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Recurso Contencioso nº 344/2009
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 21 de Julho de 2011
Descritores: Audiência de interessados
Lei de Terras

SUMÁRIO:
I- O art. 57º, nº1, al. b), da Lei de Terras permite a não realização de concurso público na concessão de terreno para construção de habitação por cooperativas de habitação, mas a dispensa efectiva por parte da entidade competente traduz o exercício de uma actividade discricionária.
II- No exercício da actividade discricionária, a formalidade essencial de audiência de interessados prevista no art. 93º do CPA, tendo havido instrução procedimental, impõe-se como modo de cumprir o contraditório e, assim, permitir que o interessado participe e influencie a decisão.
III- A preterição dessa formalidade apenas se degrada em não essencial – por isso não invalidante - nos casos previstos nos arts. 96º e 97º do CPA e ainda nos casos da actividade vinculada em que, em juízo de prognose, se conclua que a decisão tomada sempre seria a única possível e inevitável.



Recurso Contencioso nº344/2009

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I- Relatório

A “A”, com sede em Macau, na Rotunda xxxx, nº xx, xº andar, “x”, interpôs recurso contencioso do despacho do Ex.mo Chefe do Executivo de 31 de Março de 2009, que indeferiu o pedido de concessão por arrendamento com dispensa de concurso público de uma parcela de terreno para edificação de quatro vivendas unifamiliares.
Na petição inicial, o recorrente imputou ao acto os vícios de usurpação de poder, de violação de lei, falta de fundamentação, preterição de audiência prévia.
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Contestou a entidade recorrida sustentando a improcedência do recurso.
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O processo prosseguiu para alegações, tendo o recorrente concluído as suas do seguinte modo:
a) O despacho recorrido é nulo pelo vício de usurpação do poder legislativo, face ao disposto no artigo 122.º, n.º2, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo e no artigo 71.º, alínea 1), da Lei Básica, dado ter, em termos práticos, revogado a alínea b) do n.º 1 do artigo 57.º da Lei das Terras;
b) Se assim não se entender, é pelo menos anulável, por vício de forma, consistente na preterição duma formalidade essencial, a saber, a omissão do parecer previsto no artigo 121.º, n.º 1, da Lei de Terras, obrigatório nos termos do artigo 91.º do Código do Procedimento Administrativo, uma vez que na Informação n.º 224/DPU/2008 se conclui: “Propõe-se a apreciação do presente pedido e a emissão da PAO somente após ter apresentado pela requerente os dados bases supramencionados”, proposta essa que obteve a concordância do Chefe da DPUDEP;
c) O despacho recorrido é também anulável, atento o disposto no artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo, por enfermar do vício de violação de lei uma vez que, não obstante dever obediência à lei, o Recorrido pura e simplesmente abstém-se de aplicar a alínea b) do n.º 1 do artigo 57.º da Lei de Terras por entender esta disposição legal “desajustada à realidade actual”, em violação clara do princípio da legalidade enunciado no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo;
d) Assim como por não ter, em flagrante violação do princípio da proporcionalidade previsto no n.º 2 do artigo 5.0 do Código do Procedimento Administrativo, adoptado uma decisão menos gravosa que fosse proporcional aos objectivos a realizar;
e) Caso assim não se entenda, o que, embora não se conceda, se equaciona por mero dever de patrocínio, o despacho recorrido é igualmente anulável, em face do artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo, por padecer de fundamentação insuficiente, incongruente e obscura, dado a justificação aí invocada não concretizar os fundamentos de facto e de direito em que assenta e o parecer e informações para que remete conterem soluções díspares e contraditórias entre si;
f) Finalmente, se nenhum destes vícios proceder, é anulável, por preterição do direito de audiência prévia, dado não se verificar qualquer causa para a sua inexistência ou dispensa nos termos dos artigos 96.º e 97.º do Código do Procedimento Administrativo;
g) Sendo o acto declarado nulo ou anulado, como se espera, outra alternativa não resta à Administração que não seja a de atribuir a pedida concessão por arrendamento.
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A entidade recorrida também produziu alegações facultativas e nelas apresentou as seguintes conclusões:
A - O despacho recorrido não revoga nem em termos práticos nem teóricos o art.º 57º da Lei de Terras, pelo que não padece de qualquer nulidade;
B - Também não padece de qualquer vício de forma não tendo sido preterida qualquer formalidade essencial, mormente porque face à Lei 13/80/M, conjugada com o art. o 57º da Lei de Terras, mesmo que todos os pareceres técnicos fossem positivos, o terreno não poderia ser concedido para o fim pretendido, pelo que a emissão de pareceres suplementares constituiria um acto inútil, consequentemente contrário à boa gestão da coisa pública.
