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Processo n.º 146/2011
(Recurso civil e laboral)

Data: 27/Outubro/2011

RECORRENTES :
Recurso Final
A

Recurso Interlocutório
Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L. (澳門旅遊娛樂有限公司)

RECORRIDAS :
As mesmas

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO

A, patrocinada por advogada, melhor identificada nos autos, propôs contra a Ré, "Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM)", acção para efectivação do direito ao pagamento da compensação pelo dias de descanso semanal anual e feriados obrigatórios, por si não gozados, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia MOP$303.407,00 e ainda no pagamento de juros vencidos e vincendos sobre tal quantia desde a citação.
    Veio esta, a final, a ser condenada a pagar a quantia de HKD$3.155,00 bem como o montante de juros a contar do trânsito da decisão.
    Tendo sido proferido despacho saneador por força do qual foi absolvida a Ré da instância reconvencional por falta de interesse em agir, vem a Ré recorrer, propugnando pela revogação do despacho que o não admitiu e conhecimento do mérito da reconvenção.
    
   Para tanto a STDM, alegou, em síntese conclusiva:
    1. Sem prejuízo de melhor entendimento e Juízo, deve proceder a Reconvenção deduzida pela Ré e Recorrente,
    2. Conhecendo-se dos dois pedidos ínsitos na mesma Reconvenção, nos artigos 229° e seguintes da Contestação e Reconvenção.
    3. Pelo que, salvo melhor entendimento, improcede o douto Despacho Saneador que, a fls. 154 e seguintes e de fls. 157 e seguintes dos autos, absolveu da instância a Autora e aqui Recorrida do pedido da ora Reconvinte, de declaração de validade do contrato por pretensa falta de interesse em agir.
    4. Não existe falta de interesse processual nem falta de interesse em agir por parte da Ré e aqui Recorrente,
    5. Tendo em vista o peticionado nos artigos acima referidos e tendo em vista o valor da Reconvenção (MOP 1.334.702,10),
    6. Bem como o prejuízo objectivo e grave que sobre a Recorrente impende com a presente acção judicial laboral em que são exigidos pela Autora/Reconvinda e aqui Recorrida, a quantia pecuniária peticionada nos autos, que é de MOP 303.047,00, acrescidas de juros de mora legais vencidos e vincendos a contar da data do termo da relação contratual.
    7. Pelo que, não existe fundamento para, quanto ao segundo pedido Reconvencional, absolver-se a A./Reconvinda da instância, por falta do pressuposto processual (interesse em agir) previsto nos artigos 72° e 73°, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aqui aplicável por remissão legal expressa do Código de Processo do Trabalho (CPT),
    8. Tendo sido deduzida a presente Reconvenção no presente litígio justamente, em ordem à celeridade, oportunidade e rapidez processuais do processo laboral,
    9. Escusando a Ré e Recorrente de instaurar novo pleito judicial para reaver o montante das gratificações ou gorjetas recebidas pela Autora e Recorrida, ora Reconvinda, dos clientes dos casinos que a Ré explorou até final de Março de 2002,
    10. Levando em linha de conta o expendido na Contestação / Reconvenção, para requerer a V. Exas do douto Tribunal ad quem que revoguem o douto Despacho recorrido, desde logo, na parte em que absolveu a aqui Recorrida da instância por alegada falta de "situação objectiva e grave" e por falta ou inexistência de uma "situação de carência que justifique o recurso às vias judiciais", como ficou expresso no referido Despacho que aqui se recorre interlocutoriamente,
    11. Sobre o "outro" pedido Reconvencional, decidido na segunda parte do douto Despacho ora em crise e em recurso, o locupletamento sem causa da Reconvinda à custa da Ré e Recorrente, em MOP 1.334.702,10, tal quantia monetária traduz o valor das luvas ou gorjetas que recebeu e que,
    12. De uma forma repetida e excessiva, procura agora no presente pleito, enriquecer-se novamente à custa da Ré e aqui Recorrente, ao peticionar mais de trezentas e três mil patacas por pretensa falta de descansos semanais, anuais e feriados obrigatórios,
    13. Descurando-se o facto essencial de ter auferido um elevadíssimo rendimento ao longo dos anos em que prestou serviço e foi funcionário da Ré e Recorrente,
    14. Desde logo, por mor das luvas, gratificações ou gorjetas prestadas pelos Clientes e distribuídas pela Ré e aqui a Recorrente.
    15. O Mmo Juíza a quo considerou não estarem preenchidos os fundamentos do instituto enriquecimento sem causa.
    16. Houve revelia operante da A., ora Recorrida, notificado para responder à reconvenção em sede de resposta à contestação, manteve o silêncio.
    17. Ou seja, não contestou nem replicou, logo, sibi imputet, devendo ser condenada de preceito porque,
    18. Tal silêncio tem a cominação dada pelo número 1 do artigo 32° do CPT, i. e., consideram-se reconhecidos os factos articulados pelo autor e é logo proferida sentença, julgando a causa conforme for de direito.
    19. Em consequência todos os factos alegados nos artigos 2290 e seguintes da Contestação/Reconvenção deveriam ter sido considerados reconhecidos e, em consequência, provados.
    20. O Mmo. Juiz a quo não se pronunciou sobre tal revelia operante em relação à Reconvenção da ora Recorrente, a qual é uma contra-acção, que deve seguir os mesmos termos de uma petição inicial.
    21. A aqui Recorrida deveria ter sido condenado de preceito no pedido reconvencional, como se aludiu.
    22. A causa para o enriquecimento da aqui Recorrida assentava na sua renúncia expressa à remuneração em dias de descanso (semanal, anual e feriados obrigatórios).
    23. Apenas por ter aceitado não ser remunerado durante a relação laboral, a R., ora Recorrente, permitiu à A., ora Recorrida, participar no esquema das gratificações, luvas, prémios irregulares ou "gorjetas", entregues pelos terceiros, os Clientes da Recorrente nos casinos explorados até 31 de Março de 2002,
    24. Verdadeiras liberalidades ou doações remuneratórias, e não salário nem obrigação legal ou factual da ora Recorrente,
    25. Isto é, a causa deixou de existir no momento em que a acção foi intentada, passando, no entendimento da Recorrente, a A./Recorrida a estar obrigada a restituir o indevidamente recebido a título de gorjetas.
    26. Ao receber parte das gorjetas, cuja causa para o seu recebimento era o não ser remunerada nos seus dias de descanso, parece forçoso concluir que a Recorrida enriqueceu à custa do empobrecimento da Ré, ora Recorrente, quando intentou a presente acção.
    27. Não é só quando não há nenhuma causa para as deslocações pecuniárias que o instituto do enriquecimento sem causa poderá ser invocado, como parece inferir-se daquilo que doutamente refere o despacho recorrido, mas, ao invés, quando a causa para essa deslocação deixa de existir.
    
