento de K, os Autores, na convicção de serem proprietários do mesmo prédio por o terem adquirido por sucessão motris causa, e como tal sendo reconhecidos pela generalidade das pessoas, vêm-no limpando e vedando (resposta ao quesito 17º).
  - E deslocando-se ao mesmo para tais efeitos (resposta ao quesito 18º).
  - E mandando lá outras pessoas (resposta ao quesito 19º).
  - E vêm pagando os impostos relativos ao imóvel (resposta ao quesito 20º).
  - Tudo sem a posição de ninguém (resposta ao quesito 21º).
  - De forma ininterrupta (resposta ao quesito 22º).
  - E com consciência não lesar direito alheio (resposta ao quesito 23º).
  - Os Autores autorizaram, após a aquisição por parte dos 3º e 4º Réus, que de discute nestes autos, o instituto Cultural de Macau a utilizar o prédio em litígio para apoio às obras de reparação de casa do mandarim (resposta ao quesito 24º).
  - A apresentação em juízo e o registo da presente acção tiveram lugar antes de decorrido um ano sobre o fim do processo-crime iniciado em 2005 no qual esteve em julgamento um pedido cível que visava a declaração de nulidade dos contratos de compra e venda celebrados pelos Réus (resposta ao quesito 25º).
  
  III – O Direito
  1. As questões a resolver
  As questões a resolver são as seguintes:
  - Primeira, a de saber se a fundamentação do Acórdão que julgou a matéria de facto, em 1.ª instância, é suficiente;
  - A segunda, suposta a improcedência da anterior, a de saber se a remessa dos autos à 1.ª instância (para fundamentar o aludido julgamento) é inútil porque a matéria das respostas aos quesitos em causa (9.º, 26.º e 27.º) não é essencial para o julgamento da causa.
  - A terceira, suposta a improcedência das anteriores, se o facto de a sentença de 1.ª instância ter reconhecido a propriedade dos autores sobre o prédio, por meio de aquisição por usucapião, sem que tal decisão tenha sido impugnada pelos réus no recurso para o TSI, sempre conduziria à desnecessidade de remessa do processo à 1.ª instância.
  
  2. Fundamentação da decisão que julga a matéria de facto em 1.ª instância
  Trata-se de saber se a fundamentação do Acórdão que julgou a matéria de facto, em 1.ª instância não é suficiente, em particular a relativa às respostas aos quesitos 9.º, 26.º e 27.º da base instrutória.
  Tais quesitos eram do seguinte teor:
  9.
  Os réus, quando, respectivamente, outorgaram as escrituras referidas, sabiam que não havia sido K, mas alguém que se fez passar por ela, que outorgou a procuração referida em 4.º?
  26.
  Os 3.º e 4.º Réus em momento algum tiveram conhecimento de que o prédio em causa havia sido transmitido ao 2.º Réu através do uso de uma procuração não outorgada pela K?
  27.
  Agindo sempre na convicção de que adquiriram o prédio ao legítimo alienante.
  As respostas a tais quesitos foram as seguintes:
  Quesito 9:
  Provado que 1º Réu, quando outorgou as escrituras referidas, sabia que não havia sido K, mas alguém que se fez passar por ela, que outorgou a procuração referida em 4.º; provado ainda que os demais Réus (2º , 3º e 4º), apesar de terem suspeitado que o prédio não havia sido adquirido pelo 1.º Réu do modo lícito, conformaram-se com esta possibilidade, outorgando a respectiva escritura de compra e venda.
  Quesito 26:
  Não provado.
  Quesito 27:
  Não provado.
  
  A totalidade da fundamentação respeitante à decisão que julgou a matéria de facto foi a seguinte:
  “A convicção do Tribunal baseou-se no depoimento das partes e nos documentos juntos aos autos, nomeadamente os de fls. 19 a 35, 138 a 150, 207 a 212, 240 a 246, 254 a 261, 270 a 347, 412 a 446, 454 a 457, 487 a 490 dos autos do Processo Principal e, fls. 9 a 10, 46 a 47 dos autos da Restituição Provisória de Posse (Apenso), no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência, que depuseram com isenção e imparcialidade sobre os quesitos constantes da acta, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais e que tinham conhecimento pessoal, o que permitiu formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos”.
