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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 25 de Outubro de 2010, que o puniu disciplinarmente com a pena de demissão.
Por acórdão de 9 de Fevereiro de 2012, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso.
Inconformado, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
- Tal com indicado no acórdão recorrido, o acto administrativo que aplicou ao recorrente a pena de demissão tem por base as provas seguintes: Análise à urina, Depoimentos de outros polícias e Declarações do próprio arguido concatenadas com os demais elementos probatórios.
- Quantos as últimas duas provas, ou seja as declarações prestadas pelos outros guardas policiais e o depoimento do próprio arguido, o recorrente considera que os quais não dão para provar directamente que ele chegou a consumir Ketamina. O facto imputado ao recorrente do consumo de Ketamina foi simplesmente por causa do relatório da análise à urina feita pelo recorrente após ter sido conduzido ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário, pelo que, o relatório é muito importante para o apuramento dos factos.
- Na audiência de julgamento realizada no Tribunal Judicial de Base, o patologista clínico do Hospital Central Conde de S. Januário confirmou que, segundo o relatório da análise de urine constante de fls. 7 do processo de averiguação/disciplinar, a urina do recorrente só continha duas substâncias, designadamente: Tricyclic Antidepressantes e Benzodiazepines, mas essas duas substâncias não são componentes do estupefaciente Ketamina.
- Nos termos do art.º 149º, n.º1 do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do art.º 292º, n.º4 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública, aprovado pelo D.L n.º87/98/M (daqui em diante, designado simples por “ETAPM”): “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.”
- O acórdão recorrido não proferiu uma decisão favorável ao recorrente conforme a forte prova acima referida, ou seja, anular o acto administrativo recorrido, isto, sem dúvida, violou o supracitado dispositivo, devendo ser revogado, e ao mesmo tempo também não especificou os fundamentos de facto e de direito que justificassem a inadmissão da prova acima referida, nos termos do art.º 571º, n.º1, al. b) do Código Civil, é nulo acórdão recorrido.
- No recurso contencioso, o recorrente alegou que são depoimentos indirectos todos depoimentos feitos respectivamente pelos indivíduos tais como o guarda-ajudante n.XXXXXX B, o subchefe n.ºXXXXXX C e o comissário D que ouviram o recorrente em declaração. Pelo que, o despacho que aplicou ao recorrente a pena de demissão com base nos depoimentos indirectos, violou evidentemente o art.º 257º do Estatuto e os art.ºs 116º, n.º1, 337º, n.º7, 336º, n.º1, aplicáveis por remissão do art.º 292º, n.º4 do ETAPM, e nos termos do art.º 122º, n.º2, al. d) do Código do Procedimento Administrativo, é nula a sua consequência jurídica.
- Na petição do recurso, o recorrente alegou que, de acordo com os art.ºs 4º, 5º e 7º da acusação do processo de averiguação/disciplinar, na altura o recorrente encontrava-se numa condição mental anormal, estava distraído e não podia exprimir de forma clara a sua vontade, revelando-se que o recorrente encontrava-se incapacitado de entender o sentido da sua declaração. Pelo que, ao abrigo do art.º 250º, n.º1 do Código Civil de Macau, é anulável a sua declaração de concordar em receber análise de urina. Na defesa escrita, o recorrente já alegou a anulação do seu consentimento de ser submetido à análise de urina, pelo que deve essa parte de prova ser considerada nula, não podendo servir da prova contra o recorrente.
- No recurso contencioso, o recorrente também alegou que o acórdão padece do vício de nulidade. Nos termos do art.º 275º, n.º4 do Estatuto: “A acusação deverá conter a indicação discriminada e articulada dos factos integrantes da infracção, a indicação das circunstâncias de tempo, modo e lugar da sua prática, a enumeração das demais circunstâncias que integrem atenuantes e agravantes e ainda a referência aos preceitos legais respectivos e às penas aplicáveis.”
- Na respectiva acusação do processo de averiguação/disciplinar não contém o supracitado facto, o instrutor deduziu acusação contra o recorrente sem ter realizado a diligência de investigação para apurar o facto do consumo de drogas por parte do recorrente, violando manifestamente as disposições acima referidas, razão pela qual, a respectiva consequência jurídica é nula e a nulidade é insuprível. (art.º 262º, n.º1 do Estatuto)
- De acordo com o art.º 124º do Código do Procedimento Administrativo, não está preenchido o pressuposto da acusação feita pelo acto administrativo de punição do Secretário para a Segurança de que o recorrente violou o art.º 12º, n.º2, als. f) e g) do Estatuto, e deve ser anulado o acto. O acórdão recorrido não anulou o dito acto administrativo de acordo com a lei, padecendo também do vício de anulabilidade, devendo ser revogado.
- Quanto à violação do dever de assiduidade previsto no art.º 13º, n.º2, al. b) do Estatuto, o recorrente saiu do seu posto de serviço porque tinha de ir à casa de banho, não tinha a vontade de abandonar o trabalho ou ausentar-se do mesmo nem o dolo subjectivo, e na melhor das hipóteses, tinha a negligência, pelo que, não está preenchido o pressuposto da violação do dever de assiduidade previsto no art.º 13º, n.º2, al. b) do Estatuto.
- De acordo com os dados constantes do processo de averiguação/disciplinar, foi aplicada ao recorrente a pena de demissão prevista no art.º 240º do Estatuto, e isto violou gravemente o princípio da proporcionalidade.
- Quanto às circunstâncias agravantes, de acordo com o processo de averiguação/disciplinar, foi indicada a verificação das agravantes do art.º 201º, n.º2, al. d) e f) do Estatuto: “d) Ser a infracção comprometedora da honra, do brio ou do decoro pessoal ou da instituição; f) A produção efectiva de resultados prejudiciais aos serviço, à disciplina, ao interesse geral ou a terceiros, nos casos em que o militarizado devesse prever essa consequência com efeito necessário da sua conduta.”
