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Processo n.º 69/2011 Data do acórdão: 2011-10-27
(Autos de recurso penal)
  Assuntos:
  – constituição de arguido
  – art.o 50.o do Código de Processo Penal
  – primeiro interrogatório não judicial
  – nomeação de defensor
  – art.o 129.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
  – requerimento de leitura das declarações
  – art.o 338.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Penal
  – direito ao silêncio
  – art.o 50.o, n.o 1, alínea c), do Código de Processo Penal
  – art.o 324.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
  – passaporte com visto falsificado
  – falsificação de documento de especial valor
  – uso de documento de identificação falsificado
  – documento de identificação
  – art.o 243.o, alínea c), do Código Penal
  – erro notório na apreciação da prova



S U M Á R I O
1. Como à ora recorrente, aquando da sua constituição como arguida no Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau, foram indicados e explicados os seus direitos e deveres nos termos do art.o 50.o do Código de Processo Penal de Macau (CPP), e não constando do auto de primeiro interrogatório dela pelo Ministério Público como arguida detida que ela tenha chegado a solicitar a nomeação de defensor, e não sendo legalmente obrigatória, segundo o art.o 129.o, n.o 2, do CPP, a assistência por defensor no primeiro interrogatório não judicial, é válido o requerimento, assinado pela arguida após esse interrogatório, da leitura, na audiência, das suas declarações prestadas ao Ministério Público.
2. Esse requerimento assinado pela arguida implica necessariamente a renúncia antecipada ao seu direito processual ao silêncio na audiência, material e naturalmente incluído no âmbito do art.o 50.o, n.o 1, alínea c), do CPP, e expressamente referido no art.o 324.o, n.o 1, do CPP.
3. Sendo, assim, aplicável in casu o art.o 338.o, n.o 1, alínea a), do CPP, foi perfeitamente legal a leitura então feita na audiência de julgamento em primeira instância, das declarações prestadas pela arguida no primeiro interrogatório não judicial.
4. Juridicamente falando, das expressões “passaporte ou outros documentos de viagem e respectivos vistos”, usadas pelo Legislador Penal dentro do conceito de “documento de identificação” definido expressamente na alínea c) do art.o 243.o do Código Penal de Macau (CP), se conclui que um passaporte chinês com visto da Venezuela posto no seu interior poderá estar em causa no tipo legal do art.o 245.o do CP, sendo também juridicamente plausível que o mero uso de um documento de identificação falsificado poderá relevar para os efeitos da punição penal cominados no tipo legal de falsificação de documento de especial valor do art.o 245.o, conjugado com o disposto na alínea c) do n.o 1 do precedente art.o 244.o.
5. Contudo, é flagrante a existência, no caso dos autos, de erro na apreciação da prova cometido pelo Tribunal a quo, já que as declarações então prestadas pela arguida no primeiro interrogatório não judicial, e lidas na audiência, foram erradamente consideradas por esse Tribunal como integradoras de uma confissão integral e sem reservas dos factos acusados pelo Ministério Público, enquanto, na realidade, a arguida, quando interrogada por esse Órgão Judiciário, não chegou a admitir a prática dos factos de falsificação do visto da Venezuela em questão, erro de apreciação da prova esse que comprometeu todo o julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal a quo, por este ter chegado a fundamentar a sua livre convicção sobre os factos provados com base também na “entendida” confissão franca, pela arguida, dos factos acusados.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 69/2011
(Autos de recurso penal)




