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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A interpôs recurso contencioso do despacho do Chefe do Executivo, de 9 de Novembro de 2011, que mandou reabrir o acto público do Concurso Internacional para Modernização, Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau.
Por Acórdão de 19 de Julho de 2012, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) rejeitou o recurso com fundamento na irrecorribilidade contenciosa do acto administrativo recorrido.
Inconformada, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI).
Termina a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
   - O Tribunal a quo estava adstrito a percorrer um iter cognitivo próprio inerente ao tipo de recurso contencioso que lhe tinha sido dirigido, iter cognitivo que se furtou a percorrer com remissão global para a fundamentação do acórdão do V. TUI no processo de Recurso Jurisdicional no. 22/2012, relativo a suspensão de eficácia do acto recorrido.
   - Mas o tribunal a quo está obrigado indagar o conteúdo material do acto recorrido e não apenas averiguar indícios formais, o tribunal a quo está adstrito do ponto de vista material, substantivo a averiguar a irrecorribilidade do acto com fundamento em normas jurídicas expressas.
  - O acórdão em crise padece de nulidade por absoluta falta de pronúncia sobre a matéria objecto do recurso contencioso interposto pela recorrente que fundamentando a recorribilidade do acto administrativo de execução de julgado, arguiu a nulidade do mesmo com fundamento nas seguintes normas jurídicas materiais e processuais administrativas, insítas nos artigos no. 138° no. 4 do CPA e 184°, no. 3 do CPCA conjugados com o artigo no. 122°, n. 2, alínea c) , d) e i) do CPA.
  - É igualmente nulo, por falta absoluta de fundamentação, ao fazer remissão global - sem produzir fundamentação própria e específica de um processo de contencioso de anulação - para a fundamentação produzida em acórdão jurisdicional de recurso de providência cautelar de suspensão de eficácia de acto administrativo, na qual o tribunal apenas recorre a prova meramente formal e indiciária.
  - O acto recorrido é um acto desconforme com a sentença anulatória, padece de vícios de ilegalidade próprios, conferindo a lei expressamente sindicabilidade contenciosa, nos termos do citado artigo no. 138°, no. 4 do CPA - norma imperativa que o Tribunal a quo deixou de aplicar - e nos termos das normas jurídicas materiais e processuais administrativas, ínsitas no artigo 184°, no. 3 do CPCA conjugado com o artigo 122º, n. 2, alinea c) , d) e i) do CPA.
  - Com efeito, caso não interpusesse o presente recurso a recorrente viria consolidado na ordem jurídica o acto de execução desconforme com o julgado anulatório, seria admitida num concurso extinto e classificada isoladamente dos restantes concorrentes por uma comissão de avaliação extinta com o acto de adjudicação, comissão que deveria ter sido de novo nomeada nominalmente, por despacho do Chefe do Executivo, entidade recorrida.
  - O acto de abertura e reabertura de concurso público internacional, proferido em processo administrativo complexo como é o procedimento concursal público, é um acto de eficácia externa, exigindo a lei publicidade obrigatória daquele acto.
  - É um facto provado nos autos, que o acto objecto de recurso não é um acto de reabertura de um concurso público com admissão de propostas de concorrentes, estando também provado nos autos que o concurso se encontrava extinto desde 5 de Agosto de 2011, com a prolação do acto de adjudicação e que não foi ordenada pela entidade recorrida a reabertura do concurso internacional, nem publicado em BO o Anúncio de Reabertura, de publicação obrigatória, pelo que o acto recorrido, sendo recorrível por disposição da lei como já demonstrámos está ferido de nulidade por desconformidade com o julgado anulatório e é totalmente ineficaz por falta de publicação.
  - Como decorre da lei, maxime do Decreto-Lei no. 74/99/M, de 18 de Novembro, a sessão pública de abertura de concurso público é o primeiro acto procedimental do concurso, mas para que esse acto tenha lugar é necessário o concurso público estar declarado aberto ou reaberto pela entidade competente, a recorrida, reabertura notificada a todos os concorrentes e cujo anúncio tem que ser mandado publicar no BO da RAEM pela entidade com competência para autorizar a despesa e não pelo serviço subordinado da recorrida - Gabinete para o Desenvolvimento de Infra-estruturas (GDI) - como aconteceu in casu.
