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Processo n. 277/2008 (Recurso Laboral)

Relator: Cândido de Pinho

Data do acórdão: 8 de Setembro de 2011

Descritores:
- Salário
- Gorjetas


SUMÁRIO:
III- A composição do salário, através de uma parte fixa e outra variável, admitida pelo DL n. 101/84/M, de 25/08 (arts. 27º, n.2 e 29º) e pelo DL n. 24/89/M, de 3/04 (arts. 25º, n.2 e 27º, n.1) permite a integração das gorjetas na segunda.






















Proc. N. 277/2008


Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I- Relatório

A, com os demais sinais dos autos, moveu contra a STDM acção de processo comum de trabalho pedindo a condenação desta no pagamento de Mop$1.127,882,11,como compensação pelos descansos semanais, feriados obrigatórios e descansos anuais não gozados desde o início da relação laboral até ao seu termo.

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Tendo a ré STDM suscitado, na oportunidade, a excepção de prescrição na sua contestação, dela o Ex.mo juiz da 1ª instância conheceu no despacho saneador (fls. 112), julgando parcialmente prescritos os créditos peticionados, concretamente os referentes a descanso semanal e feriados obrigatórios em data anterior a 22 de Maio de 1987.
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Dessa decisão recorreu a autora, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1) No caso concreto, é todo o regime contido no Código Civil de 1966 que tem aplicabilidade e não o novo regime de Código Civil de Macau por falta de regulamentação específica no domínio do direito de trabalho;
2) A prescrição é um efeito jurídico da inércia prolongada do titular do direito no seu exercício;
3) O legislador prevê situações, ligadas a relações de especial proximidade e confiança' e até de conflito de interesses, em que não é justo que a inércia prolongada do titular do direito no seu exercício seja desvalorada e daí a previsão legal das chamadas causas bilaterais de suspensão do prazo de prescrição;
4) Uma das causas bilaterais de suspensão do prazo de suspensão é a pendência da relação de trabalho doméstica;
5) No nosso entender, a particular relação de trabalho propriamente dita tem toda a semelhança, na sua essência, com a relação de trabalho doméstica, e todos os elementos necessários (subordinação jurídica, retribuição) estão plenamente verificados em ambos os tipos de contrato de trabalho. Ao fim e ao cabo, pode afirmar-se que o contrato de trabalho doméstico é uma sub-espécie do contrato de trabalho;
6) Existe uma zona de intersecção teleológica entre esses dois tipos de contrato de trabalho que justificaria tratamento legal semelhante;
7) Se assim é, significaria que o legislador teria alargado o âmbito da causa bilateral de suspensão prevista na alínea e) do artº. 318º do Código Civil de 1966 a todas as relações laborais e não apenas às relações laborais de trabalho doméstico;
8) Na verdade, o ponto comum ou zona de intersecção reside-se no facto de que a inibição no exercício do direito por parte do trabalhador doméstico, decorrente da situação de subordinação jurídica em que se encontra e do receio de suscitar conflito com a entidade patronal que pode, inclusivamente, colocar em risco o seu emprego, verifica-se da mesma maneira na relação de trabalho propriamente dito, não se descontina, alguma diferença de carácter substantivo.
9) Assim, e perante a lacuna legislativa verificada na ordem jurídica de Macau (no âmbito de Código Civil de 1966), o intérprete do direito deve procurar colmatar a mesma lacuna, recorrendo à analogia;
10) Se assim é, não é difícil de concluir que, por aplicação analógica do artº. 318º, al. E) do Código Civil de 1966, o prazo de prescrição dos créditos emergentes da relação laboral só começa a correr a partir da cessação do contrato de trabalho.
11) Pelo que o artº. 318º, al E) do Código Civil de 1966 foi violada.
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Prosseguiu normalmente o processo, vindo a ser proferida sentença que julgou parcialmente o pedido e condenou a ré a pagar à autora a quantia de Mop$ 14.221,07, crescida dos juros legais.
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É dessa sentença que ora recorre jurisdicionalmente a autora, tendo apresentado as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A - Ao abrigo do disposto no art. 25º do RJRT, as gorjetas são parte integrante do salário da recorrente, sob pena de, não o sendo, o salário não ser justo;