    Termos em que se requer a procedência da reconvenção deduzida na contestação e o seu conhecimento, revogando-se o despacho saneador que indeferiu a mesma reconvenção, prosseguindo-se deste modo os autos com o conhecimento do mérito da mesma.
    
    Da decisão final vem recorrer a parte A., a trabalhadora, alegando basicamente que as gorjetas devem integrar o salário do trabalhador e defendendo a aplicação de outras fórmulas de cálculo para as diferentes compensações dos descansos não gozados.
    
    A STDM, Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L. defende a bondade do decidido.
    
    Oportunamente, foram colhidos os vistos legais.
    
    II - Factos
    Vêm provados os factos seguintes:
    “Da confissão e das provas documentais resultam provados os seguintes factos:
    FACTOS PROVADOS
    1. A Ré teve por objecto até 31 de Março de 2002, a exploração de jogos de fortuna e azar em casino, a indústria hoteleira, de turismo, transportes aéreos, marítimos e terrestres, construção civil, operações em títulos públicos e acções nacionais e estrangeiros, comércio de importação e exportação.
    2. A Autora A começou a trabalhar para a Ré STDM, em 27 de Janeiro de 1979 e deixou de trabalhar para a mesma Ré em 26 de Junho de 1993.
    3. Inicialmente, a autora exerceu as funções de assistente de clientes, a partir de 1980, de croupier.
    4. O rendimento da Autora era constituído por uma quantia fixa diária e por uma quantia variável correspondente a uma quota-parte das gratificações ou gorjetas diárias recebidas dos clientes do casino e distribuídas pela ré de acordo com critérios por esta estabelecidos.
    5. A Autora, entre os anos de 1989 e 1993, recebeu as seguintes quantias:
    a) 1989: 147.146,00;
    b) 1990: 170.714,00;
    c) 1991: 165.654,00;
    d) 1992: 181.100,00;
    e) 1993: 116.056,00.
    6. A Autora prestou serviços em turnos, conforme horários fixados pela entidade patronal.
    7. Os turnos eram os seguintes:
    1. 1° e 6° turnos, das 07h00, às 11h00 e das 03h00 até às 07h00:
    2. 3° e 5° turnos, das 15h00 às 19h00 e das 23h00 às 03h00 (do dia seguinte);
    3. 2° e 4° turnos, das 11h00 às 15h00 e das 19h00 às 23h00.
    