- Atentas as circunstâncias atenuantes tais como o bom comportamento anterior, a falta de intenção dolosa e o pouco tempo de serviço, a aplicação das penas de repreensão previstas no art.º 234º do Estatuto pode realizar de forma suficientes as finalidades da pena, isto é, a prevenção geral e especial. (art.º 277º do ETAPM e o Direito Penal, aplicáveis por remissão do art.º 256º do Estatuto).
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.
II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
É do seguinte teor o despacho punitivo:
“Governo da Região Administrativa Especial de Macau
Gabinete do Secretário para a Segurança
Secretário para a Segurança
Despacho n.º XX/SS/2010
Assunto: processo disciplinar
Processo n.º XX/2010 (CPSP)
Suspeito: A, guarda policial n.º XXX XXX do CPSP
Atentas as informações constas deste processo disciplinar, verificam-se provas suficientes de o suspeito A, guarda policial n.º XXX XXX do CPSP, abandonar a área patrulhada durante o patrulhamento. Sendo convocado para voltar ao Comissariado, o suspeito encontrou-se psiquicamente anormal, ao depois, com o seu consentimento, ele foi submetido ao exame médico no Hospital Central de Conde S. Januário, exame esse apresentou o resultado positivo em relação a quetamina.
Para o efeito do processo disciplinar, em 9 de Março de 2010, o suspeito foi notificado para apresentar a defesa escrita no prazo de 10 dias desde a notificação da respectiva acusação. O mesmo apresentou a defesa escrita no prazo fixado.
Apesar de o suspeito alegar na defesa escrita que os depoimentos dos dois superiores hierárquicos seus (o comandante e o segundo-comandante) foram nulos por ser indirectos, estes dois realizaram propriamente inquirições do suspeito, e prestaram depoimentos sobre o teor dos diálogos nas inquirições, pelo que, os depoimentos não são indirectos. Além disso, o suspeito deslocou-se, de forma voluntária, acompanhado por dois agentes, para o Hospital Central de Conde S. Januário para submeter-se ao teste de despistes de drogas. A manifestação da sua vontade não produziu nenhuma relação jurídica entre ele e os seus colegas. Sendo o relatório do teste de despiste de drogas uma prova efectiva e forte, não pode o suspeito decidir a admissão ou não daquele dependendo da vontade sua.
É sem dúvida que das provas obtidas no decurso da investigação do processo disciplinar resulta que existem provas suficientes para acusar o suspeito, pela prática de infracção disciplinar que violou os deveres estabelecidos no art.º 12.º, n.º 2, al.s f) e g) e art.º 13.º, n.º 2, al. b) do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M de 30 de Dezembro. Ao abrigo do art.º 238.º, n.º 2, al. 1) do EMFSM, é aplicável as penas que inviabilizem a subsistência da relação jurídico-funcional.
Atentas a acusação e as respectivas circunstâncias atenuantes e agravantes, tem-se certeza de que a infracção disciplinar praticada pelo suspeito é grave, pelo que ele deixa de ser qualificado para o exercício de função.
Nesta conformidade, após ouvidos o Conselho Disciplinar e Instrução do CPSP e o Conselho de Justiça e Disciplina, e considerada a censurabilidade da infracção disciplinar e o comportamento anterior do suspeito, puno, no uso das competências conferidas na Ordem Executiva n.º 122/2009 e artigo 211.º do EMFSM, o suspeito, A, guarda n.º XXX XXX do CPSP, com a pena de demissão, nos termos do artigo 240.º do EMFSM e de acordo com o anexo referido no artigo 4.º, n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 6/1999.
Notifique o suspeito que pode recorrer desta decisão para o TSI.
Aos 25 de Outubro de 2010”.
Tal despacho teve por base o seguinte relatório elaborado no âmbito do respectivo procedimento disciplinar:
  
  “Governo da Região Administrativa Especial de Macau
  CORPO DE POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
  Processo de Averiguações/Processo Disciplinar n.º XXX/2010
  - Relatório Final da Instrução -
  (1)
  - A instrução do presente processo contra A, Guarda Policial n.º XXXXXX pelos “actos irregulares” origina-se do despacho proferido pelo Segundo-Comandante do CPSP na Informação do “Departamento de Trânsito/Comissariado de Trânsito de Macau” n.º XX/2010/CTM e dos documentos daí anexos. (fls. 2 a 18 dos presentes autos)
  (2)
  - Em 27 de Janeiro do corrente ano, foram juntados aos presentes autos a Notificação do Departamento de Trânsito n.º XX/2010/CTM e o documento emitido pelo Ministério Público (Termo de Entrega e de Verificação)(fls. 19 e 20 dos presentes autos)
  - No mesmo dia, foi também juntada aos presentes autos a Proposta deste Gabinete n.º XX/2010/GJD.—(fls. 21 e 22 dos presentes autos)
  (3)
  - Em 26 de Janeiro do corrente ano, foi juntada aos presentes autos “Processo Disciplinar/Notificação” deste Gabinete (a qual foi assinada pelo arguido)--(fls. 24 dos presentes autos)
  - No mesmo dia, através dos Verbetes deste Gabinete n.ºs XXX/2010/GJD e XXX/2010/GJD, foram respectivamente notificados o Departamento de Gestão de Recursos e o Departamento de Trânsito.-------(fls. 25 e 26 dos presente autos)
  (4)
  - Em 3 de Fevereiro do corrente ano, através do Verbete deste Gabinete n.º XXX/2010/GJD, foi citado B, Guarda Principal do Departamento de Trânsito/Comissariado de Trânsito de Macau, n.º XXXXXX e foi ouvido o “auto de declaração” sobre o incidente referido na aludida Informação. Conforme a descrição do Guarda Principal B: Em 20 de Janeiro de 2010, quando os elementos do piquete estavam a fazer formatura no Comissariado antes do desempenho das funções, ele não verificou que A, Guarda Policial, n.º XXXXXX, apresentava qualquer anomalia no seu estado mental.---