  - O acto de reabertura do concurso nunca foi praticado pela recorrida, única entidade competente para ordenar a reabertura do concurso público internacional para a "Modernização, Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau";
   - O tribunal a quo violou o princípio do contraditório, negando o direito processual básico da recorrente a poder pronunciar-se sobre a questão prévia da irrecorribilidade do acto objecto de recurso contencioso.
A entidade recorrida e a contra-interessada Consórcio formado entre B, C e D defendem a manutenção do Acórdão recorrido.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II - Os Factos
A) Foi aberto Concurso Público Internacional para a Modernização, Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau, que se tornou público mediante o Aviso do Gabinete para o Desenvolvimento de Infra-estruturas de 31MAR2010 publicado no Boletim Oficial n.º 13, da II série;
B) A Comissão de Abertura das Propostas decidiu a exclusão da proposta apresentada pelo concorrente n.º 6, ora recorrente, o que foi mantido por despacho de 4 de Novembro de 2010 do Chefe do Executivo;
C) O TUI, por Acórdão de 12 de Outubro de 2011, no Processo n.º 45/2011, anulou o acto administrativo de 4 de Novembro de 2010;
D) O Chefe do Executivo, por despacho de 9 de Novembro de 2011, mandou reabrir o acto público do Concurso Internacional para Modernização, Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau, invocando o disposto no artigo 174.º, n.º 1, do Código de Processo Administrativo Contencioso.
É este o acto recorrido.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
A ora recorrente requereu a suspensão de eficácia do despacho do Chefe do Executivo, de que agora interpõe recurso contencioso.
Em recurso jurisdicional do Acórdão do TSI, que negou a requerida suspensão de eficácia, o TUI, por acórdão de 23 de Maio de 2012, no Processo n.º 22/2012, concluiu pela irrecorribilidade do acto administrativo, por não ser um acto definitivo, não sendo lesivo de quaisquer interesses, nem da requerente, nem dos outros concorrentes, não produzindo efeitos externos. Mais entendeu o mesmo acórdão do TUI que só o acto final de adjudicação será, em princípio, recorrível, podendo os interessados no recurso desse acto suscitar quaisquer vícios procedimentais ou outros. Em consequência, foi negado provimento ao recurso jurisdicional, com fundamento na ilegalidade do recurso contencioso.
O acórdão ora recorrido, de 19 de Julho de 2012, do TSI, rejeitou o recurso contencioso com fundamento nas razões invocadas no acórdão do TUI, de 23 de Maio de 2012, que subscreveu.
Trata-se agora, de saber se temos algo a modificar relativamente ao nosso acórdão de 23 de Maio de 2012. Se não for o caso, impõe-se a confirmação do acórdão recorrido.
A segunda questão a apreciar é a de saber se foi violado o princípio do contraditório, ao não ter sido dada à recorrente a possibilidade se pronunciar pela irrecorribilidade do acto, antes da pronúncia do Acórdão recorrido.
Preliminarmente, há que conhecer de questões de nulidade do Acórdão recorrido, suscitadas pela recorrente.

2. Nulidade do Acórdão recorrido
Antes de mais, o Acórdão recorrido não é nulo por falta absoluta de fundamentação. Remetendo expressamente para o acórdão do TUI de 23 de Maio de 2012 absorveu a fundamentação deste, que é clara e suficiente quanto às razões que sustentam a irrecorribilidade do acto administrativo.
O mesmo Acórdão recorrido não é nulo por não se pronunciar quanto ao mérito do recurso. Desde que considerou que o acto administrativo era irrecorrível não podia conhecer do mérito do recurso.

3. Decisão-surpresa. Princípio do contraditório
Entende a recorrente que foi violado o princípio do contraditório, ao não ter sido dada à recorrente a possibilidade se pronunciar pela irrecorribilidade do acto, antes da pronúncia do Acórdão recorrido. Provavelmente, está a recorrente a querer referir-se concretamente à violação do disposto no artigo 3.º, parte final, do Código de Processo Civil.
Só que tal violação integra a nulidade processual prevista no artigo 147.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que a recorrente não arguiu no local, pelo meio e no momento previstos na lei (arguição de nulidade perante o Tribunal a quo, no prazo de 10 dias a contar do momento em que teve conhecimento do cometimento da nulidade, artigos 148.º, 149.º, 151.º, n.º 1 e 103.º, todos do Código de Processo Civil).
Improcede a questão suscitada.

4. Mérito do recurso
Quanto ao mérito da causa, mantemos integralmente o nosso Acórdão de 23 de Maio de 2012, no Processo n.º 22/2012, sintetizado atrás, nada tendo a alterar quanto ao que se disse a propósito da irrecorribilidade contenciosa do acto administrativo ora recorrido.