    8. Enquanto esteve ao serviço da Ré, esta nunca autorizou a Autora a gozar descansos semanais remunerados.
    9. A Ré também não autorizou a Autora a gozar os feriados obrigatórios remunerados.
    10. E também nunca a autorizou a gozar, naquele período, descansos anuais remunerados.
    11. Nunca a ré pagou à autora qualquer acréscimo salarial.
    12. Autora e ré acordaram que aquela auferia uma remuneração diária fixa por cada dia de trabalho efectivo, de valor simbólico e uma quota nas gorjetas doadas pelos clientes da ré, de montante imprevisível.
    13. A referida quantia fixa foi de MOP$4,10 por dia, desde o início da relação laboral até 30/06/1989, e de HKD$10,00 por dia, desde 01/07/1989 até ao fim da relação laboral.
    14. Acordaram ainda Autora e Ré que caso o trabalhador pretendesse gozar dias de descanso ou se por qualquer motivo não pudesse prestar o seu trabalho, perdia o direito aos montantes referidos em 12).
    15. A autora nunca viu retirada a possibilidade de pedir dias de ausência ao emprego quando bem desejasse e entendesse fazê-lo.
    16. As gratificações dos terceiros/clientes dos casinos que a mesma explorou até 31 de Março de 2002 eram recebidos pelos croupiers que as ofereciam se quisessem e diariamente reunidas, contabilizadas e guardadas por uma Comissão Paritária com a seguinte composição: um funcionário do Departamento da Inspecção e Jogos de Fortuna ou Azar, um membro do Departamento de Tesouraria da Ré, um gerente de Andar ou Floor Manager e um ou mais Trabalhadores/croupiers da Ré a operar nas mesas de jogo. “
    