  - O Guarda Principal B declarou que naquele dia, quando ele desempenhava as funções de Tango-XX e no decurso de procurar o Tango-XXX (Guarda Policial n.º XXXXXX), dado que não conseguiu saber o paradeiro de Tango-XXX, ele perguntou imediatamente a localização de Tango-XXX através de walkie talkie, porém, após várias chamadas, o Tango-XXX (Guarda Policial n.º XXXXXX) ainda não lhe respondeu, e cerca de 1 minuto depois, o Tango-XXX só lhe respondeu. Na altura, o Tango-XXX (Guarda Policial n.º XXXXXX) respondeu “intermitentemente”, com pronúncia “não clara” que ele estava numa casa de banho perto do Edifício Hoi Fu Fa Un. Dado que a localização que o Tango-XXX (Guarda Policial n.º XXXXXX) informou não estava no seu âmbito de trajectória rodoviária e a conduta do referido guarda o fez sentir-se estranho, por isso, ele mandou imediatamente o regresso do Tango-XXX ao Comissariado de Trânsito, no sentido de investigar o que aconteceu.---
  - O Guarda Policial B declarou que no Comissariado, ele viu que o Tango-XXX (Guarda Policial n.º XXXXXX) pareceu “não ter acordado” ainda, por isso, ele perguntou-lhe (Guarda Policial n.º XXXXXX) várias perguntas; e quando lhe perguntou “se havia consumido substâncias psicotrópicas”, o referido Guarda A não negou a referida pergunta e só lhe disse “desculpe, dê-me uma oportunidade”. Depois de concluído o interrogatório ao Guarda A, o chefe do piquete (Tango-XX, Subchefe n.º XXXXXX) também regressou ao Comissariado, pelo que, ele informou o referido chefe do piquete do que se passou para o mesmo continuar a acompanhar o caso.-
  - O Guarda Principal B declarou que na altura, ele estava ao lado do referido chefe do piquete (Tango-XX), e quando o chefe do piquete perguntou “se você consumiu pó de K (ketamina)?”, o Guarda Policial A confessou efectivamente que tinha consumido droga leve num estabelecimento de diversões dias atrás.---(vide fls. 34 e 35 dos presentes autos).
  - No mesmo dia, foi citado D, Comissário n.º XXXXXX, Chefe do Departamento de Trânsito/Comissariado de Trânsito de Macau e foi ouvido o respectivo “auto de declaração”sobre o incidente referido na aludida Informação.-
  - O Comissário D declarou que depois de C, Subchefe n.º XXXXXX, levar o Guarda Policial A ao seu gabinete para lhe informar que se suspeitava que o referido guarda policial tinha consumido droga leve, ele procedeu imediatamente ao interrogatório ao Guarda Policial A. Na altura, o Guarda Policial A confessou expressamente “ter consumido droga leve (ketamina vulgarmente conhecida por pó de K) num estabelecimento de diversões dias atrás”. Na altura, para além do Comissário D e do Guarda Policial A, o Subchefe C também esteve presente no local e ouviu a confissão feita pelo Guarda Policial A.-(fls. 36 dos presentes autos)
  (5)
  - Em 5 de Fevereiro do corrente ano, através do Verbete deste Gabinete n.º XXX/2010/GJD, foi citado C, Subchefe n.º XXXXXX do Departamento de Trânsito/Comissariado de Trânsito de Macau e foi ouvido o respectivo “auto de declaração” sobre o incidente referido na aludida Informação.
  - O Subchefe C declarou que durante a sua patrulha perto da Avenida de Horta e Costa naquele dia, ele ouviu o diálogo entre o Tango-XXX (Guarda Policial A, n.º XXXXXX) e o subchefe do piquete (Tango-XX) através de walkie talkie, e conforme a ordem do referido subchefe do piquete, o Tango-XXX teve de regressar imediatamente ao Comissariado de Trânsito, por isso, ele também voltou para o Comissariado, no sentido de conhecer melhor o incidente.-
  - O Subchefe C declarou que logo depois de voltar para o Comissariado, o subchefe do piquete (Tango-XX) informou-lhe resumidamente do referido incidente, em seguida, ele fez várias perguntas ao referido Guarda A e quando lhe perguntou “se você consumiu K?”, o Guarda Policial A, n.º XXXXXX) confessou efectivamente “ter consumido pó de K (ketamina)!”, pelo que, ele levou o Guarda Policial A ao gabinete do Chefe do Comissariado para informar superiormente o referido incidente.--(fls. 38 e 39 dos presentes autos)
  (6)
  - Em 8 de Fevereiro do corrente ano, foi citado em sucesso, através do telefone, o arguido A (Guarda Policial n.º XXXXXX) do Departamento de Trânsito/Comissariado de Trânsito de Macau e foi ouvido o respectivo “auto de declaração” sobre o incidente referido na aludida Informação.--
  - O arguido A declarou que durante o desempenho das funções (Tango-XXX) naquele dia, ele não conseguiu ouvir as chamadas feitas pelo Tango-XX (subchefe do piquete) por estar a conduzir o motociclo para uso de patrulha, e logo depois de ouvir a chamada, ele já a respondeu imediatamente.---
  - O arguido A declarou que na altura ele respondeu ao Tango-XX (subchefe do piquete) através de walkie talkie que estava na Rotunda de São João Bosco, perto do Edifício Hoi Fu Fa Un”, no caminho para ir à casa de banho (não indicou concretamente o local). Visto que na altura ele já passou pela referida Rotunda, ele respondeu ao Tango-XX que estava na referida Rotunda.---