C - O despacho recorrido não viola qualquer lei, como tal não é anulável, violaria sim o art.º 57º da Lei de Terras e a Lei 13/80/M, o deferimento da pretensão do recorrente.
D. - A Administração não violou o princípio da proporcionalidade previsto a n.º 2 do art.º 5º do Código do Procedimento Administrativo, violaria sim, se tivesse deferido o pedido apresentado pela recorrente, além da legislação indicada supra em C, o princípio da igualdade, da justiça e da imparcialidade, face às necessidades de habitação económica que se verificam na RAEM, por comparação ao mega projecto apresentado pela recorrente!
E - A Recorrente constituiu-se sob a forma de cooperativa a fim de poder beneficiar de um conjunto de preceitos legais, nomeadamente o art.º 57º da Lei de Terras e a Lei 13/80/M, com o objectivo claro de obter a dispensa de concurso público na concessão do terreno, esquecendo-se de verificar que não há o mínimo enquadramento entre o pedido e o quadro legal que se lhe aplica.
F. - A fundamentação do acto recorrido é clara e congruente, o parecer e informações para que remete não contêm soluções contraditórias nem díspares, fundamentam antes o indeferimento em razões de vária ordem, nomeadamente técnica - por sobrepor em parte com um terreno objecto de troca - e política - porque não obedece à política de uso prioritário dos terrenos para a diversidade da indústria produtiva.
G - A preterição do direito de audiência prévia, in casu, não deve afectar o acto praticado cujo conteúdo era afinal o único possível, pois a decisão tomada não poderia nunca ser outra em observância das leis aplicáveis ao caso concreto.
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O digno magistrado do MP opinou no seu parecer de fls. 163 no sentido da improcedência do recurso.
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Cumpre decidir.
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II- Pressupostos processuais

O Tribunal é competente em razão da matéria, nacionalidade e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são olegítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.

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III- Os Factos
Dá-se por assente a seguinte factualidade:
1- No dia 8 de Maio de 2008 a recorrente, “A”, requereu ao Ex.mo Chefe do Executivo a concessão por arrendamento, com dispensa de concurso público, de uma parcela de terreno devidamente identificada destinada à edificação de 4 vivendas de tipo unifamiliar isoladas, para uso dos cooperantes, de acordo com o plano de aproveitamento anexado ao requerimento (doc. fls. 15 do p.a.).
2- Na mesma data requereu à Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes a Planta de Alinhamento Oficial relativamente ao prédio onde tal terreno se insere para efeito de ultimação do projecto a nível de estudo prévio de harmonia com o plano de aproveitamento referido.
3- Foi mandado solicitar parecer ao DPUDEP e ao Grupo Consultivo para o Desenvolvimento de Terrenos e informação cadastral sobre o terreno em causa à DSCC (fls. 15 vº).
4- O DPUDEP, através da Comunicação de Serviço Interno (CSI) nº 625/DPU/2008, de 16/06/2008, enviou à DSO a Informação nº 224/DPU/2008, datada de 29/05/2008 (fls. 116 do p.a.).
5- Esta Informação nº 224/DPU/2008 concluía no seu ponto nº6: “Os presentes requerimentos não apresentam fundamentos suficientes para a concessão do terreno sem hasta pública, nem um estudo prévio do projecto de construção para se explicar como se aproveita o terreno, nem uma planta cadastral. Propõe-se a apreciação do presente pedido e a emissão da PAO somente após de ter apresentado pela requerente os dados bases supramencionados” (fls. 113 do p.a.).
6- A DSCC, através do ofício nº 619/CADIV/02.107/799/2008, de 20/05/2008, enviou uma planta com a respectiva informação cadastral, onde se verifica que o terreno em causa pertence à RAEM (fls. 119 e 120 do p.a.).