B - A Sentença recorrida viola o Princípio da Igualdade, pois os direitos dos trabalhadores nas mesma circunstâncias da recorrente têm vindo a ser acauteladas pelos Tribunais da R.A.E.M., existindo sobre a questão Jurisprudência Assente e que considera serem as gorjetas parte integrante dos salário dos trabalhadores da recorrida.
C - Ao não considerar as gorjetas parte integrante do salário da recorrente, a Sentença proferida viola o constante do art. 25º do RJRT, o art. 23º, nº 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o art. 7º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, entre outros, com a consequente abertura de portas à violação do direito a uma existência decente e minimanente digna, sujeitando os trabalhadores a uma subsistência miserável, indigna, semelhante a uma possível “escravatura moderna” .
D - Tendo considerado provado o art. 6º da Base Instrutória e a alínea C) da matéria assente, em que ficou expresso que o salário da recorrente inclui as gorjetas recebidas e distribuídas aos trabalhadores pela recorrida, não pode vir o MMo Juiz ad quo, a posteriori e em sede de Sentença, decidir que, afinal, tais montantes não integram o seu salário.
E - Inexiste qualquer identidade ou paralelismo entre a situação dos trabalhadores dos casinos em Portugal e os de Macau, porque aqueles recebem, desde logo, da entidade patronal um salário justo, i.e., que permite a sua normal subsistência, nunca inferior ao salário mínimo Nacional, sendo que caso as gorjetas não fizessem parte integrante do salário dos trabalhadores de Macau, seria o seu salário miserável e incapaz de prover à sua alimentação, quanto mais às restantes necessidades do ser humano.
F - Também, em Portugal, situação analisada na Douta Sentença proferida, as gorjetas não são recebidas e distribuídas ao belo prazer da entidade patronal, segundo regras e critérios desconhecidos dos trabalhadores, sendo a questão clara e transparentemente regulada por Lei.
G - Na exclusiva parte recorrida, é a Douta Sentença proferida nula, de acordo com todo o exposto e o contido no art. 571º, nº 1, alíneas b) e c) do C.P.C..
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A STDM concluiu as suas contra-alegações do seguinte modo:
1 - As gratificações ou gorjetas recebidas pelos empregados de casino dos clientes não fazem parte do salário.
2 - A retribuição ou salário, em sentido jurídico (laboral), encerra quatro elementos essenciais e cumulativos:
i. É uma prestação regular e periódica;
ii. Em dinheiro ou em espécie;
iii. A que o trabalhador tem direito por título contratual e normativo e que corresponde a um dever jurídico da entidade patronal;
iv. Como contrapartida pelo seu trabalho.
3 - No caso dos autos, estando em causa gorjetas comprovadamente oferecidas por clientes de casino, dependendo o seu recebimento do espírito de animus donandi de terceiros, estranhos à relação jurídico-laboral, nunca poderia a trabalhadora ter exigido à sua entidade empregadora o seu pagamento inexistindo aquela oferta por parte dos clientes.
4 - Se, por hipótese, em determinado mês, não existissem quaisquer gorjetas entregues pelos clientes da Recorrida a distribuir pela A., ora Recorrente, e restantes trabalhadores, nenhum dever jurídico impendia sobre a Recorrida no sentido de suprir aquela falta e nenhum direito de crédito podiam os seus trabalhadores exigir a este respeito.
5 - Com efeito, é sabido que em anos em que o montante das gorjetas era inferior ao do ano anterior (variação que se constata pela análise dos rendimentos da A., ora Recorrente), nunca a Recorrente reclamou da ora Recorrida o seu pagamento.
6 - A Recorrente sabia que a parte do rendimento respeitante às gorjetas dependia exclusivamente das liberalidades dos clientes de casino, nada podendo exigir à ora Recorrida a esse título caso essa parte do seu rendimento fosse zero.
7 - Dispõe o artigo 25º, n.º 1 do RJRT que “Pela prestação dos seus serviços ou actividade laboral, os trabalhadores têm direito a um salário justo.”.
8 - Salvo o devido respeito por opinião contrária, analisando a certidão de rendimentos da Recorrente, não se pode dizer que à A. não foi proporcionado um rendimento justo, maxime porque os rendimentos globais auferidos eram claramente superiores à média do rendimento / remuneração auferida por cidadãos de Macau com formação académica e profissional equivalente às suas que não trabalhassem em casino, os quais eram mais que bastantes para prover a uma vida digna e decente da Recorrente e sua família.
9 - A decisão recorrida não viola o princípio da igualdade, pois cada “sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.” - cfr. artigo 576º n.º 1 do C.P.C..