  Dispõe o artigo 556.º, n.º 2, do Código de Processo Civil:
“A matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou despacho, se o julgamento incumbir a juiz singular; a decisão proferida declara quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”.
  Recorde-se que a norma paralela do Código anterior, de 1961, o n.º 2 do artigo 653.º, estatuía o seguinte:
  “A matéria de facto é decidida por meio de acórdão: de entre os factos quesitados, o acórdão declarará quais o tribunal julga ou não provados, e quanto àqueles, especificará os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador ...”.
  As alterações relevantes do novo Código, foram, assim, as seguintes:
  - O novo Código impõe a fundamentação dos factos não provados, ao contrário do de 1961, que apenas exigia a fundamentação dos factos provados;
  - O novo Código exige a análise crítica das provas, exigência que o anterior não fazia.
  Relativamente a norma semelhante ao mencionado artigo 556.º, n.º 2, do Código de Processo Civil de Macau, explicam J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO1 que, na vigência do Código de 1961, na redacção anterior a 1995/96, a maioria da jurisprudência entendia como boa fundamentação a vaga referência aos meios de prova produzidos. E que, contra este estado de coisas, reagiu o legislador de 1995/96 (que foi a fonte inspiradora do Código de Macau, de 1999), acrescentando: “O tribunal deve, pois, por exemplo, explicitar porque acreditou em determinada testemunha e não em outra, porque se afastou das conclusões dum relatório pericial para se aproximar das de outro, por que razão o depoimento de uma testemunha com qualificações técnicas o convenceu mais do que um relatório pericial divergente ou por que é que, não obstante vários depoimentos produzidos sobre certo facto, não se convenceu de que ele se tivesse realmente verificado. Quando a prova é gravada, a sua análise crítica constitui complemento fundamental da gravação; indo, nomeadamente, além do mero significado das palavras do depoente (registadas em audiência e depois transcritas), evidencia a importância do modo como eles depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento; devendo o julgador fazer as observações que se impõem para que tal se torne transparente na audição da gravação feita, só, porém, a fundamentação revelará a medida em que tal terá sido decisivo para o convencimento do julgador. Ainda que a prova não seja gravada e, portanto, susceptível de ser reapreciada pela Relação (art.712-1-a a contrario2), a necessidade de fundamentação séria leva, indirectamente, o tribunal a melhor confrontar os vários elementos de prova, não se limitando à sua intuição ou às impressões mais fortes recebidas na audiência decorrida e considerando, um a um, todos os factores probatórios submetidos à sua livre apreciação, incluindo, nos casos indicados na lei (art. 519-2, 529, 665 e 357-2 CPC3), os relativos à conduta processual da parte. A fundamentação exerce, pois a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o auto-controlo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional”.
  Também RODRIGUES BASTOS4 afirma: “O preceito fala actualmente em análise crítica das provas; não creio que se tenha querido transferir para ali o «exame crítico das provas» que o juiz ter de fazer ao elaborar a sentença, com os factos já devidamente apurados; na fase das respostas o que deve e pode exigir-se do julgador é a explicação das razões que objectivamente o determinaram a ter ou não por averiguado determinado facto. Essa alteração formal teve talvez em vista condenar a prática, que se vinha generalizando, de indicar, como motivação das respostas, os depoimentos prestados e as outras provas produzidos. Isso, porém, é iludir o propósito da lei. É claro que qualquer opinião, que o juiz tenha formado, o foi perante as provas produzidas sobre determinada matéria, ou, em certos casos, perante a sua ausência. O que se pretende saber é como foi formada essa convicção, as razões em concreto que a determinaram. Já noutro lugar expressei a minha opinião sobre esta matéria. Vamo-nos repetir. Quando o juiz decide que certo facto está provado é porque foi levada esta conclusão por um raciocínio lógico, que tem de ter, na sua base, elementos probatórios produzidos. O que se determina nesta disposição é que o juiz revele essa motivação, de modo a esclarecer o processo racional que o levou à convicção expressa na resposta. Fazendo-o o juiz executa como que um controlo desse processo racional, e fica ele próprio defendido do perigo de expressar, como convicção formada, aquilo que pode não ter sido mais de que uma impressão pessoal de como deveriam ter ocorrido os factos. Justificando a resposta, o juiz, que julga com liberdade, demonstra que julga também com consciência”.