7- A DAT, através da CSI nº 146/DATSEA/2008, de 2 de Julho de 2008 enviou uma cópia do Parecer emitido pelo Grupo Consultivo para o Desenvolvimento de Terras, o qual apresenta o seguinte teor:
“…Após o seu estudo e análise, constatou-se que o pedido feito pelo requerente de concessão com dispensa de concurso público do terreno referido em epígrafe para construção de uma moradia unifamiliar infringia a política de concessão de terrenos para construção de habitação a adoptar actualmente pelo Governo da RAEM. Ao abrigo do disposto no art. 57º da Lei de Terras, os terrenos concedidos com dispensa de concurso devem destinar-se a empreendimentos de reconhecido interesse para o desenvolvimento da RAEM. Além disso, não tendo o requerente apresentado o projecto de arquitectura do terreno, os membros deste Grupo opuseram-se assim por unanimidade ao pedido referido em epígrafe e propuseram ao Serviço competente que os terrenos destinados à construção de habitação fossem concedidos através de concurso público…” (fls. 43, 45, 110 do p.a.).
8- Em 16/01/2009 foi elaborada a Informação nº 019/DOSDEP/2009 da DSSOPT, que concluía o seguinte:
“…11. Em face do exposto, submete-se a presente informação de Vª Exª a fim de indeferir o pedido efectuado pela “A” por concessão por arrendamento e com dispensa de concurso público, de um terreno….uma vez que foi abertura do processo de troca do terreno identificado pela então Administração, sendo o mesmo não disponível” (fls. 52 e 53 do p.a.).
9- Em 11/02/2009, o Chefe do DSODEP, Substº, sobre esta Informação nº 019/DOSDEP, lavrou o seguinte parecer:
“ Concordo com o informado, propondo o indeferimento do pedido referido em epígrafe, tendo em conta que:
1. O presente pedido de concessão de terreno para construção de vivendas não obedece a política de uso prioritário dos terrenos para a diversidade da indústria produtiva de Macau e para a construção de habitação pública;
2. A dispensa de concurso público é apenas facultativa nos casos das concessões destinadas à construção de habitação própria promovida para os respectivos associados por cooperativas de habitação, nos termos da alínea b) do número 1 do Artigo 57º da Lei de Terras;
3. Só foram concedidos, no final dos anos 80, três lotes de terreno na Colina da Barra destinados à construção de moradias unifamiliares e um lote na Baixa da Taipa destinada a habitação, a favor de uma única cooperativa de habitação designada por “B”, com dispensa de concurso público, nos termos da alínea b) do número 1 do Artigo 57º da Lei de Terras;
4. E ainda, o terreno ora pretendido sobrepõe em parte com um terreno objecto de troca, com o processo aberto a favor de terceiro, cujo seguimento foi autorizado pela então SATOP em 1997” (fls.55 do p.a.).
10- Na mesma data foi emitida proposta do Senhor Chefe do DSODEP, com o seguinte teor:
“ Ex.mo Sr. Director:
1.Na revisão da “Lei de Terras” foi proposta a eliminação da alínea b) do art. 57º, considerando que já não é adequada actualmente a sua aplicação.
2. Tendo em conta as justificações referidas nos pontos 1 a 4 do parecer do Sr. Chefe do DSODEP, e o parecer desfavorável do Grupo Consultivo para o Desenvolvimento de Terrenos, concordo com o proposto, julga-se de indeferir o pedido de concessão do terreno referido em epígrafe. Á consideração superior” (fls. 141 do p.a.)
11- Antes de o procedimento ser submetido a despacho, foi emitido o “Parecer” do DSO datado de 11/03/2009, com o seguinte teor:
“Em face do que é exposto na presente informação e pareceres, e tendo em consideração a alínea b) do nº1 do art. 57º da Lei de Terras, invocado pelo pelo requerente sob a forma de cooperativa de habitação, para a concessão do terreno para fins habitacionais (4 moradias unifamiliares) se encontra desajustada à realidade actual, e cuja eliminação desta disposição foi sugerida pelo Grupo de Trabalho no estudo de revisão da Lei de Terras, concordo e proponho superiormente o indeferimento do pedido de concessão do terreno. À consideração superior” (fls. 141 verso).
12- No dia 31/03/2009 o Ex.mo Chefe do Executivo proferiu o seguinte despacho:
“Concordo e indefiro o requerimento” (fls. 141 do p.a.).
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IV- O Direito
1- Nas conclusões das suas alegações, a recorrente suscitou em 1º lugar o vício de usurpação de poder (legislativo). Em sua opinião, com o acto administrativo praticado, o digno recorrido teria, em termos práticos, procedido à revogação do art. 57º, nº1, al. b), da Lei de Terras (Lei nº 6/80, de 5 de Julho, com as alterações posteriores, nomeadamente a introduzida pelo DL nº 78/84/M, de 21/07), actividade que só o órgão legislativo competente podia efectivamente tomar.