Valem aqui, igualmente, as palavras que dedicámos a outro acto administrativo posterior, praticado no procedimento administrativo dos autos, no Acórdão de 8 de Agosto de 2012, no Processo n.º 56/2012:
Dos actos preparatórios não cabe recurso contencioso, a menos que sejam actos destacáveis, como o de exclusão de candidato a concurso, por exemplo. Não é o caso.
Em princípio, só do acto final cabe recurso contencioso.
Na verdade, “são actos administrativos contenciosamente recorríveis os que, produzindo efeitos externos, não se encontram sujeitos a impugnação administrativa necessária” (artigo 28.º, n.º 1, do Código de Processo Administrativo Contencioso).
Só os actos que definem inovatoriamente uma situação jurídica administrativa concreta, ou seja, produzem efeitos de direito administrativo são actos administrativos.1
  De acordo com o ensinamento de VIEIRA DE ANDRADE2, o conceito de “lesividade de direitos e interesses legalmente protegidos” tem de ser interpretado em termos de lesão efectiva da esfera jurídica do particular, devendo concluir-se que não são lesivos senão aqueles actos que produzam (em rigor, até que tenham já produzido) efeitos externos que sejam desfavoráveis ao administrado em termos de ofenderem direitos ou interesses seus juridicamente protegidos.
  E que actos administrativos (em sentido estrito) são apenas aqueles actos que, por si, sejam capazes de produzir efeitos jurídicos externos e, assim, capazes de afectar realmente o círculo de direitos do particular.
  E acrescenta: “Os puros actos preparatórios (que não produzem, por definição, efeitos externos) ou os que se limitem a executar decisões individuais anteriores não podem ser considerados, em si, lesivos do particular, porque a lesão da esfera jurídica ou ainda não aconteceu (e pode não vir sequer a dar-se), ou já se tinha consumado antes”.
  E ainda:
  “Verifica-se, deste modo, que o conceito de acto administrativo na perspectiva da tutela jurisdicional – que não deve ser confundido como um conceito puramente adjectivo de acto recorrível – aponta não só para um acto que deva abrir o acesso aos tribunais (por o acto ser capaz de lesar a esfera jurídica do particular), como para um acto de que tenha de haver impugnação (tem de ser utilizado o meio do recurso, por o acto constituir uma decisão de autoridade que conforma a relação jurídica concreta).
  Ora, esse ‘acto recorrível por natureza‘, que tem de ser impugnado através da forma de recurso, há-de ser justamente aquela decisão de autoridade que regule directamente o caso concreto, com efeitos externos, nas variadas espécies já identificadas pela jurisprudência e pela doutrina – que configure unilateralmente (decida) em termos constitutivos uma relação jurídica externa, como geradora de vantagens, como pronúncia ablatória, como imposição de desvantagens, como pressuposto necessário de efeitos, como avaliação ou qualificação autónoma, como meio de prova legalmente imposto ou como factor de certeza jurídica”3>.
  Um acto que manda reabrir o acto público de um concurso para modernização, operação e manutenção de instalação ambiental não é, por conseguinte, um acto que produz efeitos externos. Logo, não é contenciosamente recorrível.
Não é este o momento próprio para saber se o acto recorrido deu execução integral ou não ao Acórdão do TUI, de 12 de Outubro de 2011, no Processo n.º 45/2011, que anulou o acto administrativo de 4 de Novembro de 2010.
Esse momento será seguramente o processo executivo previsto nos artigos 174.º e seguintes do Código de Processo Administrativo Contencioso ou o recurso contencioso do acto administrativo de adjudicação do concurso que porá termo a este.
Improcede, assim, o recurso.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 4 UC.
Macau, 26 de Setembro de 2012.
  Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei –
  Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho


    1 SÉRVULO CORREIA, Acto Administrativo e âmbito da jurisdição Administrativa, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2001, p. 1167 e também em Estudos de Direito Processual Administrativo (esta com outros autores), Lisboa, Lex, 2002, p. 222.
    2 VIEIRA DE ANDRADE, Algumas Reflexões a Propósito da Sobrevivência do Conceito de Acto Administrativo no Nosso Tempo, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2001, p. 1207.
    3 VIEIRA DE ANDRADE, Algumas Reflexões .., p. 1215.
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1
Processo n.º 59/2012