   O arguido A declarou que depois de o Tango-XX (Guarda Principal n.º XXXXXX) regressar ao Departamento de Trânsito, este fez-lhe várias perguntas. Visto que na altura estava mal disposto e com má audição, ele, de facto, já não se lembra todos os conteúdos das perguntas feitas pelo Tango-XX, e conforme a sua memória, ele só se lembra que o Tango-XX lhe perguntou porquê é que não “respondeu às chamadas”, porquê estava mal disposto e se tinha ido ao karaoke (estabelecimento de karaoke); Quanto às perguntas feitas pelo Tango-XX, ele respondeu os seguintes: “não respondi às chamadas feitas através de walkie talkie porque não as ouvi!”, “tinha ingerido bebidas alcoólicas antes de ir ao serviço (desde 00h00 do dia 20), só voltei para casa para dormir às 06h00 da manhã e acordei ao meio dia daquele dia. Em seguida, fui ao serviço depois de tomar os medicamentos com “substâncias anti-inflamatórias” e “descongestionantes nasais”, por isso, estou mal disposto!”, “também tinha ido ao karaoke!”.-----
  - O arguido A declarou que quando o Tango-XX (subchefe do piquete) fez-lhe perguntas, ele nunca lhe disse “desculpe, dê-me uma oportunidade!”; em seguida, quando o Tango-XX (chefe do piquete, C, Subchefe n.º XXXXXX) lhe fez perguntas, ele disse efectivamente “desculpe, dê-me uma oportunidade!”, conforme a sua explicação, ele disse aquilo ao Tango-XX uma vez que o Tango-XX tinha feito várias chamadas através de walkie talkie, mas, ele não as respondeu, por isso, ele tinha medo que o Tango-XX (chefe do piquete) considerou que a sua conduta constituiria infracção disciplinar e informaria o caso ao superior através da elaboração da informação.---
  - O arguido A declarou que conforma a sua memória, no Comissariado de Trânsito, depois de o Tango-XX (chefe do piquete, C, Subchefe n.º XXXXXX), tomar o conhecimento do referido caso, ele fez-lhe várias perguntas, e conforme a sua memória, as suas perguntas são mais ou menos iguais às perguntas feitas pelo Tango-XX, contudo, ambos os Tango-XX e Tango-XX não lhe perguntaram “se você consumiu K (ketamina, também conhecida por droga leve)”!----
  - O arguido A declarou que durante o interrogatório realizado pelo Tango-XX (chefe do piquete), ele nunca confessou perante o chefe do piquete que “tinha consumido droga leve (pó de K) num estabelecimento de diversões dias atrás”.---
  - O arguido A declarou que quando o Tango-XX (chefe do piquete) levou-o para informar o caso ao superior (Comissário D), ele nunca confessou perante o Comissário D que ele “tinha consumido droga leve (pó de K) num estabelecimento de diversões dias atrás”.---
  - O arguido A declarou firmemente que antes e durante o desempenho das funções, ele nunca consumiu droga leve vulgarmente conhecida por “pó de K (ketamina)”.----
  - O arguido A declarou que quanto ao teste de urina para detecção de drogas feito no Centro Hospitalar de Conde São Januário, ele não sabe as razões pelas quais o referido teste mostrou um “resultado positivo”, presumindo que entre 00h00 e 06h00 do dia em que ocorreu o caso, ele foi sozinho a um jardim perto da sua casa para beber cerveja, durante o qual, três homens não conhecidos avançaram para meter conversa com ele, por isso, eles conversaram no referido jardim e beberam cervejas em conjunto; provavelmente as cervejas oferecidas pelos referidos homens foram misturadas com ketamina, vulgarmente conhecida por pó de K ou outras droga leve, o que causou que o seu teste de urina mostrasse um “resultado positivo”.----(fls. 44 e 45 dos presentes autos)
  (7)
  - Em 1 de Março do corrente ano, através do Verbete deste Gabinete, n.º XXX/2010/GJD, pediu ao Departamento de Trânsito/Comissariado de Trânsito o fornecimento de informações.------(fls. 47 dos presentes autos)
  (8)
  - Em 9 de Março do corrente ano, foi deduzida acusação contra o arguido A, Guarda Policial n.º XXXXXX, e deu-lhe uma cópia da referida “acusação” e um “certidão de acusação”, bem como deu-lhe um prazo de 10 dias para defesa.---(fls. 52 a 54 dos presentes autos)
  - No mesmo dia, foram juntados aos presentes autos o ficheiro n.º 3 e os documentos anexos ao Verbete do Departamento de Trânsito/Comissariado de Trânsito de Macau n.º XXX/CTM/DT.---(fls. 48 a 51 dos presentes autos)
  (9)
  - Em 10 de Março do corrente ano, foram juntados ao presente processo o ofício emitido pelo Advogado E (pedido de consulta dos autos) e o original da “Procuração”.----(fls.55 e 56 dos presentes autos)
  (10)
  - Em 12 de Março do corrente ano, procedeu-se à notificação do Advogado E através do telefone.------
  (11)
  - Em 15 de Março do corrente ano, cerca das 15h00, o Advogado E dirigiu-se ao presente Gabinete para consultar, perante mim, todos os conteúdos constantes dos autos e registar simplesmente os “números de página”.------
  (12)
  - Em 16 de Março do corrente ano, foram juntados aos presentes autos o original do pedido emitido pelo Advogado E e a cópia da “factura de receita” emitida pelo Departamento de Contabilidade deste CPSP. --(fls. 60 e 61 dos presentes autos)
  (13)
  - Em 19 de Março do corrente ano, o arguido A, Guarda Policial n.º XXXXXX, apresentou, através do “defensor/ Advogado E” a “defesa escrita” em chinês, na qual pediu a realização de diligências instrutórias complementares.----(fls.62 a 92 dos presentes autos)
  (14)
  - Em 23 de Abril do corrente ano, através do Verbete deste Gabinete n.º XXX/2010/GJD, foram respectivamente citados F, Subchefe n.º XXXXXX e G, Guarda n.º XXXXXX, ambos subordinados ao Departamento de Trânsito/Comissariado de Trânsito de Macau e foram ouvidos os respectivos “autos de declaração” sobre o incidente referido na aludida Informação.-----