  Igualmente ensina M. TEIXEIRA DE SOUSA5 “Como, em geral, as provas produzidas na audiência final estão sujeitas à livre apreciação (art.ºs 655.º, n.º 1, e 652.º, n.º 3, alas b) a d))6, o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através dessa fundamentação, o juiz deve passar de convencido a convincente”.
  Estas considerações merecem acolhimento.
  Aliás, embora este Tribunal nunca se tenha pronunciado sobre a questão em apreço, em processo civil, já o fez em processo penal. No Acórdão de 11 de Julho de 2001, no Processo n.º 9/2001, dissemos, a propósito do artigo 355.º, n.º 2, do Código de Processo Penal que “A exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão pode satisfazer-se com a revelação da razão de ciência das declarações e dos depoimentos prestados e que determinaram a convicção do tribunal”. Mas adiantámos que o Código de Processo Civil era mais exigente na fundamentação da decisão de facto. E que tal exigência – de análise crítica das provas - não se faz na lei de processo penal. Ou seja, no nosso referido Acórdão, estava já pressuposto que, em processo civil, não bastava a mera indicação genérica dos meios de prova.
  Pois bem, a análise crítica das provas passa pela indicação concreta dos meios de prova que foram decisivos para o julgamento dos factos provados e dos não provados. Mas, como explicitam J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO7 “A imposição da fundamentação não impede necessariamente que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os mesmos meios de prova. Essa motivação conjunta pode até ser concretamente aconselhável”.
  É, pois, manifesto que a fundamentação do julgamento em 1.ª instância, com uma mera indicação de documentos, do depoimento de partes e de inquirição de testemunhas, sem as indicar concretamente e sem as relacionar com as pronúncias sobre o julgamento dos factos, era manifestamente insuficiente, pelo que não merece censura o Acórdão recorrido, nesta parte.
  
  3. Essencialidade das respostas aos quesitos 9.º, 26.º e 27.º da base instrutória
  Importa, por fim, apurar se a remessa dos autos à 1.ª instância (para fundamentar o aludido julgamento) é inútil, porque a matéria da respostas aos quesitos em causa (9.º, 26.º e 27.º) não é essencial para o julgamento da causa.
  Antes de mais, é exacta a tese do acórdão recorrido no sentido que a utilização do mecanismo do n.º 5 do artigo 629.º do Código de Processo Civil (remessa do processo à 1.ª instância para fundamentar a decisão de facto) pressupõe que a falta de fundamentação da decisão de facto respeite a facto essencial. Se o facto não for relevante, também não é relevante a insuficiente fundamentação do respectivo julgamento. É o que resulta, logo, da letra do preceito. E é no mesmo sentido que apontam os princípios da economia e da celeridade processuais.
  Apuremos, então a relevância dos factos constantes das respostas aos quesitos 9.º, 26.º e 27.º da base instrutória.
  O Acórdão recorrido considerou que tais respostas aos quesitos são essenciais para o desfecho do litígio, porque, designadamente a resposta positiva, em parte, ao quesito 9.º, ou a respectiva hipotética resposta negativa ao mesmo quesito poderia conduzir ou à ineficácia ou à nulidade da compra e venda dos autos, sendo que esta relevaria especialmente, em virtude de o artigo 284.º do Código Civil tutelar os interesses dos terceiros de boa fé, no caso os 3.º e 4.º réus.