A raiz do pensamento do recorrente mergulha na circunstância de o despacho impugnado ter referido que o citado dispositivo legal se encontra desajustado da realidade actual.
Ora bem. O acto em apreço, de facto, assumiu o conteúdo do parecer (fls. 141 vº do p.a.) e, por isso, o conteúdo deste é, igualmente, o conteúdo daquele. É verdade. De qualquer modo, o acto não assumiu somente o conteúdo deste “parecer”, pois também recebeu a opinião desfavorável manifestada pelo Grupo Consultivo para o Desenvolvimento de Terrenos (ver fls. 144 do p.a.). E esta pequena diferença torna maior a fundamentação do acto, impondo que para o todo se olhe e que dele se não veja apenas a parte.
Mas, ainda assim, concentremos a atenção na minúcia desta invocação invalidante. Será que a alusão ao “desfasamento da realidade actual” deve levar o intérprete a pensar que, com tal afirmação, o autor do acto revogou o art. 57º, nº1, al. b), da Lei de Terras?
Bem, em nossa opinião, a referência que foi feita não passa de uma mera opinião do decisor (que pode estar errada) acerca da necessidade de alteração legislativa (cuja eliminação, de resto, havia sido proposta pelo Grupo de Trabalho no estudo para a revisão da Lei de Terras, a avaliar pelo referido parecer). O aplicador da lei pode, na verdade, fazer a leitura actualista que o caso merecer ou que a situação impuser. Nessa tarefa, pode pensar que determinada norma já não pode ser interpretada com o mesmo sentido ou até mesmo que a sua aplicação já não é possível num ou noutro caso concreto. Ora, isso não significa que o órgão administrativo a esteja a eliminar do mundo jurídico, mas sim que, na acção concreta de aplicação do direito ache que ela já não é mais prestável à resolução do caso. O que é isto, verdadeiramente? Nada mais do que o exercício da actividade do órgão competente para a resolução do caso concreto, logo com os riscos inerentes à sua função, que incluem os lapsos, os erros interpretativos ou até mesmo a enormidade jurídica, casos em que, uma vez verificados, importarão a invalidade da acção/omissão verificada.
Ou seja, a acção/omissão de não aplicação da lei ou errada aplicação da lei pode produzir invalidade, mas não a revogação da lei. E isso basta para que o fundamento invocado neste vício claramente deva improceder.
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2- Invoca também a recorrente o vício de forma traduzido na preterição de uma formalidade essencial (vício novo, mas fundado no conhecimento dos pareceres e informações chamados à colação pela contestação, por isso aqui aceitável) traduzido na omissão do parecer previsto no art. 121º da Lei de Terras, alegadamente obrigatório nos termos do art. 91º do CPA, uma vez que na informação 224/DPU/2008.
O art. 121º diz o seguinte:
Artigo 121.º
(Informações e pareceres)
1. Autuado o requerimento e supridas as eventuais deficiências ou irregularidades, são prestadas as informações e emitidos os pareceres que devem incidir, nomeadamente, sobre:
a) A adequação do terreno ao aproveitamento que nele se pretende realizar;
b) A existência de direitos de terceiros;
c) Os prazos e as fases a fixar no processo de aproveitamento, tendo em vista a natureza e o volume das obras projectadas;
d) As cláusulas acessórias que seja necessário ou conveniente introduzir atentas a finalidade da concessão e a defesa dos interesses do Território e direitos de terceiros.
2. Depois de recolhidos os pareceres e informações, os serviços a que se refere o artigo 112.º pronunciam-se sobre o deferimento ou indeferimento do pedido, especificando naquele caso as condições a que deverá obedecer a concessão.

Deste preceito, decorre, é verdade, como diz a recorrente, que o procedimento deva ser instruído com informações e pareceres que se pronunciem sobre as matérias ali referidas. Nesse sentido, serão obrigatórios, nos termos do art. 91º, nº1, 1ª parte, do CPA. Mas, a questão é saber se esses parecer e informações são vinculativos. E, em nossa opinião, não são, porque dos normativos aplicáveis nada resulta nesse sentido art. 91º, nº1, 2ª parte e nº2, do CPA).