10 - Deste modo, na esteira do entendimento do mais Alto Tribunal da RAEM, do douto tribunal Recorrido e, bem assim, da doutrina maioritária, entendemos que “As gratificações ou gorjetas recebidas pelos empregados de casino dos clientes não fazem parte do salário.”.
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II- Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
  A A. iniciou a relação contratual com a R. em 27 de Junho de 1971. (A)
  A A. cessou a relação contratual com a R. em 22 de Julho de 2002. (B)
  A autora foi admitida como empregada de casino, recebendo de dez em dez dias da R., como contrapartida da sua actividade laboral, desde o início da relação laboral até a data da sua cessação, duas quantias, uma fixa, no valor de MOP$ 4,10 por dia, desde o seu início até 30 de Junho de 1989, e de HKD$ 10,00 por dia, desde 1 de Julho de 1989 até 30 de Abril de 1995, e de HKD$ 15,00 por dia, desde 1 de Maio de 1995 até à data da cessação da relação contratual, e ainda outra parte variável, em função do dinheiro recebido dos clientes de casinos vulgarmente designado por gorjetas. (C)
  As gorjetas eram distribuídas por todos os empregados de casinos da R., e não apenas aos que têm “contacto directo” com clientes nas salas de jogo. (D)
  Os empregados que não trabalhavam directamente nas mesas ou os que não lidavam com os clientes tinham também direito a receber quota-parte das gorjetas distribuídas. (E)
  As gorjetas eram provenientes do dinheiro recebido dos clientes dos casinos. (F)
  Dependentes, pois, do espírito de generosidade desses mesmos clientes. (G)
  Pelo que o rendimento da A. tinha uma componente quantitativamente incerta. (H)
  A A. como empregada de casino, foi expressamente avisada pela R. que era proibida de guardar com quaisquer gorjetas entregues pelos clientes de casinos. (I)
  A A. prestou serviços em turnos, conforme os horários fixados pela R. (1)
  A ordem e o horário dos turnos são os seguintes: (K)
1) 1 º e 6º turnos: das 07h00 até 11h00, e das 03h00 até 07h00;
2) 3º e 5º turnos: das 15h00 até 19h00, e das 23h00 até 03h00 (dia seguinte);
3) 2º e 4º turnos: das 11h00 até 15h00, e das 19h00 até 23h00.
  A A. tinha direito a pedir dias de dispensa ao serviço, mas não eram pagos, quer com rendimento diário fixo, quer com gorjetas correspondentes. (L)
  As gorjetas oferecidas a cada um dos trabalhadores da R. pelos seus clientes eram reunidas e contabilizadas diariamente pela seguinte composição de indivíduos: um funcionário do Departamento de Inspecção de Jogos de Fortuna ou Azar, um membro do departamento de tesouraria da R., um “floor manager” (gerente do andar) e trabalhadores das mesas de jogos da R., e depois distribuídas, de dez em dez dias, por todos os trabalhadores dos casinos da R. (M)
  A composição do rendimento a que se alude na alínea C) da matéria de facto assente foi acordada através de acordo verbal celebrado entre A. e R. (N)
  A A. recebeu no dia 4 de Julho de 2005, através da então Direcção dos Serviços do Trabalho e Emprego, a quantia de MOP$ 14.895,05. (O)
  As gorjetas eram geridas pela R., segundo os critérios adoptados por esta. (3º)
  Durante o período em que prestava serviço à R., a A. recebeu nos anos de 1984 a 2002 (Doc. n.º 1 junto com a p.i.), os seguintes rendimentos: (6º)
a) 1984 = 128.394,00;
b) 1985 = 130.333,00;
c) 1986 = 120.065,00;
d) 1987 = 130.317,00;
e) 1988 = 142.601,00;
f) 1989 = 163.841,00;
g) 1990 = 190.186,00;
h) 1991 = 186.900,00;
i) 1992 = 194.320,00;
j) 1993 = 201.245,00;
k) 1994 = 199.649,00;
1) 1995 = 224.932,00;
m) 1996 = 218.835,00;
n) 1997 = 201.975,00;
o) 1998 = 198.966,00;
p) 1999 = 170.174,00;
q) 2000 = 176.216,00;
r) 2001 = 176.110,00;
s) 2002 = 41.562,00;
  Ficou ainda acordado que a A. tinha direito a receber gorjetas conforme o método vigente adoptado pela R. (7º)
  Do ponto de vista da A., a distribuição de gorjetas é considerada como um dos seus direitos inerentes à relação contratual entre A. e R. (8º)
   O pagamento do rendimento variável foi sempre regular e periodicamente cumprido pela R. e a A. sempre teve a expectativa do seu recebimento. (9º e 10º)
  Aquando do início da relação contratual, a A. aceitou o rendimento fixo como o rendimento garantido pela sua entidade patronal ora R. dado que a A. tinha a perspectiva que as gorjetas também faziam parte do seu rendimento. (11º)
  Tanto a R., como a A., tinham perfeita consciência que quer a parte fixa quer a parte variável faziam parte do seu rendimento. (12º)
  As gorjetas sempre integram no orçamento normal da A. (13º)