  Já para os recorrentes, os autores, das respostas aos quesitos 1.º a 8.º da base instrutória resulta a falsidade da procuração que esteve na origem dos vários negócios, pelo que não dispondo o pretenso procurador de poderes para representar a proprietária do imóvel, quaisquer actos praticados nessa pretensa qualidade são inexistentes e, por isso, ineficazes em relação aos autores, os herdeiros da proprietária do imóvel.
  Por outro lado, ainda para os autores, a ineficácia do primeiro negócio estende-se e atinge os actos subsequentes, ainda que a mencionada procuração não tenha sido utilizada nestes.
  Examinemos a questão.
  Os factos a considerar constam das respostas do tribunal colectivo de 1.ª instância aos quesitos 1.º a 9.º da base instrutória. O mesmo Tribunal respondeu negativamente aos quesitos 26.º e 27.º que eram, fundamentalmente, os factos contrários ao quesito 9.º.
  Das respostas aos quesitos 1.º a 8.º resulta que 10 anos após a morte da proprietária do imóvel, alguém, usurpando a identidade da proprietária há muito falecida, outorgou como se fosse esta, uma procuração ao 1.º réu, conferindo-lhe todos os poderes para vender o imóvel. O 1.º réu utilizou a procuração falsa para vender o imóvel ao 2.º réu, intitulando-se representante da proprietária do imóvel, sabendo não ter qualquer direito ao preço da venda, que recebeu. E o 2.º réu vendeu aos 3.º e 4.º réus o mesmo imóvel.
  Portanto, é exacto, como alegam os autores que a venda feita pelo 1.º réu ao 2.º teve por base uma procuração falsa. O documento era genuíno, mas falseava a verdade, visto que o alegado outorgante não o era, de facto, mas outro que usurpou a sua identidade. O documento enfermava de falsidade intelectual.
  Já na venda feita pelo 2.º aos 3.º e 4.º réus, tal procuração não foi utilizada.
  A resposta ao quesito 9.º acrescenta aos factos anteriores que os 2.º, 3.º e 4.º réus, apesar de terem suspeitado que o prédio não havia sido adquirido pelo 1.º réu de modo lícito, conformaram-se com esta possibilidade, outorgando as respectivas escrituras de compra e venda
  Deste modo, das respostas aos quesitos 1.º a 8.º já resultava da que todos os negócios tiveram na sua base uma procuração falsa. Sem esta não teria sido possível celebrar quaisquer dos contratos de compra e venda do imóvel.
  A resposta ao quesito 9.º acrescenta apenas o conhecimento que os 2.º, 3.º e 4.º réus teriam da ilicitude dos negócios.
  Resta saber se este conhecimento é relevante ou não para a procedência da acção.
  
  4. Representação sem poderes. Ineficácia.
  O 1.º réu vendeu o prédio, intitulando-se representante do proprietário, quando não o era, pois utilizou procuração falsa.
  Tal falta de poderes era originária. Por outro lado, a alegada representada não conhecia, nem poderia ter conhecido a actuação do representante, nem tolerou a representação. Estava morta há 10 anos. Portanto, não houve procuração tácita, nem tolerada, nem aparente.8
Ora, nos termos do artigo 261.º, n.º 1, do Código Civil, “O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”.
A venda feita pelo 1.º réu ao 2.º réu é ineficaz em relação à proprietária do imóvel, que não a ratificou.
Não é aplicável ao caso o regime da venda de coisa alheia, pois este só se aplica “à venda da coisa alheia como própria” (artigo 895.º do Código Civil). Mas não já à venda de coisa alheia como alheia.
É o que explica DIOGO BÁRTOLO9:
  “Segundo o artigo 904.º do Código Civil10, o regime da venda de bens alheios apenas se aplica à venda de coisa alheia como própria, o que pressupõe que a alienação seja feita em nome do vendedor, visto que ninguém pode, logicamente, vender em nome alheio um bem cuja titularidade se arroga11.