  - O Subchefe F declarou que conforme a sua memória, quando ele ouviu o depoimento prestado pelo Subchefe C, este disse-lhe de forma expressa que “o Guarda Policial A confessou perante ele que tinha consumido droga leve (pó de K) num estabelecimento de diversões dias atrás”, contudo, o Subchefe Im não lhe disse o “local concreto” onde o Guarda Policial A consumiu drogas e o “tempo”.--------
  - O Subchefe F declarou que quando ele ouviu o depoimento do Guarda Policial A, este disse-lhe que quando desempenhava as funções à tarde daquele dia (20/10/2010), o Guarda Policial A recebeu a ordem do Guarda Principal de apelido B, ordenando o seu regresso imediato ao Comissariado de Trânsito, em seguida, no Comissariado de Trânsito, quando o Subchefe C e o Guarda Principal de apelido B fizeram-lhe perguntas, as respostas dadas pelo Guarda Policial A foram lentas, por isso, o Guarda Policial A suspeitou que isto era a sequela provocada pelos medicamentos com substâncias “anti-inflamatórias” e “descongestionantes nasais” que ele tomou antes de ir ao serviço, e ele (A) negou firmemente ter confessado perante o Subchefe C e o Guarda Principal B que ele “tinha consumido droga leve (pó de K) num estabelecimento de diversões dias atrás”.-----
  - O Subchefe F declarou que o Guarda Policial A negou ter dito perante o Guarda Principal de apelido B: “dê-me uma oportunidade, desculpe!”-------
  - O Subchefe F declarou que o Guarda Policial A é um guarda policial recém formado que foi destacado para o Departamento de Trânsito há pouco tempo, por isso, ele não o conhece bem nem sabe nada se A é um guarda policial que trabalha com zelo, demonstra excelência no seu trabalho e mostra elevado sentido de responsabilidade.----(fls. 96 e 97 dos presentes autos)
  - A descrição do incidente ocorrido naquele dia feita pelo Guarda Policial G é basicamente igual ao descrito pelo Subchefe F.---(fls. 98 e 99 dos presentes autos)
  (15)
  - Em 28 de Abril do corrente ano, através do Verbete deste Gabinete, n.º XXX/2010/GJD, foi citada H, Guarda Policial n.º XXXXXX, subordinada ao Departamento Policial de Macau/Comissariado Policial N.º 2, e foi ouvido o “auto de declaração” sobre o incidente referido na aludida Informação.-----
  - A Guarda Policial H declarou ser a irmã mais velha de A e mora com A e os pais no [Endereço (1)]. Ela vive em harmonia com o seu irmão mais novo A e tem uma boa relação com ele.-----------
  - A Guarda Policial H declarou que conforme o seu conhecimento, a saúde do seu irmão mais novo A não é muito boa. O seu irmão tem sido magro desde pequeno e devido à fraca resistência à doença, ele tem doença sempre, e principalmente, ele tem de tomar medicamentos para o estômago durante um longo período de tempo. Quando era pequeno, ele sofria sempre ferimentos no nariz, por isso, para além de tomar medicamentos para o estômago, ele ainda tem de tomar medicamentos descongestionantes nasais. Além disso, dado que a saúde do seu irmão não é boa, ele também tem de tomar vários tipos de medicamentos para tratamento médico ou aliviar as dores.-------------------
  - Conforme o conhecimento do Guarda Policial H, o seu irmão não faz desporto sempre, e no tempo livre, ele gosta de navegar no site (“navegar pela internet”) em casa e conversar com amigos através da internet, ou às vezes, ele gosta de ter refeições e conversar com familiares ou amigos. Conforme o seu conhecimento, o seu irmão mais novo A nunca fica viciado em drogas leves.-----
  - A Guarda Policial H declarou que sempre que ela e o seu irmão mais novo A têm tempo livre em casa, o seu irmão abre-se com ela sobre as dificuldades enfrentadas ou experiências desagradáveis no trabalho, ouvindo os pontos de vista dela.-----
  - A Guarda Policial H mais declarou que conforme o seu conhecimento, a fracção ([Endereço (1)]) onde ela, o seu irmão mais novo A e os pais moram foi adquirida em 2008 através do crédito bancário, por isso, até agora, o referido crédito bancário ainda tem de ser pago em prestações mensais, mas, ela não sabe muito bem o montante concreto da cada prestação. Como os seus pais já deixam de trabalham, as despesas diárias da família e as referidas prestações mensais ficam basicamente a cargo dela e do seu irmão mais novo A.-----(fls. 106 e 107 dos presentes autos)
  (16)
  - Em 29 de Abril do corrente ano, foi juntado aos autos o original do ofício emitido pelo Advogado E (pedido de consulta dos autos).----(fls. 108 dos presentes autos)
  (17)
  - Em 30 de Abril do corrente ano, foi juntada aos presentes autos “Processo Disciplinar/Notificação” emitida por este Gabinete (a qual já foi assinada pelo arguido).---(fls. 109 dos presentes autos)
  - Conclusão -
  - Ouvido o arguido, venho chegar à seguinte conclusão:
  1. Quanto às causas do referido incidente, o arguido A negou categoricamente ter consumido droga de ketamina (vulgarmente conhecida por “pó de K”), contudo, de facto, o seu esclarecimento é pouco convincente.----