  O que consta das resposta dadas aos quesitos 9º e 10º. (14º)
  Os trabalhadores (incluindo a A.) recebiam quantitativo diferente de gorjetas, consoante os respectivos cargo e tempo de serviço, fixados previamente pela R. (15º)
  Durante a vigência da relação contratual, a A. sempre prestou serviço à R. e nunca gozou um dia de descanso por cada semana de serviço prestado. (16º)
  Nem a R. pagou à A. qualquer compensação pecuniária pelos serviços prestados nesses dias. (17º)
  Nem lhe concedeu outro dia de descanso. (18º)
  A A. sempre prestava serviços à R. e nunca gozou dias de descanso correspondentes aos feriados obrigatórios, quer remunerados quer não remunerados. (19º)
  A R. nunca pagou à A. qualquer compensação pecuniária pelos serviços prestados nos dias de feriados obrigatórios acima descritos. (20º)
   A A. sempre prestou serviço à R. e nunca gozou seis dias de descanso por cada ano de serviço prestado. (21º)
  A R. nunca lhe pago qualquer compensação pecuniária pelos serviços prestados nesses dias. (22º)
  Até ao momento, a R. ainda não procedeu ao pagamento das quantias em dívida à A. referentes aos dias de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios não gozados e licença de parto. (23º)
  Antes da entrada da A. ao serviço da R., aquela foi informada pela R. que as gorjetas entregues pelos clientes aos trabalhadores não eram para seu beneficio exclusivo, mas para todos os que naquela organização prestavam serviço. (24º e 25º)
  Aquando da contratação da A. pela R., aquela foi informada pela R., o seguinte: (26º)
  1. O rendimento seria pago à razão diária, mas apenas pelos dias em que fosse efectivamente prestado trabalho;
  2. Caso pretendesse gozar dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios, tal não lhe era negado, simplesmente esses dias não seriam pagos.
  A A. era livre de pedir o gozo de dias de descanso sempre que assim o entendesse, desde que tal gozo não pusesse em causa o funcionamento da empresa da R. e que fosse autorizado pela mesma. (28º)
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III- O Direito
1- Recurso do despacho saneador
Foi julgado ali que o prazo de prescrição era o de vinte anos, ao abrigo do Código Civil de 1966 e que o decurso desse prazo se teria interrompido com a notificação da ré para a tentativa de conciliação, o que aconteceu em 22/05/2007.
A autora recorrera desse despacho por considerar que, por aplicação analógica do art. 318º, al. e), do CC de 1966, o prazo de prescrição só começa a correr a partir da cessação da relação de trabalho.
Vejamos.
A solução tomada no despacho saneador representa a decisão correcta, que abraça, aliás, a posição desta instância quando chamada a pronunciar-se sobre o tema. A respeito deste, portanto, e para não nos alongarmos em considerações escusadas, apenas algumas breves considerações.
Em primeiro lugar, importa dizer que a legislação laboral de Macau (DL n. 101/84/M, de 25/08 e, posteriormente, o DL no 24/89/M, de 3/ de Abril) nada estatuem, especificamente, sobre o regime de prescrição dos créditos emergentes das relações laborais. E se é certo que o Código Civil previa a figura do contrato de trabalho, a verdade é também que não regulamentou o seu regime, remetendo-o para legislação especial (arts. 1152º e 1153º). Regulamentação que viria a surgir com o Decreto-Lei no 49408, de 24/11/1969, que no seu art. 38º estabeleceu um prazo de prescrição de um ano para todos os créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, quer pertencentes à entidade patronal, quer ao trabalhador, contando-se esse prazo “a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho”. Assim, em matéria de prescrição, haverá que recorrer ao regime do Código Civil, importando apenas averiguar se o anterior de 1966, se o de 1999.
O art. 290º, n.1 do Cod. Civil actual (que entrou em vigor em 1 de Novembro de 1999) estabelece que o prazo fixado em lei nova, desde que mais curto do que o fixado em lei anterior, será aplicado aos prazos que já estiverem em curso. Contudo, ainda de acordo com a referida norma, o início desse prazo só se dá a partir da entrada em vigor da nova lei, “a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar”, caso em que essa será a lei aplicável.
Ora, o prazo ordinário de 15 anos fixado na lei nova (art. 302º, do C.C. vigente) contado desde 1/11/1999 terminaria em 1/11/2014. Quer dizer, só a partir dessa data se colocarão problemas de prescrição ao abrigo da lei nova; neste momento, não. Mas sob o império da aplicação da lei velha (20 anos), é já possível que alguns créditos tenham prescrito, bastando que até à data da verificação do facto interruptivo tenham já passado 20 anos (art. 309º, C.C. anterior). Só isto é suficiente para concluir pela aplicação ao caso do prazo estabelecido no CC de 1966.