  Com efeito, vender um bem em nome alheio equivale a reconhecer implicitamente que o bem não é próprio e que pertence à pessoa em nome de quem se celebra o negócio.
  Também os artigos 258.º e 268.º do Código Civil apontam no sentido de que o regime da venda de bens alheios não se aplica àqueles casos em que o vendedor age em nome do proprietário da coisa, arrogando-se a qualidade de seu representante:
  Com efeito, das duas uma:
  a) Se o vendedor tiver efectivamente poderes de representação, tal venda será válida e eficaz, produzindo directamente os seus efeitos na esfera jurídica do representado, sendo este considerado como o verdadeiro sujeito do negócio (artigo 258.º do Código Civil);
  b) Se o vendedor não tiver poderes de representação, aplicar-se-á o disposto no artigo 268.º do Código Civil sobre a representação sem poderes, sendo a venda ineficaz enquanto o proprietário não a ratificar, podendo o comprador revogar ou rejeitar o negócio enquanto ele não for ratificado, salvo se no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante12.
  Concluímos, pois, que o regime da venda de bens alheios só se aplica às vendas celebradas em nome próprio13-14, tal como se dizia expressamente, aliás, no artigo 30.º do Projecto sobre Contratos Civis elaborado por GALVÃO TELLES (vide BMJ n.º 83, 1959, p. 195) e tal como implicitamente resulta do disposto no art. 904.º do Código Civil”.
  Ensina MANUEL DE ANDRADE15 que, em sentido lato, o negócio é ineficaz quando por qualquer motivo legal não produz todos ou parte dos efeitos que, segundo o conteúdo das declarações de vontade que o integram, tenderia a produzir. Esta noção ampla de ineficácia abrange a ineficácia propriamente dita e a invalidade. E em sentido impróprio, também a inexistência16. A invalidade pressupõe uma falta ou irregularidade quanto aos elementos internos do negócio; a ineficácia em sentido estrito pressupõe uma falta ou irregularidade de outra natureza.17
  No caso dos autos, estamos, como é bem de ver, no campo da ineficácia propriamente dita, ou em sentido estrito.
  Defende LUÍS A. CARVALHO FERNANDES18 que “A ineficácia do negócio celebrado pelo representante sem poderes assegura uma tutela eficaz do pretenso representado, pois este pode, pura e simplesmente, ignorar os efeitos do negócio, não tendo, em geral, necessidade de recorrer a quaisquer meios jurídicos para assegurar o seu interesse. Nesta medida, a situação do representado aproxima-se, como veremos, da que se verificaria no regime da inexistência jurídica”. Nesta, nenhuns efeitos se produzem.
  Pois bem, os efeitos da ineficácia da venda feita pelo 1.º réu ao 2.º réu, estendem-se à venda feita por este aos 3.º e 4.º réus.
  Também esta é ineficaz em relação ao proprietário do imóvel.
  Nem poderia ser de outra forma. Se o negócio realizado pelo falso procurador é ineficaz em relação à pessoa em nome de quem age, também nenhuns efeitos se produzem em relação a esta face aos negócios posteriores, celebrados em cadeia, com base naquele primeiro negócio.
  Ora, o disposto no artigo 284.º do Código Civil (inoponibilidade da nulidade e da anulação em relação ao terceiro adquirente de boa fé de bens imóveis ou de móveis sujeitos a registo, quando o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação) não se aplica à ineficácia em sentido estrito.19
  Quando, como é o caso, com a sua actuação o pretenso representado não contribuiu em nada para o erro do terceiro, não havendo que tutelar a aparência e a protecção da confiança20, os negócios são ineficazes em relação a ele, proprietário, pelo que é totalmente irrelevante que os adquirentes do imóvel conhecessem ou ignorassem que o alegado representante não tinha poderes para celebrar o negócio. Esse é um problema deles com tal alegado representante. Não é um problema do proprietário do imóvel.