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 376 a 378v do processo comum colectivo n.o CR3-08-0277-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, foi condenada a arguida A (A), aí julgada na sua ausência (como tal previamente consentida pela própria), pela autoria material, na forma consumada, de um crime consumado de falsificação de documento de especial valor, p. e p. pelos art.os 244.o, n.o 1, alínea a), e 245.o do Código Penal de Macau (CP), na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos.
Inconformada, veio a arguida interpor recurso ordinário dessa decisão condenatória, para além de ter impugnado antes a decisão judicial, tomada na audiência de julgamento realizada em primeira instância, de leitura das declarações então prestadas por ela perante o Ministério Público em sede de interrogatório na fase de inquérito.
Pretendeu, pois, a arguida a revogação da decisão de leitura das suas declarações anteriores (por entender que essa decisão violou o disposto no art.o “34.o” (rectius art.o 37.o) do CP, e nos art.os 50.o, n.o 1, alínea c), 324.o, n.o 1, 337.o e 338.o do Código de Processo Penal de Macau (CPP) – cfr. a motivação de recurso de fls. 361 a 369), bem como a invalidação daquela decisão condenatória (por opinar ela, e sobretudo, que “Face à evidência dos meios probatórios, é absolutamente inegável que à Recorrente não foram imputados quaisquer factos externos que descrevem como e onde foi realizado o crime em que foi condenada; não foi produzida qualquer prova documental ou testemunhal que sustente ter sido a Recorrente quem falsificou o alegado visto falsificado; há uma impossibilidade material de a Recorrente ter ofendido o bem jurídico protegido pela norma uma vez que a Recorrente não era portadora de qualquer documento emitido pela RAEM; há uma impossibilidade material de a Recorrente ter preenchido o tipo objectivo e subjectivo do crime de falsificação de documento em que foi condenada” – cfr. a motivação de fls. 392 a 398).
Aos dois recursos da arguida, respondeu o Ministério Público identicamente no sentido de manutenção do julgado (cfr. o teor das respostas de fls. 382 a 389v e de fls. 400 a 405v).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 413 a 415v), pugnando materialmente pela improcedência dos recursos.
Feito o exame preliminar, e corridos os vistos legais, e com audiência já feita nesta Segunda Instância, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Com pertinência à solução, é de considerar os seguintes elementos, coligidos do exame dos autos:
1. Em 27 de Janeiro de 2006, a ora recorrente A assinou o auto de constituição de arguido preparado pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública (a que alude a fl. 107 dos presentes autos correspondentes), de acordo com o qual foram indicados e explicados à arguida os direitos e deveres processuais referidos no art.o 50.o do CPP.
2. No mesmo dia 27 de Janeiro de 2006, e depois de ter sido interrogada pela primeira vez pelo Ministério Público como detida, a arguida preencheu e assinou o termo de identidade e residência (de fl. 132 a 132v), a declaração (de fl. 133) de consentimento da realização da audiência de julgamento na sua ausência, bem como o requerimento (de fl. 134) da leitura, na audiência, das suas declarações prestadas ao Ministério Público em sede de interrogatório.
3. Do teor desse auto de primeiro interrogatório não judicial (exarado a fls. 129 a 129v), assinado também pela própria arguida, não resulta que esta, quando interrogada pelo Ministério Público, tenha sido assistida por defensor, nem que ela tenha solicitado a nomeação de algum defensor.
4. Do mesmo auto de interrogatório, também não resulta qualquer afirmação feita pela arguida no sentido de reconhecer a prática, por ela própria, dos factos de falsificação do visto da Venezuela posto no seu passaporte chinês.
5. Após expedida para a arguida, e com sucesso, a carta registada de notificação da data de realização da audiência de julgamento, dirigida à morada declarada no seu termo de identidade e residência (cfr. o processado a fls. 343 a 343v e 353), ela não compareceu na audiência, pelo que ficou julgada na sua ausência (cfr. a acta da audiência de fls. 358 a 359).
6. Em conformidade com a fundamentação fáctica do acórdão condenatório ora recorrido (e especialmente constante de fls. 376v a 377):
– o Colectivo a quo julgou materialmente provados todos os factos imputados à arguida na acusação, segundo os quais a arguida, através de meio não apurado, falsificou, em Macau, de modo livre, voluntário e consciente, um visto da Venezuela no seu passaporte chinês;
– ao fundamentar a sua livre convicção formada sobre os factos provados, o mesmo Colectivo a quo chegou a afirmar que mediante o consentimento da arguida (cfr. a fl. 134), o Colectivo procedeu, na audiência, à leitura das declarações por ela prestadas como arguida no Ministério Público, em que ela confessou francamente a prática dos factos acusados.
7. A final, o Colectivo a quo condenou a arguida como autora de um crime consumado de falsificação de documento de especial valor, tal como acusado pelo Ministério Público no libelo deduzido (a fl. 333 a 333v), e reduziu em metade a taxa de justiça a cargo da arguida, à luz do art.o 325.o, n.o 2, alínea c), do CPP.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Ante os elementos processuais acima referidos, há que improceder o recurso intercalarmente interposto pela arguida, da decisão de leitura, na audiência então realizada em primeira instância, das declarações dela prestadas em sede de inquérito ao Ministério Público, porquanto essa decisão não violou nenhuma das normas jurídicas citadas na respectiva motivação de recurso.
Na verdade:
– e desde logo, como à ora recorrente, aquando da sua constituição como arguida no Corpo de Polícia de Segurança Pública, foram indicados e explicados os seus direitos e deveres nos termos do art.o 50.o do CPP (cfr. o que resulta do teor do respectivo auto de constituição de arguido, assinado pela própria arguida), e não constando do auto de primeiro interrogatório dela pelo Ministério Público como arguida detida que ela tenha chegado a solicitar a nomeação de defensor, e sendo certo que segundo o estatuído no art.o 129.o, n.o 2, do CPP, não é legalmente obrigatória a assistência por defensor no primeiro interrogatório não judicial, não pode vir a arguida defender agora, na sua motivação do recurso intercalar vertente, que não tendo sido ela acompanhada por qualquer técnico de direito na altura de assinatura, após o dito primeiro interrogatório, do requerimento da leitura, na audiência, das suas declarações prestadas ao Ministério Público em sede de interrogatório, este tipo de requerimento deve ser considerado como não válido, por não haver qualquer garantia de que tal consentimento foi livremente dado e que ela estava minimamente esclarecida quando assinou esse requerimento;
– outrossim, o requerimento, assinado pela própria arguida em sede de inquérito, da leitura, na audiência, das suas declarações prestadas ao Ministério Público, já implica necessariamente a renúncia antecipada ao seu direito processual ao silêncio na audiência, material e naturalmente incluído no âmbito do art.o 50.o, n.o 1, alínea c), do CPP, e expressamente referido no art.o 324.o, n.o 1, do mesmo CPP;
– e, por último, na esteira do acima analisado, e sendo concreta e perfeitamente aplicável in casu o art.o 338.o, n.o 1, alínea a), do CPP, foi perfeitamente legal a leitura então feita na audiência de julgamento em primeira instância, das declarações prestadas pela arguida no primeiro interrogatório não judicial.
E agora a respeito do recurso interposto pela arguida, do acórdão condenatório em primeira instância:
– a propósito, desde já, da tese jurídica sustentada pela arguida para defender que há uma impossibilidade material de ela ter ofendido o bem jurídico protegido pela norma incriminatória em questão por ela não ser portadora de qualquer documento emitido pela Região Administrativa Especial de Macau, ou no sentido de que há uma impossibilidade material de ela ter preenchido o tipo objectivo e subjectivo do crime de falsificação de documento em que foi condenada, cumpre observar que juridicamente falando, e, pois, com abstracção da matéria de facto em questão nos presentes autos, basta atender às expressões “passaporte ou outros documentos de viagem e respectivos vistos”, usadas pelo Legislador Penal dentro do conceito de “documento de identificação” definido expressamente na alínea c) do art.o 243.o do CP, para daí concluir que um passaporte chinês com visto da Venezuela posto no seu interior poderá estar em causa no tipo legal do art.o 245.o do CP, sendo também juridicamente plausível que o mero uso de um documento de identificação falsificado poderá relevar para os efeitos da punição penal cominados no tipo legal de falsificação de documento de especial valor do art.o 245.o, conjugado com o disposto na alínea c) do n.o 1 do precedente art.o 244.o;
– por outra banda, alega a recorrente que não foi produzida qualquer prova documental ou testemunhal que sustente ter sido ela quem falsificou o alegado visto falsificado. Trata-se de uma questão pertencente ao âmbito do vício de erro notório na apreciação da prova, aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP. E para este Tribunal ad quem, verifica-se realmente esse vício, porquanto é flagrante a existência de erro na apreciação da prova, já que embora seja legal, nos termos já acima vistos, a leitura, na audiência de julgamento, das declarações então prestadas pela arguida no primeiro interrogatório não judicial, essas declarações foram erradamente consideradas pelo Colectivo a quo como integradoras de uma confissão integral e sem reservas dos factos acusados pelo Ministério Público, enquanto, na realidade, a arguida, quando interrogada por esse Órgão Judiciário, não chegou a admitir a prática dos factos de falsificação do visto da Venezuela em questão, erro de apreciação da prova esse que comprometeu todo o julgamento da matéria de facto feito pelo Colectivo a quo, por este ter chegado a fundamentar a sua livre convicção sobre os factos provados com base também na “entendida” confissão franca, pela arguida, dos factos acusados;
– patente que está o vício da alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, e não sendo possível a renovação da prova nesta Instância de recurso (devido, a montante, à falta de pedido neste sentido), é de ordenar o reenvio do processo para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base, sobre a totalidade do objecto do processo, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP;
– com o acima concluído, já não é mister conhecer de todo o remanescentemente alegado pela arguida na motivação do seu recurso final como objecto do mesmo.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso intercalar, e julgar parcialmente provido o recurso final, com determinação do reenvio de todo o objecto do processo penal subjacente para novo julgamento pelo Tribunal Judicial de Base.
Custas do recurso intercalar tudo pela arguida, com três UC de taxa de justiça, e com mil patacas de honorários no recurso intercalar a favor da sua Exm.a Defensora Oficiosa.
Pagará também a arguida um terço das custas do recurso final, com duas UC de taxa de justiça correspondente. E fixam em mil patacas os honorários da sua Exm.a Defensora no recurso final, ficando um terço dos quais por conta da arguida.
Adiantará o Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância todos os honorários supra arbitrados.
Macau, 27 de Outubro de 2011.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_________________________ (Segue declaração de voto)
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)