  2. Embora o arguido negasse ter a ver com o incidente, os depoimentos prestados pelos seus superiores (do Comissariado de Trânsito) provam que o arguido confessou pessoalmente perante os referidos superiores que tinha consumido drogas. Porém, se as confissões feitas pelo arguido perante os referidos superiores correspondem às perguntas feitas pelos referidos superiores ou têm outro sentido, e quando o arguido respondeu às perguntas feitas pelos referidos superiores, se ele estava em estado mental “lúcido” ou ainda estava “lento em reagir”, tudo isso é difícil determinar.---
  3. O arguido apresentou, através do mandatário judicial, uma “defesa escrita”, na qual pediu que o Instrutor efectuasse diligências instrutórias complementares (citação das 3 testemunhas). Entre as referidas três testemunhas, a primeira e a segunda testemunhas são respectivamente o oficial do dia e o operador informático que desempenhavam funções na Sala do Piquete do Comissariado de Trânsito naquele dia, responsabilizando-se pela elaboração da Informação conforme o seu conhecimento e o que visto naquele dia, contudo, na altura, estas duas testemunhas só tiveram o encontro com A no Comissariado de Trânsito quando A concluiu o “teste de urina para detecção de drogas” no hospital e regressou ao Comissariado, por isso, estas não souberam nada sobre os comportamentos demonstrados pelo arguido perante os dois superiores imediatos do piquete. Assim sendo, os depoimentos destas duas testemunhas não podem ajudar concretamente a descoberta da verdade dos factos; e a terceira testemunha é a irmã mais velha do arguido, o seu depoimento só pode provar os “gostos/ hábitos” do arguido na sua vida, deixa-nos saber que o arguido tem de suportar a maior parte das despesas correntes da família.----
  4. Quanto às condutas praticadas pelo arguido A (Guarda Policial n.º XXXXXX), visto que ele (A) não conseguiu ter comportamentos íntegros e tem medo de assumir as consequências trazidas pelo incidente, proponho ao Exmo. Senhor Comandante que lhe seja aplicada a pena disciplinar de “demissão”. Contudo, o arguido é apenas um guarda policial recém formado, e neste momento, ele ainda tem de suportar a maior parte das despesas correntes da família, por isso, solicito que o Exmo. Senhor Comandante possa diminuir a pena do arguido, no sentido de dar-lhe uma oportunidade de “reflexão” e “emendar-se para começar uma nova vida”.-----
  5. À consideração superior de V. Exa..
  O Instrutor,”

III – O Direito
1. As questões a apreciar
Trata-se de saber se a lei processual penal se aplica subsidiariamente no procedimento disciplinar, se o Acórdão recorrido violou os artigos 116.º, n.º 1 e 337.º do Código de Processo Penal e o artigo 262.º do Estatuto dos Militarizados, se a ausência do posto de serviço foi imputada ao arguido a título de dolo, se o acto punitivo não imputa consumo de drogas ao recorrente durante o serviço e se foi violado o princípio da proporcionalidade.

2. Poder de cognição do Tribunal de Última Instância: matéria de facto e matéria de direito.
Face ao disposto nos artigos 47.º, n.º 1, da Lei de Bases da Organização Judiciária e 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, o TUI, em recurso jurisdicional de decisões do TSI, apenas conhece de matéria de direito. Não tem poder de cognição da matéria de facto. Não lhe cabe dizer o que está ou não provado. Essa é uma competência exclusiva do TSI. Não obstante, cabe ao TUI apurar se o TSI violou normas processuais, designadamente, no apuramento da matéria de facto.
O TSI concluiu que não se comprova que o recorrente, quando autorizou a realização de exame, não tinha a sua vontade livre e consciente.
O TSI concluiu que o recorrente agiu com dolo.
O TSI concluiu que, analisando a globalidade das provas, não estão infirmadas as conclusões do despacho punitivo em matéria de facto, no que toca ao consumo de Ketamina por parte do recorrente nem às circunstâncias em que o recorrente se ausentou do seu posto de serviço.
O TUI não sindica estas conclusões em matéria de facto.
Não obstante, apurar-se-á se foram violadas normas no que toca aos elementos de prova utilizados e ao valor dos meios de prova.

3. Aplicação subsidiária do processo penal no procedimento disciplinar
O recorrente alegou que são depoimentos indirectos todos depoimentos feitos pelo guarda-ajudante n.º XXXXXX B, o subchefe n.º XXXXXX C e o comissário D, que ouviram o recorrente em declarações no processo disciplinar, pelo que teria sido violado o disposto nos artigos 116.º, 337.º, n.º 7 e 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, aplicável subsidiariamente.
O Acórdão recorrido, louvando-se na opinião de LEAL HENRIQUES1 de que a lei do processo penal não é subsidiária do processo disciplinar, o que seria sufragado pela jurisprudência de Macau (citando-se um Acórdão do TSI, de 22.02.2001), conclui no mesmo sentido, acrescentando que os princípios informadores do primeiro devem ser acolhidos neste último.
Salvo o devido respeito, esta pronúncia deixa por resolver algumas questões. Assim, ficamos sem saber muito bem:
- Quando se conclua haver lacuna no procedimento disciplinar, a que caso análogo deve recorrer o intérprete, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil;
- Em que circunstâncias os princípios informadores do processo penal devem ser acolhidos no procedimento disciplinar e em que circunstâncias é que não devem;
- E, na sequência da questão anterior, porque é que no caso dos autos, os artigos 116.º, 337.º, n.º 7 e 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não seriam aplicáveis subsidiariamente no procedimento disciplinar.