Mas, obtida esta conclusão, outra questão já se coloca.
Deverá ter-se em conta o disposto no art. 318º, al. e), do C.C. de 1966, segundo o qual a prescrição não começa, nem corre “entre quem presta o trabalho doméstico e o respectivo patrão, enquanto o contrato durar” (negrito nosso), tal como o defende o recorrente?
Recordemos que a legislação laboral actual da RAEM nada diz sobre o assunto. E, por tal motivo, entende a recorrente que se deve aplicar a referida norma como forma de integração da lacuna. Isto é, o prazo só deve começar a correr após a cessação da sua relação laboral, tal como acontecia com as relações de trabalho doméstico. E em apoio dessa opinião, chama à colação o art. 318º, al. e), do C.C. de 1966.
Poderemos ver nela a possibilidade de aproveitamento do seu regime aos casos por ela não abrangidos? Não, em nossa opinião.
Trata-se de uma norma muito particular que o legislador quis aplicável somente ao trabalho doméstico, por o considerar distinto e com especificidades relativamente ao universo geral da contratação laboral. Havendo uma relação de grande proximidade, até mesmo de confiança pessoal entre empregador e trabalhador doméstico, com maior incidência quando o trabalhador é “interno”, qualquer incursão judicial para reclamar créditos deste contra aquele iria abalar definitivamente a relação. Porque foi isso o que o legislador anteviu, logo tratou de trazer para a norma um mecanismo de defesa dos interesses do trabalhador, protegendo-o desse risco. Mas não tendo o legislador avistado idêntico perigo nas demais relações laborais, nenhuma necessidade viu de consagrar a mesma solução para elas. Assim sendo, uma vez que nesta matéria o silêncio da lei sobre os demais casos de serviço não doméstico não representa nenhum vazio legal, não podemos falar de lacuna que mereça ser preenchida (este é o sentido unânime da jurisprudência produzida sobre o assunto, de que a título de exemplo citamos o Ac. do TSI de 19/03/2009, Proc. n. 690/2007).
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E como proceder para apuramento concreto da prescrição?
Tendo em consideração duas disposições: a do art. 306º, n.1 e a do art. 323º, n.1, do C.C. de 1966. Ou seja, tendo-se em conta que o prazo começa a correr quando o direito puder ser exercido (1ª) e que o prazo se interrompe com a citação (2ª). Mas ainda é preciso considerar a norma do art. 27º, nº3, do CPT, segundo o qual os prazos de prescrição se interrompem pela notificação da ré para a tentativa de conciliação. Assim sendo, visto que o facto interruptivo da citação ocorreu em 22/05/2007, este será o marco a considerar. Prescritos estarão os créditos subsistentes para lá de vinte anos antes dessa data, ou seja os anteriores a 22/05/1987.
Pelo exposto, nenhuma censura o saneador merece.
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2- Recurso da sentença
Discute-se em 1º lugar se as gorjetas devem ou não fazer parte do salário. A sentença recorrida considerou que não e é dela que ora vem interposto o presente recurso.
Vejamos.
A recorrente começou a trabalhar para a recorrida como empregado do casino, recebendo como contrapartida diária uma quantia fixa, desde o início até á cessação da relação laboral. Para além disso, recebia uma quantia variável em função de gorjetas recebidas dos clientes do casino, que a recorrida reunia, contabilizava e posteriormente distribuía por todos os seus empregados. E tanto a parte fixa, como a variável, haviam sido acordadas verbalmente entre recorrente e recorrido.
Ora, tal como o TSI tem defendido, o contrato em causa é de trabalho, porque reúne todas as características próprias deste.
Socorramo-nos do aresto acima já citado:
“Em face do artigo 1079.º do Código Civil, artigos 25º e 27º do anterior RJRL - cfr. artigos 1º, 4), 9º, 2), 57º da actual LRT, Lei 7/2008, de 12 de Agosto, em princípio não aplicável aos contratos findos, face à redacção do disposto no art. 93º -, art. 23°, n.º 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 7º do Pacto sobre Direitos Económicos Sociais e Culturais e pela Convenção da OIT n.º 131, direitos que por essa via não deixam de ser tutelados pela própria Lei Básica no seu artigo 40º, decorre, face à factualidade apurada, que parece não restarem quaisquer dúvidas de que nos encontramos perante um verdadeiro e puro contrato de trabalho entre a autora e a ré, em que esta, mediante uma retribuição, sob autoridade, orientações e instruções daquela, começou a trabalhar na área de actividade ligada à exploração de jogos de fortuna ou azar”.