    III – FUNDAMENTOS
    
    A - Recurso do Saneador
    A Ré deduziu pedido reconvencional, peticionando a devolução do montante pecuniário auferido a título de gratificações ou de luvas ou de gorjetas e fosse considerado válido o contrato celebrado segundo o qual a A. renunciou às quantias pecuniárias auferidas em dia de descanso anual e nos dias feriados.
    O Mmo Juiz absolveu a Ré da instância reconvencional por falta de interesse em agir.
    Esta questão que ora vem colocada foi já apreciada por este Tribunal de Segunda instância que se pronunciou por diversas vezes sobre a inadmissibilidade do pedido reconvencional tal como deduzido pela Ré.1
    E não nos afastamos ainda aqui do que tem sido decidido sobre esta matéria, sufragando as teses anteriormente sustentadas a propósito desses pedidos.
     Na verdade, estabelece o artigo 17º do CPT:
    “1- O pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção;
    2- O réu se propõe obter a compensação;
    3- Entre o pedido do réu e a relação material subjacente à acção exista subsidiariedade, complementaridade ou dependência.”
    Em resumo elencamos aqui as razões essenciais para não admitir a reconvenção na situação sub judice.
    Muito embora exista uma relação entre os dois pedidos - que tem que ver com a relação laboral existente - para além disso não se observa qualquer outra conexão entre os dois pedidos. Na acção o trabalhador pede as compensações devidas pelo não gozo de determinados descansos; nem sequer se pode dizer que peticiona salários não pagos. Na reconvenção a entidade patronal pede a devolução das gorjetas entregues.
    E sobre isto não se deixa de observar uma contradição insanável no pedido que formula, porquanto se pede as gorjetas porque elas não eram salário, então por que razão as entregou ao trabalhador? Se eram gorjetas com que legitimidade pede a devolução baseada em eventual enriquecimento em causa se se se tratava de dinheiro entregue pelos clientes? Será que irá devolver esse dinheiro aos clientes?
    Se não, o enriquecimento que se configura reverte contra si.
    Por outro lado, configurando-se essa entrega a que procedeu, como integrante do salário, - como adiante e reiteradamente se te sustentado nesta Instância – então, ainda aí, não faz sentido que se radique aí qualquer pedido reconvencional, por falta manifesta de fundamento para tal e por não autonomização de qualquer crédito da entidade patronal em relação ao pedido do trabalhador.
    E quanto se vem dizendo tanto basta para concluir que não há lugar a qualquer compensação, já que não existe reciprocidade de créditos ou uma oposição de direitos entre as partes, configurando-se sem o mínimo fundamento a sua pretensão, não se podendo tutelar o recurso a um procedimento adjectivo que à partida se mostra destituído de sentido ou fundamento.
    Essa falta manifesta de fundamento para esse pedido resulta do facto de não vir explicado o porquê da entrega indevida desses montantes, já que mesmo na perspectiva da Ré, sendo gorjetas puras, elas pertenciam aos trabalhadores, por outro lado; não se tratava de dinheiro que fosse da Ré razão porque não se compreende que seja esta a pedir o indevidamente entregue.
    O pedido da Ré é um verdadeiro non sense que quase toca as raias da má-fé.
    Como já se assinalou no processo acima citado “Ora, o que a ré pede não é o reconhecimento e a consequente satisfação de nenhum crédito contra a autora-credora, mas sim a devolução de importâncias que a esta havia entregue. Mas os argumentos utilizados pela ré para a pretensão que formula, que se limitam a entrar em rota de colisão com a pretensão da autora, só acentuam a vertente exceptiva de que tais importâncias não devem fazer parte do salário; e nesse sentido é questão que pode ser, e é conhecida, enquanto parte integrante do núcleo do mérito substantivo da acção.
    O que acaba de dizer-se conflui para a apreciação do último dos requisitos (nº3). Vistas as coisas pelo prisma acabado de referir, não se pode dizer que seja acessória, complementar ou dependente a relação material subjacente relativamente ao pedido da causa principal. Se tomarmos como referência a doutrina que emerge do Ac. do STJ de 22/11/2006, Proc. nº 06S1822, logo se torna patente que o caso não se assemelha à hipótese da norma. Na verdade, nenhuma daquelas características (acessoriedade, complementaridade e dependência) se verifica nas hipóteses em que a um pedido do autor é contraposto um pedido conflituante do réu assente numa questão autónoma. No caso, o que moveu a autora foi o não gozo de dias de descanso contemplados na lei com uma especial remuneração (portanto, violação da legislação laboral), em cujo cálculo a impetrante inclui as gorjetas; o que move a ré reconvinte é a devolução de somas de dinheiro de gorjetas que havia, admitamos por facilidade de raciocínio e exposição, “dado” (a título de liberalidade) ou “pago” (a título de remuneração). Mas a verdade é que, fosse a que título fosse, essa questão - se até poderia relevar em sede de abuso de direito, na medida em que a reconvinte age agora por causa de atitude que livremente tomou (o que pode configurar venire contra factum proprium: Ac. STJ de 17/04/2008, Proc. nº 07S4747) – é estudada na perspectiva do mérito da acção. E quando os fundamentos em que os pedidos da acção e da reconvenção são completamente diferentes, como é o caso, a jurisprudência é unânime em não admitir a segunda (a título de exemplo Ac. do STJ de 19/01/2011, 557/06.2TTPRT.P1.S1).”
    Face ao que fica exposto, mais do que falta de interesse em agir verifica-se uma falta de fundamento manifesta conducente à improcedência dos próprios pedidos reconvencionais.
    Donde se julgar improcedente este recurso interlocutório.
    
    B - Recurso da decisão final
    1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
- Da natureza jurídica do acordo celebrado entre recorrente e recorrida;
- Do salário justo; determinação da retribuição; as gorjetas auferidas pelos trabalhadores de casino integram ou não o seu salário?
- Do não gozo de dias de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios;
. prova dos factos; prova do impedimento do gozo;
. liberdade contratual; da admissibilidade de renúncia voluntária ao gozo de dias de descanso semanal, anual, feriados obrigatórios;
- Integração da natureza do salário; mensal ou diário;
 - Determinação dos montantes compensatórios dos dias de trabalho prestado em dias descanso e festividades.