Examinemos a questão.
Antes de mais, há que atender a uma norma do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, que não parece ter sido considerada no Acórdão recorrido, o artigo 256.º, onde se dispõe:

“Artigo 256.º
(Direito subsidiário)
O processo disciplinar rege-se pelas normas constantes do presente Estatuto e, na sua falta ou omissão, pelas regras aplicáveis do regime disciplinar vigente para os trabalhadores da Administração Pública de Macau e da legislação processual penal”.

Por conseguinte, existe norma expressa que estatui que, quando se conclua haver lacuna nas normas previstas no Estatuto dos Militarizados, se recorre, em primeira linha ao regime disciplinar vigente para os trabalhadores da Administração Pública, que é o Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro e, em segunda linha, à legislação processual penal, isto é, ao Código de Processo Penal.
Por outro lado, ainda que não existisse esta norma expressa e clara, dispõe o n.º 4 do artigo 292.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública, referindo-se às disposições aplicáveis ao procedimento disciplinar, tanto no processo comum como nos processos especiais que:
“Artigo 292.º
(Tipos de processo)
1. O processo disciplinar pode ser comum ou especial.
2. O processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei e o comum a todos os casos a que não corresponda processo especial.
3. Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e, nas partes nelas não previstas, pelas disposições respeitantes ao processo comum.
4. Nos casos omissos, pode o instrutor adoptar as providências que se afigurem convenientes para a descoberta da verdade, em conformidade com os princípios gerais do direito processual penal”.

Se nos tivéssemos de cingir à letra da lei pareceria que a aplicação dos princípios do processo penal só valeria para as diligências instrutórias de produção de prova, porque são estas que estão em causa quando se trata de “providências que se afigurem convenientes para a descoberta da verdade”.
Mas há que atentar que, embora o processo penal e o processo disciplinar visem realidades diversas, certo é que pertencem ambos ao género direito processual sancionatório, sendo que o Código de Processo Penal é muito mais pormenorizado que o procedimento disciplinar. Ora, como nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, “Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos”, é manifesto que as situações com maior analogia com as regras do procedimento disciplinar são as do processo penal, salvo quando haja outro processo sancionatório administrativo.
Por outro lado, o regime disciplinar substantivo e o Direito Penal são ambos espécies do género direito sancionatório. Ora, quanto à aplicação da lei substantiva, o artigo 277.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública, dispõe expressamente que “Aplicam-se supletivamente ao regime disciplinar as normas de Direito Penal em vigor no Território, com as devidas adaptações”.
Deste modo, se na aplicação da lei substantiva o Direito Penal é supletivo do regime disciplinar, sempre haveria que explicar qual a razão por que o Direito Processual Penal não seria supletivo do Direito Procedimental Disciplinar.
É certo que MARCELLO CAETANO2 entendia que nos casos omissos se deveria evitar a tendência para recorrer ao processo criminal, havendo que procurar-se um padrão nos outros processos administrativos, de preferência nos sancionadores. Mas não podemos esquecer que estas palavras foram escritas nos anos 60 do século XX, tendo, posteriormente, havido uma profunda evolução no sentido da maior protecção dos direitos dos funcionários em matéria disciplinar, sobretudo em matéria de defesa. Acresce que a lei vigente ao tempo (artigo 27.º, § 2.º, do Estatuto Disciplinar de 1943, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 32659) não determinava nunca a aplicação da lei processual penal, antes estatuindo que nos casos omissos o instrutor procede pelo modo que se lhe afigurar mais conveniente para o apuramento da verdade, o que não sucede no vigente Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
Posteriormente, LUÍS VASCONCELOS ABREU,3 em estudo especialmente dedicado às relações entre o processo disciplinar e o processo penal, elaborado em 1993, concluiu que, como o procedimento disciplinar é um procedimento administrativo especial, de natureza sancionatória, no processo de integração de lacunas, esgotado o recurso à analogia dentro do próprio direito processual disciplinar, há que fazer apelo às normas e princípios do procedimento administrativo, só em seguida se recorrendo às normas e princípios do processo penal, na medida em que não vá contra a especificidade do procedimento disciplinar. E deu conta que era neste sentido a corrente largamente maioritária da jurisprudência administrativa.
Estas considerações são de acolher.
Este TUI já teve oportunidade de decidir que o processo penal é subsidiário do procedimento disciplinar, naquilo que não colida com os princípios próprios deste último4, em casos em que se estava perante verdadeiras lacunas do estatuto disciplinar, atinente à proibição da prática de actos inúteis e relativa à questão de saber se é possível a alteração da qualificação jurídica da acusação para a decisão.
Assim, sem prejuízo de a aplicação supletiva de um ramo de direito a outro se ter fazer com as devidas adaptações impostas pelas especificidades próprias de cada um dos ramos do direito, nada obsta a que se apliquem as normas análogas do processo penal no procedimento disciplinar que não colidam com os princípios deste, quando exista lacuna carecida de integração.
Mas convém ainda fazer uma precisão.
No caso dos autos, importa ainda saber se existe verdadeira lacuna em que existe uma verdadeira falta de regulamentação, para a qual o intérprete tem de arranjar uma solução, ou não.
  Na questão das proibições de prova previstas em processo penal, em que estão em causa as garantias de defesa do arguido, parece que terá sempre de equacionar-se a sua aplicação em processo disciplinar. É o que defende PAULO VEIGA E MOURA5 perante norma semelhante à vigente em Macau: “A referência aos princípios gerais do processo penal não tem outro significado que não seja reforçar as garantias de defesa do arguido, nomeadamente impondo que as diligências que sejam ordenadas pelo instrutor possibilitem o exercício do contraditório (o que só poderá ocorrer se arguido ou o seu defensor puderem assistir às mesmas, como se viu na anotação ao artigo anterior) e nunca possam conduzir à obtenção de provas resultantes de coacção, ofensa à integridade física ou moral do arguido ou violação do domicílio, correspondência ou telecomunicações ”.