  Logo, era irrelevante no caso dos autos que os 2.º, 3.º e 4.º estivessem de boa ou de má fé.
  Assim, as respostas aos quesitos 9.º, 26.º e 27.º da base instrutória não eram essenciais à solução do caso, pelo que não tinha aplicação o disposto no artigo 629.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
  Impõe-se, por conseguinte, a revogação do Acórdão recorrido.
  Está prejudicada a resolução da terceira questão.
  
  IV – Decisão
  Face ao expendido, concedem provimento ao recurso, revogam o Acórdão recorrido na parte em que determinou a aplicação do disposto no artigo 629.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, para ficar a subsistir a sentença de 1.ª instância, com a precisão de que nas alíneas 2) e 3) da parte decisória desta, a declaração é a ineficácia dos contratos de compra e venda (e não, também, a nulidade dos mesmos).
  Custas pelos 3.º e 4.º réus, ora recorridos, tanto no TUI como no TSI.
  Macau, 31 de Julho de 2012.
  Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei –
  Sam Hou Fai
1 J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2008, p. 659 e 660.
2 Refere-se ao Código português.
3 Refere-se ao Código português.
4 RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, Lisboa, 2001, vol. III, 3.ª ed., p. 171 e 172.
5 M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 348.
6 Refere-se ao Código português.
7 J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código..., Volume 2.º, p. 661 e 662.
   8 Sobre estas figuras, RAÚL GUICHARD, O Instituto da Procuração Aparente – Algumas Reflexões à Luz do Direito Alemão, Juris Et De Jure, Nos 20 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto, 1998, p. 223.
9 DIOGO BÁRTOLO, Venda de Bens Alheios, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Volume IV, Coimbra, Almedina, 2003, p. 385 e 386.
10 Todas as normas citadas pelo autor se referem ao Código Civil de 1966.
11 Mas já é possível, como veremos, vender em nome próprio um bem como alheio.
12 É de notar que o regime do artigo 268 do Código Civil também se aplica à gestão de negócios representativa por força do artigo 471 do Código Civil.
13 Neste sentido, vide PAULO OLAVO CUNHA, Venda de Bens Alheios, ROA 47, 1987, P.425 e Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, 2002, P.107.
14 Em sentido contrário ao texto, vide PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações (Parte Especial), Contratos, 2ª edição, 2001, pp.110 e 111, nota 3, que alega que depois de negada a ratificação vale o regime da venda de bens alheios porque a faculdade de revogação ou de rejeição é um direito de exercício transitório, não lhe parecendo aceitável que o comprador do bem fique em situação diversa consoante tenha negociado com quem indevidamente se arroga a titularidade do direito real sobre a coisa alienada ou com o falso representante do legítimo titular. Pela nossa parte, não concordamos com esta posição porque contraria frontalmente o artigo 904.º do Código Civil e não tem qualquer apoio no artigo 268.º do Código Civil, preceito este que, nos seus vários números, quis criar um regime especial e diferenciado para a falta de legitimidade na representação.
15 MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra, Almedina, 4.ª reimpressão, 1974, p. 411.
16 J. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, Coimbra Editora, Volume II, 1999, p. 310 e 315.
17 Também, MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª edição, 1993, p. 605 e 606.
18 LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, II, Lisboa, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, 2001, p. 217.
19 Acórdão do STJ português, de 15 de Março de 2012, Processo n.º 622/05.3TCSNT -A.L1.S1, em www. dgsi.pt.
20 Para questões de tutela da aparência e protecção da confiança no caso de procuração aparente e noutros semelhantes, cfr. RAÚL GUICHARD, O Instituto da Procuração Aparente..., p. 223 e segs., PAULO MOTA PINTO, Aparência de Poderes de Representação e Tutela de Terceiros, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1993, p. 587 e segs. e RUI MASCARENHAS DE ATAÍDE, A Responsabilidade do “Representado” na Representação Tolerada, Lisboa, AAFDL, 2008, p. 160 e segs.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------




1
Processo n.º 39/2012