    As diferentes questões foram abordadas em vários e abundantes arestos dos Tribunais de Macau, referindo-se que em praticamente todos eles se conseguiu uma unanimidade de entendimento, tanto na 1ª Instância, como neste Tribunal de Segunda instância.2
    Depois disso, sobrevieram algumas decisões do TUI3, que decidiu contrariamente à posição que granjeara unanimidade total numa questão fundamental, qual seja a de saber se as gorjetas dos trabalhadores dos casinos da STDM integravam o salário.
    Perante tais decisões daquele Alto Tribunal, essa questão, bem como as outras que se colocavam, foram já tratadas devidamente numa série de acórdãos deste Tribunal de Segunda Instância e nesta secção em particular, aí se explicando, com o devido respeito, as razões do não acatamento da interpretação do TUI, cientes de que a responsabilidade pela uniformização da Jurisprudência não pode depender unicamente do critério de cada julgador, devendo ser implementada pelo legislador.4
    
    Por essa razão, nessa, bem como nas restantes questões, remetemo-nos para a Jurisprudência deste Tribunal de Segunda Instância.
    
    Ressalva-se a inflexão nessa Jurisprudência, a partir de 31/3/2011, v.g. com o processo n.º 780/2007, de 31/3/2011, deste TSI, apenas para os cálculos de algumas compensações relativamente aos descansos não gozados.
    
    2. Posto, isto, passa-se de imediato à abordagem das questões que vêm colocadas no recurso, o que se fará, pelas razões acima aduzidas, em termos sintéticos.
    
     A primeira questão que se deve apreciar é a da caracterização da relação jurídica existente, o que se reconduz, no fundo, a saber se estamos ou não perante um contrato de trabalho entre ambos celebrado.
    
    Em face do artigo 1079.º do Código Civil, artigos 25º e 27º do anterior RJRL - cfr. artigos 1º, 4), 9º, 2), 57º da actual LRT, Lei 7/2008, de 12 de Agosto, em princípio não aplicável aos contratos findos, face à redacção do disposto no art. 93º -, art. 23°, n.º 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 7º do Pacto sobre Direitos Económicos Sociais e Culturais e pela Convenção da OIT n.º 131, direitos que por essa via não deixam de ser tutelados pela própria Lei Básica no seu artigo 40º, decorre, face à factualidade apurada, que parece não restarem quaisquer dúvidas de que nos encontramos perante um verdadeiro e puro contrato de trabalho entre o empregado e a empregadora, em que esta, mediante uma retribuição, sob autoridade, orientações e instruções daquela, começou a trabalhar na área de actividade ligada à exploração de jogos de fortuna ou azar.
    
    Temos assim por certo que o contrato celebrado entre um particular e a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A., para aquele trabalhar naquela área dos casinos, sob direcção efectiva, fiscalização e retribuição por parte desta, deve ser qualificado juridicamente como sendo um genuíno contrato de trabalho remunerado por conta alheia, contrato esse que deve ser remunerado com uma retribuição justa.
    
     
     3. Fundamentalmente, o que está em causa é saber se as gorjetas integram o salário do trabalhador. Anote-se que o que interessa é a consideração do que seja o salário para efeitos das compensações a contemplar, face ao que reclamado vem nos autos.
     
     
     O cerne da questão residirá em saber se, face à matéria de facto, melhor apreendida pelas Instâncias, filtrada e burilada através de tantos e tantos outros processos, se ela não predispõe num outro sentido compreensivo mais abrangente da realidade com que deparamos nos casos da STDM e neste em particular.
     
     A questão não pode ser desenquadrada do seu todo, do rendimento efectivo expectável, da prática adoptada e reiterada anos e anos a fio, da natureza específica da exploração e actividade de um casino, da realidade diversa da de outros ordenamentos em termos de Direito comparado.
    O carácter de liberalidade e eventualidade das gorjetas é contrariado pelo facto de as mesmas, no caso dos casinos da STDM, serem por esta reunidos, contabilizados e distribuídos e não se diga que o sistema de contabilização e distribuição pela empresa representa o sistema mais justo e que mais beneficia o trabalhador não é argumento decisivo, pois que sempre se pode entender que essa prática se insere no próprio processo contratual entre as partes e que por isso mesmo o trabalhador espera com uma forte probabilidade vir a auferir uma massa de rendimentos, só por via dela anuindo à celebração daquele contrato de trabalho.
    