Concordamos com a posição e nada mais temos a acrescentar-lhe.
No que se refere ao valor do salário, pergunta-se: Será que ele apenas é constituído pela parte fixa ou também englobará a parte variável em resultado das gorjetas?
Também neste ponto estamos de acordo com a posição deste TSI, no sentido de que as gorjetas não foram sendo atribuídas a título de mera liberalidade. A liberalidade, em princípio, para assim ser entendida, não deveria ter sido atribuída com carácter de regularidade. E o que está demonstrado nos autos é, precisamente, o contrário.
Depois, não eram gorjetas que o trabalhador do casino guardava para si vindas directamente do cliente apostador. Se assim fosse, poderia dizer-se que o empregador a elas era totalmente alheio, que nenhuma interferência exercia nem na sua distribuição, nem no seu quantitativo e que, portanto, apenas pagava ao seu subordinado o valor remuneratório previamente determinado. Mas não. Eram somas de dinheiro que o trabalhador recebia, sim, mas que tinha que entregar à sua entidade patronal, de quem, posteriormente, apenas recebia uma parte. Locupletamento à custa alheia seria a situação se, tendo o jogador entregue pessoalmente o dinheiro ao trabalhador, a entidade patronal dela, sem mais, se apropriasse totalmente. Mais, haveria aí uma manifesta superioridade de parte a roçar a ilicitude se, contra a vontade do empregado, este fosse obrigado a abrir mão daquilo que o jogador voluntariamente lhe tinha dado. Nenhuma relação laboral assente numa base lícita toleraria tal atitude de ingerência na vida do trabalhador por parte do empregador se não tivesse havido entre ambos um acordo que permitisse a distribuição das gorjetas, que não haviam sido dadas a este, mas àquele. Só um modelo de distribuição pré-determinado confere licitude à acção do empregador. Mas, ao mesmo tempo que assim acontece, não podemos deixar de pensar que, afinal, a entidade empregadora tinha alguma margem de superioridade nessa relação, pois era ela quem geria o dinheiro e, posteriormente, o distribuía segundo um esquema para o qual nenhuma contribuição o trabalhador dera. Ou seja, há aqui assim uma atitude que é própria da supremacia do empregador e que revela bem que este não era um simples “guardador” ou mero “depositário” do dinheiro proveniente das gorjetas.
De resto, mal se compreenderia que qualquer trabalhador aceitasse trabalhar por tão poucas patacas diárias (a parte fixa), se não soubesse que, a elas, acresceria uma quantia bem mais razoável em resultado da distribuição da soma de todas as gorjetas recebidas por si e pelos restantes colegas do casino. Se o salário tem uma função social, que visa conferir dignidade de vida ao trabalhador e ao seu agregado familiar, e de que o empregador dos tempos modernos já não pode alhear-se, então parece que esta entrega permanente ao trabalhador de dinheiro recebido do jogador não pode deixar de ter um sentido remuneratório.
E neste quadro, todos – jogadores, trabalhadores e empregador - ficam bem. Os primeiros, porque satisfeitos, cumprem o seu desejo de generosidade e altruísmo (mas é questão que aqui não tem valor jurídico); os segundos, porque, ao cabo e ao resto, vêem devidamente compensado o resultado do seu trabalho; e o último, porque vê feliz e empenhado o seu empregado, a quem vai pagar com dinheiro que nem sequer sai do seu bolso.
E, já agora, não deixaria de ser contraditório e injusto, e por isso mal se perceberia, que a reclamada “unidade do sistema” consentisse que, para efeito de salário, a gorjeta assim distribuída ficasse de fora do conceito, enquanto para efeito tributário já passasse a ser considerada como “rendimento do trabalho variável” (cfr. art. 2º, Lei n. 2/78/M, de 25 de Fevereiro).
Tudo isso, para concluir que a composição do salário, através de uma parte fixa e outra variável, admitida pelo DL n. 101/84/M, de 25/08 (arts. 27º, n.2 e 29º) e pelo DL n. 24/89/M, de 3/04 (arts. 25º, n.2 e 27º, n.1) permite a integração das gorjetas na segunda.
É para nós, portanto, questão ultrapassada a de que o salário integra uma parte fixa e outra variável. Problema é como calculá-lo: se ao dia, se ao mês e qual o seu valor.
Verdade que o trabalhador recebia uma quantia fixa diária. Verdade também que nos dias em que não trabalhava não recebia remuneração. Todavia, a ausência de remuneração nesses dias não advém de qualquer acordo prévio.