Ora, sendo assim, a verdade é que o parecer do Conselho Consultivo se pronunciou contra a concessão com dispensa de concurso público do terreno referido em epígrafe para a construção pretendida pela recorrente (essa era a pretensão da recorrente, recorde-se), por tal infringir a política de concessão de terrenos para construção de habitação a adoptar actualmente pelo Governo da RAEM. O mesmo parecer deu, aliás, mais duas justificações para a sua opinião desfavorável: Uma tinha que ver com a ideia que emerge do art. 57º da Lei de Terras, preceito segundo o qual, os terrenos concedidos com dispensa de concurso se devem destinar apenas a empreendimentos de reconhecido interesse para o desenvolvimento da RAEM. O que não seria o caso! Outra, decorreria do facto de a recorrente não ter apresentado o projecto de arquitectura do terreno. Todos estes argumentos fizeram parte do conteúdo do parecer e levaram os membros do Grupo a se oporem por unanimidade ao pedido. Não se diga, portanto, que o procedimento concreto não respeitou o formalismo legal aplicável, ou que não observou a tramitação especialmente prevista com a emissão do parecer obrigatório (que, repetimos, não é vinculativo).
E não podemos, sequer, ignorar ainda a existência do parecer do Chefe do DSODEP de 11/02/2009 que se pronunciou contra a concessão pretendida com quatro argumentos (ver facto nº 9).
E se isto se diz do parecer, igualmente se aduz a propósito doas informações necessárias ao pronunciamento sobre a matéria. Na verdade, como se vê do procedimento e parcialmente acima transcrevemos, foram emitidas duas informações dos serviços competentes sobre as questões pertinentes, uma para referir que apenas se haveria de apreciar o pedido depois da junção de elementos em falta (facto nº 5) – mas recorde-se nada disto é vinculativo - outra para propor o indeferimento do pedido com o argumento acrescido de ter sido aberto para o local um procedimento de troca, estando o mesmo nesse momento indisponível (facto nº8).
Não se pode, portanto, dizer ter havido preterição de formalidade essencial.
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3- Prossegue a recorrente imputando ao acto o vício de violação de lei, com a alegação de que o recorrido se teria, pura e simplesmente, abstido de aplicar a alínea b), do nº 1, do art. 57º da Lei de Terras (já na vedação do DL nº 78/84/M, de 21/07)
O artigo em causa dispõe o seguinte:
Artigo 57.º
(Casos de dispensa facultativa)
1. O concurso público pode ser dispensado quando a concessão se destine:
a) A empreendimentos de reconhecido interesse para o desenvolvimento do Território;
b) À construção de habitação própria promovida para os respectivos associados por associações de finalidade eminentemente social ou por cooperativas de habitação;
c) À construção de habitação própria de servidores, no activo ou aposentados, do Território, das autarquias local e de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.
2. Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, será considerada a existência de encargos inerentes à concessão requerida, designadamente obras de resgate e aterro do terreno, sua urbanização e saneamento e remoção de construções provisórias porventura aí implantadas.
Ora, a verdade é que a norma em causa não impõe uma actuação vinculada à entidade administrativa competente, pois ali se diz que o concurso público pode ser dispensado na hipótese de a construção de habitação própria ser promovida para os respectivos associados por cooperativas de habitação. Quer dizer, trata-se de um normativo que não estabelece uma dispensa automática do concurso, antes concede a faculdade de dispensa em função da qualidade do promotor. Só por esta razão, nunca se pode dizer ter havido violação do preceito.
E a violação não acontece, nem mesmo que o acto denegatório se funde também na circunstância de a norma se mostrar “desajustada da realidade actual”. É que, mesmo que esse argumento possa ter pouca sustentabilidade, a verdade é que o acto não se funda somente na proposta do Chefe do DSODEP em que tal era invocado (fls. 141). O acto funda-se também nos pareceres e informações que o antecedem, designadamente o parecer de 11/02/2009 (facto 9) onde são vertidos quatro fundamentos, um dos quais claramente arreigado a razões de índole discricionária (o primeiro), outro referente ao reconhecimento da natureza do poder concedido à entidade (o segundo), outro ainda de carácter informativo, para dar conta do histórico dos pedidos idênticos concedidos desde finais dos anos 80 (o terceiro) e o último para manifestar uma pretensa impossibilidade de deferimento em virtude de o local fazer parte de um procedimento de troca já autorizado em 1997 pelo SATOP (o quarto).
E também não faz sentido, a propósito, a alegação de que a entidade recorrida se teria auto-vinculado ao deferimento do pedido se não fosse o argumento da “caducidade” do citado art. 57º, nº1, al. b). É que nem a “caducidade”, como diz, foi a razão determinante para o indeferimento, nem o conjunto dos restantes fundamentos é contraditório a ponto de se eliminarem entre si e apenas deixarem espaço ao argumento do art. 57º da Lei de terras. Se estamos no domínio da discricionariedade, não vemos em que medida o conjunto de argumentos acolhidos no acto por remissão está possuído por erro manifesto e grave. Pelo contrário, eles (todos) têm razão de ser e são plausíveis no sentido da defesa do interesse público envolvido na matéria em apreço.