Processo nº 69/2011
(Autos de recurso penal)



Declaração de voto


Vencido, pois que julgava procedente o recurso interlocutório.

Em síntese, a questão está em saber se legal foi a decisão do Tribunal a quo em proceder à leitura em audiência de julgamento das declarações pela arguida (recorrente) prestadas em sede de inquérito perante o Ministério Público.

E, ainda que em declaração pela mesma arguida prestada também em sede de inquérito tenha a mesma autorizado tal leitura, cremos que correcta não é a decisão recorrida.

Vejamos.

Sob a epígrafe “leitura permitida de declarações do arguido” preceitua o art. 338° do C.P.P.M. que:

“1. A leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida:

a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou

b) Quando, tendo sido feitas perante o juiz ou o Ministério Público, houver contradições ou discrepâncias sensíveis entre elas e as feitas em audiência que não possam ser esclarecidas de outro modo.

2. É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 7 e 8 do artigo anterior”.

Considerando-se que em sede de inquérito autorizou a arguida a leitura das suas declarações antes prestadas perante o Exmo. Magistrado do Ministério Público, assim se procedeu em audiência.

Porém, em nossa modesta opinião, não se podia proceder como se procedeu.

Não se nega que a arguida autorizou a dita leitura. Todavia, não se pode igualmente olvidar que tal autorização foi dada em sede de inquérito, (quando, nem acusação havia), e que o comando do art. 338° do C.P.P.M. está inserido no Livro VII do mesmo Código, relativo ao “Julgamento”, e no Título II, dedicado à “Audiência”, o que nos leva a considerar que a dita “autorização”, (ou, como se pode ler na alínea a) do preceito em questão, “solicitação”), deva também ser declarada nesta mesma fase processual.

Por sua vez, (e independentemente do demais), outro aspecto importa considerar.

É o seguinte:

É sabido que o Defensor do arguido julgado à revelia pode pedir a leitura das declarações por aquele anteriormente prestadas; (cfr., v.g., o Acórdão do Vdo T.U.I. de 29.09.2000, Processo n.° 13/20000).

No caso, a arguida autorizou que o julgamento tivesse lugar na sua ausência, constituindo assim aquele um julgamento a que vulgarmente se apelida de “julgamento à revelia consentida”, e, na qual é o arguido para todos os efeitos legais (possíveis) representado pelo seu Defensor; (cfr., art. 315° do C.P.P.M.).

Sucede porém que a Exma. Defensora da arguida ora recorrente, em sede de audiência, opôs-se à dita leitura; (cfr., acta de julgamento, a fls. 358 e segs.).

E perante tal oposição, afigura-se-nos pois que de forma alguma se podia proceder à leitura das aludidas declarações.

Com efeito, se no julgamento estava a arguida representada para todos os efeitos legais (possíveis) pela sua Defensora, e se esta se opôs à dita leitura, (como que, “revogando” a anterior autorização), não se percebe com que fundamento se não reconheceu eficácia a tal oposição, procedendo-se, na mesma à leitura em questão, e fazendo-se “tábua rasa” da oposição manifestada.

Daí, a presente declaração.

Macau, aos 27 de Outubro de 2011

José Maria Dias Azedo

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