Aliás, a questão está consolidada neste TSI em termos tais que deles não somos capazes de divergir. Veja-se, por exemplo, o que foi dito no Ac. de 14/09, no Rec. N. 407/2006:
  “…a “quota-parte” de “gorjetas” a ser distribuída ao Autor, em montante definido unilateralmente pela Ré, integra precisamente o salário mensal do Autor, pois caso contrário e vistas as coisas à luz de um homem médio colocado na situação concreta do ora Autor, ninguém estaria disposto a trabalhar por conta da Ré em tantos anos seguidos nos seus casinos em horários de trabalho por esta fixados…ou seja, em horários de turnos necessariamente árduos para qualquer pessoa humana, se tivessem de ser cumpridos continuadamente em anos seguidos, sabendo entretanto, de antemão, que a prestação fixa do seu salário era de valor muito reduzido”.
E também o Ac. de 15/07/2010, Proc. n. 928/2010:
“…o qual o trabalhador estava obrigado a trabalhar por turnos de seguinte forma:
1º e 6º turnos: das 07h00 às 11h00, e das 03h00 às 07h00;
3º e 5º turnos: das 15h00 às 19h00, e das 23h00 às 003h00 do dia seguinte;
2º e 4º turnos: das 11h00 às 15h00, e das 19h00 às 23h00
Como se sabe, é por imposição legal e pelos termos do contrato de concessão para exploração dos jogos de fortuna e azar que os casinos têm de funcionar ininterruptamente durante 24 horas. Ora, se é compreensível e justificável a fixação dos turnos, nos termos que vimos supra, pela entidade patronal para fazer face à necessidade de assegurar o funcionamento contínuo legalmente imposto dos seus casinos, já custa perceber como é quê é possível os seus trabalhadores afectados aos casinos, em vez de auferirem um salário mensal, que é única forma de pagamento conciliável com a organização dos turnos durante 24 horas para assegurar a continuidade do funcionamento dos casinos, auferirem antes um salário diário determinado em função do número de dias de trabalho em que quis trabalhar e efectivamente prestou serviço. Na verdade, basta dar uma vista de olhos aos turnos fixados e à forma como os turnos estão organizados e distribuídos durante as 24 horas, em especial o 5º turno que se inicia às 23h00 num dia e termina às 03h00 de madrugada no dia seguinte, já se apercebe da impossibilidade prática de determinar o período de trabalho diário para efeitos de cálculo do alegado salário diário”.
Assim sendo, tal como este TSI tem admitido em casos similares, é de considerar que o salário era mensal, para cujo apuramento médio diário entrará o valor conjunto da parte fixa e da variável, tal como feito nos autos.
Neste sentido, por recentes, vejam-se os acórdãos proferidos nos Processos nºs 780/2007, de 31/03/2011, 423/2008, de 23/06, por exemplo.
Significa isto que a sentença não pode manter-se e deverá ser revogada.
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2- Ultrapassada esta questão, resta extrair as devidas consequências indemnizatórias. Impõe-se, no entanto, antecipar que, em virtude da sentença recorrida ter fixado os factores multiplicadores numa fórmula que não foi impugnada por ninguém (nem pela recorrente, nem pela STDM em recurso subordinado), não os poderá censurar este TSI, por constituírem já um dado inalterável, devido à força do caso julgado e à delimitação objectiva do recurso (art. 589º do CPC).
A única alteração que se nos impõe é que resulta da diferente base salarial para o cálculo da indemnização, que agora incluirá toda a massa remuneratória, incluindo as gorjetas, e não apenas o valor diário base percebido.
Considerar-se-á, assim, que o valor do salário diário (incluindo as gorjetas) foi de Mop$ 356,65, 362,03, 333,51, 361,99, 396,11, 455,11, 528,29, 519,16, 539, 77, 559,01, 554,58, 624,81, 607,87, 561,04, 552,68, 472,70, 489,48,489,19, 204,74 nos anos de 1984, 1985, 1986, 1987, 1988, 1989, 1990, 1991, 1992, 1993, 1994, 1995, 1996, 1997, 1998, 1999, 2000, 2001, 2001, 2002, respectivamente.
Teremos em atenção, por outro lado, que a sentença considerou não haver lugar a indemnização relativamente ao serviço prestado em dias de descanso semanal e em feriados obrigatórios, uns e outros ao abrigo do DL nº 100/84, de 25/08. Como esta matéria não faz parte do objecto do recurso (ninguém criticou a decisão nesta parte), impedido está o tribunal de recurso de a apreciar.
E ter-se-á, por fim, em atenção, tal como decidido no despacho saneador, os efeitos da declarada prescrição, em consonância, aliás, com a sentença nesta parte.
Dito isto, avancemos para a atribuição da indemnização.