A ser assim, dado o universo de razões subjacente ao acto, não se pode dizer que houve violação do art. 57º, nº1, al.b), da Lei de Terras.
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4- Novo é também o vício levado à conclusão d), das alegações, cuja análise aqui não enjeitamos (cfr. art. 68º, nº3, do CPAC) em virtude de assentar no conhecimento superveniente da existência dos pareceres e informações que antecedem a prática do acto e do respectivo conteúdo.
Na opinião da recorrente teria sido violado o princípio da proporcionalidade previsto no art. 5º, nº2, do CPA. E isto por ser “…menos gravoso para o recorrente o deferimento do pedido condicionando-o a apresentar determinadas peças ou desenhos do que indeferi-lo pura e simplesmente” (ponto 49 das alegações), assim como “…seria menos gravoso sujeitar a recorrente ao concurso público do que pura e simplesmente indeferir o pedido” (ponto 50 das alegações).
O princípio da proporcionalidade afere-se em duas perspectivas: ampla e restrita. Numa, evoca-se a substância da decisão; noutra, a dimensão da medida. Na primeira, submete-se a actuação administrativa a parâmetros de adequação: a decisão deve ser idónea, adequada e eficaz na solução do caso concreto. Na segunda, pretende-se que a Administração se determine por medidas que, sem perda de eficácia do seu objectivo, sejam menos gravosas à esfera jurídica das pessoas envolvidas.
Mas aquilo que a recorrente aqui defende, com o devido respeito, não cabe em nenhuma das perspectivas. Se bem entendemos, o que ela sustenta é que, em vez de indeferir o pedido, deveria ser-lhe permitido apresentar determinadas peças ou desenhos ou, até, sujeitá-la a concurso público. Todavia, nem uma coisa nem outra preenchem a violação do princípio. Com efeito, acolher a ideia por si defendida significaria coisa muito diferente do indeferimento que a Administração quis efectivamente tomar. Não seria uma coisa com uma dimensão menor, mas algo diferente. E isso basta para não permitir a configuração do vício. Se a Administração entendia que o indeferimento não era possível, não faria sentido protelar a decisão para momento posterior a fim de permitir que a interessada juntasse algum elemento que, à partida, para a entidade decisora, se lhe afigurava desnecessário ou inútil. Além disso, se a pretensão era a concessão com dispensa de concurso, a decisão de abrir concurso deixava de ser a resposta ao pedido da recorrente, mas algo que corresponderia a uma iniciativa pública a desencadear em função dos interesses públicos do momento a que a recorrente deveria ser alheia e, por isso, por si incontrolável.
Para concluir, enfim, que este vício não pode proceder.
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5- Depois, a recorrente defende a invalidade do acto com base em vício de forma por fundamentação insuficiente, incongruente e obscura.
Mas, não, não tem minimamente razão. O acto em causa, na fundamentação por remissão para os pareceres e informações prévios assimila o conteúdo destes, como se sabe. Ora, a verdade é que praticamente todos esse elementos instrutórios foram no sentido do indeferimento por variadas causas, umas mais expressas do que outras, mas claramente perceptíveis:
Parecer do Grupo Consultivo:
a) Porque o deferimento infringe a política de concessão de terrenos; b) porque a concessão ao abrigo do art. 57º se destina a empreendimentos de reconhecido interesse para o desenvolvimento da RAEM (presumindo-se que este não apresentava esse interesse); c) porque havia falta do projecto de arquitectura do terreno.
Informação 019/DOSDEP:
-Porque tinha sido aberto anteriormente um procedimento para troca de terrenos, não estando este disponível;
Parecer do Chefe do DSODEP:
a) Porque o pedido de concessão não obedece a política de uso prioritário de terrenos para a diversidade da indústria produtiva e para a construção de habitação própria; b) porque a dispensa de concurso é meramente facultativa (portanto, não obrigatória); porque apenas três lotes no final dos anos 80 foram concedidos para este fim (servindo de explicação para a afirmação de que este tipo de concessão não vem obedecendo à política prioritária referida em a)); porque o terreno foi objecto de troca já autorizada em 1997.
“Parecer” do DSO:
Desajustamento da realidade actual da alínea b), do nº1, do art. 57º citado.