    É verdade que quanto à perspectiva tributária incidente sobre as gorjetas esse argumento não se mostra decisivo.
    Na perspectiva tributária de direito público, o imposto profissional é um imposto parcelar, estruturado cedularmente, mediante o qual se submete a regime específico de incidência, determinação da matéria colectável e taxa os rendimentos decorrentes do trabalho, por conta de outrem ou por conta própria. Englobam-se nesse tipo de rendimento as gratificações ou gorjetas espontânea e livremente entregues, na sequência de uma reiterada prática social, pelos beneficiários de um determinado serviço ou trabalho, e por causa deste, aos que executaram esses serviço ou trabalho.5
  
    Não obstante o princípio da autonomia privada, há que ter em conta, principalmente no que respeita à liberdade de estipulação do conteúdo, determinadas normas que não podem ser afastadas pela vontade das partes, as quais limitam a liberdade contratual, impondo, pelo menos, um conteúdo mínimo imperativo.
    
    As gorjetas dos trabalhadores da STDM, na sua última ratio devem ainda ser vistas como "rendimentos do trabalho", sendo devidos em função, por causa e por ocasião da prestação de trabalho, ainda que não originariamente como correspectividade dessa mesma prestação de trabalho, mas que o passam a ser a partir do momento em que pela prática habitual, montantes e forma de distribuição, com eles o trabalhador passa a contar, estando nós seguros de que sem essa componente o trabalhador não se sujeitaria a trabalhar com um salário que na sua base é um salário de miséria.
    
    Não se deixam de encontrar no Direito Comparado situações em que a gorjeta integra o valor da remuneração, assim acontecendo no Brasil, compreendendo-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago directamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber e considerando-se gorjeta não só a importância espontaneamente dada pelo cliente ao empregado, como também aquela que for cobrada pela empresa ao cliente, como adicional nas contas, a qualquer título, e destinada à distribuição aos empregados.
    Salvaguardando a diferença de sistemas, assim acontece igualmente nos EUA.
    Assim acontece em Hong Kong, onde ainda recentemente o Court of Final Appeal decidiu ratificar o entendimento do Court of Appeal no sentido de que as gorjetas deviam integrar o salário com argumentos próximos dos acima expendidos.6
    
    Por outro lado, em Portugal, não minimizando a douta doutrina citada pelo TUI, não se deixa de assinalar, como acima se referiu, que a realidade fáctica diverge em ambos os ordenamentos e num ponto que se nos afigura essencial, qual seja o de em Portugal o rendimento mínimo estar garantido por lei.
    
    4. Do não gozo de dias de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios;
    . prova dos factos
  . liberdade contratual; da admissibilidade de renúncia voluntária ao gozo de dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios.
  
    Provou-se que o trabalhador em questão trabalhou nos dias de descanso semanal, anual e também feriados obrigatórios e não recebeu qualquer acréscimo.
    Para que haja erro manifesto na apreciação da prova tem de resultar da alegação da parte recorrente e dos elementos dos autos a probabilidade de existência de erro de julgamento, o que decorre da indicação não só dos pontos considerados incorrectamente julgados, como da indicação dos concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa (cfr. artigo 599º, n.º 1, a) e b) e 629º do CPC).
    
    No que ao ónus da prova respeita só importaria apreciar a questão em caso de falta de prova dos factos alegados pela parte a quem cabia o ónus de provar os factos integrantes do seu direito(cfr. o n.º 1 do art. 335° do CC), de forma a daí retirar as devidas consequências.
    
    5. Da liberdade contratual.
    Ao interpretar e aplicar qualquer legislação juslaboralística em sede do processo de realização do Direito, temos que atender necessariamente ao “princípio do favor laboratoris”, princípio que para além de “orientar” o legislador na feitura das normas juslaborais (sendo exemplo paradigmático disto o próprio disposto no art.º 5.º, n.º 1, e no art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril), deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou a solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir.
    