a) Descanso semanal

a) Na vigência do DL n. 101/84/M
Nada se determinará face ao que ficou dito sobre o teor da sentença.

b) Na vigência do DL n. 24/89/M
A sentença entendeu que o factor multiplicador era o 1 na fórmula AxBx1 (em que A é o número de dias vencidos e não gozados e B o valor do salário diário).
Assim sendo, considerando os dias não gozados, conforme mapa a fls. 23 a 25 da sentença, e o valor de cada um, a indemnização atinge o valor de Mop$361.157,80.

b) Descanso anual

b)1- Na vigência do DL n. 101/84/M
Considerou a sentença que a indemnização corresponde ao resultado da fórmula (AxBx1).
E sendo assim, considerando os dias mencionados no mapa de fls. 27 a 29 da sentença e os valores acima referidos com referência a cada um dos anos, o valor indemnizatório é de é de Mop$ 4.507,28.

b) 2- Na vigência do DL n. 24/89/M
Considerou a sentença que o factor multiplicativo era o 3.
Posto isto, e tendo em atenção os mesmos considerandos, o valor indemnizatório apurado ascende a Mop$ 120.865,48.

c) Feriados obrigatórios

c). 1 - Na vigência do DL n. 101/84/M
Afirmou a sentença em termos imperativos que não havia lugar a indemnização relativamente ao período comandado pelo diploma em epígrafe. Nada, por isso, pode este TSI retorquir a este respeito.

c). 2- Na vigência do DL n. 24/89/M
No contexto deste diploma legal, a sentença em crise ajuizou que o factor multiplicador da fórmula era o 2 (AxBx2).
Posto isto, o valor a atribuir é de Mop$ 78.913,92

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Em suma, o valor total monta a Mop$ 565.444,48.

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IV- Decidindo

Face ao exposto, acordam em:

1- Negar provimento ao recurso interposto pela autora A do despacho saneador.
Custas pela recorrente.

2- Conceder parcial provimento ao recurso final e, em consequência, revogar parcialmente a sentença nos sobreditos termos e, em virtude disso, condenar a STDM a pagar à recorrente a quantia de Mop$565.444,48, acrescida de juros legais calculados pela forma decidida pelo TUI no seu acórdão de 2/03/2011, no processo nº 69/2010.
Custas por recorrente e recorrida em ambas as instâncias na proporção do decaimento.
TSI, 08 / 09 / 2011.
José Cândido de Pinho
Choi Mou Pan
Lai Kin Hong (com declaração de voto)



















Processo nº 277/2008
Declaração de voto

Subscrevo o Acórdão antecedente à excepção da parte que diz respeito à existência dos direitos do trabalhador à compensação e aos factores de multiplicação para efeitos de cálculos de indemnização pelo trabalho prestado nos descansos semanais e anuais e nos feriados obrigatórios, em tudo quanto difere do afirmado, concluído e decidido, nomeadamente, nos Acórdãos por mim relatados e tirados em 27MAIO2010, 03JUN2010 e 27MAIO2010, nos processos nºs 429/2009, 466/2009 e 410/2009, respectivamente.

RAEM, 08SET2011

O juiz adjunto


Lai Kin Hong