Ora, estas considerações, no seu conjunto, são harmónicas, coerentes e não vemos nelas qualquer incongruência ou obscuridade. De uma maneira ou de outra dão a explicação cabal para o indeferimento da pretensão. E mesmo que quase todas relevem do exercício de um poder discricionário, ao menos uma é invocada com o propósito de servir de impedimento ao deferimento do pedido: a troca do terreno. Quer dizer, se os fundamentos discricionários não fossem suficientes ao apaziguamento do sentimento de inquietação da recorrente, ao menos este deveria fazê-la entender que a concessão era, segundo a entidade decisora, juridicamente impossível neste momento, dada a troca de terrenos já encetada.
E assim sendo, já pouca relevância passa a ter a circunstância de a Informação nº 224/DPU/2008 ter mencionado que o requerimento era insuficiente, por não dispor de estudo prévio do projecto de construção, nem de planta cadastral ou ter concluído pela proposta de apreciação do pedido e a emissão da PAO somente após serem apresentados pela requerente os dados bases supramencionados. De facto, se esta primeira informação não rejeitava liminarmente a apreciação do pedido (que considerava estar insuficientemente indocumentado ou instruído), também por outro lado não permite sequer entender que essa apreciação – se e quando realizada -pudesse vir a desaguar numa concessão. Quer isto dizer que nenhuma contradição existe entre este conteúdo e o dos posteriores elementos instrutórios do procedimento. Se a Administração não exigiu a apresentação do projecto (uma vez que a planta cadastral foi junta ao procedimento oficiosamente: ver facto 6 supra) foi por ter entendido que ela não era elemento necessário à decisão de indeferimento. Por conseguinte, não existe o invocado vício de forma por insuficiente fundamentação, porque todas as razões de facto e de direito estão vertidas ao longo do procedimento em tais pareceres e informações de que o acto se apropriou (art. 115º do CPA).
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6- O último vício invocado nas conclusões foi o de preterição de audiência prévia, nos termos dos arts. 96º1 e 97º2 do CPA.
A entidade recorrida, nas suas alegações, desvalorizou a preterição dessa formalidade por considerar que o conteúdo do acto era o único possível face às leis aplicáveis.
Vejamos.
O art. 93º do CPA dispõe que, concluída a instrução do procedimento (se a houver, evidentemente), os interessados têm o direito de ser ouvidos antes de ser proferida a decisão final, sendo para tanto informados sobre o sentido provável desta, salvo nos casos dos art.s 96º e 97º do CPA. O primeiro destes normativos dá conta dos casos de inexistência3 de audiência; o segundo reflecte os casos de dispensa de audiência. Mas, se atentarmos nas suas disposições, logo nos aperceberemos que nenhuma das situações incorporadas na lei se adequa ao caso em apreço. Porque assim, somos forçados a olhar de novo para o art. 93º citado.
Trata-se de um preceito que impõe a observância de uma formalidade que, salvo situações excepcionais, não pode deixar de ser cumprida, o que bem se compreende já que a mesma se destina a possibilitar que o interessado participe e influencie a formação da vontade da Administração e, nessa medida, constitui uma manifestação do princípio do contraditório destinada a protegê-lo de decisões que contrariem a legalidade ou ofendam os seus direitos4
O cumprimento desta formalidade apresenta-se, assim, como uma dimensão qualificada do princípio da participação a que se alude no art. 8.º do CPA5 O cumprimento do disposto no art.º 100.º do CPA constitui, portanto, uma importante garantia de defesa dos direitos do administrado pelo que é considerada uma formalidade essencial, sempre que tenha havido instrução procedimental, tal como aconteceu aqui.
Isto não quer dizer, como a jurisprudência e a doutrina têm em geral admitido, que em certos casos a formalidade se não possa degradar em formalidade em não essencial. São, além dos casos subsumíveis aos arts. 96º e 97º, também as situações em que a relação jurídica tenha na lei uma solução que decorre de uma actividade administrativa vinculada. Quer dizer, se for de concluir que o exercício do direito de audiência em nada iria alterar a decisão concretamente tomada, porque outra não podia ser face à lei, então a formalidade em causa deixa de ser essencial e a sua omissão não tem efeitos invalidantes6. Na verdade, sempre que exista a possibilidade de os interessados, através do exercício da audiência, exercerem influência no desfecho decisório, haverá efeitos invalidantes a extrair da omissão. Ou seja, haverá invalidação em consequência da preterição da formalidade sempre que não for de pensar que a decisão em crise foi tomada com carácter de absoluta inevitabilidade, ou seja, quando o juiz não estiver perfeitamente seguro que outra não podia ser a decisão a tomar à luz da vinculação legal.