    Do que acima fica exposto decorre que se A. e Ré podiam acordar nos montantes da retribuição (e o problema que se põe nessa sede não é já o do primado da liberdade contratual mas sim o da determinação da vontade das partes quanto à integração dessa retribuição) já o mesmo não acontece quanto ao gozo dos dias de descanso, férias e feriados e sua remuneração.
    
    6. Da errada interpretação e aplicação do n.° 4, do art. 26° do RJRT - da violação do n.° 2 do art. 564º do CPC
     E ainda da configuração do salário como mensal.
    
    As características e natureza do trabalho, tal como vem provado, harmonizam-se mais com o considerar que se tratava de um salário mensal, estando a remuneração não já dependente do resultado de trabalho efectivamente produzido, nem, tão-pouco, do período de trabalho efectivamente prestado.
    
    Da redacção do n.º 4 do artigo 26º decorre uma consequência importantíssima na interpretação das normas que atribuem as compensações pelo trabalho prestado nesses dias. É que o n.º 1 do art.º 26.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, atentos os termos empregues na redacção da sua parte final, - os trabalhadores que auferem um salário mensal...não podendo sofrer qualquer dedução pelo facto de não prestação de trabalho nesses períodos (períodos de descanso semanal e anual e feriados obrigatórios) - visa tão-só proteger o trabalhador contra eventual redução do seu salário mensal por parte do seu empregador sob pretexto de não prestação de trabalho nesses períodos e, por isso, já não se destina a determinar o desconto do valor da remuneração normal na compensação/indemnização pecuniária a pagar ao trabalhador no caso de prestação de trabalho em algum desses dias.
    
    Essa posição, no respeitante ao tipo do salário, releva para aplicação do n.º 6 do art.º 17.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, na actual redacção dada pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 32/90/M, de 9 de Julho, já que na hipótese de pagamento do trabalho prestado em dia de descanso semanal, por força do n.º 6, é ao disposto na sua alínea a) que se atende e já não ao determinado na sua alínea b).

7. Da lei aplicável.
    Ainda aqui nos remetemos para o desenvolvimento feito nos acórdãos já citados.
     Posto isto, assim se entra na análise da correcção da sentença recorrida quanto ao apuramento das compensações devidas pela entidade patronal, por violação dos diferentes tipos de descanso do trabalhador e assim do invocado erro de direito em relação às pertinentes normas reguladoras daquelas compensações.
    Neste caso particular acompanhamos as fórmulas adoptadas na Jurisprudência quase unânime deste Tribunal, unanimidade que sofreu até ao momento apenas a excepção da compensação do trabalho prestado em dias de feriados obrigatórios e a inflexão a partir de 31/3/2011, com o processo n.º 780/2007, de 31/3/2011, deste TSI .7
    Donde passaram a resultar as seguintes fórmulas:

No âmbito do
Descansos semanais
Descansos anuais
Feriados Obrigatórios
DL101/84/M
X1
X1
X1
DL24/89/M
X2
X1
X3



8. Resultam dos autos os seguintes rendimentos da trabalhadora:


Ano
Salário Médio Diário
1
1989
408.73
2
1990
474.20
3
1991
460.15
4
1992
503.05
5
1993
655.68
    
Há, assim, que refazer os cálculos a partir dos valores integrantes do salário do trabalhador, na certeza de que o objecto do recurso é circunscrito pela própria recorrente ao conceito de salário e às fórmulas utilizadas.
Donde terem de se alterar as fórmulas e factores de cálculo adoptados pelo Mmo Juiz a quo, na medida em que impugnadas pelo próprio recorrente e se desconformes com o que vem sendo adoptado por este Tribunal.
Não deixamos de registar que vem provado o não gozo dos descansos em causa.

9. Trabalho prestado em dia de descanso semanal

Em sede do DESCANSO SEMANAL importa alterar os montantes, face aos valores do salário relevante apurado, alterando-se a fórmula encontrada por vir recurso interposto quanto a essa questão.