No caso dos autos, estando em causa procedimento disciplinar de militarizado do Corpo de Policia de Segurança Pública sempre a disposição do artigo 256.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança, atrás citada, se imporia ao intérprete.

4. Depoimento indirecto e declarações dos agentes que tiverem recebido declarações do arguido
Dispõem os artigos 116.º, n.º 1 e 337.º do Código de Processo Penal:
“Artigo 116.º
(Depoimento indirecto)
1. Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor; se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
2. O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento da autoria de pessoa diversa da testemunha.
3. Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos”.
“Artigo 337.º
(Leitura permitida de autos e declarações)
1. Só é permitida a leitura em audiência de autos:
2. ....
3. ...
4. ...
5. …
6. …
7. Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
8. ...”

   Trata-se de saber, em primeiro lugar, se os artigos 116.º, n.º 1 e 337.º, n.º 7, do Código de Processo Penal, se aplicam no procedimento disciplinar. E, em segundo lugar, sendo a resposta à questão anterior afirmativa, se foram violadas tais normas no procedimento.
A resposta à primeira questão resolve-se no sentido afirmativo.
O que se pretende com a proibição do depoimento indirecto é que o tribunal não acolha como meio de prova um depoimento que se limita a reproduzir o que se ouvir a outra pessoa e que é possível ouvir directamente6.
O depoimento de testemunhas que, como razão de ciência, se limitam a referir que ouviram dizer não tem qualquer valor, pois a utilização e valoração de testemunhos de ouvir dizer é incompatível com um processo de estrutura acusatória.7
Não se vislumbra que qualquer princípio do procedimento disciplinar se oponha à aplicação desta proibição de prova.
No que respeita à proibição da inquirição em audiência de julgamento, como testemunhas, dos órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, tem suscitado dúvidas a possibilidade de serem inquiridos os agentes policiais que tiverem tido conversas informais com os arguidos sobre o conteúdo destas conversas.
É também seguro que nenhum princípio do procedimento disciplinar se opõe à aplicação desta proibição de prova.
No caso dos autos não foram violados as mencionadas normas legais.
Quanto à primeira (artigo 116.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) só haveria violação se, tendo sido ouvidas as testemunhas que ouviram dizer alguma coisa a pessoa determinada, não for chamada esta a depor.
Esta pessoa é o ora recorrente, o arguido. Ora, este foi ouvido expressamente, tanto em declarações, como teve oportunidade de apresentar defesa. Logo, não se verifica o pressuposto previsto na norma, proibitivo do depoimento de ouvir dizer.
Quanto ao disposto no artigo 337.º, n.º 7, do Código de Processo Penal, as testemunhas chamadas a depor no procedimento disciplinar foram os colegas e superiores do arguido que presenciaram, em parte, os factos que constituem infracção e que relataram as circunstâncias em que tudo se passou. Embora sendo agentes policiais eles não eram os encarregados da instrução de qualquer processo. Não receberam declarações do arguido. Não agiram enquanto órgãos encarregados de instrução do procedimento, mas enquanto colegas e superiores do funcionário.
Estamos, seguramente, fora da aplicação da mencionada norma.
Improcedem as questões suscitadas quanto à violação das mesmas normas.

5. Nulidades insupríveis
Não houve nenhuma violação do disposto no artigo 262.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança, visto que o recorrente não alega concretamente qualquer omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade, para além da relacionada com o consumo de droga, que não foi omitida, como se dá conta atrás.

6. Ausência do posto de serviço
A ausência do posto de serviço não foi imputada ao arguido a título de dolo, sendo que a infracção disciplinar pressupõe a culpa mas não o dolo (artigo 196.º, n.º 1, do Estatuto dos Militarizados).

7. Excesso de pronúncia. Princípio da proporcionalidade
Tem o recorrente razão ao dizer que o acto punitivo não lhe imputa consumo de drogas durante o serviço, ao contrário do Acórdão recorrido.
Há excesso de pronúncia no tocante a este facto, que, assim, se desconsidera, nos termos dos artigos 651.º, n.º 1 e 571.º, n.º 1, alínea d), parte final do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente, nos termos do artigo 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Imputa-se ao recorrente apenas o consumo de estupefaciente, que é causa de aplicação da pena de demissão, nos termos dos artigos 240.º, alínea c) e 238.º, n.º 2, alínea l) do Estatuto dos Militarizados.
Não cabe ao Tribunal sopesar as circunstâncias atenuantes e agravantes, para aplicar pena ao arguido. Não se vislumbra violação do princípio da proporcionalidade, nem o recorrente explica concretamente porque ocorre tal violação.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso jurisdicional.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UC.
Macau, 31 de Julho de 2012.
  Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei –
  Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Mai Man Ieng

   1 LEAL HENRIQUES, Manual de Direito Disciplinar, Macau, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, , 2005, p. 42 a 44.
   2 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 9.ª edição, II volume, p. 834 e 835.
   3 LUÍS VASCONCELOS ABREU, Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português Vigente: As Relações com o Processo Penal, Coimbra, 1993, p. 79 e segs.
   4 Acórdãos de 16 de Fevereiro de 2000 e de 23 de Abril de 2003, respectivamente, nos Processos n. os 5/2000 e 6/2003.
   5 PAULO VEIGA E MOURA, Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública Anotado, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2011, p. 204.
   6 VINÍCIO RIBEIRO, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2011, p. 322.
   7 MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, Coimbra, Almedina, 15.ª edição, 2005, p. 322.
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1
Processo n.º 41/2012