Tal é o caso que nos ocupa. Efectivamente, na hipótese em apreço não estamos perante um caso de actuação vinculada, mas sim discricionária, em que a Administração podia deferir (ou não) a pretensão da recorrente desde que considerasse que a construção de habitação promovida pela cooperativa pudesse concretizar uma política sensata e conveniente do uso dos solos, traduzisse a resolução de um problema eminentemente social ou fosse capaz de aplacar, por exemplo, os interesses imobiliários especulativos sem quebra do respeito pelo interesse público dominante.
Ora, isto quer dizer que, no fim da instrução verificada, isto é, após a junção das informações e dos pareceres recolhidos oficiosamente, haveria que ouvir a voz da recorrente, que ao procedimento poderia vir, quem sabe, trazer algum contributo válido, algum novo subsídio, enfim, alguma opinião persuasiva que pudesse fazer inflectir a posição a que aqueles elementos instrutórios tendiam. Ao não fazer assim, a decisão baseou-se apenas na posição unidireccional das entidades administrativas envolvidas. Ou seja, “ouviu-se só um lado”. E isso é o que a lei não permite.
Podia a decisão ser mesma? Admitimos que sim, mas também é possível pensar que não. Quer isto dizer que, sendo discricionária a actividade praticada, era necessário que o contraditório se tivesse observado, de modo a que a decisão final, qualquer que fosse, pudesse ser o resultado de uma ponderação alargada de todos os elementos recolhidos e das opiniões vazadas pelos intervenientes procedimentais.
Ao ter omitido esta formalidade, cometeu a entidade recorrida uma violação sancionável com a anulação do acto7.
***
V- Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso e, em consequência, anulam o acto impugnado.
Sem custas.
TSI, 21 / 07 / 2011.
Presente Jose Candido de Pinho
Vítor Coelho Choi Mou Pan
Lai Kin Hong
(vencido nos termos de
declaração de voto)








Processo nº 344/2009
Declaração de voto de vencido

Vencido quanto ao dispositivo que determinou a anulação do acto recorrido com fundamento na falta de audiência, pois in casu se está em face de um procedimento desencadeado por uma pretensão formulada à Administração pela própria recorrente e a ela foi assegurado ao longo do procedimento o direito à informação nos termos do disposto no artº 63º do CPA por forma a poder pronunciar-se sobre todas as questões que importem à decisão, não se verifica portanto a invocada omissão da audiência dos interessados geradora da anulabilidade do acto recorrido, face ao disposto no artº 97º-a) do CPA.

RAEM, 21JUL2011
Lai Kin Hong

1 O seu teor é o seguinte:
Artigo 96.º
(Inexistência de audiência dos interessados)
Não há lugar a audiência dos interessados:
a) Quando a decisão seja urgente;
b) Quando seja razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão;
c) Quando o número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo nesse caso proceder-se a consulta pública, quando possível, pela forma mais adequada.

2 Que dispõe assim:
(Artigo 97.º
Dispensa de audiência dos interessados)
O órgão instrutor pode dispensar a audiência dos interessados nos seguintes casos:
a) Se os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas;
b) Se os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão favorável aos interessados.

3 Como nos casos de urgência, de que nos dão exemplo os Acs. do TUI de 10/11/2004, Proc. nº 39/2004 e de 21/06/2006, Proc. nº 1/2006.
4 Neste sentido, os Acs. do STA de de 23/09/2004, Proc. nº 01607/02, de 23/05/2006, Proc. nº 01618/02, e de 11/10/2007, Proc. nº 0274/07.
5 S. Botelho, A. Esteves e C. Pinho, in CPA Anotado, 4.º ed., pags.378 e 383.
6 Rui Machete, Relevância Procedimental dos Vícios Processuais; Neste sentido, ver Ac. do TSI, de 9/05/2005, Proc. nº 98/2005; Acs. do TSI de 27/02/2003, Proc. n. 78/2001; de 15/02/2007, Proc. 344/2006 e de 21/10/2004, Proc. n. 196/2003-II; de 31/03/2011, Proc. nº 690/2010. Também Ac. STA de 26/6/97, Proc. Nº 041627.
7 Sobre a necessidade de audiência prévia, vide ainda Ac. do TUI de 18/02/2004, Pro. Nº 13/2003.
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