  Assim,
     (sob a alçada do Decreto-Lei n.° 24/89/M):
Ano
número de dias
vencidos e não gozados
(A)
remuneração
diária média
em MOP
(B)
Quantia indemnizatória
(A x B x 2)
1989
21
408.73
17,166.66
1990
52
474.20
49,316.80
1991
52
460.15
47,855.60
1992
52
503.05
52,317.20
1993
25
655.68
32,784.00


Total das quantias

199,440.26


    
     10. Descanso anual
     Em sede de DESCANSO ANUAL, importa igualmente recalcular os montantes apurados, mantendo-se a fórmula da sentença da 1ª Instância por não impugnada.
     Nesta conformidade, no âmbito do
     
Decreto-Lei n.º 101/84 e
n.º 24/89/M


Ano
dias vencidos mas não gozados
nesse ano
(A)
valor da remuneração diária média nesse ano em MOP
(B)
Quantia indemnizatória
em MOP
(A x B x 3)
1989
2
408.73
2,452.38
1990
6
474.20
8,535.60
1991
6
460.15
8,282.70
1992
6
503.05
9,054.90
1993
3
655.68
5,901.12
Total dessas quantias →
34,226.70

    
    11. Feriados obrigatórios
    
    Ainda aqui há que alterar os valores encontrados, quer quanto aos valores dos salários médios diários quer quanto à fórmula por impugnada.


Assim,


FERIADOS OBRIGATÓRIOS “REMUNERADOS”
(só no período de trabalho desde 3 de Abril de 1989,
sob a alçada do Decreto-Lei n.° 24/89/M)

Dias
Não gozados e vencidos
(A)
valor da remuneração
Diária média em MOP
(B)
Quantia indemnizatória
em MOP
(A x B x 3)
1989
2
408.73
2,452.38
1990
6
474.20
8,535.60
1991
6
460.15
8,282.70
1992
6
503.05
9,054.90
1993
6
655.68
11,802.24


Total
40,127.82

12. Licença de maternidade
LICENÇA DE MATERNIDADE
(artigo 37º do DL 24/89/M)

Dias
Gozados mas não compensados
(A)
valor da remuneração
Diária média em MOP
(B)
Quantia indemnizatória
em MOP
(A x B)
1992
35
503.05
17,606.75


Total dessas quantias →
17,606.75


vs o total achado na sentença:
360.50

13. Concluindo,
Os valores encontrados para a compensação dos descansos semanais , anuais e feriados obrigatórios alteram-se em conformidade com os valores constantes dos mapas supra;

Conclui-se assim pela existência dos apontados vícios de interpretação dos factos e de direito.

Tudo visto e ponderado, resta decidir,

IV - DECISÃO

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam os Juízes que compõem o Colectivo deste Tribunal, em conferência, em:

- negar provimento ao recurso interlocutório interposto pela STDM, julgando improcedentes os pedidos reconvencionais;

- procedente o recurso da decisão final interposto pela trabalhadora, alterando a sentença proferida e condenando a Ré a pagar à A. os montantes em conformidade com os valores calculados nos mapas supra;

- em condenar no pagamento dos juros de mora, a contar a partir do momento desta decisão, vista a alteração verificada em relação à liquidação feita em 1ª Instância (cfr. Ac. TUI69/2010, de 2/3/11).

Custas pela Ré, recorrida no recurso final, e também pela Ré, recorrente no recurso interlocutório.
                   
                   Macau, 27 de Outubro de 2011,
_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)

_________________________
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Cfr., por todos, Ac. 537/2010, de 28/7/2011
2 - Processos 241/2005, 297/05, 304/05, 234/05, 320/05, 255/05, 296/05, respectivamente de 23/5/06, 23/2/06, 23/2/06, 2/3/06, 2/3/06, 26/1/06, 23/2/06, 330/2005 , 3/2006, 76 /2006.
3 - Processos 28/2007, 29/2007, 58/2007, de 21/7/07, 22/11/07 e 27/2708, respectivamente
4 - Cfr. processos, deste TSI, de 19/2/09, 314/2007, 346/2007, 347/2007, 360/2007, 370/2007
5 - Parecer da PGR n.º P001221988, de 18/11/88
6 - Proc. 55/2008, de 19/1/09, betweeen Lam Pik Shan and HK Wing On Travel Service Limited, in http://www.hklii.org/hk
7 - Vd. douto voto vencido nos Acórdãos 234/2005 e 257/2007, de 2/3/06 e 9/3/06, respectivamente
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146/2011 1/27